26763606 Direito Das Coisas

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    Direito das coisas

    Introduo

    Captulo I Dos direitos reais em geral

    1. O direito patrimonial

    Direito Civil No patrimonial ex. Direitos pessoais de famlia;

    direitos de personalidade; etc. No se

    inserem nas normas que regulam a troca

    de bens em termos econmicos, nem nas

    normas que definem a atribuio dos

    bens e a sua utilizao.

    Patrimonial regulador das relaes de contedo

    econmico e susceptveis de avaliao

    pecuniria.

    Tem como funo a definio do regime de bens

    econmicos. Estes bens econmicos, sendo bens escassos, geram frequentes

    conflitos de interesse. Da que o direito aparea a regular estas situaes de

    conflitualidade imanentes procura dos bens econmicos, que reclamam

    uma ordem que arbitre o domnio desses bens.

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    ento ao Direito Patrimonial (no qual se enquadra o direito das

    coisas) que cabe fazer esta regulao da utilizao e da disponibilidade dos

    bens e ainda do acesso e circulao desses bens. Distinguem-se deste modo

    dois tipos de normas que constituem o direito patrimonial:

    1) normas que regulam o acesso aos bens e a sua circulao entre as

    pessoas (acesso e circulao dos bens).

    2) normas que regulam a disponibilidade dos bens, isto , a sua

    apropriao, utilizao e disposio imediata (apropriao,

    utilizao e disposio dos bens).

    Assim, dentro do Direito Patrimonial encontram-se dois ramos

    distintos do Direito:

    1) Direito das Obrigaes (regula o acesso e a circulao dos bens).

    2) Direitos Reais/Direito das Coisas (regula a disponibilidade e a

    disposio efectiva dos bens).

    1) Direito das Obrigaes conjunto de normas que regulam o

    acesso e a circulao dos bens no sentido da sua aquisio. O seu

    tratamento jurdico incide sobre a transmissibilidade e acesso aos bens

    numa perspectiva de dinmica patrimonial. Regula a mobilidade da vida

    econmica. As normas obrigacionais permitem uma utilizao indirecta do

    bem, porque a sua fruio est dependente da interveno do devedor.

    2) Direito das coisas conjunto de normas que regulam a disposio

    plena dos bens e a sua apropriao. Da que as suas normas se prendam

    essencialmente com o domnio e a utilizao dos bens, regulando o

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    autntico e autnomo poder das pessoas sobre as coisas. O direito das

    coisas tem assim uma disciplina especfica e directa da utilizao do bem, o

    poder que determinado sujeito possui sobre um bem, numa perspectiva de

    esttica patrimonial, numa perspectiva de domnio. Nessa medida, conferem

    maior segurana sobre os bens ao seu titular. neste sentido que se pode

    afirmar que o direito das coisas regula as infra-estruturas scio-econmicas

    de uma sociedade.

    Resumindo, os direitos de crdito esto relacionados com a

    mobilidade da vida econmica, com a dinmica patrimonial, com a

    circulao dos bens no comrcio jurdico, ao passo que o direito das coisas

    trata da esttica patrimonial.

    O detentor de um direito real sobre um bem goza, por isso, de uma

    maior proteco do que aquela que conferida pelo direito das obrigaes e

    da que se possa dizer que os direitos reais, pela maior segurana que

    conferem aos seus titulares, so o alicerce de toda a ordem jurdica no que

    se refere ao controlo de bens econmicos.

    Ao contrrio do direito das obrigaes, os direitos reais permitem a

    disponibilizao plena dos bens e conferem vantagens ao seu titular de

    natureza no econmica como, por exemplo, posies de poder, prestgio e

    autoridade.

    Enquanto regulador do poder e domnio dos bens, o direito das coisas

    regula as infra-estruturas scio-econmicas de uma sociedade, tendo, por

    isso, um papel privilegiado na definio e modo de ser de uma sociedade.

    Da o relevo que o direito das coisas assume no direito patrimonial.

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    Assim, os direitos reais, enquanto fonte de domnio dos bens,

    assumem uma grande importncia normativa no desempenho do papel

    privilegiado no plano da disposio de tais bens econmicos, ainda que essa

    funo seja auxiliada pelo direito das obrigaes. A gesto conferida pelo

    direito das coisas dever ser, nessa medida, o mais abrangente possvel, a

    fim de diminuir com eficcia o maior nmero de conflitos possveis,

    procurando-se, com tal inteno, a ausncia de lacunas normativas.

    2. As grandes formas de ordenao de domnio

    A plena regulamentao normativa no tem sido historicamente

    suficiente para impossibilitar o aparecimento de lacunas que tm existido ao

    nvel da organizao dominial.

    De facto, a situao ideal que a cada coisa pertena um titular.

    Quando assim, o domnio no tem lacunas e no h conflitos de interesse.

    Todavia, nem sempre assim acontece. H situaes em que se abrem

    lacunas: pessoa que perde um bem; algum que faz um contrato no sendo

    sujeito a forma escrita (contrato nulo); pessoa que utiliza um bem sem ser

    seu titular; algum que furta o bem; algum que morre sem herdeiros; etc.

    Assim, distinguem-se duas grandes formas de ordenao dominial:

    1) Ordenao dominial definitiva composta por instrumentos

    jurdicos que, por excelncia, tm por misso regular, em termos

    definitivos, incontestveis e no duvidosos o domnio dos bens

    (domnio definitivo).

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    2) Ordenao dominial provisria baseada no instituto da posse.

    Trata-se de um expediente provisrio destinado a preencher as

    lacunas de ordenao definitiva. A relao dominial obtida atravs

    da posse, no apresenta as mesmas garantias que a ordenao

    definitiva, podendo, inclusive, ambas as ordens entrarem em

    conflito (domnio provisrio).

    3. Direito das coisas e direitos da pessoa

    O direito das coisas regula o domnio dos bens em sentido estrito, dos

    bens considerados em si mesmo, regula a directa e imediata relao das

    pessoas com as coisas, o que significa que entre o titular e a coisa no h

    qualquer intermedirio, h sim uma relao linear entre a pessoa e a coisa.

    Noo jurdica de coisa art.202 CC: Diz-se coisa tudo aquilo que

    pode ser objecto de relaes jurdicas.

    Esta noo de coisa muito ampla e at

    tecnicamente errada. Enquanto objecto de um direito real, coisa todo o

    bem externo e escasso, desprovido de personalidade jurdica, de carcter

    esttico, corpreo ou incorpreo, com existncia jurdica autnoma,

    susceptvel de apropriao individual e apto a satisfazer interesses ou

    necessidades humanas.

    No cabem na noo de coisa (no so coisa):

    1. Direitos sobre a pessoa;

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    2. Prestaes;

    3. Situaes econmicas no autnomas (no se podem dominar, nem

    possuem existncia prpria. Ex. Clientela de um estabelecimento

    comercial o estabelecimento vive da clientela, o valor do

    estabelecimento mede-se em funo da clientela. No h nenhum

    direito sobre a clientela, porque, sendo ela um bem econmico,

    no autnomo, uma vez que sem estabelecimento comercial no h

    clientela. A sua tutela s ganha sentido em funo do

    estabelecimento comercial).

    Neste mbito importa distinguir:

    Bem patrimonial bem que tem um equivalente pecunirio.

    Do ponto de vista dos interesses h um equivalente.

    Bem no patrimonial bem ligado pessoa (qualquer

    indemnizao por leso de um bem no patrimonial destina-se a

    compensar a leso sofrida). As pessoas no so bens

    patrimoniais, mas so fonte de interesses.

    Direitos sobre as pessoas atribuio de um poder directo e imediato

    sobre a prpria pessoa ou sobre a pessoa de outrem. So diferentes dos

    direitos das coisas.

    Direitos sobre a prpria pessoa so os chamados direitos de

    personalidade, atendveis numa dupla dimenso: por um lado, a

    personalidade no seu todo e ento temos uma tutela geral da personalidade;

    por outro lado, aspectos da personalidade, isto , direitos que incidem sobre

    manifestaes especficas da personalidade. Trata-se como bvio de duas

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    perspectivas da mesma realidade. Visam proteger a prpria pessoa humana.

    Ela simultaneamente titular e objecto destes direitos de auto-proteco.

    Direitos sobre a pessoa de outrem regulam os bens no

    patrimoniais ligados a esta e atribuem ao titular um poder directo e imediato

    sobre a pessoa de outrem. Aqui o titular e objecto do direito so pessoas,

    mas pessoas distintas. Tais direitos visam tutelar a pessoa objecto do direito

    em causa enquanto ser em desenvolvimento, nos primeiros anos de vida.

    Este tipo de direitos so os chamados poderes-deveres, que possuem um

    carcter excepcional, porque satisfazem no o titular do direito, mas a

    pessoa objecto desse direito. No h, por isso, uma coisificao da pessoa,

    porque a pessoa objecto, mas no titular do direito.

    4. Distino entre direitos reais e direitos de crdito

    a) Distino no plano dos interesses e no plano tcnico-jurdico: a

    teoria realista e a teoria personalista

    Plano dos interesses:

    O objecto do direito das obrigaes so as prestaes.

    O objecto do direito das coisas so as coisas.

    Deste ponto de vista, a definio entre os dois ramos no muito

    clara, principalmente quando os direitos obrigacionais tm como objecto

    uma prestao de dare (prestao de coisa). No caso destas obrigaes, o

    que interessa para o credor a entrega da coisa e no o caminho que o

    devedor teve de seguir ou os esforos que teve de fazer para prestar a coisa.

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    Do mesmo modo, nas obrigaes de facere ou de non facere a

    diferena tambm no relevante, porque o interesse do credor no tanto

    a prestao, mas antes o resultado dela. O que importa no o modo de

    cumprimento, mas o resultado. O que conta o efeito da prestao, a

    satisfao que o credor tira da actuao/omisso do devedor para o credor.

    Assim, no plano dos interesses, a diferena entre obrigaes e coisas

    acaba por ser atenuada ou anulada. Da que, para se distinguir o direito das

    coisas e o direito das obrigaes, se torna necessrio recorrer ao critrio

    tcnico-jurdico.

    Plano tcnico-jurdico:

    No plano tcnico-jurdico, a distino faz-se atendendo anatomia do

    direito em causa.

    (Note-se, todavia, que um critrio que se fundamente no objecto dos

    direitos reais ou dos direitos obrigacionais no procede, porque ambos os

    direitos pertencem ao direito patrimonial e, portanto, dirigem-se tipicamente

    s coisas, quer se situem no domnio, quer no acesso a essas coisas.)

    A distino no plano tcnico-jurdico feita pela doutrina atravs da

    chamada teoria realista e teoria personalista.

    a) Teoria clssica ou realista Aparece no sc. XVII e XVIII, na

    Holanda e na Alemanha. O critrio de distino entre o direito

    das coisas e o direito das obrigaes assenta na relao homem-

    coisa.

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    Nos direitos reais h uma relao homem-coisa, que se traduz

    numa relao directa e imediata, sem intermedirios entre a

    pessoa e a coisa objecto da relao jurdica.

    No direito das obrigaes a relao homem-coisa uma relao

    indirecta, mediata, porque entre ambos est a pessoa do devedor.

    O acesso do bem pela pessoa est condicionado pela aco do

    devedor, no sendo um acesso directo como sucede com o direito

    das coisas. Pressupe o cumprimento da prestao do devedor. A

    relao obrigacional seria sempre uma relao homem-homem,

    ou quando fosse uma relao homem-coisa, distinguir-se-ia da

    relao real por ser sempre mediada por um terceiro (o devedor).

    At ao sc. XIX, esta doutrina colhia unanimidade no panorama

    civilista, sendo de resto traduo de um fenmeno emprico

    perspectivado no direito real, segundo o qual o titular do direito

    real se assenhora da coisa numa relao sem intermedirio.

    b) Teoria personalista ou obrigacionalista surge no sc. XIX e

    tem como principais seguidores Ferrara, Planiol, Ripert,

    Windscheid e, na doutrina portuguesa, Manuel de Andrade.

    Defende que toda a relao jurdica inter-subjectiva, isto ,

    estabelecida entre pessoas, em sentido tcnico-jurdico. S em

    sentido figurado se pode dizer que h uma relao entre a pessoa

    e a coisa. Deste modo, tambm a relao real assume esta

    natureza inter-subjectiva, mesmo que os sujeitos passivos no

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    sejam conhecidos. Admite-se ento que pode haver relaes

    jurdicas entre pessoas desconhecidas.

    Ora, estaramos perante uma relao obrigacional quando a

    relao inter-subjectiva for composta por pessoas

    individualizadas. Se, por sua vez, apenas um dos plos da

    relao jurdica for conhecido e o outro lado for desconhecido,

    estamos perante uma relao real.

    Nesta perspectiva, a relao homem-coisa oculta uma relao

    inter-subjectiva, caracterizada pelo facto de apenas o titular do

    direito ser conhecido e de os sujeitos passivos estarem

    indeterminados.

    Na relao obrigacional, sendo determinados e conhecidos, quer

    o titular do direito, quer o sujeito passivo, h uma relao

    homem-homem.

    Na relao real tambm h uma relao homem-homem, s que

    enquanto que o titular do direito real (sujeito activo) est

    determinado e individualizado, o outro lado da relao jurdica

    no est. O nexo que liga um plo ao outro a chamada

    obrigao passiva universal, ou melhor, os sujeitos passivos

    esto vinculados por uma obrigao passiva universal. O seu

    contedo uma obrigao de non facere geral. universal

    porque abrange todas as pessoas que no so titulares do direito.

    passiva porque consiste numa obrigao de no perturbao

    do gozo do direito, traduzindo-se num non facere, num dever

    de no interferncia.

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    Resumindo, a diferena entre obrigaes e coisas que nas

    primeiras h uma relao homem-homem, estando ambos os

    sujeitos definidos, ao passo que nas segundas h uma relao

    homem-homem, no estando uma das partes (o sujeito passivo)

    individualizada.

    b) Pertinncia de cada uma das doutrinas

    Estas duas teorias destacam apenas uma faceta do conjunto complexo

    de factores utilizados para distinguir direitos reais e direitos de crdito: a

    teoria realista destaca o contedo do direito real, esquecendo o elemento de

    proteco desse direito real; a teoria personalista resolve o problema da

    proteco do direito, mas desvaloriza o seu contedo.

    Vimos at agora as teorias dualistas, que defendem a distino entre

    os direitos reais e os obrigacionais.

    Porm, h ainda que expor a teoria monista, que nega a diferenciao

    entre aqueles dois direitos e tem a sua origem na concepo que neles o

    elemento principal o patrimonial. Da que esta teoria concebe o direito

    real e o obrigacional numa s noo.

    Um dos grandes defensores desta teoria monista foi Ren Demogue,

    que concluiu que, verdadeiramente, no existe ou no possvel uma

    distino qualitativa entre os dois tipos de relao. que a obrigao

    passiva universal, sendo uma obrigao geral de respeito, tambm existe

    nos direitos de crdito, no sendo precludida pelo facto de a relao se

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    estabelecer entre pessoas determinadas. Ao invs, tambm aqui as demais

    pessoas tm a obrigao de respeitar aquela relao.

    Para Demogue, a distino entre direitos de crdito e direitos reais

    seria feita atravs de um critrio quantitativo, assente no nmero de sujeitos

    passivos. Assim, os direitos fortes tm como sujeitos passivos um nmero

    indeterminado de pessoas e os direitos fracos, que existem entre pessoas

    determinadas, correspondem aos direitos de crdito, embora estes direitos

    se alargassem acabando por incluir os chamados direitos fortes. Estamos

    aqui perante uma posio monista ou unitria, na medida em que negam a

    diferenciao entre direitos reais e direitos obrigacionais. Como se disse,

    ambos tm a sua origem na concepo que o seu elemento principal o

    patrimonial, pelo que estas teorias monistas concebem os direitos reais e os

    direitos de crdito numa s noo, em virtude do facto de ambos poderem

    ser abrangidos pelo direito patrimonial (as teorias monistas subdividem-se

    em duas: numa prevalece o elemento obrigacional tese defendida por

    Demogue; na outra prevalece o elemento real cfr. Da distino entre

    direitos reais e obrigacionais a partir do ordenamento jurdico portugus

    de Leonardo Gomes de Aquino).

    A doutrina personalista pertinente ao assinalar que todo o direito

    assenta na inter-subjectividade e ao valorizar a sano traduzida na

    obrigao passiva universal, uma vez que os direitos s so relevantes

    quando exista a sua garantia. Por outro lado, ela esquece o contedo do

    direito ao defender que o poder directo e imediato sobre uma coisa s

    relevante quando haja uma sano que proteja o seu exerccio (neste caso, a

    obrigao passiva universal, que impende sobre todos os outros sujeitos).

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    Ou seja, o direito real s se traduz num poder jurdico, porque lhe est

    associada a obrigao passiva universal. O poder sobre a coisa no ser uma

    realidade jurdica autnoma, mas uma consequncia do poder reconhecido

    pelo direito de impor aos outros o dever de no interferir.

    Sero sujeitos passivos todos os sujeitos a quem a ordem jurdica

    impe tal dever, pelo que, relativamente a bens mveis, sero sujeitos

    passivos todas as pessoas que esto sob a alada da ordem jurdica que

    reconhece o direito real, mas tambm todas as pessoas sujeitas a ordens

    jurdicas que reconheam aquela ordem.

    A doutrina realista pertinente ao afirmar que, no obstante todo o

    direito pressupor uma sano, esta sano s tem sentido, s realizvel, se

    existir um contedo (um poder directo e imediato que a pessoa tem sobre a

    coisa) para o qual seja determinada tal sano. Para esta doutrina, a tnica

    que caracteriza o direito real deve estar no poder directo e imediato sobre o

    bem, poder este que faz desencadear a garantia. Temos, ento, uma relao

    biunvoca (os interesses so a causa da sano e, por outro lado, a

    existncia da sano que d relevo jurdico aos interesses), que nos permite

    perspectivar um direito real segundo um lado externo (sano) e um lado

    interno (contedo do direito real).

    c) Doutrina dominante

    A doutrina dominante consiste numa teoria ecltica, mas que tem por

    base as teorias dualistas (teoria clssica ou realista e a teoria personalista ou

    obrigacionalista).

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    Para esta teoria ecltica, contedo e sano so determinantes e

    indissociveis para uma correcta definio dos direitos reais face aos

    direitos de crdito. Todavia, o elemento que desencadeia a proteco do

    direito ser sempre o poder absoluto, directo, imediato sobre a coisa/bem,

    sendo a sano o instrumento que o ordenamento jurdico utiliza para

    assegurar este poder directo e imediato. H ento uma primazia funcional

    do contedo sobre a sano.

    Para distinguir, portanto, direitos reais dos demais ramos do direito,

    em especial o direito das obrigaes, necessrio recorrer ao critrio do

    contedo e ao critrio da sano.

    Porm, o contedo do direito real, enquanto poder directo e imediato

    sobre uma coisa, s perceptvel se tivermos em conta duas caractersticas

    que contendem com o seu lado interno e com o seu lado externo. Assim,

    temos:

    imediao relaciona-se com o lado interno do direito real

    e traduz-se no seu contedo, isto , no poder directo e

    imediato sobre a coisa que caracteriza o direito real. Ao

    invs, no direito das obrigaes a relao mediata, porque

    entre a coisa e o bem existe a pessoa do devedor.

    estabilizao ligado ao lado externo do direito real e pe

    em destaque a eficcia erga omnes, eficcia absoluta, do

    direito real, que deste modo fica protegido contra a

    generalidade das pessoas. Esta caracterstica est, ento,

    ligada sano/proteco conferida pelo ordenamento

    jurdico, que se traduz numa segurana face s agresses

    exteriores. Por outro lado, o direito das obrigaes tem uma

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    tutela relativa, dirigindo-se apenas contra determinadas

    pessoas. Na perspectiva dos interesses, o direito real

    confere maior segurana do que os direitos de crdito, pois

    enquanto que a estes apenas se admite o efeito externo das

    obrigaes em casos contados, em relao aos direitos reais,

    eles tm como essncia, natureza e razo a eficcia erga

    omnes (absoluta).

    5. Noo de direito das coisas e o paradigma da plena in re

    potestas

    Posto isto, podemos tentar ensaiar uma noo de Direito Real: poder

    directo e imediato sobre uma coisa, impondo-se generalidade dos

    membros da comunidade jurdica e constituindo uma aproximao,

    derivao ou expresso da forma plena de domnio sobre os bens, com vista

    a organizao slida das infra-estruturas scio-econmicas existentes. Esta

    forma plena e absoluta o Direito de Propriedade.

    O direito real visa a organizao das infra-

    estruturas econmicas de um pas, sendo que se destaca o direito de

    propriedade como nico instrumento jurdico que realiza no plano do

    aproveitamento o pleno gozo sobre uma coisa. Este o direito principal, do

    qual todos os outros dependem ou ao qual se reconduzem. Assim, qualquer

    noo de direito real tem obrigatoriamente que partir da noo de direito de

    propriedade.

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    6. Obrigaes reais e nus reais

    H um conjunto de situaes que ocupam um espao normativo entre

    os direitos de crdito e os direitos reais:

    a) Obrigaes reais encargos que recaem sobre quem titular de

    um direito real, pelo que a causa da obrigao determinada pela

    titularidade do direito real. Desse modo, o titular da obrigao e o

    titular do direito real so a mesma pessoa. H, assim, uma relao

    estrutural gentica, funcional e instrumental entre a titularidade da

    obrigao e o aproveitamento do direito real.

    Ex. Art.1375 CC reparao e reconstruo do muro; na

    compropriedade, as despesas feitas na manuteno da coisa

    comum; as despesas de condomnio na propriedade horizontal; as

    despesas de conservao de uma coisa que incidem sobre o

    administrador dessa coisa.

    Obrigao real Obrigao em geral:

    transmisso a obrigao real transmite-se com a

    transferncia do direito real, isto , as obrigaes

    acompanham necessariamente a transmisso do direito

    real, apesar do adquirente s responder pelas obrigaes

    futuras. As obrigaes anteriores transmisso

    continuam a ser do titular anterior do direito. Por sua

    vez, nas obrigaes em geral, a obrigao s se transmite

    se o adquirente assim consentir. Por exemplo, A deve a

    B 50 e por essa dvida convencionaram um juro de 5%.

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    Se A transmitir a dvida a C, o juro no se transmite

    automaticamente, mas s se C aceitar.

    exonerao/extino nas obrigaes reais o titular do

    direito fica exonerado quando transmite o direito. O

    devedor liberta-se do vnculo, desde que renuncie ao

    direito real. Na obrigao em geral, o devedor no pode,

    unilateralmente, exonerar-se do dbito, j que precisa de

    autorizao do adquirente.

    b) nus reais de acordo com Henrique Mesquita, no existe no

    direito portugus um conceito unvoco de nus real, sendo a noo

    empregue pelo legislador em diferentes contextos jurdicos. H

    todavia um elemento comum: a existncia de gravames, isto ,

    encargos sobre determinadas coisas que constituem objecto dos

    nus.

    nus real ser ento um encargo imposto a quem titular de um

    direito real, em benefcio de outra pessoa a favor da qual o nus

    constitudo. Estes encargos tm eficcia erga omnes e recaem

    directamente sobre o prprio bem, o que no acontece nas

    obrigaes reais.

    Ex. Art.2018 CC falecendo um cnjuge, o sobrevivo tem direito

    a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo

    falecido. Assim, so obrigados prestao de alimentos os

    herdeiros ou legatrios a quem tenham sido transmitidos bens.

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    Obrigaes reais Vs. nus reais:

    Semelhana a determinao do sujeito passivo feita por aferio

    titularidade do direito real.

    Diferenas no nus real, o encargo ou obrigao real no tem

    carcter acessrio relativamente ao direito real, antes constitui uma situao

    juridicamente autnoma, que recai directamente sobre a coisa e no como

    na obrigao real sobre o titular do direito real;

    no caso de transmisso do direito real, a transmisso do

    nus implica que o novo titular fique obrigado no s em relao s dvidas

    que se venham a gerar aps a transmisso, mas tambm em relao queles

    que j esto vencidas, o que um reflexo de que o encargo recai sobre a

    coisa em si.

    Caractersticas que aproximam os nus reais a direitos reais e outras

    que os aproximam das obrigaes em geral:

    elementos obrigacionais:

    existncia de um direito a uma prestao que

    envolve a colaborao do titular do direito real,

    ou seja, o titular do direito real est obrigado a

    uma prestao face ao credor. O que distingue o

    nus real da obrigao a relao com a

    titularidade do direito real.

    elementos realistas:

    h elementos reais presentes na ligao da

    prestao com a coisa. a coisa que objecto

    da transmisso que responde pelo pagamento

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    pelo cumprimento do nus, ou seja, a coisa

    serve como garantia.

    o nus possui uma eficcia erga omnes ou

    absoluta, porque face aos bens sobre os quais

    recaem os nus, o adquirente responsvel

    tanto pelos nus anteriores como posteriores.

    o titular do nus, em caso de transmisso dos

    bens, goza do direito de preferncia nessa

    transmisso, o que permite que se concentre na

    mesma pessoa a titularidade e os encargos, o

    que faz com que os encargos desapaream.

    7. Noo jurdica de coisa

    Toda a relao jurdica tem por objecto um bem, mas bem no

    necessariamente uma coisa. De facto, h bens coisificveis e bens no

    coisificveis.

    No nos interessa, como evidente, a noo vulgar de coisa, quer

    ampla tudo o que pode ser pensado, suposto, afirmado ou negado

    (Lalande) , quer restrita o objecto material delimitado no espao.

    Interessa-nos, pois, o sentido jurdico.

    Noo legal de coisa art.202 CC:

    n1: Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relaes

    jurdicas.

  • Direito das Coisas FDUP

    20

    n2: Consideram-se, porm, fora do comrcio todas as coisas que no

    podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no

    domnio pblico e as que so, por sua natureza, insusceptveis de

    apropriao individual.

    Este um conceito, de acordo com o Prof. Dias Marques,

    amplssimo e tecnicamente errado de coisa, que deve ter tido como fonte o

    art.810 do Cdigo Civil Italiano (Pires de Lima). H entes susceptveis de

    serem objecto de relaes jurdicas que no so coisa em sentido jurdico,

    como por exemplo, prestaes, direitos e at as prprias pessoas. uma

    noo que confunde objecto de relaes jurdicas com coisa.

    Coisa em sentido jurdico todo o bem externo e escasso,

    desprovido de personalidade jurdica (o CC de 1867 definia coisa no seu

    art.369 CC, como tudo aquilo que carece de personalidade), de carcter

    esttico (as de carcter dinmico como contratos, prestaes, efeitos

    jurdicos no esto abrangidas pela noo de coisa), corpreo ou

    incorpreo, com existncia jurdica autnoma, susceptvel de apropriao

    individual e apto a satisfazer interesses ou necessidades humanas.

    Assim, para que exista uma coisa em sentido jurdico necessrio:

    1. carncia de personalidade jurdica;

    2. existncia autnoma ou separada;

    3. possibilidade de apropriao exclusiva por algum;

    4. aptido para satisfazer interesses ou necessidades humanas.

  • Direito das Coisas FDUP

    21

    Inversamente, no necessrio:

    1. que se trate de bens de natureza corprea;

    2. que se trate de bens com valor de troca, isto , bens permutveis;

    3. que se trate de bens efectivamente apropriados (basta que sejam

    bens apropriveis).

    O art.202 n2 CC especifica, dentro das coisas, as que esto fora do

    comrcio, por no poderem ser objecto de direitos privados (s podem ser

    objecto de relaes jurdicas pblicas ou internacionais direito pblico),

    exemplificando as coisas de domnio pblico e as que so, por natureza,

    insusceptveis de apropriao individual.

    Situaes econmicas no autnomas: posies com valor

    econmico, sem autonomia jurdica.

    Dois grandes grupos:

    1) Situaes econmicas no autnomas ligadas incindivelmente a

    outros bens situaes econmicas que se ligam a outras situaes,

    designadamente a estabelecimentos comerciais. So situaes ligadas

    titularidade do estabelecimento. volta do estabelecimento comercial

    geram-se determinadas situaes que, muito embora meream tutela

    jurdica (dado o seu valor econmico), no so coisas, por no se tratarem

    de entidades com autonomia jurdica. Exs. Clientela, fama, relaes

    fcticas, fornecedores, honra, nome, bom acreditamento na banca.

    A clientela enquanto bem jurdico, s existe incindivelmente ligada ao

    prprio estabelecimento.

  • Direito das Coisas FDUP

    22

    2) Situaes econmicas no autnomas que se ligam titularidade de

    um direito fenmeno a que Orlando de Carvalho chamou de direitos

    sobre direitos. So valores, como por exemplo situaes de crdito, que

    muito embora assumindo valor econmico, no so susceptveis de

    domnio. a vantagem ligada titularidade de um direito, mas que no tem

    a ver directamente com o objecto do direito, mas com a envolvncia

    econmica da titularidade do direito. a chamada coisificao do direito

    real. Associadas a estes direitos sobre direitos esto situaes privilegiadas

    de vantagem. A situao econmica no se liga a esse direito, mas antes s

    vantagens relacionadas com a titularidade do direito.

    So 5 os casos:

    Penhor de direitos (art.679 CC)

    Hipoteca de superfcie (art.688 n1 c) CC)

    Hipoteca dos direitos resultantes dos bens de domnio pblico

    (art.688 n1 d) CC)

    Hipoteca do usufruto das coisas e direitos (art.688 n1 a) a d)

    CC)

    Usufruto de direitos (art.688 n1 e) e art.1439 CC)

    A vantagem no se tira do crdito que se tem (do contedo do direito),

    mas da vantagem de se ser titular de um crdito/direito.

    Classificao das coisas

    Art.203 CC: As coisas so imveis ou mveis, simples ou

    compostas, fungveis ou no fungveis, consumveis ou no consumveis,

    divisveis ou indivisveis, principais ou acessrias, presentes ou futuras.

  • Direito das Coisas FDUP

    23

    a) Coisas mveis e imveis (art.204 e art.205 CC)

    Coisas mveis (art.205 CC) tudo aquilo que no classificado

    pela lei (no art.204 CC) como coisa imvel.

    Coisas imveis (art.204 CC) n1:

    a) Prdios rsticos e urbanos;

    n2 prdio rstico parte delimitada do solo, bem

    como as construes nele existentes que no tenham

    autonomia econmica terrenos;

    Prdio urbano qualquer edifcio incorporado no

    solo, bem como os terrenos que lhe sirvam de

    logradouro edifcios.

    o problema surge a propsito dos prdios mistos (no

    definidos no n2). O critrio para classificar um prdio

    misto como rstico ou urbano o elemento econmico

    predominante. Se o prdio predominantemente

    rstico, um prdio rstico; se predominantemente

    urbano, um prdio urbano (critrio da autonomia

    econmica).

    b) As guas;

  • Direito das Coisas FDUP

    24

    apesar de estarem em constante deslocao, so

    consideradas como imveis, porque a sua imobilidade

    advm da integrao no solo. Da que um rio e as suas

    margens e leito devam ser considerados, no seu todo, como

    um imvel.

    Porm, a gua ganha carcter mvel quando retirada de um

    lenol e colocada num conservatrio, parecendo dever ser

    qualificada como um fruto, dada a sua renovao constante.

    A propriedade das guas encontra-se regulada nos arts.

    1385 e seguintes CC.

    c) As rvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto

    estiverem ligados ao solo;

    s so imveis enquanto estiverem ligados ao

    terreno, isto , plantados ou, no caso dos frutos,

    ligados rvore.

    d) Os direitos inerentes aos imveis mencionados nas alneas

    anteriores;

    imvel o direito real sobre uma coisa imvel. Ex. O

    usufruto sobre uma coisa imvel um bem imvel. O

    usufruto sobre uma coisa mvel no cabe aqui e, por

    isso, uma coisa mvel por fora do art.205 n1 CC.

  • Direito das Coisas FDUP

    25

    e) As partes integrantes dos prdios rsticos e urbanos.

    n3 parte integrante toda a coisa mvel ligada

    materialmente ao prdio com carcter de permanncia.

    apesar de ligadas coisa imvel, mantm a sua

    individualidade. No se fundem na estrutura da coisa

    imvel. Embora possam aumentar a utilidade da coisa a

    que esto ligadas, no so indispensveis sua funo

    normal. Ex. Quadro.

    este regime tambm se estende s partes componentes.

    partes componentes confundem-se com a estrutura

    do prdio, sem as quais o prdio no preenche o seu

    valor, nem consegue alcanar o fim econmico a que se

    destina. Ex. Portas e janelas. Distinguem-se das partes

    integrantes pela sua funcionalidade.

    partes acessrias no tm uma ligao permanente

    coisa principal e, por isso, so coisas sempre mveis.

    Para Oliveira Ascenso, a enumerao do art.204 CC meramente

    exemplificativa, porque existem vrias coisas integradas em terrenos, como

    monumentos, minas, estradas, que apesar de no constarem do artigo so

    consideradas coisas imveis.

    A lei determina com clareza a necessidade das coisas imveis estarem

    ligadas materialmente ao solo. Assim, a terra um imvel, bem como todos

    os elementos nela incorporada com carcter de permanncia.

  • Direito das Coisas FDUP

    26

    b) Coisas acessrias e partes integrantes (art.210 CC)

    Coisas principais existem de per si

    Coisas acessrias subordinadas coisa principal

    As coisas acessrias so coisas mveis afectadas de modo duradouro a

    outra coisa, mas no se confundindo com as partes integrantes. As coisas

    acessrias so sempre mveis, enquanto que as partes integrantes, porque

    integram um imvel, so consideradas imveis (art.204 n1 e) CC). Alm

    disso, a afectao duradoura de uma coisa acessria no carece de ser

    material, podendo ser de cariz econmico no fsico.

    Regime das coisas acessrias:

    Art.210 n2 CC Os negcios jurdicos que tm por objecto a coisa

    principal no abrangem, salvo declarao em contrrio, as coisas

    acessrias.

    Porm, Castro Mendes distingue duas situaes diferentes:

    1) h coisas acessrias com valor autnomo, sem as quais a coisa

    principal mantm a sua utilidade normal (ex. alfaias em relao

    quinta).

    2) h coisas acessrias sem valor autnomo, sem as quais a coisa

    principal perde a sua utilidade.

    Segundo este autor, s as primeiras estariam abrangidas pelo art.210

    n2 CC, sendo as segundas obrigatoriamente abrangidas no negcio.

  • Direito das Coisas FDUP

    27

    Partes integrantes art.204 n3 CC: toda a coisa mvel ligada

    materialmente ao prdio com carcter de permanncia. Apesar de estarem

    ligadas a um prdio com carcter de permanncia, mantm a sua

    individualidade material, no se funde com a estrutura do prdio a que est

    ligada, nem a sua falta torna esta imperfeita. Podem aumentar a utilidade da

    coisa a que esto ligadas, mas no so indispensveis sua funo normal

    (ex. antena de um prdio; quadro de uma sala).

    Partes componentes aquelas que se confundem com a estrutura do

    prdio e so indispensveis ao bom funcionamento da coisa, como portas,

    janelas, tijolos. Possuem um carcter funcional.

    c) Coisas corpreas e coisas incorpreas: as obras de engenho e as

    invenes industriais, o estabelecimento comercial e os direitos sobre

    direitos

    A distino no consta do CC, mas ela assenta na possibilidade de

    percepo das coisas pelos sentidos.

    Assim,

    Coisas corpreas aquelas que podem ser apreendidas pelos

    sentidos, possuem complexo fsica e so materialmente palpveis (res

    quae tangi possunt).

    Coisas incorpreas no so perceptveis pelos sentidos, no tm

    existncia fsica, so meras construes de esprito (res quae tangi non

    possunt).

    H 3 espcies de coisas incorpreas:

  • Direito das Coisas FDUP

    28

    a) ideias ou bens ideais (integram a propriedade industrial ou

    intelectual)

    b) valores de organizao (ligadas ao estabelecimento comercial)

    c) direitos sobre direitos (direitos enquanto objecto de outros

    direitos)

    a) Ideias ou bens ideais ou ideaes

    Compreendem as obras de engenho e as invenes inventivas, isto ,

    obras enquanto construo de ideias ou de conceitos ou ideias inventivas

    como, por exemplo, patentes, desenhos industriais, modelos de actividade,

    sinais distintivos do comrcio (marca, nome e insgnia, firma). Estes sinais

    distintivos do comrcio so colectores de clientela e so uma forma

    descentralizada de tutela do estabelecimento, no tendo autonomia

    funcional, mas s autonomia do ponto de vista estrutural.

    As ideias inventivas ou obras de engenho so valores em si e podem

    ser exploradas economicamente. So expresses de uma personalidade

    criadora e, nessa medida, esto directamente ligadas pessoa (ao contrrio

    dos sinais distintivos do comrcio que tm uma ligao mais tnue com o

    seu criador e mais forte com o estabelecimento comercial ou produto).

    No mbito destas ideias inventivas ou obras de engenho h que

    distinguir a ideia inventiva em si (que pode assumir o estatuto de coisa

    incorprea) e aquilo que suporta a ideia inventiva e permite a sua expresso

    material, o corpus mechanicum.

    Ora a ideia inventiva s adquire o estatuto de coisa incorprea e, com

    isso, autonomia e relevo jurdico na medida em que for corporizada ou

    materializada ou, ainda, exteriorizada e, portanto, se torna susceptvel de

  • Direito das Coisas FDUP

    29

    explorao econmica pelo seu autor. a potencialidade de conferirem

    lucro que lhes atribui especificidade para efeitos de direito patrimonial.

    Com vista a garantir a sua exclusividade existe o direito de

    propriedade, enquanto direito de pleno uso, gozo e fruio da coisa.

    Contudo, apesar da ideao se tornar independente, ela mantm-se

    intrinsecamente ligada ao seu criador e, uma vez que ela um

    prolongamento da personalidade do seu criador, o direito protege de vrias

    formas a obra em si. Por exemplo, no se pode comprar um quadro e mudar

    o nome do autor, sob pena de violar um direito de personalidade o direito

    de criao artstica. Outro exemplo, o autor tem direito a no querer

    publicar um livro ou tem o direito a no permitir que a sua obra no seja

    transporta para o teatro.

    Daqui decorre, segundo Orlando de Carvalho, que relativamente

    coisa incorprea surgem dois direitos germinados, que visam a tutela da

    coisa incorprea e que so reflexo da autonomia e da ligao ao criador:

    Direito patrimonial de autor direito real que permite ao autor

    da obra inventiva explor-la economicamente, ou melhor, um

    direito de exclusividade econmica.

    Direito moral de autor um direito de personalidade, que

    garante o respeito pela criao.

    Todavia, Oliveira Ascenso discorda desta posio, pois o direito

    sobre a obra intelectual no um direito real, na medida em que no

    abrange a totalidade de poderes sobre a coisa, por exemplo, no abrange a

    possibilidade de gozo esttico da coisa, somente a explorao da coisa. Este

    direito no protege a obra, apenas permite que ela seja economicamente

    explorada. Aps a criao da obra, esta separar-se-ia dos bens intelectuais e

  • Direito das Coisas FDUP

    30

    do seu autor, transformando-se em entidades que podem ser usufrudas por

    outrem, sem qualquer espcie de mediao.

    Em suma, a ideia inventiva tem de ser corporizada para adquirir o

    estatuto de coisa incorprea, mantendo-se todavia distinta e independente,

    embora incindivelmente ligada, quer ao autor quer ao corpus mechanicum

    que a corporiza.

    A nvel de tutela real, a ideao s releva se for explorada

    economicamente, o que constitui uma limitao funcional. Assim, uma

    coisa ser o bem susceptvel de explorao econmica, outra coisa ser o

    bem na sua dimenso da personalidade do seu autor. A proteco da

    ideao atravs do direito real no visa regular o gozo cognitivo ou esttico

    do bem, mas s aquela possibilidade de explorao econmica do bem e f-

    lo atravs do direito de propriedade, enquanto direito pleno e exclusivo.

    b) Valores de organizao

    Correspondem ao estabelecimento comercial. uma coisa incorprea

    sui generis, porque tem no seu ncleo a ideia de organizao, a

    combinao de factores produtivos utilizados naquela empresa (pessoas e

    coisas), mas esta ideia organizatria no subsiste sem os factores produtivos

    que a concretizam e que corporizam o estabelecimento. Trata-se de uma

    ideia organizatria plasmada nos prprios factores de produo organizados

    de determinada maneira e que s tm existncia jurdica concretizada no

    corpus mechanicum.

    O estabelecimento comercial ento uma organizao de factores de

    produo, como as pessoas e as coisas, no se reduzindo s coisas

  • Direito das Coisas FDUP

    31

    corpreas, mas compreendendo tambm bens incorpreos e valores como a

    firma, nome do estabelecimento e insgnia (sinais distintivos do

    estabelecimento) e, ainda, situaes patrimoniais no autnomas, como a

    clientela.

    Este conjunto de bens materiais/corpreos, bens incorpreos e

    situaes patrimoniais no autnomas conferem ao estabelecimento a sua

    capacidade lucrativa (capacidade de gerar lucro), capacidade essa que lhe

    confere relevncia no mbito do direito patrimonial. Sendo um bem com

    especial capacidade lucrativa est associado ideia de mercado e da que

    seja entendido como uma coisa composta funcional.

    Orlando de Carvalho definiu estabelecimento comercial como uma

    organizao concreta de factores de produo com valor de posio de

    mercado.

    uma coisa composta, porque integrada por elementos de natureza

    variada e uma coisa funcional, porque tem em vista a ideia de capacidade

    lucrativa. Da que o valor do estabelecimento comercial no se afira pelos

    bens materiais que o incorporam, mas pelo seu valor de posio de

    mercado, isto , pela capacidade lucrativa e pela clientela a ele ligada,

    valores esses que no dependem, pelo menos directamente, dos factores

    produtivos que integra.

    Como a capacidade organizativa visa gerar lucro, isso confere ao

    estabelecimento um valor diferente da soma do valor das unidades que a

    integram, ou seja, o valor do estabelecimento diferente do valor dos

    elementos que a compem, porque a organizao tem uma funo de lucro,

    que deriva da sua posio de mercado, que lhe d valor acrescido.

  • Direito das Coisas FDUP

    32

    Sendo o estabelecimento comercial uma coisa incorprea, ou no

    objecto do direito de propriedade?

    Art.1302 CC S as coisas corpreas, mveis ou imveis, podem

    ser objecto do direito de propriedade regulado neste cdigo.

    Ora, o art.1302 CC restringe o direito de propriedade s coisas

    corpreas. Todavia, em algumas disposies do CC, o legislador trata-o

    como sendo alvo de direitos reais. Assim, o direito de propriedade que

    incide sobre o estabelecimento comercial recai sobre a sua organizao,

    enquanto bem nico e simultaneamente sobre cada um dos elementos que

    integra o estabelecimento.

    Sendo o estabelecimento comercial uma coisa incorprea, tem-se

    entendido que mais adequado classific-lo como um bem mvel, no

    sujeito a registo, mas um bem mvel anmalo, porque relativamente a

    alguns efeitos -lhe aplicado o regime dos bens imveis (por exemplo, para

    efeitos de alienao). Esta posio sustentada pelo facto de para o

    trespasse se exigir escritura pblica, tpico dos negcios que envolvam

    coisas mveis. J para efeitos de garantia, objecto de penhor e no de

    hipoteca, apesar de alguns dos seus elementos poderem ser objecto de

    hipoteca.

    c) Direitos sobre direitos

    Obedecem ao princpio da taxatividade, pelo que s podem existir

    direitos sobre direitos nos casos especialmente previstos na lei: penhor

    (art.679 CC), hipoteca (art.688 CC) e usufruto (art.1439 CC).

    d) Coisas presentes e futuras (art.211 CC)

  • Direito das Coisas FDUP

    33

    Art.211 CC: So coisas futuras as que no esto em poder do

    disponente ou a que este no tem direito ao tempo da declarao negocial.

    Falam ainda de coisas futuras os arts.399 CC, 408 CC e 880 CC.

    A noo dada pela lei de coisa futura no a mais correcta em termos

    tcnicos. De facto, uma coisa que no est em poder do disponente uma

    coisa alheia e uma coisa que ele no tem ao tempo da declarao ou no

    existe ou, se existe, alheia.

    Coisa futura uma coisa esperada, uma coisa que se espera vir a

    adquirir para integrar o patrimnio do disponente (res speratas), em

    contraposio coisa presente que o disponente j possui.

    Distinguem-se:

    Coisas relativamente futuras j esto na disponibilidade de

    algum, mas que no o disponente, que espera, ao momento

    da declarao negocial vir a adquiri-las.

    Coisas absolutamente futuras ainda no existem ao

    momento da declarao, mas esperam-se vir a ter.

    e) Universalidade de facto e universalidade de direito

    Universalidade de facto complexo de coisas mveis, corpreas,

    objecto de uma nica relao jurdica, ou seja, uma unificao sobre a

    qual recai um nico direito.

  • Direito das Coisas FDUP

    34

    Orlando de Carvalho conjunto de coisas unificadas por

    interesses econmicos, em que existe um valor de agregao. Por exemplo,

    rebanho, conjunto de selos, coleco de moedas.

    Este conjunto no uma coisa una, porque o seu conjunto no alvo

    de um direito real. S cada coisa isoladamente o ser.

    A universalidade de facto ento uma coisa que existe apenas

    enquanto conjunto de bens ligados por um valor de reunio, bens esses que,

    entre si, se encontram numa posio de paridade, tendo o mesmo valor quer

    agrupados, quer individualizados.

    Por isso, para Orlando de Carvalho, universalidades de facto no se

    confundem com as coisas compostas funcionais, porque nas primeiras, o

    valor do conjunto igual ao somatrio das coisas individuais, ao passo que

    nas segundas, o valor do conjunto superior ao somatrio.

    Requisitos das universalidades de facto:

    1. Valor econmico e jurdico prprio/individual cada elemento da

    universalidade tem um valor independente do valor de agregao.

    2. O conjunto dever ter uma funo econmica unitria, um destino

    econmico comum e da que exista um valor de agregao.

    Reflecte-se no regime legal das universalidades de facto,

    nomeadamente no regime dos frutos das universalidades de animais

    (art.212 n3 CC).

  • Direito das Coisas FDUP

    35

    A universalidade de facto objecto de uma nica relao jurdica ou

    objecto de vrias relaes jurdicas?

    Tese unitria A universalidade de facto alvo de uma nica

    relao jurdica. Sobre ela h um nico direito que abrange todo o conjunto

    de coisas que compem a universalidade.

    Vantagem: facilidade de prova da propriedade e, consequentemente,

    de reivindicao da propriedade sobre a universalidade de facto. Basta

    provar a propriedade sobre o conjunto e no necessrio provar a

    propriedade de cada elemento da universalidade.

    Esta tese defendida por Henrique Mesquita com base no disposto no

    art.206 CC.

    Orlando de Carvalho entende que desta norma no se pode

    retirar a unificao do objecto, embora haja duas situaes em que a lei trata

    a universalidade como uma coisa nica: art.942 CC doao de

    universalidades e art.1462 CC usufruto de animais.

    Tese atomista o domnio incide sobre cada uma das coisas

    individualmente consideradas, coisas essas que constituem a universalidade

    de facto e, portanto, h tantos direitos quanto as coisas que constituam a

    universalidade.

    Desvantagem: por esta tese, teria que se provar o domnio sobre cada

    elemento individual da universalidade.

    Porm, os defensores desta tese admitem que, numa aco de

    reivindicao, possvel invocar apenas o domnio sobre a maioria dos

    bens, no sendo necessrio provar o domnio o domnio sobre a totalidade.

  • Direito das Coisas FDUP

    36

    Universalidade de direito conjunto de relaes jurdicas de ndole

    patrimonial (por exemplo, uma herana), que para efeitos de transmisso

    so tidas como um valor conjunto. Tambm aqui cada coisa tem, no seu

    conjunto, o mesmo valor que possui isoladamente e o valor do conjunto

    igual soma aritmtica do valor das partes. Porm, por vezes, a lei, por

    variadas razes, tem necessidade de regular os bens em conjunto. Ex.

    Patrimnio comum dos cnjuges; herana.

    f) Frutos e produtos

    Art.212 CC: Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz

    periodicamente, sem prejuzo da sua substncia.

    Carcter peridico

    Tem que estar em condies de, per si,

    sobreviver

    Frutos Civis

    Naturais

    Frutos naturais dizem-se naturais os que provm directamente da

    coisa

    Frutos civis as rendas ou interesses que a coisa produz em

    consequncia de uma relao jurdica

  • Direito das Coisas FDUP

    37

    Frutos naturais:

    Pendentes ainda no se fez a separao (art.215 n2 CC)

    Percebidos j se fez a separao (art.213 n1 e 215 n1 CC)

    Percipiendos podiam ter sido colhidos, mas no o foram por

    culpa do detentor da coisa

    Maduros aptos para a colheita (art.214 CC)

    Regime jurdico dos frutos:

    Art.204 CC Os frutos naturais so imveis enquanto estiverem

    ligados ao solo. Logo os negcios jurdicos relativos aos imveis abrangem-

    nos, salvaguardando-se as clusulas especficas sobre esses mesmos frutos

    que imponham um regime diferente.

    O momento da separao o momento decisivo para saber se quem

    tinha o gozo ou desfrute da coisa-me adquire ou no a propriedade dos

    frutos.

    Art.213 n1 CC Se a separao se deu no decurso do seu direito,

    os frutos pertencem-lhe.

    Art.214 CC Mas a lei prev que a colheita de frutos prematuros

    obrigar sua restituio, se o direito se vier a extinguir antes da poca

    normal de separao.

    Art.215 n1 CC Por vezes, a lei impe a restituio de frutos

    percebidos, pelo que quem o fizer ter direito a ser indemnizado de todas as

    despesas feitas com eles.

  • Direito das Coisas FDUP

    38

    Art.215 n2 CC Se quando o direito se extinguir, houver frutos

    pendentes, no h direito a nenhuma restituio.

    Art.408 n2 CC O efeito da compra e venda de uma coisa futura

    meramente obrigacional at ao momento da separao, pelo que s com a

    colheita ou separao dos frutos se verifica a transferncia nos termos do

    art.408 n2 CC. Se entretanto o pomar for vendido, o negcio sobre os

    frutos inoponvel ao adquirente.

    Frutos Produtos

    Utilidades que das coisas derivam com carcter eventual (ao

    contrrio dos frutos que tem um carcter peridico). O produto o

    rendimento que no tem carcter peridico ou, tendo-o, a sua produo

    causa prejuzo ao carcter da coisa.

    Por outras palavras, produtos so, tal como os frutos, derivaes das

    coisas, mas que esgotam a sua substncia, enquanto os frutos, sendo

    colhidos periodicamente, no prejudicam a sua substncia.

    Ex. A pedra extrada de uma pedreira no um fruto, mas um produto,

    uma vez que a sua extraco implica, como bvio, o esgotamento do

    terreno.

    g) Benfeitorias

    Art.216 CC Despesas feitas para conservar, melhorar ou aumentar

    o valor de uma coisa.

  • Direito das Coisas FDUP

    39

    Podem ser (art.216 n2 e n3 CC):

    1. Necessrias tm por fim evitar a perda, destruio ou

    deteriorao da coisa;

    2. teis no sendo indispensveis para a conservao da

    coisa, aumentam-lhe o valor;

    3. Volupturias no sendo indispensveis para a conservao

    da coisa, nem lhe aumentando o valor, servem apenas para

    recreio do benfeitorizante.

    Benfeitorias despesas para melhorar ou conservar a coisa; incidem

    directamente sobre a coisa.

    Encargos despesas peridicas feitas por causa da coisa (ex.

    pagamento de rendas, impostos, amortizaes, juros);

    despesas que decorrem de relaes jurdicas que o titular

    tem com a coisa.

  • Direito das Coisas FDUP

    40

    Ttulo I Ordenao dominial provisria

    Captulo I A posse

    1. Distino entre posse e direito

    A ordenao dominial tem duas facetas: a ordenao dominial

    definitiva, levada a cabo atravs dos direitos reais; e a ordenao dominial

    provisria, estabelecida mediante a posse.

    De acordo com o art.1251 CC, a posse um poder de facto, que

    algum exerce sobre uma coisa de forma correspondente ao exerccio do

    direito de propriedade ou de outro direito real e que est na origem de todo

    o domnio.

    Daqui decorre que a posse admissvel em relao a qualquer outro

    direito real que no o direito de propriedade: pode haver uma posse

    traduzida na prtica de actos correspondentes ao contedo, no do direito de

  • Direito das Coisas FDUP

    41

    propriedade, mas de um outro direito real. Ex. Posse de uma servido; posse

    de um usufruto; etc.

    Porm, mesmo quando nos referimos posse traduzida na prtica de

    actos correspondentes ao direito de propriedade (caso mais comum), ainda

    aqui posse e propriedade distinguem-se.

    As mais das vezes, a posse coincide com a titularidade do direito de

    propriedade ou de outro direito real (servido, usufruto, etc.) a que

    corresponde. Ex. Um proprietrio que habita o seu prdio

    simultaneamente proprietrio e possuidor. Aqui a posse, por fora desta

    coincidncia, no tem autonomia em relao ao direito real (no caso, o

    direito de propriedade). Nestes casos, assiste-se a uma reunio, na mesma

    pessoa, das qualidades de proprietrio e possuidor.

    Pode, contudo, no acontecer assim.

    Exemplos:

    Um agricultor comea a cultivar o terreno vizinho, fazendo-o de forma

    reiterada, sem autorizao e afirmando o seu intento de se comportar como

    proprietrio, recolhendo os frutos, etc. Nesta hiptese, este agricultor torna-

    se possuidor deste terreno. Tem a posse, mas no tem a sua propriedade. O

    proprietrio o dono do prdio, que, por sua vez, no tem a posse

    correspondente, que pertence ao agricultor.

    Um indivduo acha uma coisa perdida ou furta um objecto e o guarda,

    passando a fru-lo. Surge aqui tambm uma dissociao entre a qualidade de

    possuidor e de proprietrio. O proprietrio o lesado; este continua a ser

    proprietrio da coisa, apesar de j no ser seu possuidor.

  • Direito das Coisas FDUP

    42

    Um indivduo compra um objecto a quem no era o seu proprietrio,

    seja porque o alienante no proprietrio vende conscientemente uma coisa

    alheia, seja porque o alienante no proprietrio a tinha adquirido por acto

    nulo. Nesta situao, o adquirente no se torna proprietrio, dado o

    princpio nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet. O

    comprador nada adquire, visto o alienante no possuir nenhum direito sobre

    a coisa alheia. No obstante, se a coisa lhe foi entregue, o adquirente torna-

    se possuidor dela. No o seu proprietrio. Proprietrio aquele cuja coisa

    foi vendida por outrem. O adquirente, uma vez que a coisa lhe foi entregue,

    apenas o seu possuidor.

    Em todos estes casos, a posse no coincide com a titularidade do

    direito real correspondente, uma vez que, neles, h um indivduo que detm

    a coisa em seu poder e que, embora se comporte como seu proprietrio, no

    tem essa qualidade.

    Assim, o regime da posse baseia-se numa mera situao de facto

    reconhecida pela ordem jurdica e que se traduz na possibilidade de algum

    utilizar e fruir de um bem, embora no possa invocar o direito real

    correspondente para legitimar o seu uso, como sucede nos casos abrangidos

    pela ordenao dominial definitiva, que assentam sempre num direito real.

    2. O problema da tutela possessria e a posse como caminho para

    a dominialidade

  • Direito das Coisas FDUP

    43

    Como acabou de ser dito, normalmente, o direito de propriedade e a

    posse surgem juntos. Quem tem a posse o proprietrio. H, ento, uma

    coincidncia normal entre a propriedade (poder jurdico) e a posse (poder

    de facto).

    Pode, todavia, acontecer que quem tenha o domnio factual ou

    emprico sobre uma coisa, no tenha o domnio jurdico sobre essa mesma

    coisa. Ex. Caso de furto da coisa; caso de perda da coisa; etc.

    A posse pode, assim, ser exercida directamente ou indirectamente (no

    caso de a coisa se encontrar na disposio de outra pessoa). A posse pode

    ser exercida atravs da utilizao directa e imediata do bem ou atravs da

    colocao do bem disposio de outra pessoa (mediante, por exemplo, o

    comodato emprestando a coisa a algum). Ainda aqui, o possuidor estar

    a exercer um poder de facto sobre a coisa, embora de modo indirecto.

    Considera-se que conferir o uso de um bem a um terceiro ainda uma

    manifestao do exerccio do poder de facto sobre o bem.

    Nestes termos, existe posse logo que a coisa entre na disponibilidade

    fctica de algum e permita exercer sobre ela um poder emprico, ou seja,

    h posse sempre que o bem se mantenha na reserva de disponibilidade

    fctica do sujeito.

    Da que Heck defina posse como a entrada factual de uma coisa na

    rbita de um senhorio ou de interesses.

    A posse implica, ento, que haja uma voluntariedade ou uma

    intencionalidade no seu exerccio por parte do sujeito (que a exerce). Por

    exemplo, ningum pode exercer a posse se estiver a ser sujeito a coaco.

  • Direito das Coisas FDUP

    44

    Sendo a posse um poder de facto e no um poder jurdico, ela surge

    como um mecanismo de preenchimento das lacunas da ordenao dominial

    definitiva.

    Nessa medida, a posse o objectivo a que aspira toda a dominialidade,

    porque o que verdadeiramente se pretende com a ordenao dos bens o

    seu exerccio atravs de um poder de facto, directo ou indirecto.

    Posto isto, ela desempenha um duplo papel:

    1) Integrar as lacunas da ordenao dominial definitiva;

    2) Possibilitar a transio para um direito definitivo, restabelecendo a

    ordenao dominial definitiva atravs do instituto da usucapio.

    Isto consegue-se, porque entre a posse e os direitos reais h uma

    identidade funcional e uma identidade estrutural, j que os fins visados por

    estas duas figuras so os mesmos: a organizao das infra-estruturas

    econmico-sociais e dos meios de produo.

    Ora, a posse, no obstante constituir uma ameaa ao direito real, na

    medida em que se apoia numa dominialidade emprica com a qual se atinge

    o suprimento de lacunas da ordenao dominial definitiva, alvo de uma

    tutela/proteco jurdica, por parte do ordenamento jurdico.

    O fundamento desta tutela jurdica assenta na promoo da paz social,

    que com ela se alcana, na medida em que atravs dela se evitam conflitos

    de interesses que decorrem das lacunas da ordenao dominial definitiva

    (tanto mais que o direito presume a titularidade do direito do possuidor a

    posse indica a aparncia do direito art.1268 n1 CC).

  • Direito das Coisas FDUP

    45

    Alm disso, a posse um valor de organizao, que permite o

    aproveitamento dos bens e a continuidade da sua explorao, uso e fruio.

    Deste modo, ela permite uma reintegrao do domnio dos bens, pois

    esta continuidade de explorao, uso e fruio forma e consolida os

    interesses de facto que tm de ser protegidos, nomeadamente quando o

    proprietrio do bem no tenha, durante certo tempo, reagido nem

    reivindicado o bem.

    A posse , nesta medida, uma via para a dominialidade e -o mediante

    o instituto da usucapio, enquanto efeito possessrio.

    A posse pretende-se como uma situao provisria, exercida durante

    determinado perodo de tempo limitado. Porm, ela pode e deve

    transformar-se e passar de poder de facto para um novo poder jurdico que

    se substitui ao anterior. Com isto, d-se a transformao do domnio

    provisrio em domnio definitivo, mediante o instituto da usucapio, que

    funciona como mecanismo de sucesso na dominialidade.

    A possibilidade desta transformao justifica-se, desde logo, pela

    necessidade de tutela dos valores de organizao e de continuidade que a

    posse permite, no obstante o facto da tutela da posse poder vir a proteger

    um ladro. Esses casos so, acima de tudo, excepcionais e tm que ser

    assumidos pelo sistema.

    3. Os sistemas possessrios

    Na anlise de uma situao possessria possvel distinguir dois

    elementos:

  • Direito das Coisas FDUP

    46

    I Elemento material corpus actos materiais praticados sobre a

    coisa.

    II Elemento psicolgico animus inteno de se comportar

    como titular do direito real correspondente aos actos praticados.

    I Elemento material (corpus):

    Traduz-se no exerccio de poderes de deteno (Mota Pinto), ou

    seja, em guardar ou conservar a coisa em seu poder no caso de um bem

    mvel; em ocupar no caso de um bem imvel.

    Note-se que no necessrio um permanente contacto fsico com a

    coisa. Basta que a coisa esteja dentro do mbito de um poder de facto do

    possuidor ou, por outras palavras, na sua reserva de disponibilidade fctica

    ou emprica. Assim, por exemplo, no deixa de ser possuidor de um

    automvel o indivduo que o deixa estacionado numa rua e se afasta durante

    um certo perodo de tempo.

    Pode, tambm, o corpus traduzir-se em actos de fruio (Mota

    Pinto) ou, at em actos de deteno e fruio conjuntamente.

    Assim, pode no haver uma deteno da coisa, mas haver uma fruio

    da coisa, mediante a recolha das vantagens econmicas desta. Por exemplo,

    um indivduo que recolhe os frutos de um prdio rstico ou que recebe as

    rendas de um prdio. O indivduo que frui o prdio est a possu-lo.

    O facto de no se tratar de um poder fsico sugere a possibilidade de

    exercer a posse por intermdio de outrem. Por exemplo, um indivduo

    arrenda um imvel e est a receber as rendas do locatrio, que quem se

    encontra em contacto fsico com a coisa. Este locatrio no possuidor por

    se encontrar a possuir em nome de outrem, no se comportando, por isso,

  • Direito das Coisas FDUP

    47

    em relao coisa, como um proprietrio (falta-lhe o animus). Ele um

    mero detentor ou possuidor precrio.

    II Elemento psicolgico (animus):

    Para haver posse, alm do exerccio de um poder de facto sobre a

    coisa, necessria a vontade de se comportar como o titular do direito

    correspondente aos actos realizados.

    No basta, portanto, o praticar, em relao ao bem, actos idnticos aos

    do titular do direito real, necessrio tambm que haja inteno de se

    comportar como titular do direito em termos do qual se possui.

    Fala-se assim num animus possidendi, que no se identifica,

    necessariamente, com um animus domini (inteno de se comportar como

    proprietrio da coisa), mas abrangendo ainda situaes em que h inteno

    de se comportar como, por exemplo no caso de usufruto, usufruturio.

    Trata-se, na verdade, do intuito de se comportar como o titular do direito

    correspondente aos actos que se praticam.

    Assim, por exemplo, uma pessoa que se senta numa cadeira em casa

    de outrem, no possuidor dessa cadeira pois falta-lhe o animus, a inteno

    de se comportar como proprietrio dela.

    Situao idntica se verifica nos casos de locatrio ou comodatrio.

    Estes no so possuidores por lhes faltar o animus correspondente

    propriedade, embora pratiquem em relao coisa actos equivalentes ao

    contedo da propriedade (ou, pelo menos, do usufruto).

    Ora, aqui, levanta-se a questo de saber se para existir posse

    necessrio que concorram estes dois elementos.

  • Direito das Coisas FDUP

    48

    Surgem, ento, duas concepes de posse: uma objectiva e outra

    subjectiva.

    Sistema objectivo:

    Para a concepo objectiva da posse, qual se associa o nome de

    Ihering, para que haja posse necessrio que exista um poder de facto sobre

    determinado bem, bastando, portanto, que se verifique o corpus.

    Dispensam-se especiais intencionalidades nesse exerccio (o animus).

    Sistema subjectivo:

    Para a concepo subjectiva, defendida por Savigny, para haver posse

    necessrio que se verifiquem os dois elementos: o elemento

    externo/fctico (o corpus), enquanto poder de facto sobre o bem; e o

    elemento interno/intencional (o animus), enquanto inteno de exercer o

    poder de facto como se fosse titular do direito real correspondente.

    Mas, tal como a posse se adquire quando se renem os dois elementos,

    a posse tambm se perde se se perdem os dois elementos ou, do mesmo

    modo, se se perde s um deles (pode acontecer que se perca s o elemento

    psicolgico ou s o elemento material). Por exemplo: perde-se o elemento

    material, quando a coisa fosse perdida, furtada ou usurpada por terceiro;

    por outro lado, perde-se o elemento psicolgico nos casos de constituto

    possessrio (o proprietrio de um prdio vende-o, mas convenciona com o

    adquirente que continua no prdio como locatrio).

    Assim, havendo o corpus, mas no havendo o animus, estamos

    perante um direito de crdito, no havendo consequentemente tutela

    possessria.

  • Direito das Coisas FDUP

    49

    Havendo corpus e animus, mas sendo um animus detinendi (e no um

    animus possidendi), no h tutela possessria, porque estamos perante uma

    mera deteno (que corresponde, portanto, ao exerccio de um direito de

    crdito).

    Da comparao dos dois sistemas resulta que o sistema objectivo

    confere uma tutela mais ampla, porque abrange quer os casos em que o

    poder de facto se faz ao abrigo de um direito real, quer os casos em que o

    poder de facto se faz ao abrigo de um direito de crdito.

    Por exemplo, A empresta a B um bem mvel. Para o sistema

    subjectivo, A possuidor, mas B um mero detentor. J para o sistema

    objectivo, tanto A como B so possuidores: A possuidor mediato e B

    possuidor imediato. Ambos gozam, nessa medida, de tutela possessria.

    A verdade que estas duas concepes da posse se explicam, porque

    cada uma delas parte de diferentes justificaes que atribuem tutela

    possessria.

    Para Savigny, o fim e a causa da proteco jurdica da posse a defesa

    da paz pblica. A posse protegida, porque, se os possuidores no

    pudessem recorrer ao tribunal quando fossem perturbados ou esbulhados da

    coisa, os possuidores teriam que recorrer auto-tutela dos seus direitos e

    justia privada, o que geraria a desordem, alm de que esta auto-tutela

    rejeitada pelo ordenamento jurdico (art.1 CPC), salvo os casos contados

    de aco directa (art.336 CC), legtima defesa (art.337 CC), estado de

    necessidade, etc.

  • Direito das Coisas FDUP

    50

    J para Ihering, a razo pela qual se protege a posse no a defesa da

    paz pblica, mas o facto de a posse ser o sinal visvel ou exterior do direito

    real correspondente. certo que se protegem alguns no proprietrios

    (ladres e usurpadores), mas esta proteco tambm uma proteco

    provisria. Depois discutir-se- a propriedade da coisa, mas, imediatamente,

    tem proteco como possuidor. Alm disso, estatisticamente, a maioria dos

    possuidores so os proprietrios das coisas possudas. Se no se protegesse

    a simples posse, as pessoas teriam que provar o seu direito, o que exigiria,

    muitas vezes, a prova ininterrupta de uma cadeia de transmisses, o que se

    consubstancia numa prova dificilssima ou mesmo impossvel. Facilita-se,

    portanto, aos autnticos proprietrios (maioria estatstica dos possuidores) a

    defesa da sua posse s com base na prova da posse, sem que tenham que

    provar a propriedade com os vrios ttulos.

    4. Noo de posse (posio legal do ordenamento jurdico face

    dualidade dos sistemas possessrios)

    O art.1251 CC apresenta a noo legal de posse.

    Esta noo legal aponta para a exigncia dos dois elementos da posse:

    corpus e animus.

    Da conjugao do art.1251 CC com o art.1253 CC resulta, que entre

    ns est acolhida a posio subjectiva. Se faltar o animus possidendi,

    estamos perante uma mera deteno ou posse precria.

  • Direito das Coisas FDUP

    51

    Porm, a nossa lei admitiu quatro excepes ao consagrar resultados

    que se aproximam da concepo objectiva, uma vez que, por disposies

    ad hoc, a nossa lei concedeu tutela possessria, permitindo o recurso aos

    meios de defesa da posse, a meros detentores ou possuidores precrios:

    1) Art.1037 n2 CC locatrio;

    2) Art.1125 n2 CC parceiro pensador;

    3) Art.1133 n2 CC comodatrio;

    4) Art.1188 n2 CC depositrio.

    Embora estes no sejam autnticos possuidores, a lei, por norma

    avulsa, vem dizer que eles podem valer-se dos meios de defesa da posse.

    Todavia, no esto equiparados aos possuidores para todos os efeitos,

    nomeadamente para efeitos de usucapio.

    O nosso sistema, de cariz subjectivo, concebe, ento, a posse como

    uma relao entre o corpus e o animus.

    Corpus poder de facto sobre um bem, que se encontra na zona de

    disponibilidade emprica do sujeito. Implica a ideia de estabilidade. No

    tem forosamente que implicar um poder fsico.

    Animus conscincia e inteno de exercer um domnio factual

    sobre um determinado bem.

    O facto de a lei exigir o corpus e o animus para efeito de haver posse

    implica que o possuidor tenha de provar a existncia dos dois elementos, o

    material e o psicolgico para poder, por exemplo, adquirir por usucapio

    ou lanar mo das aces possessrias.

  • Direito das Coisas FDUP

    52

    Ora como a prova do animus poder ser muito difcil, para facilitar as

    coisas, a lei estabelece uma presuno. Em caso de dvida, presume-se a

    posse naquele que exerce o poder de facto.

    Daqui decorre que, sendo necessrio o corpus e o animus, o exerccio

    daquele faz presumir a existncia deste.

    Ao contrrio do que se passava antigamente, nomeadamente no

    Direito Romano, admite-se hoje que a posse pode ser exercida em termos

    correspondentes a direitos reais menores e no apenas em termos de direito

    de propriedade. Assim, encontram-se diferentes animus consoante o direito

    real a que a inteno subjacente ao exerccio dos poderes de facto sobre

    uma coisa corresponda (animus de propriedade; animus de usufruto; animus

    de superfcie; etc.).

    Se surgirem dvidas acerca do

    direito real em termos do qual o poder de facto exercido, dever entender-

    se, atendendo ideia de plena in re potestas que integra a dominialidade,

    que estamos na presena de uma posse uti dominus, isto que os poderes

    de facto so exercidos como se existisse titularidade de um direito real de

    propriedade.

    5. Posse formal e posse causal

  • Direito das Coisas FDUP

    53

    Posse formal posse autnoma; posse que no suportada por

    nenhum direito real; opera desligada do direito real; no tem atrs de si um

    verdadeiro direito real a legitim-la; ela surge de um conflito com esse

    direito real.

    D-se a posse formal quando algum exerce aparentemente um

    direito sobre uma coisa, estando a sua situao dissociada da titularidade

    substantiva (Oliveira Ascenso).

    Posse causal tem causa no direito real; o possuidor causal exerce o

    poder de facto (a posse) no apenas em termos de um direito real, mas na

    medida em que efectivamente o titular de um direito real; a posse

    suportada por um efectivo direito real (no caso de estar em causa um direito

    de propriedade, o possuidor coincide com o proprietrio).

    Posse causal aquela que tem a justific-la a titularidade do direito a

    que se refere (Oliveira Ascenso).

    O possuidor formal apenas pode invocar a posse para se defender; o

    possuidor causal pode invocar no s a posse, mas tambm o prprio direito

    real, consoante o que lhe for mais conveniente.

    6. Posse precria ou deteno

    Posse Deteno

  • Direito das Coisas FDUP

    54

    Art.1253 CC corresponde ao exerccio de um poder de facto

    (corpus), sem que lhe corresponda um direito real, mas sim um direito de

    crdito. H um corpus e um animus detinendi. O simples possuidor ou o

    possuidor precrio no tem o animus possidendi.

    Art.1253 CC:

    a) Engloba os actos facultativos, em que os poderes de facto so

    exercidos pelo detentor em consequncia da inrcia do titular

    do direito ou da inrcia do possuidor. Nestes casos, quem

    exerce o poder de facto no tem inteno de agir como

    beneficirio do direito.

    b) Refere-se a actos de mera tolerncia. Corresponde aos casos

    em que os poderes de facto so concedidos pelo prprio titular

    do direito, mas sem qualquer interveno vinculativa, sem

    qualquer inteno de atribuir quela pessoa quaisquer poderes

    jurdicos. Ex. Emprestar um bem a uma pessoa.

    c) Abrangem os detentores por ttulo jurdico, que dizem

    respeito a detenes que tm atrs de si a existncia de um

    ttulo jurdico, nomeadamente um direito de crdito.

    7. Natureza jurdica da posse

    Ser a posse uma simples aparncia do direito, um fumus boni iuris

    ou ser ela um verdadeiro direito?

  • Direito das Coisas FDUP

    55

    De acordo com as preleces de Mota Pinto, uma anlise do seu

    regime revela ser a posse um verdadeiro direito, mas um direito real

    provisrio. A posse no , ento, um mero facto. Ela tem mais relevo do

    que um simples facto aparente do direito.

    um direito, porque a posse uma situao jurdica subjectiva que

    confere um poder sobre uma coisa em face de todos os outros e da que seja

    um direito real. uma situao negocivel, hereditvel, susceptvel de

    registo e que pode ser defendida por meios jurdicos. Est, portanto, dotada

    de garantia jurdica.

    um direito real provisrio, porque esta proteco s se mantm, ou

    melhor, cessa perante a aco de reivindicao (meio de defesa do direito

    de propriedade art.1311 CC), salvo se entretanto operar a usucapio.

    8. Direitos em termos dos quais se pode possuir

    Disse-se que podem existir vrios tipos de animus, consoante as

    intenes de exercer os poderes de facto correspondentes aos variados

    direitos reais.

    Por esse motivo, cumpre delimitar o conjunto de direitos em termos

    dos quais se pode possuir, em termos dos quais pode existir um animus

    possessrio. Para tal, necessrio ter presente que o corpus exercido no

    tem que ser necessariamente um poder fsico. A posse sim um poder de

    facto que se encontra na esfera de disponibilidade emprica do seu titular.

    Da que h direitos reais que no conferem posse:

    Direitos reais de aquisio;

  • Direito das Coisas FDUP

    56

    Hipoteca (alguns direitos reais de garantia);

    Servides no aparentes (direito real de gozo art.1280 CC no

    pode haver posse nas servides no aparentes, salvo quando a

    posse se funde em ttulo provindo do proprietrio do prdio

    serviente ou de quem lho transmitiu. Justificao: os actos

    correspondentes ao contedo das servides no aparentes so

    normalmente actos de tolerncia do proprietrio da coisa).

    Contudo, j conferem posse:

    Direitos reais de gozo (propriedade; usufruto; uso e habitao;

    superfcie; servido exceptuam-se as servides no aparentes;

    direito real de habitao peridica);

    Alguns direitos reais de garantia:

    o Penhor; o Direito de reteno; o Consignao de rendimentos.

    9. Objectos passveis de posse

    So passveis de posse todos os bens passveis de domnio, ou seja,

    genericamente, todas as coisas.

    Coisas corpreas no levantam dvidas de que podem ser

    objecto de posse.

  • Direito das Coisas FDUP

    57

    Coisas incorpreas:

    Estabelecimento comercial pode ser objecto de posse,

    porque o estabelecimento no existe sem um lastro material. Ele assenta em

    valores ostensivos, com relevo jurdico-econmico fora do prprio

    estabelecimento, valores esses, grande parte das vezes, materiais. Alm

    disso, o poder de facto da posse no tem que ser um poder fsico, pelo que

    basta que o estabelecimento, enquanto organizao de factores produtivos,

    se encontre na reserva de disponibilidade emprica do sujeito. A posse

    pretende garantir a exclusividade da disponibilidade destes bens ao seu

    titular. Logo, parece no haver nada contra o facto de estes bens

    incorpreos serem passveis de posse, desde que visem preservar a

    explorao econmica do estabelecimento comercial (o que constitui um

    verdadeiro requisito para a sua classificao como coisa incorprea).

    Ideias inventivas tambm pode haver posse, j que

    atravs desta possvel salvaguardar a explorao econmica e a

    exclusividade econmica do bem, at porque a posse tem que ser entendida

    como um poder emprico e no como um poder fsico, de reserva de

    exclusiva disponibilidade do bem.

    Grande parte da doutrina levanta

    problemas quanto admisso da usucapio destes bens.

    Para Orlando de Carvalho pode haver posse sobre estes bens,

    defendendo, quanto usucapio, que esta possui natureza diferente, at

    porque ela no um efeito necessrio da posse, podendo ser excluda pelo

    CC para certas situaes possessrias.

  • Direito das Coisas FDUP

    58

    Assim, para as invenes e obras de engenho, sendo eles bens

    protegidos pelo direito patrimonial de autor, no de admitir a usucapio,

    pelo menos quando for exercida contra o titular do direito patrimonial de

    autor (j se levantam srias dvidas quando ela for exercida contra os

    sucessores do titular daquele direito).

    Quanto aos sinais distintivos do comrcio, por via da sua ligao

    personalidade e, no obstante a necessidade da aquisio do

    estabelecimento, tambm parece no ser correcto admitir a usucapio.

    Direitos sobre direitos pode haver posse sempre que o direito

    sotoposto (direito sobre o direito) confira poderes de facto sobre o direito

    sobreposto (direito objecto do direito real; direito coisificado).

    10. Capacidade para adquirir a posse

    Art.1266 CC: Podem adquirir posse todos os que tm uso da razo e

    ainda os que o no tm, relativamente s coisas susceptveis de ocupao.

    A lei basta-se com o uso da razo. Com o discernimento que apenas

    requer da pessoa a capacidade natural de querer e entender os poderes de

    facto inerentes ao exerccio da posse. Basta que o sujeito tenha a capacidade

    natural de entender e de querer suficiente para exercer os poderes de facto

    sobre a coisa.

    A lei no exige a capacidade de exerccio.

    Nos termos do art.488 CC, presume-se que haja uso da razo a partir

    dos 7 anos.

  • Direito das Coisas FDUP

    59

    Os menores de 7 anos e os inimputveis por anomalia psquica no

    tm capacidade para exercer posse, salvo quando a coisa susceptvel de

    ocupao. Trata-se de uma presuno ilidvel.

    Casos em que os menores de 7 anos e os inimputveis por anomalia

    psquica podem possuir:

    2) Casos em que a coisa susceptvel de ocupao. Estes casos de

    ocupao constituem meras operaes materiais de apreenso

    fsica.

    3) Quando a posse tenha sido adquirida por intermedirio, desde que

    seja em nome e no interesse do sujeito que no tem o uso da razo

    e desde que o intermedirio tenha o uso da razo. O

    intermedirio, aqui, abrange todas as figuras da representao.

    4) Casos do art.1890 n3 CC: o suprimento da falta de aceitao

    ocorre por interveno dos pais ou representante legal. Se os pais

    nada declararem, a liberdade tem-se, em princpio, por aceite. O

    menor adquire a posse dos bens, tendo ou no o uso da razo, o

    que se justifica porque a lei constri uma fico de aceitao do

    intermedirio.

    11. Caracteres da posse

    O relevo jurdico da posse depende das suas caractersticas.

    Estas caractersticas contendem com:

    1) O nexo da posse com o direito em termos do qual se possui.

    2) A conscincia da aquisio da posse.

  • Direito das Coisas FDUP

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    3) O facto de se adquirir a posse com ou sem violncia.

    4) A cognoscibilidade da posse.

    Atente-se que a posse se afere no momento da aquisio.

    H caractersticas que so permanentes (fixadas em termos

    definitivos) e outras que so no permanentes (a sua natureza varia ao longo

    do tempo).

    H caractersticas que so absolutas (valem face a qualquer

    interessado) e relativas (valem s para alguns interessados, em princpio, o

    anterior possuidor).

    Assim, a posse pode ser:

    1) Posse titulada ou posse no titulada

    2) Posse de boa-f ou posse de m-f

    3) Posse pacfica ou posse violenta

    4) Posse pblica ou posse oculta

    A 1) e 2) so caractersticas permanentes e absolutas.

    A 3) e 4) so caractersticas no permanentes e relativas.

    a) Posse titulada e posse no titulada

    Art.1259 n1 CC: Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo

    legtimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente,

    quer da validade substancial do negcio jurdico.

  • Direito das Coisas FDUP

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    Esta destrina tem importncia para efeito das presunes legais do

    art.1260 CC e para efeitos de usucapio. Na verdade, a usucapio obedece

    a prazos diversos, consoante a posse que a fundamenta titulada ou no

    titulada.

    Ela contende com o nexo de aproximao entre a aquisio da posse e

    o direito real em que se funda.

    Modo legtimo de adquirir Adquirir o qu? O direito em termos

    do qual se exerce o poder de facto, se exerce a posse.

    Modo Ttulo, no sentido de justa causa de aquisio do direito

    real.

    Legtimo Possibilidade abstracta de aquele ttulo constituir

    aquele direito. Deve ler-se ttulo existente, pois a causa de aquisio

    prescinde de saber se h ou no o direito na esfera do transmitente e da

    validade substancial do negcio jurdico, pelo que a aquisio nestes

    termos no pode considerar-se legtima.

    Quando a lei diz posse fundada em qualquer

    modo legtimo significa que a posse tem atrs de si, como causa

    legitimante da sua aquisio, um ttulo adquirente que, em abstracto,

    idneo a transmitir o direito real.

  • Direito das Coisas FDUP

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    Fundada Significa que a posse no deriva de um negcio

    translativo do direito real, mas uma posse que tem como causa mediata,

    atrs de si, um ttulo que, em abstracto, apto a transmitir um direito real,

    apesar de em concreto no se transmitir esse direito real.

    Independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade

    substancial do negcio jurdico Parece que se refere s aos negcios

    jurdicos como a nica forma de aquisio da posse, o que no verdade,

    porque tambm existem outras formas de aquisio da posse que so

    simples operao jurdicas (e no negcios jurdicos), como o so a

    ocupao, a acesso e a usurpao.

    Todavia, o artigo quer mesmo referir-se somente aos negcios

    jurdicos, da que ele s se aplique s formas de aquisio derivada da

    posse, i.e., queles que implicam uma verdadeira traditio do bem. J no se

    aplicar s formas de aquisio da posse originrias.

    Assim, a posse titulada se o ttulo for, em

    abstracto, apto/idneo transmisso do direito real em causa,

    independentemente de, em concreto, no o ser, ou porque o direito no

    existia na esfera jurdica do transmitente (mas existia na esfera jurdica de

    outrem o transmitente no tinha legitimidade para transmitir a coisa) ou

    porque faltaram os requisitos substanciais do negcio e, desse modo, ele

    padecia de um vcio substancial (requisitos de validade substancial do

    negcio jurdico).

  • Direito das Coisas FDUP

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    Ao invs, a posse no titulada se os vcios do negcio conduzirem

    inexistncia jurdica do mesmo ou se ele padecer dalgum vcio formal.

    Este regime justifica-se, porque enquanto que a falta de legitimidade

    do transmitente e os vcios substanciais do negcio no so visveis, a

    inexistncia e os vcios formais so, pela sua natureza, ostensivos e

    cognoscveis do declaratrio.

    Todavia, importante fazer uma reduo do alcance desta 2 parte