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3 A GUINADA DOS MUNDOS: INTRODUZINDO AS SEMÂNTICAS DE MUNDOS POSSÍVEIS NA ANÁLISE DE CONTRAFACTUAIS. 3.1. Stalnaker e sua teoria de condicionais Com a publicação de A Theory of Conditionals em 1968, a filosofia analítica vê desabrolhar um extraordinário instrumento na elucidação e análise de condicionais, especialmente frutífera para modos subjuntivos e contrafactuais. Tal foi o impacto na comunidade filosófica, Tyler Burge descreve os trabalhos deste período como exemplos do “alto nível de criatividade e argumentação” (Burge, 1992, p.18) de seus autores, ora mais orientados para lógica aplicada, ora mais inclinados a elucidar investigações filosóficas mais profundas. O artigo de Stalnaker abriu definitivamente um imenso continente aos olhos mais incautos de inúmeros filósofos, lingüistas e lógicos que passaram a se ocupar do tema (e a súbita explosão de artigos nessa área, logo após o de Stalnaker, só vem a corroborar a dimensão desse entusiasmo). Havia claramente uma promessa em jogo, onde todos poderiam finalmente se furtar a alguns dos problemas das primeiras teorias contrafactualistas (mesmo que ao preço do surgimento de outros não menos profundos). Impulsionados pelos estudos de Stalnaker, seus seguidores se empenharam, sobretudo, em desenvolver modelos de lógica intensional para esmiuçar a forma lógica de determinadas funções semânticas complexas, como a do condicional. Embora todo o mérito não caiba exclusivamente a Stalnaker, é indiscutível que seu artigo tenha sido o principal deflagrador da introdução das semânticas de mundos possíveis na agenda filosófica de contrafactuais; Assim, Stalnaker inaugurou o que poderíamos chamar de uma “guinada modal” envolvida na análise de condicionais, alçando seu clímax na publicação do grande baluarte desta segunda fase de teorias contrafactualistas: a obra Counterfactuals de Lewis. Não custa reiterar, Stalnaker foi o primeiro a sugerir pontualmente uma análise que recorresse a mundos possíveis (ao menos numa datação que recorra à literatura publicada estritamente sobre contrafactuais); sua ‘pedra angular’ era o

3 A GUINADA DOS MUNDOS: INTRODUZINDO AS SEMÂNTICAS … · enreda em dificuldades e licencia facilmente o surgimento de argumentos falaciosos. O próprio exemplo oferecido por Stalnaker

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3 A GUINADA DOS MUNDOS: INTRODUZINDO AS SEMÂNTICAS DE MUNDOS POSSÍVEIS NA ANÁLISE DE CONTRAFACTUAIS.

3.1. Stalnaker e sua teoria de condicionais

Com a publicação de A Theory of Conditionals em 1968, a filosofia analítica

vê desabrolhar um extraordinário instrumento na elucidação e análise de

condicionais, especialmente frutífera para modos subjuntivos e contrafactuais. Tal

foi o impacto na comunidade filosófica, Tyler Burge descreve os trabalhos deste

período como exemplos do “alto nível de criatividade e argumentação” (Burge,

1992, p.18) de seus autores, ora mais orientados para lógica aplicada, ora mais

inclinados a elucidar investigações filosóficas mais profundas. O artigo de

Stalnaker abriu definitivamente um imenso continente aos olhos mais incautos de

inúmeros filósofos, lingüistas e lógicos que passaram a se ocupar do tema (e a

súbita explosão de artigos nessa área, logo após o de Stalnaker, só vem a

corroborar a dimensão desse entusiasmo). Havia claramente uma promessa em

jogo, onde todos poderiam finalmente se furtar a alguns dos problemas das

primeiras teorias contrafactualistas (mesmo que ao preço do surgimento de outros

não menos profundos).

Impulsionados pelos estudos de Stalnaker, seus seguidores se empenharam,

sobretudo, em desenvolver modelos de lógica intensional para esmiuçar a forma

lógica de determinadas funções semânticas complexas, como a do condicional.

Embora todo o mérito não caiba exclusivamente a Stalnaker, é indiscutível que

seu artigo tenha sido o principal deflagrador da introdução das semânticas de

mundos possíveis na agenda filosófica de contrafactuais; Assim, Stalnaker

inaugurou o que poderíamos chamar de uma “guinada modal” envolvida na

análise de condicionais, alçando seu clímax na publicação do grande baluarte

desta segunda fase de teorias contrafactualistas: a obra Counterfactuals de Lewis.

Não custa reiterar, Stalnaker foi o primeiro a sugerir pontualmente uma

análise que recorresse a mundos possíveis (ao menos numa datação que recorra à

literatura publicada estritamente sobre contrafactuais); sua ‘pedra angular’ era o

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fato de que “um mundo possível é o análogo ontológico do estoque de crenças

hipotéticas” (Stalnaker, 1968, p.102) a que Ramsey se referira em seu General

Propositions and Causality. De fato, como se verá, a tese de Ramsey foi

fundamental para Stalnaker esboçar sua teoria.

No artigo, Stalnaker identifica uma sentença condicional como uma função

que articula duas proposições, embora já reconheça de pronto que tal função não

resguarde um caráter vero-funcional. A imputação de valor de verdade para cada

proposição não é, portanto, razão suficiente para auferir valor de verdade para o

composto condicional inteiro. Stalnaker entende o problema geral dos

condicionais sob três âmbitos fundamentais: um de ordem lógica, outro de ordem

pragmática e por fim, um de ordem epistemológica.

1) O problema lógico de condicionais – sobre o qual Stalnaker

discorre mais detidamente em seu artigo - concerne à identificação

e descrição corretas das relações e propriedades formais

subjacentes a funções condicionais, ou ainda, aos meios formais

pelos quais uma função condicional articula devidamente um par de

proposições.

2) O problema pragmático se refere à concepção de que a mera

descrição das propriedades da função condicional, acrescida ainda

de todos os fatos relevantes (supondo-se que esse empenho seja

exaurível, mesmo num plano puramente hipotético), não confere

razão suficiente para determinar o valor de verdade total de um

condicional, i.e., um mesmo conjunto de valores de verdade para

todos os enunciados não condicionais pode se manter consistente

com valorações divergentes dos enunciados condicionais. Este fato

é análogo à constatação, evidente no artigo de Goodman, de que

um dos primeiros problemas relativos aos contrafactuais resulta da

indiscernibilidade material entre dois contrafactuais cujos

antecedentes são idênticos, mas cujos conseqüentes são

contraditórios. Segundo Stalnaker, este problema, relativo a

contrafactuais, motiva a investigação por critérios eminentemente

pragmáticos (e não semânticos), de modo que se torne possível

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preferir uma determinada valoração de verdade a outra, tornando o

condicional decidível, por assim dizer, e pragmaticamente

discernível.

3) Por fim, o problema epistemológico de condicionais, suscitado

desde os primeiros empenhos do Positivismo Lógico, alude ao fato

de condicionais se comportarem ao mesmo tempo como

enunciados empíricos – ancorados por estado-de-coisas do mundo,

aspectos essenciais da realidade e leis causais gerais da natureza -,

mas ao mesmo tempo como enunciados contrários aos fatos –

suportados por estados-de-coisas puramente possíveis, i.e., não

atualizados – donde recai propriamente o condicional de tipo

contrafactual. Esta dificuldade decorre da própria natureza das

suposições contrafactuais, que por serem enunciados contingentes

sobre potencialidades irrealizadas, deveriam ser passíveis de

confirmação por evidência empírica no mundo atual (coisa que não

o são, obviamente, no caso de contrafactuais).

Para Stalnaker, as dificuldades transcorridas dessas constatações levaram

alguns filósofos a analisar contrafactuais fora do escopo propriamente

condicional, urgindo-se a necessidade de analisar os condicionais subjuntivos no

modo indicativo. Como nota Stalnaker, a transformação de condicionais

subjuntivos em indicativos tornara-se, para certos filósofos, tão necessária quanto

conveniente para uma teoria de contrafactuais, na medida em que condicionais

apenas aparentariam falar sobre possibilidades ainda não atualizadas, e todos os

problemas surgidos de contrafactuais poderiam ser finalmente dirimidos com

recurso a essa transformação dos enunciados. Na prática, não foi exatamente o

que ocorreu.

Ao contrário dessa linha de investigação, - cujo primeiro arauto, segundo o

artigo, seria Chisholm -, Stalnaker preferiu, portanto, relacionar o domínio do

possível, inerente a contrafacuais, ao domínio do real, e não às aparências. Esta é

uma inflexão fundamental que divide claramente duas abordagens de

interpretação dos condicionais, de maneira geral, e de contrafactuais, em sentido

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estrito. A diferença está no enfoque da noção de ‘possibilidade’; na maneira em

que esta noção intervém na interpretação do condicional. Para teorias

consequencialistas, como de Goodman ou Chisholm, a ideia de ‘possibilidade’, a

subjuntividade de um contrafactual, talvez aluda mais a uma espécie de

modalização secundária (não essencial) de um aspecto causal mais geral, e menos

a uma caracterização ontologicamente essencial de um estado-de-coisas do

‘possível’.

Este fato se torna patente quando notamos que para Goodman, por exemplo,

a principal tarefa de elucidar contrafactuais recairia especialmente no

esclarecimento (“finalmente!”, talvez enfatizaria Goodman) sobre os efeitos que

leis causais gerais exercem em suposições contrafactuais. Nesse sentido,

contrafactuais que lidam com regularidades da natureza são o que são

(comportam-se de tal ou tal maneira) não em razão de ser algum tipo de

representante imanente de um reino ontológico do ‘possível’, mas sim em razão

de confirmarem e serem suportados por leis causais gerais, como se fossem uma

espécie de efeito colateral das regularidades naturais, um flagrante sintoma do

poder de intervenção das leis mais gerais da natureza.

Todas as teorias subseqüentes a Stalnaker, que recorrem às semânticas de

mundos possíveis, vertem para o domínio ontológico do “possível” a

responsabilidade de abalizar suposições contrafactuais, trazendo o aspecto

potencial de um condicional para o centro da arena de análise.

Para Stalnaker, a interpretação de um contrafactual recai sobre uma

incógnita essencial a qualquer teoria de condicionais: de que maneira, afinal,

avaliamos ou deliberamos sobre nossas hipóteses quando ensaiamos suposições

contrafactuais? Conforme exposto anteriormente, a primeira hipótese aventada

pelos primeiros filósofos que se ocuparam da questão, já rejeitava a interpretação

de contrafactuais pela análise vero-funcional; por mera implicação material.

Destarte, basta recorrer a exemplos simples para demonstrar que esta análise se

enreda em dificuldades e licencia facilmente o surgimento de argumentos

falaciosos. O próprio exemplo oferecido por Stalnaker vem a calhar.

Remontemos à data do artigo de Stalnaker; o ano, 1968. O mundo se

polarizava entre um Ocidente de sistema majoritário capitalista e um gigante

bloco socialista sediado na porção oriental do globo. Nessas circunstâncias, fartas

para a imprensa política internacional, tensões políticas e fatores limites eram

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constantes no cenário internacional; sempre regadas a muitas especulações, teorias

conspiratórias e situações fantasiosas as mais diversas (muitas delas ensejando

conseqüências políticas reais e desastrosas). A recente literatura historiográfica

sobre conflagrações mundiais está farta de exemplos desse tipo e os mais diversos

argumentos e contendas contrafactuais em favor de teorias curiosas1. Também

eram constantes (ad nauseam para alguns) as pesquisas de opinião envolvendo as

mais diversas hipóteses de conjuntura bélica ao modo de condicionais

contrafactuais. Stalnaker, no bojo de tal situação, alude a uma dessas possíveis

pesquisas.

Imaginemos de imediato uma seqüência de dois possíveis cenários,

exatamente nessa ordem: (1) A China socialista decide interferir no conflito do

Vietnam; e (2) Os Estados Unidos decidem usar seu arsenal nuclear. Portanto,

poderíamos convocar o seguinte contrafactual: Se a China socialista interferisse

no conflito do Vietnam, os Estados Unidos passariam a utilizar suas armas

nucleares. Segundo a análise de cunho vero-funcional, a interpretação recairia

sobre os seguintes termos: Caso a resposta seja ‘não’ para (1), i.e, “A China

socialista não irá interferir no conflito”, o condicional já sairá verdadeiro de

antemão; da mesma forma, caso a resposta para (2) seja ‘sim’, i.e., “Os Estados

Unidos irão utilizar armas nucleares!”, o condicional também já sairá de antemão

verdadeiro.

Portanto, ao adotarmos tal interpretação, seria possível antecipar a verdade

do condicional pela simples aceitação de que (1) fosse irremediavelmente falso,

i.e., que se acreditasse que a China nunca interferiria no conflito do Vietnam,

independente do que acontecesse no mundo, o que seria uma óbvia falácia non

sequitur. Como atenta Stalnaker, “a falsidade do antecedente nunca é razão

suficiente para afirmar um condicional, mesmo um condicional indicativo”

(Stalnaker,1968, p.100), e nunca haveria razão de sê-lo, pois não faria sequer

sentido afirmar uma suposição condicional apenas em virtude de se não aceitar

(acreditar ser falso) o antecedente. Alguém que utilizasse um condicional dessa

forma estaria, no mínimo, agindo discursivamente de má-fé.

1 Como analisa J. D. Fearon, em seu excelente Counterfactuals and Hypothesis Testing in Political

Science, In: World Politics, Vol. 43 (1991), pp.169-195. Em especial, os argumentos na literatura para as causas da I Guerra Mundial e a não ocorrência da III Guerra Mundial

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A segunda maneira de responder à suposição da pesquisa imputaria alguma

espécie de relação causal entre (1) e (2), focando a questão sob o ponto de vista da

relação envolvida entre o antecedente e o conseqüente. Para os partidários dessa

interpretação, a noção de conexão, implícita no condicional, seria prioritária sobre

qualquer outra possível interpretação. Neste caso, não importam os valores de

verdade das afirmações, mas sim a relação existente entre as proposições

exprimidas por cada hipótese.

Destarte, o condicional será verdadeiro quando houver uma relação; e será

falso quando não houver. A ideia, embora rudimentar se apresentada estritamente

nesses termos, encontra eco nas primeiras teses conseqüencialistas, como de

Goodman e Chisholm. Mas para Stalnaker, o número de contra-exemplos a essa

interpretação parece ser suficiente em ameaçar a consistência de uma tese tão

intuitiva. Bastaria pensarmos que se aceitássemos o conseqüente (2) como

inexoravelmente verdadeiro, i.e., acreditamos que os Estados Unidos irão utilizar

seu arsenal nuclear independente das intervenções chinesas, por razões as mais

simples, então poderíamos acreditar que o condicional é verdadeiro, mesmo

desacreditando que haja qualquer conexão ou dependência entre o antecedente e

seu conseqüente.

Na realidade, estamos chancelando o condicional porque sabemos que o

conseqüente se seguirá “de qualquer jeito”, ou seja, que se seguirá de quaisquer

aspectos razoáveis e possíveis que intervenham no mundo, incluindo a verdade da

hipótese (1), inclusive se houver interferência chinesa, embora em nosso caso,

estamos aprovando o condicional exatamente em virtude de o antecedente ser

irrelevante.2 Stalnaker conclui que “a presença de uma ‘conexão’ não é uma

condição necessária para a verdade de um enunciado do tipo se-então.” (Stalnaker

1968, p.101).

A terceira possível resposta à contenda recairia sobre a sugestão feita por

Ramsey acerca de raciocínios contrafactuais, já acenada em nosso primeiro

capítulo. Segundo o teste de Ramsey, a ideia de conexão entre o antecedente e o

conseqüente não seria mais prioritária (embora não seja necessariamente

2 Neste caso, observe que o fato de ser irrelevante não constitui razão suficiente para falsear o condicional

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irrelevante), dando lugar a uma espécie de experimento de pensamento

deliberativo. Neste caso, como nota Stalnaker, se não há uma opinião sobre o

primeiro enunciado, i.e., se não há uma opinião a respeito da interferência ou não

da China no conflito do Vietnam, o teste de Ramsey maneja o condicional da

seguinte forma: em primeiro lugar, adicionamos o antecedente (hipoteticamente)

ao nosso estoque de conhecimento ou crenças; em segundo lugar, deliberamos

sobre a verdade do conseqüente em virtude dos ajustes necessários para

compatibilizar o antecedente com o estoque prévio de conhecimento e crenças.

Conforme o teste de Ramsey, a decisão final sobre todo o condicional coincidirá

com a deliberação sobre a verdade ou falsidade do conseqüente estritamente

nestes termos.

Pode-se notar que a exigência de relação ou conexão entre o antecedente e o

conseqüente é subtraída do resultado final. Pois ora, quando for o caso de se

acreditar haver uma conexão de natureza lógica ou causal, então o conseqüente irá

simplesmente se somar ao estoque de crenças junto com o antecedente (sem

necessidade de ajustes mais severos), “pois o homem racional acolhe as

conseqüências de suas crenças” (Stalnaker 1968, p.101).

Diversamente, porém, se o conseqüente já é acreditado como verdadeiro e

causalmente independente do antecedente, ele permanecerá intacto como parte do

estoque de crenças após a introdução do antecedente, “pois o homem racional não

altera suas crenças sem motivos” (Stalnaker 1968, p.101). Dessa forma, o teste de

Ramsey permite avaliar uma eventual conexão entre os enunciados, mas sem que

esta informação constitua condição necessária para a verdade de um condicional.

O teste de Ramsey, segundo Stalnaker, é perfeitamente oportuno para os

casos onde o valor de verdade do antecedente é desconhecido ou supérfluo para a

deliberação final sobre o condicional. Também não causará problemas para os

casos em que o antecedente é simplesmente creditado como verdadeiro, pois o

estoque de crenças será simplesmente preservado e avaliado em concurso com o

conseqüente, como se o antecedente sequer precisasse ter sido convocado.

Os problemas começam a surgir nos casos em que o antecedente é creditado

como incontestavelmente falso, i.e., quando a introdução do antecedente no

estoque prévio de crenças engendra uma inconsistência; desta sorte, o antecedente

não pode ser convocado sem alguma espécie de compatibilização com o estoque

de crenças, alterando as crenças que conflitam com o antecedente. O problema é

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que sem demais esclarecimentos, não havendo critérios claros, haverá mais de

uma maneira de realizar os ajustes e compatibilizar o antecedente com o estoque

do agente; possivelmente, haverá inclusive maneiras que produzirão estoques

contraditórios.

Stalnaker ainda atenta para o fato de que uma teoria satisfatória da função

condicional não deve depender dos contextos particulares de crenças, i.e., a

definição da função deve prescindir das contingências de cada estoque particular

de crença, de cada agente deliberador. Portanto, embora Stalnaker reconheça que

a ideia de Ramsey possa apenas indicar um caminho aproximado de interpretação

– sem resolver totalmente o problema que contorna os mecanismos de ajuste do

antecedente com o estoque de crenças -, sua teoria de condicionais irá adotar a

estrutura do teste de Ramsey como alicerce fundamental para uma análise das

condições veritativas do contrafactual. Desse modo, Stalnaker transita do critério

impreciso das ‘condições de crença’ do teste de Ramsey para um novo conjunto

de ‘condições de verdade’ mais rigoroso para enunciados na forma condicional.

Sobretudo, Stalnaker defende que uma análise que recorra a ‘mundos possíveis’

permite a elaboração precisa de uma teoria semântica formal sobre a qual um

condicional pode ser interpretado.

Para já tornar curta uma explicação tão extensa, podemos dizer que tanto as

semânticas de Stalnaker, quanto as de Lewis – ilustradas no próximo capítulo - se

ancoram nas noções primitivas de mundos possíveis e alguma noção de

similaridade entre esses mundos. Obviamente, porém, ambos o fazem com

algumas diferenças; algumas talvez mais sutis, outras mais graves. Como bem

explicita Donald Nute (1975), em ambas as teorias, “a verdade ou falsidade de um

enunciado contrafactual é determinada pela verdade ou falsidade do conseqüente

do enunciado em algum mundo possível ou mundos onde o antecedente é

verdadeiro” (Nute, 1975, p.773). Embora já se possa adiantar, Stalnaker e Lewis

começam a se divergir a partir do momento em que encaram as condições de

similaridade envolvidas na seleção comparativa de mundos, como poderemos

notar adiante.

A mecânica em Stalnaker é certamente mais simples do que em Lewis. Ela

simplesmente sugere que para cada ‘condicional contrafactual’ do tipo “Se A,

então B”, deve-se em primeiro lugar, (1) Considerar (ou simplesmente selecionar)

os mundos possíveis onde A é verdadeiro. Em segundo lugar, dentre os mundos

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onde A é verdadeiro, deve-se selecionar o mundo-A3 que se distinga minimamente

do mundo atual; Em terceiro, julga-se o condicional “Se A, então B” como

verdadeiro nos casos em que B é também verdadeiro neste mundo possível

selecionado (mundo-A), e falso nos casos em que B é falso.

Stalnaker se apoia nos sistemas semânticos para lógica modal elaborados

por Saul Kripke4. Primeiramente, toma a própria definição kripkeana para uma

estrutura de modelo, i.e., uma tripla ordenada M = (Κ, R, λ); onde Κ representa o

conjunto de todos os mundos possíveis; R identifica a relação de ‘possibilidade

relativa’ que define a estrutura. Desse modo, se α e β são ‘mundos possíveis’

(pertencem ao conjunto Κ), então αRβ significa o mesmo que “β é possível em

relação a α”. Neste caso, note que onde α for o mundo atual, β tomará a posição

de um ‘mundo possível’ relativo a α (ao mundo atual). Note também que a

relação R é reflexiva, de modo que qualquer mundo será possível em relação a si

mesmo.

À parte do sistema de Kripke, λ é um elemento introduzido na estrutura por

Stalnaker (não fazendo parte da semântica modal standard de Kripke). λ pertence

a Κ e é definido como o mundo absurdo, “o mundo onde contradições e todas as

suas conseqüências são verdadeiras” (Stalnaker, 1968, p.103). Há dois principais

aspectos de λ. Em primeiro, nenhum mundo pode ser possível em relação a λ, a

não ser o próprioλ; conversamente, λ não é possível em relação a qualquer outro

mundo que não λ; Em segundo lugar, a principal função de λ no modelo de

Stalnaker é simplesmente a de fornecer uma interpretação para “Se A, então B” no

caso em que A for impossível.

Stalnaker também inclui uma ferramenta fundamental em seu modelo: uma

função selecionadora f que tem como argumentos uma proposição e um mundo

possível; e como valor de função, um dado mundo possível. Assim sendo, para

cada antecedente A, esta função irá selecionar um mundo possível mais próximo,

em que A é verdadeiro. A notação f (A,α) representará, portanto, a função que nos

3 Considere “mundo-A” o mesmo que “mundo possível onde A é verdadeiro”

4 Cf. Stalnaker, sobretudo S. Kripke, "Semantical Analysis of Modal Logics, I," In: Zeitschrift für

mathematische Logik und Grundlagen der Mathematik, vol. 9 (1963), pp. 67-96.

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dá como valor de função o mundo possível mais próximo onde o antecedente A é

verdadeiro. Por exemplo, se f(A,α)=β, isso quer dizer que β é o mundo

selecionado por f , tendo α como mundo base e A como antecedente.

Destarte, a asserção positiva de um condicional simplesmente informa que o

conseqüente em pauta é verdadeiro no mundo selecionado, i.e., o condicional

contrafactual será verdadeiro para o mundo atual na ocasião em que seu

conseqüente é também verdadeiro no mundo selecionado. Com isso, torna-se

possível determinar as primeiras duas regras semânticas para o condicional. Para

sua teoria, Stalnaker adota > (o ‘corner’) como conectivo condicional.

A > B será verdadeiro em α se B for verdadeiro em f (A,α)

A > B será falso em α se B for falso em f (A,α)

Para Stalnaker, essa nova interpretação para lógica condicional, sendo uma

simples extensão da lógica modal, permite manejar enunciados sobre situações

inatuais (irrealizadas), porém possíveis; o que representaria exatamente o que é

manifestado por raciocínios contrafactuais condicionalizados: simplesmente

“enunciados sobre mundos contrafactuais particulares” (Stalnaker, 1968, p.104).

Não obstante, deve-se notar que para Stalnaker, é absolutamente fundamental que

a função-f seja eficaz em selecionar o mundo correto para consumar a

interpretação, ou seja, deve ser hábil em selecionar realmente o mundo mais

próximo ao mundo atual.

As 4 condições adiante procuram, portanto, orientar os critérios pragmáticos

na escolha do melhor mundo possível para cada condicional, dispondo uma

ordenação de mundos possíveis de acordo com sua semelhança em relação ao

mundo atual; indo desde o mundo base, i.e., o mundo mais próximo ao mundo

atual (selecionado pela função f de acordo com o antecedente) até o mundo

absurdo (o mundo menos semelhante ao mundo atual). Para uma ordenação

rigorosa, as condições se mostram fundamentais; Stalnaker as circunscreve sob os

seguintes termos: Onde para f (A,α) = β - sendo A a proposição expressa pelo

antecedente; α o mundo base; β o mundo selecionado – as condições se seguem:

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(1) Para todos os antecedentes A e mundos base α, A deve ser

verdadeiro em f (A,α).

(2) Para todos os antecedentes A e mundos base α, a função f (A,α) nos

dará o mundo impossível (f (A,α)=λ) apenas quando não houver qualquer

mundo possível em relação a α em que A seja também verdadeiro.

(3) Para todos os mundos base α e todos os antecedentes A, se A for

verdadeiro em α, então f (A,α)= α

(4) Para todos os mundos base α e todos os antecedentes B e B’, se B

for verdadeiro em f (Β’, α) e B ’ for verdadeiro em f (B, α), então f (B, α)

será idêntico a f (B’, α).

A condição (1) simplesmente exige que o antecedente seja verdadeiro no

mundo selecionado. A condição (2) nos garante que o mundo absurdo (o mundo

onde todas as contradições e suas conseqüências são verdadeiras) seja selecionado

apenas em uma hipótese: quando o antecedente for impossível. A condição

prevenirá que uma conclusão impossível decorra de uma suposição consistente.

A condição (3) parecerá redundante, embora seja imprescindível para o

modelo. Ela serve simplesmente para exigir que o mundo base seja selecionado

quando estiver presente dentre os mundos onde o antecedente é verdadeiro;

obviamente, o mundo base será mais semelhante a si mesmo que qualquer outro

mundo possível. A regra (4) é simplesmente uma condição de assimetria que

garante estrutura hierarquizada entre os mundos possíveis (do mais próximo ao

mais distante do mundo base). Desse modo, quando uma dada seleção estipula um

mundo possível β como prioritário (mais próximo ao mundo base α) em relação a

outro mundo β’, então não poderá haver qualquer outra seleção (relativa ao

mundo base) que hierarquize β’ como prioritário a β.

Somadas, essas 4 condições procuram reproduzir a inspiração primordial da

teoria de Stalnaker: garantir uma estratégia interpretativa que permita maximizar a

proximidade entre o mundo atual e o mundo selecionado, de forma que se

interponha entre eles a mínima diferença possível. A intuição correta estaria,

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portanto, em efetuar a melhor escolha possível dentre todos os mundos

candidatos, de tal forma que se selecione o mundo “que provoca a menor

violência à correta descrição e explicação do mundo atual” (Stalnaker, 1968,

p.104). Para Stalnaker, essas condições são suficientes em assegurar as noções

semânticas para validade e conseqüência num sistema formal de lógica

condicional.

Dadas as condições, o sistema formal pode ser apresentado em alguns

poucos passos. Os conectivos primitivos podem se restringir à implicação material

⊃, à negação ¬ e ao condicional ‘corner’ >; a disjunção (∨), conjunção (∧) e bi-

implicação (↔) são definidas da maneira usual, por recurso à implicação e

negação. Outras definições, para operadores modais e o ‘corner’, incluem:

□A =df ¬A > A

◊A =df ¬(A > ¬A)

A <> B =df (A > B) ∧∧∧∧ (B > A)

As regras de inferência são por * modus ponens - quando A e A ⊃ B forem

teoremas, B será um teorema - e * necessitação de Gödel – Se A for um teorema,

□A será um teorema. Há sete axiomas:

(1) Qualquer fórmula bem formada (fbf) tautológica é um axioma

(2) □(A ⊃ B) ⊃ (□A ⊃ □B)

(3) □(A ⊃ B) ⊃ (A > B)

(4) ◊A ⊃ . (A > B) ⊃ ¬ (A > ¬B)

(5) A > (B ∨ C) ⊃ . (A > B) ∨ (A > C)

(6) (A > B) ⊃ (A ⊃ B)

(7) A <> B ⊃ . (A > C) ⊃ (B > C)

Os axiomas (3) e (6) nos mostram que o condicional ‘corner’ A > B se

mantém entre a implicação material A ⊃ B - cuja implicatividade é a mais fraca - e

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a implicação estrita □(A ⊃ B) - cuja implicatividade é a mais forte. Não obstante,

no modelo de Stalnaker, o ‘corner’ carecerá de algumas das propriedades das

implicações material e estrita, o que em tese, elucidaria comportamentos

incomuns de contrafactuais. Por exemplo, o ‘corner’ é um condicional não-

transitivo, i.e., de (A > B) e (B > C), não é possível inferir (A > C).

Segundo Stalnaker, isso explicaria a razão de argumentos transitivos não

funcionarem com contrafactuais subjuntivos. Imaginemos, que em pleno ano de

1968, alguém diz: “Se J. Edgar Hoover tivesse nascido na Rússia, ele seria um

comunista” e “Se J. Edgar Hoover fosse um comunista, ele seria um traidor”.

Destas premissas, não se pode inferir que “Se J. Edgar Hoover tivesse nascido na

Rússia, ele seria um traidor”.

Uma segunda importante propriedade do condicional é o fato de que sua

negação corresponde ao condicional com mesmo antecedente, mas com o

conseqüente oposto. Isso significa que negar plenamente um contrafactual é o

mesmo que afirmar o conseqüente factual em virtude do mesmo antecedente

contrafactual. (i.e., não importando a suposição contrafactual do antecedente).

Isto fica patente no seguinte exemplo: Imaginemos um diálogo entre dois

ativistas ambientais, um mais otimista e outro mais pessimista. O otimista afirma

que “Se a humanidade tivesse se despertado para o aquecimento global na

década de 80, o mundo estaria salvo de um colapso”. O pessimista, por sua vez,

lhe retorquiu que muito pelo contrário, pois “Se a humanidade tivesse se

despertado para o aquecimento global na década de 80, (ainda assim) o mundo

não estaria salvo de um colapso” (“pois já era tarde demais”, pensa o pessimista).

Esta é a maneira correta de negar um contrafactual. Em terceiro lugar, deve-se

notar que a regra de contraposição não é válida para lógica condicional, ou seja, a

verdade de (A > B) não garante a verdade de (¬ B > ¬ A), mas isso dependerá do

contexto de asserção do condicional contrafactual.

Apenas a título de recordação, lembremos que Goodman já havia enfatizado

algumas dessas anomalias, afirmando inclusive que contrafactuais deveriam se

restringir somente a condicionais que afirmam plenamente; e que condicionais

cujos antecedentes são falsos, mas os conseqüentes são verdadeiros (o que

chamara de semifactuais) não deveriam ser categorizados como contrafactuais

autênticos. Stalnaker reconhece inclusive as constatações de Goodman (assim

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como de Chisholm). Em virtude dessas anomalias, o principal empenho de

Stalnaker foi o de construir uma teoria semântica que pudesse elucidar a estrutura

e aplicação do conceito condicional, i.e., construir um sistema, com aparato

semântico, regras de inferência e axiomas que pudessem iluminar a razão dessas

anomalias, o motivo de princípios clássicos da implicação, por exemplo, não

serem aplicáveis a condicionais contrafactuais, etc.

Não obstante, um dos maiores problemas da teoria de Stalnaker é o fato de

que, semanticamente, ela trata contrafactuais de maneira literal, i.e., enunciados

que aludem à possibilidade de um determinado estado-de-coisas no mundo atual

são agora abordados como se falassem literalmente de ‘mundos possíveis’.

Mesmo que essa não fosse sua intenção inicial. Stalnaker inclusive sabe, e não

hesita em reconhecer, que para qualquer pessoa de inclinação mais empirista, sua

teoria poderia soar como um total contra-senso. Afinal, um “investigador só pode

colher evidências no mundo atual” (Stalnaker, 1968, p.99). A questão

fundamental é esta: em que sentido, portanto, o mundo atual e suas evidências

seriam relevantes na intervenção da verdade ou falsidade de um contrafactual se

seu conteúdo semântico alude a mundos possíveis que são empiricamente

inacessíveis?

A esquiva de Stalnaker, já no final de seu artigo, é feita de modo bem breve,

embora bastante esclarecedora. Para ele, quando definimos um mundo possível,

podemos fazê-lo de forma a ignorar uma porção infinita de seus enunciados

verdadeiros (tão infinito quanto se quiser). Por exemplo, poderíamos convocar um

mundo possível onde a população da China nesse mundo acompanha, a cada

mínimo instante (Stalnaker prefere “a cada dia”), a população da China no mundo

atual. Veja que esta suposição atribui, ao mundo possível, certo aspecto do mundo

atual sem, no entanto, conhecê-lo de fato (afinal, qual a quantidade exata de

pessoas na China, neste exato instante?). Este desconhecimento, segundo

Stalnaker, não nos impediu de solicitar um mundo possível que resguarda uma

semelhança precisa com o mundo atual.

Assim, ele defende que quando convocamos um mundo possível para

decidir sobre um contrafactual, estamos nos licenciando a cogitá-lo sob alguns

pressupostos, mesmo não sabendo precisamente alguns de seus aspectos. Ao

convocar mundos, diz ele: “estou inventando este mundo – sendo puro produto de

minhas intenções – mas que já há nele aspectos verdadeiros dos quais nunca

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saberei a respeito.” (Stalnaker, 1968, p.112). Segundo Stalnaker, portanto, tudo o

que um condicional faz é simplesmente replicar algum aspecto relevante do

mundo atual em um mundo possível, tendo como base fragmentos de informação

sobre o mundo atual.

Além de replicar esses aspectos, o condicional empreende uma segunda

tarefa fundamental: ele ao mesmo tempo reproduz e promove ajustes no mundo

possível de maneira a torná-lo o mais próximo possível do mundo atual, de modo

que a cada nova informação relevante sobre o mundo atual, o mundo possível é

prontamente alterado para atender a essas mudanças. Portanto, esses pedaços de

informação sobre o mundo intervêm sobre contrafactuais, na medida em que,

segundo as próprias palavras de Stalnaker, “eles me dizem mais a respeito da

situação não-atual que selecionei.” (Stalnaker, 1968, p.112). E seria justamente

isso que torna possível, para Stalnaker, “que enunciados sobre possibilidades não

realizadas nos digam não apenas a respeito da imaginação do falante, mas

[também] do mundo” (Stalnaker, 1968, p.112).

3.2. David Lewis: Uma análise robusta de contrafactuais

Em Counterfactuals, Lewis reconhece que sua análise de contrafactuais é

tributária das semânticas de ‘mundos possíveis’ para lógica intensional – como

também foi sustentado por Stalnaker -; em especial, Lewis se inspira nos trabalhos

de Saul Kripke, Richard Montague e Dana Scott. Sua análise se aproxima bastante

da proposta de Stalnaker, compartilhando o recurso a um modelo semântico cujos

pressupostos são praticamente os mesmos, embora com alguns ajustes oportunos

que consagrarão uma teoria incrivelmente mais robusta, mais resistente aos

antigos casos recalcitrantes e, surpreendentemente, mais apta a lidar com

problemas que sequer haviam sido aventados.

Fazendo uma analogia com a célebre menção de Kant, para quem sua nova

solução ao problema de Hume representara uma “revolução copernicana” para a

teoria do conhecimento, a teoria de Lewis foi uma espécie de “revolução

darwiniana” frente a teorias “lamarckistas” de condicionais; não no sentido de

falsear as teorias precedentes, mas pelo fato da teoria de Lewis apresentar um

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poder explanatório infinitamente maior, podendo não só elucidar tudo o que as

teorias precedentes já explicavam (embora certamente peque em termos de

simplicidade), como também explicar a maioria dos problemas que ainda não

podiam ser respondidos por insuficiência dos recursos até então disponíveis.

Lewis entende que um contrafactual é simplesmente um condicional que se

remete a um estado-de-coisas possível e que se assemelhe ao máximo ao estado-

de-coisas no mundo atual (tanto quanto for necessário e permitido se assemelhar).

Assim, conforme própria ilustração de Lewis, o condicional ‘Se cangurus não

possuíssem cauda, perderiam o equilíbrio’ alude a um estado-de-coisas próximo

do atual (o mais possivelmente próximo e permitido) onde cangurus não possuem

cauda e que, especialmente, perdem o equilíbrio estritamente em virtude deste

contrafato. Os rudimentos da teoria de Lewis podem ser apresentados da seguinte

forma.

Para analisar um contrafactual, a primeira inovação de Lewis foi a

introdução de dois conectivos contrafactuais que traduzem as construções de

suposições contrafactuais da linguagem ordinária para um vocabulário modal, de

forma que se possa evidenciar como os valores de verdade num dado ‘mundo

possível’ de um contrafactual dependem, por sua vez, dos valores de verdade de

outros ‘mundos possíveis’ que preservam relações com seus antecedentes e

conseqüentes. Assim, os operadores □ (Box) e ◊ (Diamond), que como já vimos,

na semântica modal clássica assinalam, respectivamente, a necessidade e

possibilidade das proposições operadas, são então ampliados para operarem em

conjunto com o conectivo condicional →. Dessa forma, □→ deve ser lido como

‘fosse o caso que..., então seria necessariamente o caso que...’; ◊→ deve ser lido

como ‘fosse o caso que..., então seria possivelmente o caso que...’ (Lewis, 1973,

p.1-2). No caso do contrafactual já mencionado, com o uso dos novos conectivos

teríamos duas possíveis sentenças condicionais, que dispomos da seguinte forma:

Para □→:

Se cangurus não possuíssem cauda, eles necessariamente perderiam o

equilíbrio

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Ou: Fosse o caso que cangurus não possuíssem cauda, então seria

necessariamente o caso que cangurus perderiam o equilíbrio.

Com a notação: cangurus não possuem cauda □→ cangurus perdem o

equilíbrio

E para ◊→:

Se cangurus não possuíssem cauda, eles possivelmente perderiam o

equilíbrio

Ou: Fosse o caso que cangurus não possuíssem cauda, então seria

possivelmente o caso que cangurus perderiam o equilíbrio.

Com a notação: cangurus não possuem cauda ◊→ cangurus perdem o

equilíbrio.

Conforme o modelo de Lewis, não há problema em combinar

simultaneamente vários contrafactuais utilizando os operadores, algo como ψ □→

((χ ◊→ ψ) ◊→ γ), por exemplo, será uma fórmula bem formada. Lewis define os

operadores contrafactuais da seguinte forma:

(φ ◊→ ψ) =df ¬ (φ □→ ¬ ψ)

(φ □→ ψ) =df ¬ (φ ◊→ ¬ ψ)

A primeira importante constatação de Lewis é o fato de que um

contrafactual não pode ser analisado como um condicional estrito, ou seja, um

condicional material e necessário, como □ (φ ⊃ ψ), ou o equivalente ¬ ◊ (φ ∧ ¬

ψ). Antes de qualquer coisa, note que o operador de necessidade atua, em nível

intensional, como um quantificador universal que determina os ‘mundos

possíveis’ que serão acessíveis, ou seja, os mundos que irão satisfazer uma

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determinada restrição. De maneira correlata, o operador ◊, de possibilidade,

atuaria como um quantificador existencial delimitando ‘mundos possíveis’

acessíveis. Necessidade, portanto, informa que o enunciado é verdadeiro em todos

os ‘mundos possíveis’; Possibilidade, por seu turno, informa que o enunciado é

verdadeiro em alguns dos mundos acessíveis.

Lewis ilustra o comportamento da restrição pelo caso da necessidade física,

onde se restringe a acessibilidade entre apenas aqueles mundos cujas leis naturais

coincidam com as do mundo atual, i.e., aos mundos onde as leis naturais do

mundo atual são verdadeiras. Por outro lado, possibilidade física é definida como

verdade em pelo menos alguns dos mundos onde as leis da natureza no mundo

atual são verdadeiras. Ainda segundo Lewis, a restrição simplesmente determina

(ou restringe, literalmente) quais ‘mundos possíveis’ serão admitidos como

acessíveis; nesse caso, em virtude de leis naturais. Não obstante, observe que

‘acessibilidade’ se remete a uma relação entre mundos.

Segundo o caso da necessidade física, por exemplo, suponha três ‘mundos

possíveis’ (i, j e k), sendo k um mundo possível onde vigoram as mesmas leis

físicas do mundo i (i.e., toda lei física que é verdadeira em i é também verdadeira

em k), mas cujas leis físicas diferem das leis do mundo j. Isso significa que “do

ponto de vista de i, k é um mundo acessível; do ponto de vista de j, não é.”

(Lewis, 1973, p.5).

3.2.1. Contrafactuais e condicionais estritos

Em virtude da relação de acessibilidade, os operadores modais podem agora

ser definidos da seguinte forma: para qualquer mundo possível i e sentença φ, a

sentença �φ será verdadeira no mundo i se, e somente se, para todos os mundos j,

tal que j seja acessível de i, φ for verdadeiro em j. Da mesma forma, ◊φ será

verdadeiro em i se, e somente se, para algum mundo j, tal que j seja acessível de i,

φ for verdadeiro em j. (Cf: Lewis, 1973, p.5);

De forma análoga, um condicional estrito □ (φ ⊃ ψ) será verdadeiro em um

mundo i se, e somente se, para todos os mundos j (acessíveis de i), o condicional

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material (φ ⊃ ψ) for verdadeiro em todos os mundos j; simplificando, □ (φ ⊃ ψ)

será verdadeiro em i se, e somente se, ψ for verdadeiro em todos os mundos

acessíveis onde φ é verdadeiro.

Para tornar sua teoria mais elucidativa, Lewis recorre a uma noção bastante

curiosa como expediente ilustrativo: ele a denomina “esfera de acessibilidade”.

Lewis a constrói da seguinte forma: imaginemos um mundo possível i, em torno

do qual existe uma esfera Si, toda preenchida de mundos que estão numa dada

relação de acessibilidade com i (i.e., são acessíveis de i), e cujo centro é ocupado

exatamente pelo mundo i. A esfera Si de acessibilidade pode ser representada pela

seguinte figura.

ESFERA Si

Note que no centro está o mundo i, rodeado por outros mundos que são

acessíveis a partir de i. Tal artifício permite a Lewis definir visualmente a relação

de acessibilidade correspondente aos operadores modais. Conseqüentemente, as

condições de verdade para sentenças modais podem ser visualmente representadas

pelas relações entre esferas de acessibilidade.

Para dar alguns exemplos, uma sentença �φ, com operador de necessidade,

será verdadeira em um mundo i se, e somente se, φ for verdadeiro por toda a

extensão da esfera Si. Isso pode ser visualizado no seguinte diagrama que exprime

a relação de necessidade:

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NECESSIDADE

Note que o domínio de φ inclui completamente a esfera Si. Utilizando a

mesma ideia de diagrama, é possível representar ◊φ. No novo caso, a sentença

operada pela possibilidade será, portanto, verdadeira em um mundo i se, e

somente se, φ for verdadeira em alguma parte da esfera Si, tal como no seguinte

diagrama exprimindo a relação de possibilidade:

POSSIBILIDADE

Neste diagrama, nota-se que o domínio de φ ocupa apenas uma parte da

esfera Si; é o mesmo que dizer que φ é verdadeiro em pelo menos alguns mundos

de Si. Já uma sentença condicional estrita □ (φ ⊃ ψ) será verdadeira se, e somente

se, o condicional material (φ ⊃ ψ) for verdadeiro em toda parte da esfera Si; ou

ainda, se, e somente se, o conseqüente ψ for verdadeiro em todas as partes da

esfera onde o antecedente φ é verdadeiro, o que é justamente representado no

próximo diagrama:

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CONDICIONAL ESTRITO

Assim, o condicional logicamente estrito □L (φ ⊃ ψ), relativo à

necessidade lógica, será verdadeiro no mundo i se, e somente se, ψ for verdadeiro

em absolutamente todos os ‘mundos possíveis’ onde φ for verdadeiro (mundo-φ),

não podendo sobrar nenhum mundo-φ possível que seja inacessível.

Um condicional fisicamente estrito □F (φ ⊃ ψ), onde se convoca

necessidade física, será verdadeiro no mundo i se, e somente se, ψ for verdadeiro

em todos os mundos-φ que possuem as mesmas leis físicas que vigoram no mundo

i.

Suponha agora um exótico condicional “fatos-n” estrito □N (φ ⊃ ψ),

correspondente a uma necessidade-n que se estende apenas aos fatos de tipo n -

onde n é uma variável sobre “fatos de tal e tal espécie”. Nesse caso, assinalamos a

cada mundo i uma esfera de acessibilidade que abrange o conjunto de todos os

‘mundos possíveis’ que são idênticos a i apenas em virtude dos fatos de tipo n.

Desse modo, análogo aos outros casos, □N (φ ⊃ ψ) será verdadeiro no mundo i se,

e somente se, ψ for verdadeiro em todos os mundos-φ que são idênticos a i em

virtude estritamente de todos os fatos de tipo n.

3.2.2. O contrafactual é um condicional variavelmente estrito

Uma das primeiras observações de Lewis apresenta o contrafactual como

uma espécie “excêntrica” de condicional que varia seu comportamento de acordo

com uma relação de similaridade comparativa entre vários mundos possíveis.

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Dessa forma, segundo Lewis, “um contrafactual φ □→ ψ será verdadeiro em um

mundo i se, e somente se, ψ for verdadeiro em certos mundos-φφφφ; mas

certamente nem todo mundo-φφφφ será relevante.5” (Lewis, 1973, p.8). É como se

o contrafactual se comportasse como um condicional puramente estrito em

determinados contextos, mas não em outros. Nesse sentido, o exemplo dos

condicionais fatos-n estrito é bastante elucidativo. Um contrafactual é um tipo de

condicional cuja restrição de acessibilidade é constantemente alterada. Lewis

reconhece que muitos dos contrafactuais mais simples agirão realmente como um

condicional puramente estrito, mas no qual intervém uma relação de

acessibilidade determinada pela noção de similaridade comparativa entre

mundos.

Como bem nota Lewis, a análise de um condicional puramente estrito é

incapaz de alcançar alguns casos mais extravagantes de contrafactuais. Isso é

facilmente exemplificado em dois dos 3 exemplos originalmente esboçados por

Lewis, embora os apresentemos aqui com algumas modificações convenientes e

alguns comentários.

Imaginemos, por exemplo, o contrafactual (a) Se os EUA destruíssem todas

as suas armas, então haveria uma guerra; note que o contrafactual será julgado

como verdadeiro ao pressuposto de que se a maior potência econômica e bélica do

mundo destruísse todas as suas armas, restaria uma imensa economia

completamente indefesa e vulnerável a toda sorte de ataques, o que seria

suficiente para se deflagrar uma instabilidade mundial e a iminência de uma

guerra inevitável.

Por outro lado, considere o contrafactual (b) Se os EUA (e todas as demais

potências bélicas do planeta destruíssem suas armas), então não haveria uma

guerra (haveria paz). Nesse caso, uma nova conjuntura de fatores (paridade bélica

entre as nações), torna insuficiente a consumação do conseqüente de (a), “haveria

uma guerra”. Mas novamente, considere um terceiro condicional (c) Se os EUA e

todas as demais potências bélicas do planeta destruíssem suas armas (jogando-as

no fundo do mar e poluindo todos os viveiros de peixe), então haveria uma

5 Grifo nosso

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guerra. Note que estamos a cada vez adicionando informações que alteram o

alcance da ação do condicional estrito.

Considere um exemplo ainda mais simples: Se Ronald Reagan fosse à

reunião das Nações Unidas, a reunião seria tranqüila; mas, se Ronald Reagan e

Muamar Kadafi fossem ambos à mesma reunião das Nações Unidas, a reunião

não seria tranqüila; mas, se Ronald Reagan, Muamar Kadafi e George W. Bush

(sendo próximo de Reagan e tendo reatado as relações entre EUA e Líbia) fossem

todos à mesma reunião das Nações Unidas, a reunião seria tranqüila. Em que

pese a plausibilidade desses exemplos (alguém obviamente poderia contestá-los

sem prejuízo do argumento), eles são emblemáticos por manifestar a inconstância

da restringência do condicional (strictness) para casos contrafactuais, mostrando

uma sucessão de transições que resguardam a seguinte estrutura:

φ 1 □→ ψ

(φ 1 ∧ φ 2) □→ ¬¬¬¬ ψ

(φ 1 ∧ φ

2 ∧ φ

3) □→ ψ

(φ 1 ∧ φ

2 ∧ φ

3 ∧ φ

4) □→ ¬¬¬¬ ψ

. . .

Note, no entanto, que se contrafactuais fossem realmente apenas

condicionais puramente estritos, então φ 1 □→ ψ teria que implicar (φ

1 ∧ φ 2)

□→ ψ, pois condicionais estritos admitem reforço do antecedente sem alterar o

conseqüente (antecedent strenghtening); neste caso, não haveria como o

conseqüente ψ ser negado; De forma análoga, sendo condicionais estritos, (φ 1 ∧ φ

2) □→ ¬¬¬¬ ψ implicaria (φ 1 ∧ φ

2 ∧ φ

3) □→ ¬¬¬¬ ψ, preservando a negação do

conseqüente, que é justamente o oposto do que se procede nessas seqüências de

contrafactuais. Desse modo, esses contrafactuais indicam que ψ será verdadeiro

em todos os mundos acessíveis em que φ 1 for verdadeiro (mundos-φ

1), por

exemplo; a negação ¬¬¬¬ ψ, por sua vez, será verdadeira em todos os mundos-(φ 1 ∧

φ 2 ), de sorte que ψ será verdadeiro nos mundos-φ 1, (φ

1 ∧ φ

2 ∧ φ

3), (φ 1 ∧ ... ∧ φ

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5), etc. Mas não será verdadeiro nos mundos-(φ 1 ∧ φ 2), (φ

1 ∧ φ 2 ∧ φ

3 ∧ φ

4), (φ 1

∧ ... ∧ φ 6), etc.

Para Lewis, essas vicissitudes provam que contrafactuais não poderiam ser

condicionais estritos, pois eles simplesmente não funcionam como condicionais

constantemente estritos. O primeiro grande resultado de Lewis é então o fato de

que contrafactuais devem ser pensados como condicionais variavelmente estritos.

Seu comportamento, em virtude dos exemplos oferecidos, fica patente no seguinte

diagrama:

CONDICIONAL VARIAVELMENTE ESTRITO

Esta imagem representa uma sucessão de esferas Si1, Si

2, Si3 em torno do

mundo i. Se tomarmos o contrafactual como um condicional constantemente

estrito, seríamos obrigados a convocar apenas uma das esferas (Si1, Si

2 ou Si3) para

ser a esfera de acessibilidade em torno de i; mas note que ao escolher apenas uma

esfera por vez, fica impossível interpretar o contrafactual. Si1 seria a escolha certa

para φ 1 □→ ψ, mas não para (φ

1 ∧ φ 2) □→ ¬¬¬¬ ψ; de maneira semelhante, Si

2

seria a escolha correta para (φ 1 ∧ φ 2) □→ ¬¬¬¬ ψ, mas não seria para φ

1 □→ ψ ou

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(φ 1 ∧ φ

2 ∧ φ

3) □→ ψ. Perceba que o domínio de ψ varia sua extensão de modo a

abranger os mundos-φ 1 e os mundos-( φ

1 ∧ φ

2 ∧ φ

3 ); ao passo que não

abrangerá os mundos-(φ 1 ∧ φ

2). Porém, note que ¬¬¬¬ ψ abrange os mundos-(φ 1 ∧ φ

2). Um condicional contrafactual deve ser sempre tão estrito quanto necessário

para respeitar uma similaridade comparativa entre mundos relevantes para as

suposições. Apenas quando tomamos o contrafactual como um condicional

variavelmente estrito é que não seremos obrigados a tomar, gradativamente, cada

esfera por vez, e chegaremos à interpretação correta.

A constatação de Lewis – de que contrafactuais não podem ser

constantemente estritos - é na verdade bastante intuitiva. Contrafactuais são

entidades instáveis. Isso ocorre porque a restringência (strictness) dos

contrafactuais não se move de maneira linear como nos condicionais estritos. Ao

acrescentar, alterar ou subtrair fatos, o contrafactual irá se comportar de maneiras

diversificadas; mundos inteiros serão ora solicitados para a esfera de

acessibilidade, ora banidos para a periferia do sistema. Tudo em um simples

“piscar de olhos”; Observe que para isso ocorrer, não é preciso muito. Mude uma

pedra de lugar e terás instaurado o caos! Embora uma ideia intuitiva, variabilidade

de restringência encerra grandes dificuldades por tornar imponderável a relação de

proximidade que convoca os mundos certos. Afinal de contas, estamos

preocupados em saber discriminar mundos próximos ao nosso! Lewis procurou,

portanto, fortalecer e consolidar sua análise.

Dessa forma, para poder tratar o contrafactual como um condicional

variavelmente estrito, Lewis se utiliza do seguinte conjunto de definições para

um sistema (concêntrico) Ś de esferas hierarquizadas: Primeiramente, tome Ś

como uma designação para cada mundo possível i de um conjunto Śi de mundos

possíveis; Ś será um sistema (concêntrico) de esferas (e todos os membros de

cada Śi serão chamados de esferas ao redor de i) se, e somente se, para cada

mundo i, as seguintes condições forem respeitadas:

(C) Śi é concêntrico a i, ou seja, um conjunto unitário {i}, tendo i como seu

único membro, deve pertencer a Śi.

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60

(1) Śi é aninhado, ou seja, se S e T pertencem a Śi, então ou bem S está

incluído em T, ou bem T está incluído em S.

(2) Śi é fechado sob uniões, ou seja, sempre que ś for um subconjunto de Śi

(e ∪ś for o conjunto de todos os mundos j tais que j pertença a algum

membro de ś), então ∪ś pertencerá a Śi.

(3) Śi é fechado sob intersecções, ou seja, sempre que ś for um subconjunto

não-vazio de Śi (e ∩ś for o conjunto de todos os mundos j tais que j

pertença a todos os membros de ś), então ∩ś pertencerá a Śi.

Com esse conjunto de condições, o sistema de Lewis se torna apto a

gerenciar as informações sobre a similaridade comparativa entre mundos. Assim,

conforme defende, cada esfera ao redor de um mundo determinado i deve incluir

apenas mundos que se assemelhem a i até um certo grau de similaridade. Com

isso, Lewis tem em mãos os recursos necessários para dar suas condições de

verdade para contrafactuais, nos seguintes termos: φ □→ ψ será verdadeiro em

algum mundo i (de acordo com um sistema Ś de esferas) quando alguma das

seguintes situações se seguir:

(a) Quando nenhum mundo-φ pertencer a qualquer esfera S em Śi; ou

então

(b) Quando houver uma esfera S em Śi que contenha, pelo menos, um

mundo-φ; e além disso, a implicação material φ ⊃ ψ for verdadeira

em todos os mundos da esfera S (ou seja, se houver um único

mundo-φ em S, φ ⊃ ψ deve ser verdadeiro neste mundo; se houver

mais de um mundo-φ em S, φ ⊃ ψ deverá ser verdadeiro em

absolutamente todos os mundos-φ de S.

A situação (a) nos dará o caso em que o contrafactual é vacuamente

verdadeiro, i.e., “ou bem [quando] φ não for verdadeiro em nenhum mundo, ou

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bem [quando φ] for verdadeiro apenas em mundos que estão fora de ∪Śi” (Lewis,

1973, p.16). Nesse caso, consideramos o contrafactual como vacuamente

verdadeiro. A condição (b) nos dará a interpretação mais fundamental, quando

um contrafactual é considerado não-vacuamente verdadeiro, ou seja, nos casos

em que houver alguma esfera que permita o antecedente φ (o que significa que há

algum mundo acessível dentro dessa esfera, onde φ é verdadeiro), e onde todos os

mundos que contenham o antecedente φ como verdadeiro, também contenham,

necessariamente, o conseqüente ψ como verdadeiro. Kit Fine (1975) resume a ideia

de Lewis de forma ainda mais concisa. Para ele,

o contrafactual ‘Se fosse o caso que φ então seria o caso que ψ’ (φ □→ ψ) é ou bem vacuamente verdadeiro, ou bem não-vacuamente verdadeiro; vacuamente verdadeiro se nenhum mundo-φ puder ser levado em conta; não-vacuamente verdadeiro se, dentre algum grau de similaridade com o mundo atual, algum mundo possível é um mundo-φ, mas nenhum mundo possível é um mundo-(φ ∧ ¬ ψ) (Fine, 1975, p.451).

Desse modo, no caso de um contrafactual φ □→ ψ, existirão apenas 4

circunstâncias possíveis que resultarão em sua verdade ou falsidade. Lewis ilustra

tais circunstâncias por meio de 4 diagramas distintos.

Na primeira hipótese, nosso contrafactual ‘φ □→ ψ’ será vacuamente

verdadeiro em i caso não exista nenhuma esfera φ-permissiva, i.e., quando não

houver sequer uma mínima porção de mundos que estejam dentro de uma das

esferas concêntricas de i, e nos quais o antecedente φ é verdadeiro. Neste caso,

note pelo diagrama abaixo que o domínio de mundos-φ não alcança sequer a

esfera mais afastada de i. Desse modo, em virtude da ausência de qualquer

mundo-φ em alguma esfera φ-permissiva, ‘φ □→ ψ’ redundará como vacuamente

verdadeiro. Observe que todos os contrafactuais com antecedentes φ serão

vacuamente verdadeiros, e isso incluirá tanto ‘φ □→ ψ’ quanto seu oposto ‘φ

□→ ¬ ψ’.

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VACUAMENTE VERDADEIRO

Uma segunda possível circunstância é que um contrafactual seja não-

vacuamente verdadeiro (nosso caso principal). Nessa hipótese, deverá haver

pelo menos uma esfera φ-permissiva em que o conseqüente ψ é verdadeiro em

absolutamente todos os mundos-φ (não podendo sobrar, portanto, qualquer

mundo-φ em que ψ seja falso). Observe no próximo exemplo que a segunda esfera

mais distante de i é quem servirá de esfera φ-permissiva. Além disso, para

satisfazer as condições, note que a implicação material φ ⊃ ψ se mantém

verdadeira por toda extensão de mundos-φ na esfera φ-permissiva. Note ainda que,

no caso de contrafactuais não-vacuamente verdadeiros, seu oposto ‘φ □→ ¬ ψ’

será falso porque existem duas esferas φ-permissivas que possuem mundos-φ onde

o conseqüente ¬ ψ é falso.

NÃO-VACUAMENTE VERDADEIRO

No terceiro caso temos a falsidade do contrafactual ‘φ □→ ψ’ em virtude de

seu oposto ‘φ □→ ¬ ψ’ ser verdadeiro. Pois observe abaixo que não existe uma

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esfera φ-permissiva em que ψ é verdadeiro em absolutamente todos os mundos-φ;

Logo, não haverá também uma esfera φ-permissiva na qual φ ⊃ ψ será verdadeiro

por toda extensão de mundos-φ.

FALSIDADE – CONTRÁRIA À VERDADE

Por último, temos a ocasião da falsidade do contrafactual em razão de

existirem esferas φ-permissivas que contêm, ao mesmo tempo, mundos-φ em que

ψ é verdadeiro, e outros em que ¬ ψ é verdadeiro; de maneira que ‘φ □→ ψ’ e

seu oposto ‘φ □→ ¬ ψ’, serão ambos falsos.

FALSIDADE – CONTRÁRIA À FALSIDADE

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3.2.3. Funções selecionadoras, similaridade comparativa e o

‘pressuposto do limite’

Ao abordar o modelo semântico de Stalnaker, Lewis constata sua

dependência a uma estratégia indispensável: a função selecionadora. Ele até

reconhece que a ideia original de Stalnaker reflete uma intuição bastante natural e

aparentemente correta: a noção de que a verdade do contrafactual é sempre

subordinada à verdade do conseqüente apenas nos mundos-antecedentes mais

próximos. Mas como vimos, para que isso funcione a teoria de Stalnaker

dependerá de uma função que de fato selecione apenas esses mundos. Para Lewis,

no entanto, ao centrar sua análise na noção de máxima proximidade, o modelo de

Stalnaker passa a peticionar um princípio obscuro e impreciso, o que Lewis

denomina “pressuposto do limite” (Limit Assumption). A crítica de Lewis não

surge sem motivos. Afinal, o que significaria dizer que um determinado mundo,

quando selecionado, é o único mundo possível mais próximo (e mais nenhum será

tão próximo quanto ele)? Para Lewis, o “pressuposto do limite” simplesmente

reflete a suposição de que

ao considerarmos esferas antecedente-permissivas cada vez menores e menores, contendo mundos-antecedente cada vez mais próximos a i, chegaremos eventualmente a um limite: a menor esfera antecedente-permissiva que contêm os mundos-antecedente mais próximos (Lewis, 1973, p.20).

Note que sob o “pressuposto do limite”, as condições de verdade para

contrafactuais seriam ainda mais elementares do que as formuladas por Lewis. O

contrafactual seria verdadeiro em virtude de dois casos: (A) quando não houvesse

qualquer esfera antecedente-permissiva em torno de i (o caso ‘vacuamente

verdadeiro’); ou (B) quando existisse a menor esfera possível (antecedente-

permissiva), e onde o conseqüente fosse verdadeiro em todos os mundos-

antecedente desta esfera. Mas como nota Lewis, “infelizmente, não temos o

direito de supor que sempre haverá uma menor esfera antecedente-permissiva”

(Lewis, 1973, p.20) contendo, justamente, os mundos-antecedentes mais

próximos. A dificuldade não reside apenas na imprecisão do significado de ser a

menor esfera possível (ou o mundo mais próximo possível); mas na própria

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imprecisão da função selecionadora. Talvez isso fique mais perceptível com o

exemplo oferecido por Lewis.

Imaginemos um contrafactual cuja suposição atribuísse à seguinte linha

“_______” uma medida maior que uma polegada (sendo que seu tamanho é

factualmente menor que uma polegada). Algo como: Se a seguinte linha entre as

aspas, “_______”, medisse mais que uma polegada... A questão simplesmente é:

Qual seria o mundo-antecedente mais próximo possível do mundo atual em que

esse contrafactual se sustentaria? Haverá, por exemplo, um mundo onde a linha

acima possui o triplo de sua medida; relativamente, portanto, haverá um mundo

mais próximo, cuja linha possua apenas o dobro da medida; mas quanto medirá

uma linha contrafactual que seja, ao mesmo tempo, o mais próximo da medida

factual da linha (ou seja, menor que uma polegada) e também maior que uma

polegada? O que significaria dizer isso? Esta linha teria que medir o mais próximo

possível de uma polegada sem, no entanto, medir uma polegada. Para cada ‘1 + x’

polegadas, onde x representa a medida minimamente necessária para analisar o

contrafactual, haverá sempre uma linha ‘1 + ½ x’ polegadas que será mais

próxima da medida factual. O que leva Lewis a concluir que, como não há uma tal

medida cogitável pelo contrafactual, seria impossível selecionar um mundo mais

próximo, segundo o modelo de Stalnaker.

Este fato encerraria dificuldades para qualquer teoria que dependesse

exclusivamente de funções selecionadoras e noções imprecisas de similaridade

(no caso em pauta). O argumento, na verdade, pode ser estendido para qualquer

contrafactual que envolva, de alguma maneira, relações que são quantificáveis.

Por esse ângulo, o argumento se procede de certa má-fé; é como se Lewis

introduzisse, de maneira sub-reptícia, os ‘paradoxos de Zenão’ para minar a teoria

de Stalnaker. Observe que dessa maneira, seria possível estender o argumento

para qualquer contrafactual que pudesse se exprimir em grandezas quantificadas;

tais como Se o Empire State Building fosse o edifício mais alto em 2010; Se o

território de Togo fosse maior que o da China; Se a Estátua de Davi fosse mais

pesada que a Estátua da Liberdade, etc.

Para preservar sua teoria, Lewis inaugurou um conceito de similaridade

entre mundos que prescindiria, teoricamente, de uma noção quantitativa, recaindo

apenas sobre uma noção comparativa. É o que denomina pontualmente de

similaridade comparativa entre mundos, ao invés de uma similaridade

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quantitativa, como no sistema de mundos ordenados, em Stalnaker. Lewis exige

para seu modelo apenas que seja competente em identificar a similaridade entre

dois mundos relativos a um terceiro mundo (critério comparativo), mas o

desobriga de determinar “o quão” semelhante são esses dois mundos entre si (nos

termos do próprio Lewis).

Um dos supostos avanços que Lewis atribui a sua própria teoria é, portanto,

o fato de que ela seria mais ampla do que qualquer outra cuja semântica

dependesse estritamente de uma função selecionadora de mundos – como a de

Stalnaker. Segundo Lewis, estas semânticas são inevitavelmente tributárias do

“pressuposto do limite” e a ideia de similaridade quantitativa entre mundos, pois

elas pressupõem que, para todo contrafactual não-vacuamente verdadeiro, deverá

existir a menor esfera φ-permissiva possível, acessível a um mundo i e onde φ é

verdadeiro nesse mundo. Os mundos-antecedente (no caso, os mundos-φ) nessa

esfera, serão os mundos mais próximos a i.

Lewis, contudo, deseja mostrar que é possível derivar, de algum modo, uma

função selecionadora de seu sistema de esferas sem se comprometer ao

“pressuposto do limite”, já que a definição de seu sistema satisfaria o pressuposto

sem se enredar nos paradoxos. Mas isso, como se notará, só poderá ser feito até

um certo limite. Como aponta Donald Nute, o interesse de Lewis está em concluir

“que sua semântica inclui [funções selecionadoras,] mas é mais geral que uma

semântica baseada em funções de seleção” (Nute, 1975, p.777), podendo

aparentemente se furtar aos transtornos causados por essas funções e suas

conseqüências. Em virtude do sistema, a seleção de mundos em Lewis é suprida

através de uma função ƒ que seleciona, para uma dada sentença φ e um mundo i, o

conjunto ƒ (φ,i) de mundos-φ mais próximos a i. Note que, diferentemente de

Stalnaker, a função de Lewis nos entrega conjuntos de mundos como valor de

função, ao invés de mundos isolados. As condições de verdade para esta nova

função serão as seguintes: φ □→ ψ será verdadeiro num mundo i se, e somente

se, o conseqüente ψ for verdadeiro em todos os mundos em ƒ (φ,i); φ ◊→ ψ, por

sua vez, será verdadeiro num mundo i se, e somente se, o consequente ψ for

verdadeiro em alguns mundos em ƒ (φ,i). Sua nova função parte de sentenças e

mundos, como argumentos, e tem como valor de função, conjuntos de mundos,

seguindo estritamente as seguintes condições:

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Seja [[φ]] o conjunto de mundos onde a sentença φ é verdadeira. Note que

no sistema de Lewis, por [[φ]] ser um conjunto de mundos, [[φ]] pode caracterizar

uma proposição. Neste caso:

(i) Se φ for verdadeiro em i, então ƒ (φ,i) será o conjunto unitário {i},

tendo i como seu único membro.

(ii) ƒ (φ,i) está incluído em [[φ]].

(iii) Se [[φ]] estiver incluído em [[ψ]], e ƒ (φ,i) for não-vazio, então ƒ

(ψ,i) também será não-vazio.

(iv) Se [[φ]] estiver incluído em [[ψ]], e [[φ]] se intersecciona com

ƒ(ψ,i), então ƒ(φ,i) será a intersecção de [[φ]] com ƒ(ψ,i).

Segundo Lewis, ao derivar a função de seu sistema e respeitar as condições,

o sistema todo passa a satisfazer o “pressuposto do limite”, de modo que será

então possível “introduzir uma nova esfera S ao redor de algum mundo i, de tal

maneira que S não seja a menor esfera φ-permissiva ao redor de i para qualquer

sentença φ”” (Lewis, 1973, p.59). É exatamente com esse tipo de estratégia que

Lewis pretende, ao final, se esquivar dos paradoxos engendrados pelo

pressuposto. Lewis ainda acrescenta que seu sistema possui recursos suficientes

para reformular funções selecionadoras em termos de ‘famílias’ “de relações de

acessibilidade entre mundos” (Lewis, 1973, p.60), indexadas por sentenças ou

proposições.

Mas as dificuldades não são completamente dirimidas, e Lewis é de fato

bastante honesto em reconhecer seus obstáculos. Embora ele defenda que sua

análise de contrafactuais, enquanto condicionais variavelmente estritos, poderia

ser facilmente subsumida como “um caso especial de uma teoria mais geral de

modalidades sentencial ou proposicionalmente indexadas” (Lewis, 1973, p.60), o

que demonstra a incrível abrangência do sistema, Lewis admite que em termos

mais gerais, resguardando seus aspectos mais amplos (incluindo até seus

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fundamentos metafísicos), sua análise não poderia ser subsumida com igual êxito,

pois resvalaria no “pressuposto do limite”.6 Em linhas gerais, é impossível

divorciar essas teorias deste pressuposto.

Não obstante, é importante notar que a análise de Lewis é simplesmente

mais robusta que a de Stalnaker. Uma das importantes razões é o fato de que a

teoria de Lewis não se restringe a selecionar apenas um mundo-φ mais próximo a

um mundo i, de forma que possa considerar dois ou mais mundos próximos que

estão numa mesma relação de ‘mais próximos o possível’ de um mundo i. O

contraste pode ser entendido da seguinte forma: enquanto em Stalnaker, A → B “é

verdadeiro no mundo i se e somente se B é verdadeiro no mundo mais semelhante

a i em que A é verdadeiro” (Nute, 1975, p.774); em Lewis “A → B é verdadeiro

no mundo i se for o caso que existem mundos em que (A ∧ B) é verdadeiro, de tal

modo que são mais semelhantes a i do que quaisquer mundos em que (A ∧ ¬ B) é

verdadeiro” (Nute, 1975, p.774).

É bastante claro que todas essas inovações, com relação à proximidade e

acessibilidade entre mundos, são principalmente dependentes das concepções

metafísicas de mundo em Lewis. Contudo, acompanhadas das vantagens, a teoria

de Lewis acaba pagando um alto preço quando sua noção de mundo é mais

profundamente explorada. Neste campo, incursionamos no horizonte metafísico

que a noção de mundo pode tomar e quais suas implicações para as teorias que

adotam as semânticas de ‘mundos possíveis’.

6 Lewis chega até a elaborar alguns artifícios curiosos, na tentativa de tolerar o “pressuposto do limite”, como um operador sentencial de seleção que exprimiria a função selecionadora, mas cuja atuação recairia sobre a linguagem objeto. Esse operador ƒ agiria sobre uma sentença, de modo que num condicional estrito □ (ƒφ ⊃ ψ), os mundos-ƒφ já serão os mundos-φ mais próximos e selecionados. Assim, ao operar o antecedente, ƒφ deve ser entendido como ‘verdadeiro apenas naqueles mundos que são apanhados pela função ƒ (φ,i)’ – “mas sem especificar qual dos mundos é i” (Lewis, 1973, p.61). Ainda assim, Lewis reconhece que o tratamento não é totalmente adequado.

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