21
Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35 95

268_A oralidade como meio de preservaçao da identidade afro-brasileira _ José Almeida Santos

Embed Size (px)

Citation preview

A oralidade como meiode preservação da identidadeafro-brasileiraJosé Almeida Santos1

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:3595

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:3596

97..

Vencendo

desaf ios

IntroduçãoEste artigo tem como objetivo discutir a importância

da tradição oral na preservação cultural, no processo defortalecimento da identidade afro-brasileira. Levando emconsideração a extrema importância da oralidade noprocesso identitário e as variadas formas de transmissãode saber na dinâmica da cultura afro-baiana, procuromostrar como ela influi dentro de uma perspectiva deexaltação e aceitação do ser negro e de resistência a umacultura eurocêntrica imposta a esse povo.

Trata-se de um recorte do Projeto de pesquisa e extensão,de cunho etnográfico, intitulado Mitologia de matriz africanana Bahia que tem como objetivo resgatar e divulgar amitologia africana e afro-brasileira. Procuramos refletirtambém o aprendizado no âmbito acadêmico sobre questõesde identidade e oralidade africanas, ampliadas dentro deuma perspectiva de convivência com a Faculdade deEducação, a comunidade e os colegas do Projeto, no qualatuo como bolsista do Programa Permanecer. Divulgamostambém o andamento dos trabalhos desse Projeto de autoriae coordenação do professor Roberto Sanches Rabêllo.

Relacionamos oralidade africana e identidade afro-brasileira, dentro de uma perspectiva de resistência dosdescendentes africanos para manter vivas suas raízes,tradições culturais e saberes ancestrais.

Para isso evidenciaremos o que é uma identidade afro-brasileira, relacionando os aspectos políticos e societários,consultando outros autores sobre o assunto, verificando

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:3597

..98

Diversidade e

Convivência

as resistências ao movimento desarticulador das tradiçõesorais e o processo que está criando essas resistências.Veremos que essa pedagogia, por meio da capoeira e docandomblé, funcionou como fonte matriz de resistência ede exaltação do ser negro. E após, nos posicionaremossobre essa identidade afro e introduzindo conceitos sobreoralidade e tradição oral, abordaremos o tema dentro daliteratura, vendo como isso vai beneficiar o processoidentitário das pessoas e das comunidades de origem afro,ou que se identifiquem com o assunto. E ainda, como aeducação trata da mitologia africana, e o que está sendofeito por ela a respeito dessas identidades. Uma dasiniciativas para amenizar esse problema foi a criação dasLeis 10.639 e 11.645, propiciando ações legitimadas comoa do nosso Projeto de mitologia. Faremos um breveesclarecimento sobre os trabalhos do Projeto, ressaltandocomo a convivência dentro dele proporcionou umaprendizado e quebras de preconceitos; as realizaçõesdentro da temática afro-baiana, o que propõe em todasas etapas já construídas dentro do mesmo; o que temsido feito para dar continuidade a essa construção deidentidades afro-brasileiras, e como pretende ampliaressas construções na comunidade. E por fim, umfechamento geral de todo o artigo se fará necessário paraestudos posteriores e conclusão do trabalho.

Gostaria de agradecer a colaboração das colegas MartaSueli e Isis Ceuta, e ao coordenador do Projeto Mitologia,pelas discussões que possibilitaram a realização destetrabalho.

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:3598

99..

Vencendo

desaf ios

O que é uma identidade afro-brasileira?Em uma oficina que participei sobre pedagogia griô,

em 2008, a coordenadora Líllian Pacheco afirmou: “Nãohá como construir educação sem colocar a identidade no centrodo saber”, concordo plenamente com ela, e novamentequando ressaltou: “Temos que aprender as pedagogiasutilizadas na capoeira e no candomblé que não vemos nasescolas”, isso fortalece de forma particular a identidadedessas pessoas, que são dominados e não dominantes emsua gigantesca maioria.

Segundo a teoria da descentração proposta por Hall(1999), o sujeito moderno desenvolve várias identidades,mas eu diria que a predominante devido o processo deglobalização e interesse das elites capitalistas, seria acultura dos povos dominantes imposta sem controle aosoutros povos, com a qual os dominados em sua maioriase identificam, segundo Abib (2005, p. 35):

As identidades dos sujeitos, imersos nesseprocesso de globalização, passam por profundastransformações, perdendo a estabilidade queoutrora se entendia como sendo sua marca.As pessoas valorizam ao extremo essa cultura que é

mais uma do povo brasileiro, mas não a única, já quesegundo Darcy Ribeiro (1995) é um novo povo, surgidode um misto de portugueses, africanos e índios. Mas nãoé isso que vimos na realidade, parece haver somente umaúnica cultura branca passando por cima das demais. E

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:3599

..100

Diversidade e

Convivência

foi por isso que foram criadas as Leis 10.639 (culturanegra) e 11.645 (cultura negra e indígena) que tornaobrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileirae Indígena, para garantir na educação a presença dasoutras culturas.

Essa mesma tentativa de se impor uma única culturacriou as chamadas resistências, segundo Abib (2005, p. 10):

Não há como desconsiderar na atualidade, oprocesso de fortalecimento de tradições e práticasculturais de determinados grupos sociais, que tráscomo conseqüência, um profundo sentido depertencimento por parte do sujeito, com relaçãoao grupo social do qual é originário.São núcleos que se espalham cada vez mais pelo país

com movimentos de valorização das outras raízes brasileirasque não somente a europeia, e é ai que entram os povosremanescentes da África, ou melhor dizendo afro-descendentes, que mantêm vivo os costumes, tradições eensinamentos/conhecimentos africanos aqui no Brasil,através da oralidade uma pedagogia típica desse povo.

A identificação com essa cultura, a vivência nela e aluta para mantê-la viva, séria em minha opinião a essênciada identidade afro-brasileira.Tradição oral

A tradição oral é a fonte primordial da história. Apalavra oral, a fala, foi sempre muito mais importantepara os africanos do que a escrita, que não passa de uma

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35100

101..

Vencendo

desaf ios

memória artificial, opinião também compartilha porReyzábal quando afirma:

A tradição oral nos encaminha para nossas raízese permite sermos partícipes da existência emcoletividade [...] A escrita fixa no papel, aoralidade fixa na memória [...] Nesse sentido,tradição e literatura orais não só representam oproduto da imaginação e fantasia, mas tambémpermitem a integração do individuo na culturacriada pela coletividade. (REYZÁBAL, 1999, p.259-261)É através da memória, da fala, que a História da

África tem sido contada e passada entre os africanos aolongo das gerações. A cultura africana é predominante-mente oral, as histórias contadas e recontadas constituema forma mais eficaz de perpetuar a tradição e os costumes.E essa pedagogia foi trazida por eles para o Brasil durantea escravidão e repassada aqui para seus descendentes.Segundo Líllian Pacheco (2006, p. 54) eles:

Semeiam o poder da oralidade: a palavra, a escuta,os princípios do diálogo, a vivência, os mitos, osarquetipos, os símbolos, os rituais, as históriasde vida, as expressões artísticas e artesanais, ossaberes de um povo e de seus mestres, que formamo eixo para leitura do mundo, a participação naconstrução do social e o fortalecimento de suaidentidade.É justamente esse fortalecimento de identidade pela

oralidade que proponho nesse artigo. Ainda nos situandomais sobre essa oralidade, Vansina (1966, p. 33) diz que:

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35101

..102

Diversidade e

Convivência

“As tradições orais são todos os testemunhos orais,narrados, relacionados ao passado”, já para Gonçalves eSilva (2003, p. 185):

A tradição oral é uma manifestação da tradiçãocultural, e, como ela, encerra conjunto designificados, que se apresentam com continuidadee constância entre membros de um mesmo grupoétnico-racial. Encontram-se tais significadosinscritos em intenções, projetos, posicionamentos,avaliações, articulados no agir e intervir no ambi-ente. Trata-se de patrimônio ancestral inatingívelque sobrevive, com renovados contornos, como queocultado, mas sempre compartilhado.Essa tradição não é um simples costume, é um

conjunto de ensinamentos para vida que raramente sãopassados para esses descendentes de africanos, pobresem sua grande maioria. Esses conhecimentos quase nuncaatravessam as portas das escolas, onde se ensina a culturados povos dominantes, e a sua própria cultura é vistacom descaso e preconceito. Mesmo assim ainda existemmuitas resistências, para Abib (2005, p. 25):

A grande maioria das tradições populares aindatem, na oralidade, o seu meio mais importante detransmissão, já que a escrita - juntamente comos meios formais de aprendizado, como a escola,por exemplo - não tem um papel central nosprocessos de ensino-aprendizagem desenvolvidospelos sujeitos protagonistas dessas tradições.Nesse universo, a oralidade ainda prevaleceresistindo aos avanços da modernidade.

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35102

103..

Vencendo

desaf ios

Não diria somente avanço da modernidade, mastambém a aceitação de certa forma forçosa de uma culturaeurocêntrica enfiada no nosso cotidiano, o mesmo em suafala também confirma o que foi dito antes sobre aeducação brasileira. Esse fato é muito preocupante paraessa mesma educação. Por isso as Leis 10.639 e 11.645devem ser postas em prática e não ficarem somente nopapel como várias outras, para que sejam adotados noensino das escolas elementos identificadores das culturasnegra e indígena, contrariando a visão dominadora evitoriosa branca, para que os descendentes dessas outrasculturas venham a ter seus próprios heróis. Pacheco (2006,p. 22) retrata isso muito bem em sua fala:

Porém a dissociação cultural entre escolas e suascomunidades, entre gerações de tradição oral enovas gerações de tradição escrita, forma umacélula de uma questão nacional. Há uma carênciade práticas integradoras de ensino e aprendi-zagem nas universidades e nas escolas queincluam a vivência afetiva e cultural das crianças,adolescentes e jovens brasileiros. Práticas que osvinculam a si mesmos e a sua ancestralidade, paraque sejam protagonistas de uma história e de umaeducação que garantam o fortalecimento de suaidentidade para melhoria da qualidade de vida.As tradições populares de tendência africana

sobrevivem resistindo a essa massificação ou se adaptandoa ela, criando uma identidade própria. É fácil aceitarmosa existência e a importância da literatura oral na África,por exemplo, mas nos custa reconhecer sua presença em

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35103

..104

Diversidade e

Convivência

nossas culturas e sua imensa importância para os quedela participam, como destaca Pacheco (2006, p. 81):

O que é invisível para uns é a escola da vida paraoutros. Nas capoeiras, candomblés, sambas-de-roda, torés, cirandas, nas escolas de samba, nascaminhadas de reis, nas mãos de rendeiros e dasparteiras, no encontro com griôs [...]. Vemo-nosem rodas, em rituais, coros e cantos ancestraischamando para responder [...]. As idades e osgêneros juntos em caminhadas e conversas comtodas linguagens artísticas e afetivas da corporei-dade humana. Contadores de histórias, heróis emitos que dão sentido aos mistérios de cada idadeda vida. O grupo como colo, ninho, família,comunidade e o princípio da partilha comoeconomia. A palavra como poder divino e ouniverso como expressão, fala, forma, música edança - da vida em evolução.Não há como falar de ensinamentos orais sem

relembrar a figura do Griô africano, Pacheco (2006, p.45) lembra que: “Na tradição oral, a palavra griô tem umpoder e um significado divino, tem um compromisso coma verdade e com os ancestrais”, Hampâté (apud PACHECO,2006, p. 8) diz que:

Uma vez que a sociedade africana está fundamen-talmente baseada no dialogo entre os indivíduose na comunicação entre comunidades ou gruposétnicos, os griots são os agentes ativos e naturaisnessas conversações,Pacheco (2006, p. 16) ainda afirma: “O griô é um

educador caminhante alegre e afetivo, sábio na criação de

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35104

105..

Vencendo

desaf ios

rituais de vinculo e aprendizagem, histórias e artes deviver”. Na falta de griôs pelo Brasil, cabe aos mestres dastradições e aos mais antigos o ensinamento das mesmaspara os jovens, assim diz o provérbio iorubano: “Quandomorre um velho é como se uma biblioteca inteira fosseincendiada (Hampâté Ba), os velhos são guardiões dastradições” (SOUZA; LIMA, 2006, p. 95). De acordo comAbib (2005, p. 95):

O mestre é aquele que é reconhecido por suacomunidade, como o detentor de um saber queencarna as lutas e sofrimentos, alegrias ecelebrações, derrotas e vitórias, orgulho eheroísmo das gerações passadas, e tem a missãoquase religiosa, de disponibilizar esse saberàqueles que a eles recorrem.Vemos muito dessa pedagogia oral em diversos

movimentos como na capoeira angola, por exemplo, paraAbib (2005, p. 97):

A capoeira angola nos trás exemplos belíssimosde como os saberes são transmitidos paciente-mente pelo mestre, [...]. Respeito ao “tempo deaprender” de cada um, pela forma como tocacorporalmente seus alunos para ensinar osmovimentos, herança de uma pedagogia africana,baseada na proximidade entre o mestre e oaprendiz onde até o hálito de quem ensina, deveser transmitido para aquele que aprende, comoum meio por onde a tradição é repassada.Outro forte movimento é o candomblé e sua

misticidade, ambos os movimentos resistiram mesmo

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35105

..106

Diversidade e

Convivência

quando foram considerados criminosos no passado, paraSodré (1988, p. 146):

A partir do terreiro, território de um jogo cósmico,o axé dos escravos e seus descendentes mostramos limites ao poder do senhor: graças à força daalacridade, resiste-se à pressão degradante dosescravizamentos de qualquer ordem e institui-seum lugar forte de soberania e identidade.Foi travada uma verdadeira luta por esse povo que

só queria ser, estar, permanecer e existir com suaidentidade. Eles foram vítimas de perseguição por outrasculturas, que desconheciam e ainda desconhecem essespatrimônios brasileiros de saber. Esses saberes que segundoAbib (2005, p. 98-99):

São saberes e conhecimentos que não podem serdisponibilizados a qualquer pessoa ou emqualquer momento, mas necessitam, para sertransmitidos, de uma certa preparação por parteda pessoa interessada, que inclui muitas vezesuma “iniciação” que faz parte da ritualidadecaracterística daquele grupo [...] Essas estratégiassão fundamentais para a continuidade dessastradições, que não teriam chance de se preservarao longo do tempo, se fossem demasiadamente“abertas” às influencias externas.Fazem parte desses saberes: os contos, fábulas e

lendas, instrumentos da tradição oral africana queincluem elementos da natureza, espíritos e símbolossobrenaturais e experiências vividas pelos antepassadose contemporâneos, refletindo os aspectos relevantes da

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35106

107..

Vencendo

desaf ios

vida em comunidade. A necessidade de narrá-los impõe-se, e a literatura tradicional é fértil em possibilidadesnovas e criativas: histórias, contos, provérbios, adivinhas,poemas. É a chamada tradição oral, existente em váriosoutros movimentos e permanentemente atualizada emfunção da realidade quotidiana.

Dentro dessa fonte de saber não posso deixar de daruma atenção maior aos mitos, que são a base do projetode mitologia que vou descrever mais para frente.

Anterior à escrita, os mitos já existiam em suaexpressão oral transmitidos por grandes mestres dediferentes regiões do continente africano, referenciandoa tradição africana. E para esta representação, o mitoindica a síntese da origem do universo em diversas etniaspor todo o mundo. Por este motivo também, os mitosorais têm a palavra como força suprema. Se não háconfiança na palavra falada, como se pode ter confiançana palavra escrita?

De forma geral, na África tradicional, a palavra ésinal de divindade, até ter contato com a materialidade,com a expressão escrita. Mas isso não a fez perder asacralidade. E é por isso, que existem nesta tradiçãopessoas específicas para trabalharem com o discurso,tidas como sagradas. A educadora Vanda Machadocompartilha das premissas deste conceito:

No exercício de educar para a vida, o pensamentoafricano mantém como tradição as histórias míticas, quepodem ser consideradas como práticas educacionais quechamam a atenção para princípios e valores que vão

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35107

..108

Diversidade e

Convivência

inserir a criança ou o jovem na história da comunidade ena grande história da vida. No pensamento africano, afala ganha força, forma e sentido, força e orientação paraa vida. A palavra é vida, é ação, é jeito de aprender e deensinar. Assim nasceram os mitos. Contar um mito, emmuitos lugares na África, faz parte do jeito de educar acriança que, mesmo antes de ir para a escola, aprende ashistórias da sua comunidade, os acontecimentos passados,valorizando-os como novidade. (MACHADO, 2003)

Concordo com a educadora quando fala sobre osmitos, a mesma ainda comprovou que na prática isso épossível, mesmo com a contradição encontrada por elaem uma escola (Escola Eugênia Ana) dentro de umterreiro (Ilê Axé Opô Afonjá) que ignorava a culturaafricana. Ela conseguiu transformar essa realidademostrando: a importância do convívio das crianças comum ambiente de sua cultura para formação da identidadee personalidade; o ensino dos mais velhos e o respeito aeles e às suas sabedorias; como usar os mitos parapassagem de conhecimento e para formar pessoasmelhores; a importância do subjetivo de mãos dadas aoconhecimento científico, dando ênfase à motivação, àimaginação, costumes e valores da cultura afro-brasileira;preocupando-se realmente com o desenvolvimento dascrianças, e não apenas em formar mão-de-obra; utilizandoo conhecimento para favorecer a prática do cotidiano;criando contato e respeito com a natureza e o meioambiente. Líllian Pacheco2 durante a oficina ainda disse:“Mito é um reflexo da história de um povo”, então não é

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35108

109..

Vencendo

desaf ios

possível se negar esse conhecimento a quem surgiu dessahistória, mas não é o que acontece, Pacheco ainda citaCampbell (1990 apud PACHECO 2006, p. 81, grifo doautor) para relacionar a importância do mito para o nossoser:

Campbell (1990) revela a capacidade que os mitostêm de dialogar com a sabedoria de vida, umdiálogo que transcende a literatura e as artes.Segundo ele o mito cria uma “ressonância dointerior do nosso ser e da nossa realidade maisíntimos, de modo que realmente sintamos oenlevo de estar vivo”.Enquanto Souza e Lima (2006, p. 84) destacam a

importância desses mitos para vida:Assim, as histórias míticas podem trazer muitosexemplos para vida cotidiana, incluindo liçõessobre o mistério da natureza humana. Sãohistórias que, aprendidas, serviam e aindaservem para dar continuidade à tradição, à culturae aos sonhos de um determinado grupo deindivíduos ou de uma sociedade.

A oralidade como preparação para vida, e dentro delaos mitos são conceitos que podem ser referenciados etrabalhados em sala de aula e em todos os outros espaços,a fim de compreender uma das tradições africanas maisrelevantes e influenciadoras no processo de formação daidentidade brasileira. Exaltando um ser negro, quepassará a se ver com orgulho, e não mais se espelharsempre nas elites dominantes. A narrativa retrata a vida

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35109

..110

Diversidade e

Convivência

social de um povo, uma nação, ou até de um indivíduo esua história se transforma em instrumento mediador paraa formação de novas identidades e possivelmente, novasnarrativas. Observamos o que nos diz também osmovimentos da capoeira e do candomblé como formaspositivas de transmissão desses saberes.

Venho tentado mostrar a importância dessa oralidadepara os sujeitos afro-descendentes e para todas as outrasetnias como uma lição de vida, e como uma construçãode identidades realmente ligadas às raízes e à cultura deum povo verdadeiramente brasileiro.Projeto mitologia de matriz africana na Bahia

O objetivo desse projeto é resgatar e divulgarnarrativas de matriz africana e afro-baiana, envolvendohistórias de orixás, contos, fábulas, lendas, histórias debichos, cânticos - visando contribuir para o trabalho deprofessores da educação básica, no atendimento àlegislação vigente. O mesmo foi criado pelo professorRoberto Rabêllo da Universidade Federal da Bahia (UFBA)junto ao programa permanecer. Ele está em um momentode desenvolvimento, onde foram levantados os referen-ciais teóricos para dar base ao estudo proposto. Foi feitaleitura e alguns fichamentos desse material com intuitode aprimorar e legitimar as ações do projeto.

Está sendo muito gratificante fazer parte de umprojeto voltado para a afirmação negra, durante essatrajetória de aprendizados, experimentei novos saberes e

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35110

111..

Vencendo

desaf ios

vivências. Assistimos à apresentação de diversoscontadores de histórias como: Gilvânia, Cândida, Quéu,Romilson Nascimento, agradeço a todos por essa grandeoportunidade que nos foi dada. Pudemos interagir deforma incrível com essas pessoas maravilhosas e trocarmuitas experiências, e que também deram incríveiscolaborações para sabermos mais sobre essa arte decontar histórias. Assistimos ainda a apresentação doGrupo Tapetes contadores de histórias, tudo isso paraque pudéssemos aprender um pouco dessa técnica e utilizá-la para contar os mitos e histórias africanas. Participeitambém de duas oficinas relacionadas com contação eresgate da cultura popular: uma de contação de históriase outra de pedagogia Griô, onde tive a oportunidade deviajar nesse universo de fantasia e sonho, e de me prepararainda mais para atuar no projeto. Durante essapreparação percebi a grande diversidade de pessoas quese interessam pelo assunto, e que estão dispostas a atuarnessa educação, aceitando as diferenças entre as culturase convivendo de forma harmoniosa com elas.

Durante nosso processo, fabricamos bonecos comtemáticas de orixás, para utilizarmos como suporte paraapresentação com as crianças e pessoas em geral. Foi umaexperiência muito satisfatória criar algo com um propósitotão nobre. Os bonecos foram utilizados em umaapresentação na Creche/UFBA para contar a história deExú. Conviver com todas aquelas crianças foi maravilhoso,também foi gratificante o sentimento de missão cumpridana educação dos pequenos. A convivência com o

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35111

..112

Diversidade e

Convivência

coordenador Bob (Roberto Rabêllo) e as colegas de projetoMarta, Sheila, Thula e Isis, que são do curso de Pedagogia,também foi um aprendizado muito grande, já que soualuno de Educação Física, e ficam muito claras as nossasdiferenças, mas aprendemos uns com os outros, e isso émuito gratificante. Sinto falta de nossas bagunças naconfecção de bonecos, nos ensaios e gravações dos mitos,mas ainda fazemos isso às vezes e é muito gostoso.

Entramos em contato com alguns terreiros, mas fomosvisitar apenas o terreiro da Casa Branca, com intuito deresgatar histórias relacionadas à mitologia africana.Precisaremos explorar esse campo com muito cuidadopara não agredir a religião, e ao mesmo tempo conseguiralgum material, já que eles são muito reservados quandose tratam dos saberes tradicionais passados pelosancestrais. O terreiro é um ambiente novo para mim,antes eu tinha medo e até preconceitos em relação aoCandomblé, mas depois que adentrei aquele local e estudeimais sobre o assunto, percebi que estava completamenteenganado, existe uma energia muito boa que não seiexplicar agindo naquele local. Ainda iremos visitar maisterreiros de Salvador, estamos tentando tambémentrevistar estudiosos desse assunto como: MakotaValdina, Maria Nazaré Lima, Ordep Serra, entre outros,para saber a opinião deles sobre essa raiz africana naeducação e na vida das pessoas.

Ainda como propósito de divulgação dessas histórias,vamos tentar a rádio FACED, apresentação em escolas ebibliotecas, e ministrar oficinas para professores da rede

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35112

113..

Vencendo

desaf ios

pública e outros interessados no assunto. Tambémestaremos relatando esses trabalhos através de artigos eseminários, pois como os alunos do projeto (sem contaros voluntários) são bolsistas do Programa Permanecer daUFBA, é preciso mostrar resultados periodicamente.

Para o futuro, espero que esse projeto dê frutos,mudando de forma positiva a vida das pessoas e dascomunidades envolvidas. Eu me senti uma nova pessoadepois que participei dessa convivência quase que familiare de pura energia, me sinto renovado e pronto paramostrar para as outras pessoas a importância dessestrabalhos. Espero que esses conhecimentos se perpetuematravés dessa oralidade e resistência, para que as pessoaspossam se identificar com suas matrizes africanas e sesentirem pertencentes a elas, assim como venho meidentificando, quebrando preconceitos e me tornando umapessoa melhor. Vejo como essa cultura tão rica têmmudado para melhor a vida dos participantes desseprojeto.Considerações finais

Afirmei nesse artigo a necessidade de uma pedagogiavoltada para o fortalecimento de identidades de umapopulação que tem sido forçosamente dominadaculturalmente, que a meu entender parte de uma tradiçãooral fortemente preservada, e que tem sido por interessede classes dominantes esquecida. Os estudos na literatura,exemplos nas matrizes africanas e as atividades do

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35113

..114

Diversidade e

Convivência

projeto, mostraram ser de imprescindível importânciadesenvolver essas convivências dentro de uma oralidadeafricana de resistência. A própria dinâmica da transmis-são oral exige a interação e a convivência sociável entreas pessoas, agindo diretamente para que elas não sejammais do que meros instrumentos capitalistas, e possamlibertar sua alma numa perspectiva de se sentir humano,vivo, respeitado, pertencente a uma lógica maior do queestá sendo imposta a todos nós.

Abordei, ainda, como a convivência na comunidadee entre as pessoas, é importante para a educaçãoacadêmica e para vida, usando a mim mesmo comoexemplo de transformação. Resalti o valor para os alunosparticipantes e para as comunidades de descendênciaafricana que as atividades realizadas pelo projeto:Mitologia de matriz africana na Bahia possibilitaram.

Reconheço que ainda é preciso aprofundar mais nocampo das identidades e dos interesses políticos emquestão. Precisamos encarar nossa jornada com muitomais afinco no âmbito Projeto de mitologia, levando aomáximo de pessoas possíveis a importância de valorizaro que é patrimônio delas e nosso também, a nossa culturae identidade. Por isso, é fundamental fomentar nos jovense educadores, o desejo de preservar as histórias parti-culares da comunidade narrativa a que pertencem. Elesdevem ser estimulados para que tragam as histórias queconhecem, para que tenham orgulho delas e passem acontá-las em todos os espaços possíveis. E aí poderemosincluir a tv, o rádio, a internet, o cinema. Os jovens são

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35114

115..

Vencendo

desaf ios

sem dúvida o nosso maior investimento para acontinuidade desse elo. E como educadores temos que nosaprimorar cada vez mais, para dar conta dessa gigantescaresponsabilidade, de fazê-los enxergar o mundo por seuspróprios olhos e pelos olhos de seus ancestrais.Notas1 José Almeida Santos, natural de Aracajú - SE, criado emSalvador e baiano de coração. De origem humilde, estudoupor toda vida na escola pública, precisamente no ColégioEstadual Luis Viana em Brotas. Entrou pelas cotas da UFBAno ano de 2007 para cursar Licenciatura em Educação Física,hoje faz parte do Programa Permanecer da UFBA no projetode Pesquisa e Extensão: Mitologia de matriz africana naBahia.2PACHECO, Oficina Pedagogia Griô 06/11/2008.

ReferênciasABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: culturapopular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP.UNICAMP: CMU; Salvador: EDUFBA, 2005.______. A mestiçagem como um processo de re-significaçãode identidades. Grupo Mel, Salvador: Faced, [200?].Disponível em: <http://www.faced.ufba.br/mel/textos/>.Acesso em: 11 nov. 2008.HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade.Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Riode Janeiro: DP&A, 1999.MACHADO, Vanda. Ilê Axé: vivências e invenção pedagógica:as crianças do Opô Afonjá. 2. ed. rev. atual. Salvador.EDUFBA: SMEC, 2002.

Diversidade e convivencia_Vencendo desafios.pmd 20/10/2009, 12:35115