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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377 Curso de Direito - N. 5, JUL/DEZ 2008
O poder emana do povo? Uma breve reflexão sobre a atual democracia e cidadania
Leonardo Alejandro Gomide*
Resumo Partindo do apontamento bastante generalizado entre os teóricos, de que a democracia no cenário atual, é um caminho necessário para garantir o pluralismo característico da contemporaneidade, o presente estudo pretende uma análise breve e reflexiva de algumas concepções do sistema democrático. Sem remeter profundamente à história ou buscar abarcar infindáveis teorias, propõe-se uma abordagem crítica do modelo democrático atual confrontando-o com algumas propostas que se mostram mais condizentes com a realidade vivida, numa perspectiva de atender os anseios éticos e políticos da sociedade. Abstract Beginning of annotation quite generalized among the theorists, that the democracy in the present scenery is a necessary way to warrant the characteristic pluralism of contemporary time, the present study intent a brief and reflexive analysis of some conceptions about the democratic system. Without remit deeply to the history or search grasp unending theories, it propose a critical board of present democratic model confront with some proposes that show more suitable with the vivid reality, in a perspective of attend the ethics and political desires of society.
1. Introdução
O presente estudo tem como escopo fazer uma abordagem crítica e, em certa
medida, ideológica sobre a atual democracia e cidadania no contexto das nações
submetidas às estratégias mundiais de hegemonia político-econômica. Busca
demonstrar algumas discussões sobre o aprofundamento democrático na sociedade e a
sua necessidade em contraposição ao sistema político que existe.
Para essa empreitada sustento o presente estudo por três eixos representativos de
enfoques da realidade:
O Cenário - busca ilustrar o conjunto de vistas nos quais se apresentam a
sociedade contemporânea. O contexto do mundo globalizado e suas conseqüências nas
estruturas políticas dos Estados e da sociedade;
O Enredo - representa a trama da democracia numa breve abordagem histórico-
filosófica, os apontamentos da insuficiência do modelo tradicional no contexto de um
* Leonardo Alejandro Gomide é mestre em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor de direito na Faculdade Metodista Granbery.
2
mundo globalizado e as contra-propostas de teóricos que verbalizam o seu
aprofundamento “radical” na sociedade; e,
Os Personagens - são os atores que encenam no cenário da vida real, os
indivíduos que compõe a sociedade e suas condições de participação e atuação: a
cidadania, sob o enfoque tradicional e emancipatório.
A analogia da estrutura de uma peça teatral aspira facilitar o estudo que, embora
fragmente a realidade na forma como se apresenta, permite uma complementaridade e
contextualização na conjunção dos elementos apresentados.
Toda a abordagem converge para perspectivas democráticas mais
descentralizadas, participativas e deliberativas como caminhos necessários para superar
as deficiências do atual modelo representativo. Apesar de dispormos no Brasil de uma
constituição que abarca uma democracia descentralizada e participativa, essa
perspectiva fica apagada diante do modelo tradicional representativo, também
consagrado na Constituição Federal de 1988.
2. O cenário
Partindo da análise crítica de alguns autores, pretendo, de forma sucinta esboçar o
contexto onde atua a cidadania contemporânea e o meio no qual se enreda a democracia,
buscando, ainda que de forma muito incipiente, contemplar elementos que caracterizam
de forma generalizada a sociedade atual.
Dentre as inúmeras questões que assolam a nossa sociedade, podemos dizer que a
incerteza, na nossa condição de seres humanos, é uma das que traz maior angústia. A
transição que permitiu a perda da fé nas instituições de poder quase inabalável, nos
tabus e nas convicções míticas e sacralizadas1, como norte civilizatório, fundador e
legitimador das orientações políticas, morais e normativas, para uma visão secularizada
do mundo, iluminada pela razão, possibilitou novas bases para a “crença” humana.
Desta vez a fé foi depositada na ciência, no progresso, na possibilidade da razão guiar
ininterruptamente o ser humano, através de projetos ideais, para um mundo cada vez
melhor e livre de problemas.
Contudo, a realidade cuida de prostrar cada centímetro das pretensões
idealizadas. Não é mais a razão o determinante que molda o mundo, mas sua própria
1 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, vol I Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 42
3
realidade complexa, mudada a cada instante pelo tempo. A crença no progresso, no
desenvolvimento e nos projetos ideais não vem encontrando meios de se ancorar diante
da realidade, na medida em que esse próprio progresso não está conseguindo sustentar
suas pretensões, principalmente diante da factual crise ecológica e social. As novas
questões que emergem abalam a fé desse modelo de progresso, plantando a semente da
incerteza no mundo atual. Embora a visão de um realismo cético tenha ganhado forças,
as necessárias pretensões racionais continuam agindo como norte e buscando,
sobretudo, se aperfeiçoarem com a realidade.
O contexto histórico dos últimos séculos desembocou em um mundo bipolar (pelo
menos o mundo considerado relevante por uma tradição sempre excludente), guiado por
ideais distintos, ambos com a pretensão de dar conta do mundo e tomados como norte
civilizatório, representados pelo capitalismo/liberalismo e pelo comunismo/socialismo.
Excluindo-se o modelo que sucumbiu, embora deixando vivas muitas de suas
pretensões2, o capitalismo encontrou na realidade um meio propício de se desenvolver,
ainda que de uma forma diferente de seus princípios-base como os ideais do liberalismo
democrático. Esse caminhar da história originou a atual sociedade, complexa, global,
volátil e carregada de novos desafios.
Essa nova realidade, dentre várias conseqüências, desfigurou, de certa forma, a
ordem internacional estabelecida – centrada em princípios como a territorialidade, a
soberania, a autonomia e a legalidade que embasavam a idéia de Estado-Nação3. Devido
a uma competição desenfreada dos mercados por melhores vantagens, houve uma
flexibilização, uma abertura das fronteiras territoriais para possibilitar um maior fluxo
do capital. Isso possibilitou uma nova ordem econômica que se tornou o vetor
determinante da ordem social.
Fixar-se ao solo não é tão importante se o solo pode ser
alcançado e abandonado à vontade, imediatamente e em pouquíssimo tempo. Por outro lado fixar-se muito fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes, pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em outros lugares. 4
2 Onde algumas perspectivas vem sendo ressuscitadas numa nova fenomenologia política latino-americana e outras de certa forma permearam o sistema o que prevaleceu 3 VIEIRA, Liszt. Os Argonautas da Cidadania: A sociedade civil na globalização. 4.ed. São Paulo: Editora Record 2001 4BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 21
4
A emergente ordem econômica rompeu, sob vários aspectos, com a lógica
territorialista. Através das condições de internacionalização de mercados, onde não
apenas os produtos circulam de maneira mais flexível, o próprio capital através de
poderosas empresas, se impõe convenientemente onde melhores vantagens são
oferecidas. O domínio político do Estado ficou dissociado do econômico. Desta forma,
muitos Estados ficaram reféns desse modelo econômico, principalmente os menos
desenvolvidos, perdendo significativamente a capacidade de formular políticas
nacionais autônomas e tendo que se submeter às orientações externas para se tornarem
mais atrativos ao capital estrangeiro, do qual se tornaram dependentes. Um rompimento
com a lógica econômica global, cujas regras são ditadas pelas grandes elites, através de
organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do
Comércio (OMC) e o Banco Mundial, acarretaria uma possível exclusão do Estado
“rebelde” dos mercados dos demais países participantes ou em sansões que
restringiriam a possibilidade de crescimento econômico desse Estado.
Além disso, esse processo de globalização econômica se traduz num jogo
perverso de regras ditadas antidemocraticamente que, não apenas desconsidera as partes
hipossuficientes das relações econômicas, não buscando contrabalançar as
desigualdades, como se aproveita da situação para tirar maiores vantagens. Este jogo
vem exacerbando, como nunca, as desigualdades externas, entre os países, como as
internas, dentro dos próprios países. Ou seja, muitos autores apontam que a globalização
econômica não só acentuou a diferença entre os países pobres e ricos, como acentuou as
diferenças entre os ricos e pobres dentro de um mesmo país.
Muitos teóricos buscam compreender esse fenômeno, delimitar sua real
dimensão e suas conseqüências. Alguns apontam como uma ruptura da história, um
tempo totalmente novo. Outros concebem como uma continuidade já antes precedida,
mas que encontrou meio ideal para desenvolver-se no mundo atual5. Embora haja
nitidamente caminhos divergentes, ambas as propostas se sustentam racionalmente em
muitos dos seus aspectos, o que nos leva não a buscar a definição ideal, mas a buscar
relações de complementaridade entre as muitas definições.
Para compreender o fenômeno “globalização” é necessário elencar os principais
fatores que o caracterizam. Primeiro, sob a perspectiva econômica, como uma nova era
do capitalismo que se expressa de maneira muito distinta de épocas anteriores como o
5 VIEIRA, Liszt. Op. cit.
5
fordismo e o imperialismo colonial onde a figura do Estado era muito forte dentre a
grande burguesia6.
Depois a compreensão de como o meio propiciou esse processo através dos
avanços tecnológicos, sobretudo na telecomunicação, informática, eletrônica, entre
outros que possibilitaram a troca e transmissão de dados em uma velocidade
absurdamente alta.
Outro ponto foi o ressurgimento da ideologia liberal, ou de um novo liberalismo
que guarda certas peculiaridades. Também por motivos geopolíticos, como o fim do
comunismo. Esse “novo liberalismo” corroborou para as decisões governamentais de
liberalização e desregulamentação do mercado, que conjuntamente com o aumento do
número de países industrializados e da competição em escala mundial, tornaram essa
ideologia hegemônica.
Dentre as conseqüências do processo de globalização econômica podemos
destacar que: pela flexibilização das fronteiras nacionais e pelas decisões políticas de
suma importância para um Estado não mais serem tomadas em seu território, a idéia de
soberania – que em países como o Brasil e/ou demais em situação similar ou pior de
desenvolvimento e história, nunca foi muito forte – enfraqueceu significativamente.
O “mercado”, através de poderosos grupos econômicos (elites globais) e seus
mecanismos de governança global que desconsideram a opinião democrática, afetou
profundamente a autonomia dos Estados que tiveram diminuídas a capacidade de
integração social e de identidade nacional7.
Por último, resta compreender que a globalização é um processo que não se
limita à esfera econômica, constituindo um complexo muitas vezes contraditório. Pode-
se destacar conforme atesta o professor Liszt Vieira, um processo que vem “por cima”,
caracterizado pela hegemonia neoliberal e pela política dominante; e um que vem “por
baixo”, representado por uma resistência a essa ideologia que se configura por fortes
traços de uma democracia global, com bases na solidariedade entre povos e nações e na
visão do ser humano como um todo8.
A globalização “de baixo” encontra nas organizações civis, nos diversos
movimentos sociais e nas organizações não governamentais, que se inter-relacionam de
maneira dinâmica, também, graças aos avanços tecnológicos e à internet, seu maior
6 VIEIRA, Liszt. Op. cit. 7 Id. Ibid. 8 VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. São Paulo: Ed. Record, 2000
6
expoente. Representados por manifestações democráticas como as ocorridas em Seattle,
na III Conferencia Ministerial da Organização Mundial do Comércio em 1999, ou em
Porto Alegre no Fórum Social Mundial e suas sucessivas edições anuais, sediadas em
diferentes países, sempre com a afronta “um outro mundo é possível”, contrariando as
autoridades que afirmavam o crescimento do hipercapitalismo como algo irredutível.
Essas e outras manifestações constantes pelo mundo reivindicam, entre outras
coisas: perdão da dívida externa dos países pobres, quebra de patentes para remédios
essenciais, inclusão de cláusulas sociais e ambientais, proporcionalidade das normas,
observância ao princípio da precaução no advento de novas tecnologias etc. Inúmeras
reivindicações que muitas vezes se fazem ouvir ainda que através da desobediência
civil.
Vive-se uma desestabilização das identidades nacionais, tradicionalmente
fulcradas no territorialismo, na soberania, na homogeneidade cultural, na autonomia
política, na legalidade e numa identidade territorial e social definida, que representavam
os alicerces da tradicional democracia e cidadania. Esta desestabilização gerou uma
“multiplicidade de novas identidades e solidariedades coletivas sub-nacionais e
supranacionais”9. A sociedade atual se configura como uma sociedade pluralista
(diversidade de orientações e ideologias), multicultural (diversidades de culturas e
etnias) e midiática (a mídia apresenta um importante papel na formação da opinião
pública) 10. Onde a diversidade étnica, religiosa, de estilos de vida e de visão de mundo,
se afloram numa explosão de movimentos, como os ambientalistas, os feministas, os
homossexuais, entre muitos outros que buscam e reivindicam reconhecimento, trazendo
uma gama de propostas que se sustentam pela razão e pela ética. E que, a sociedade
tradicional não concebe por sua moral ou não comporta em sua estrutura política, indo
muito além do ímpeto leigo e laico da república e sua estrutura de governo.
Isso não quer dizer, obviamente, que as identidades nacionais estejam se
extinguindo ou que perderam sua importância no mundo globalizado. Também não quer
dizer que as identidades nacionais não possam ganhar força e emergir novamente na
história, mas que no contexto atual, elas se tornaram mais uma entre as tantas
identidades que são construídas constantemente.
9 VIEIRA, Liszt. Op. cit. 2001 10HABERMAS, Jürgen. O Cisma do Século XXI. Trad. IN Mais! Suplemento da Folha de São Paulo. P. 4-6. Em 24 de abril de 2005
7
Entretanto, mesmo em tempos de globalização, o poder que representa a estrutura
“Estado”, ainda se mostra mais forte do que qualquer possível cúpula de poder global
mais formalizada11. Nos dizeres de Bauman os Estados se tornariam uma espécie de
“delegacias de polícia”12, onde, se essa conotação corresponder à realidade, os Estados
Unidos representam hoje, mais do que a central dessas delegacias, mas um verdadeiro
império nada simpático às causas mais solidárias, sociais e ambientais. Se necessário,
utiliza da força direta para sustentar seus “interesses”, quase sempre convergentes aos
das elites globais. Essa realidade de um mundo sob tensão, pipocando conflitos por
todos os lados e encravado numa guerra anti-terrorismo é também conseqüência do
processo excludente, predatório e impositivo do buraco que o capitalismo cavou durante
sua evolução e que se exacerbou nesse processo de expansão denominado globalização
econômica.
Essa realidade escancarada de um mundo impotente diante do excludente poder
econômico, especulativo e virtual, apresentado pela nova e (in)conveniente liberalização
e desregulamentação econômica por parte dos Estados, da diminuição de sua necessária
interferência e fomento às políticas sociais, da desconsideração de fatores de extrema
importância como o meio ambiente e da sociedade marginalizada, da fragmentação das
identidades e sobretudo de um mundo super-dinâmico, vem acarretando a crítica, a
desconfiança e a apatia da sociedade quanto a estrutura política tradicional.
Boaventura de Souza Santos expõe a crise da contratualização moderna,
baseando-se na metáfora da racionalização social e política do “contrato social”, como
uma predominância dos processos de exclusão sobre os de inclusão, onde essa inclusão
é conferida a grupos restritos, predominando a exclusão. O autor utiliza-se de duas
proposições metafóricas quanto ao contrato social para explicar a realidade social
contemporânea no contexto de exclusão e inclusão no interior do Estado: de um lado o
pós-contratualismo que é o processo pelo qual grupos ou interesses inclusos no contrato
social são excluídos, como os direitos de cidadania garantidos a grupos de cidadãos que
deixam de ser titulares desses direitos e passam a viver à margem; e de outro, o pré-
contratualismo, onde são bloqueados os acessos à cidadania a grupos que se viam como
candidatos a ela13.
11 Vide a decisão dos EUA frente às recomendações da ONU quanto a guerra do Iraque. 12 BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. .p. 215 13 SOUZA SANTOS, Boaventura de. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: A Crise dos Paradigmas em Ciências Sociais e os Desafios para o Século XXI,[s.n.t.] 1999.
8
Como conseqüência dessas situações sociais de desigualdade interna em um
Estado são verificados diversos “fascismos societais” como o autor os denomina, sendo
estes: o fascismo do apartheid social, representado pelos condomínios fechados por
exemplo; fascismo do Estado paralelo, como ações ilegítimas do Estado em áreas
excluídas; fascismo populista, onde há a promoção de estilos de vida e consumo fora do
alcance da maioria, entre outros, que contribuem para a sensação de incerteza e de
insuficiência da estrutura política contemporânea14.
Nesse esboço, busquei configurar o cenário que se apresenta na atual democracia
e cidadania, logicamente de forma muito limitada, mas estabelecendo como ponto de
partida para a analise da democracia, a sociedade globalizada, multicultural e abalada
por profundas desigualdades, onde a liquidez da modernidade15 se apresenta,
fundamentalmente, pela incerteza.
2 – O Enredo
2.1. A antevisão
Aléxis de Tocqueville (1805-1859), um aristocrata francês de grande atividade
política, desenvolveu em uma viagem para os Estados Unidos, um interessante estudo
sobre a democracia daquele país, publicada em 1835 e 1840 na sua célebre obra “A
Democracia na América”. A perspectiva de Tocqueville sobre democracia traz
elementos importantes para uma análise contemporânea dos princípios democráticos
contextualizados historicamente.
Primeiramente, Tocqueville concebe a história em suas construções, realizações e
“grandes feitos” compelida por uma força oculta, para além da racionalidade e das
decisões humanas, que corresponderia aos “costumes”. Ou seja, as experiências
práticas, os hábitos, as tradições, o que percorre as gerações de um determinado grupo
humano situado espacial e temporalmente. Nessa perspectiva ele projeta que ao se
tornarem mais avançadas culturalmente – cientificamente, tecnicamente, eticamente etc.
– as sociedades tenderiam a uma maior igualdade entre as classes e os indivíduos16.
14 Id. Ibid. 15BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. 16 RANCIÈRE, Jacques et al. A Descoberta da Democracia. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves. IN Mais! Suplemento da Folha de São Paulo. P. 4-7. Em 31 de julho de 2005
9
Ao analisar as sociedades tradicionais que se baseavam na propriedade da terra e
numa hierarquia forte e bem determinada como nas sociedades feudais, ele observava
que dentro da desigualdade que havia, os direitos e as liberdades eram bem
estabelecidos. Havia um jogo de equilíbrio entre as instituições, clero, nobreza,
tribunais, burgos, que limitavam todos os poderes, inclusive os do rei através do
respeito à tradição.
As opiniões e os costumes erigiam barreiras poderosas
em torno do poder real. A religião, o amor dos súditos, a bondade dos príncipes, a honra, o espírito da família, os preconceitos de província, o costume e a opinião pública limitavam o poder dos reis e encerravam em um círculo invisível sua autoridade. Então as constituições eram despóticas, e os costumes livres. Os príncipes tinham o direito, mas não a faculdade, nem o desejo de tudo fazer.17
Na instauração das democracias, onde havia uma pretensa igualdade, esses
vínculos consagrados entre os indivíduos e as forças secundárias – clero, nobreza etc. –
eram debilitados ou rompidos. A necessidade de se satisfazer a todos de forma
semelhante criava um poder cuja missão era impossível , mas a força irresistível.
Tocqueville previa que se investia numa autoridade despótica, que apenas mudara o
nome – de rei para povo – o poder da maioria frente à minoria é ilimitado, é onipotente,
e configura a tirania moderna a “tirania da maioria”.18
Os príncipes tinham por assim dizer, materializado a
violência; as repúblicas democráticas atuais tornaram-na tão intelectual quanto a vontade humana, que almeja sujeitar. No regime absoluto de um só, o despotismo, para chegar a alma, violentava grosseiramente o corpo; e a alma, escapando aos golpes, elevava-se gloriosa acima dele; mas, nas republicas democráticas, não é assim que procede a tirania; deixa de lado o corpo e vai direto a alma. O mestre não diz mais: ‘Pensarás como eu ou morrerás’; mas diz: “És livre de não pensar como eu; a vida, os bens, tudo te é assegurado, mas deste dia em diante, és um estrangeiro entre nós. Os privilégios da cidadania são mantidos, mas tornar-se-ão inúteis; pois se busca o voto de teus concidadãos não o darão, se só pedes a estima, farão como se recusassem. Restarás entre os homens perdendo o direito a
17 TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América. In: Os Pensadores. Seleção de Francisco C. Weffort. Trad. Leonidas Gontijo de Carvalho et al. .2.ed . São Paulo: Abril Cultural, 1980 p.247 18RANCIÈRE, Jacques et al. A Descoberta da Democracia. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves. IN Mais! Suplemento da Folha de São Paulo. P. 4-7. Em 31 de julho de 2005
10
humanidade... Vai em paz, deixo-te a vida, mas torno-a pior do que a morte” 19
A pertinente análise de Tocqueville quanto ao perigo da “tirania da maioria” nas
democracias modernas, encontrava no caminhante sucesso dos EUA como “sociedade
democrática” da época, três fatores que na sua visão poderiam conter a possibilidade
dessa tirania: O maior obstáculo ao despotismo estaria na democracia comunitária que
se configura no princípio federativo, onde os estados possuem autonomia diante do
poder federal, o que na realidade americana da época era a tradição do auto-governo da
comuna, uma herança inglesa. O segundo ponto se dá através da liberdade de imprensa
“Num país em que reina ostensivamente o dogma da soberania popular, a censura não
é somente um perigo, é um absurdo” , afirmando amar a liberdade de imprensa não
pelos bens que causa, mas pelos males que impede.20O terceiro ponto, também herança
inglesa, é o da livre associação de indivíduos, independente de permissão da autoridade,
que possibilitava a uma minoria constatar sua força, ou suscitar e descobrir os
argumentos mais apropriados a impressionar uma maioria. A livre associação tinha fins
persuasivos e coletivos, sobretudo pacíficos e legais21.
Tocqueville via condições distintas na França da Revolução. Ao contrário da
sociedade americana onde ele constatava uma transição harmoniosa com uma
Constituição para equilibrar os poderes do povo e das elites que já se encontravam em
suas vidas sociais homogeneizados, na França o republicanismo autoritário impunha
pela força uma “sociedade artificial” onde a tradição feudal não fornecia os “costumes”
apropriados22.
Contudo, na analise de seu livro “Antigo Regime e Revolução”, ele aponta que
essa tradição feudal entre os séculos XVI e XVIII se mostrava mais uma fachada onde o
despotismo estava sendo construído pela realeza, que somava cada vez mais os poderes.
Essa constante centralização do poder, na percepção de Tocqueville, é que originou a
Revolução Francesa e não o contrário. Embora a aristocracia, nobres e eclesiásticos
desfrutassem todas as benevolências e honrarias, havia cada vez mais um corpo de
profissionais que exerciam toda a administração sob os olhos do Rei e excluía as forças
secundárias que equilibravam o poder, “o Conselho do Rei”23. Ou seja, o aparelho
19 TOCQUEVILLE, Aléxis de. Op. cit. p.240 20 TOCQUEVILLE, Aléxis de. Op. cit. p.222 21 RANCIÈRE, Jacques. Op. cit. 22 Idem. Ibidem. 23 TOCQUEVILLE, Aléxis de. Op. cit. p.336
11
governamental centralizado já existia e foi transferido do monarca para a “assembléia
soberana”, afirmando que revolução herdou muito de suas formas do “antigo regime”.
Entretanto, a Revolução, por mais radical que tenha sido,
inovou menos em geral do que se supõe...É verdade que ela destruiu inteiramente ou está a caminho de destruir (pois ela dura ainda), tudo da antiga sociedade que decorria das instituições aristocráticas e feudais.... Não se pode dizer de modo algum que a revolução tenha sido de modo fortuito. Embora tenha por certo surpreendido o mundo, foi apenas um complemento de um longo labor, apenas o término repentino e violento de uma obra na qual dez gerações de homens trabalharam. Ainda que a revolução não ocorresse o velho edifício social desmoronaria mais cedo ou mais tarde em toda parte. A única diferença estaria em que teria continuado a cair peça por peça, ao invés de ser derrubado de um só golpe.24
Tocqueville crítica severamente os intelectuais iluministas e seus modelos
geométricos, racionais que aplicados à política se viram violar um a um de seus
princípios – liberdade por opressão e repressão, igualdade por vantagens e privilégios
políticos dos “novos poderosos”, fraternidade por genocídio e terror – ao buscar
“reinventar a humanidade do zero”.25
Mas, o mais importante em Tocqueville para a nossa análise, retornando ao
“Democracia na América”, encontra-se conforme o professor Jacques Rancière, na
dialética de que: “o casamento da liberdade de empreendimento com a liberdade
política” ocasionava o surgimento de um despotismo imperceptível. Enquanto os
homens cuidavam livremente de seus negócios e prazeres privados, tornavam-se alheios
e apáticos aos assuntos do Estado que estavam cada vez mais aos encargos dos “homens
competentes”. Os profissionais cuidam da política e os cidadãos vivem livremente seus
prazeres, sem perceber que o poder lhes esta sendo confiscado.
Se os cidadãos continuam a encerrar-se cada vez mais
estreitamente no pequeno círculo de seus interesses domésticos ...Tremo, confesso, ante a idéia de que se deixem possuir de tal maneira por um amor lasso pelos prazeres presentes, que desapareça o interesse por seu próprio futuro e pelo de seus descendentes e que prefiram seguir molemente o curso do
24 TOCQUEVILLE, Aléxis de. O Antigo Regime e a Revolução . In: Os Pensadores. Seleção de Francisco C. Weffort. Trad. Leonidas Gontijo de Carvalho et al. .2.ed . São Paulo: Abril Cultural, 1980 p.334 e 335 25 RANCIÈRE, Jacques Op. cit.
12
destino a fazer-se necessário um súbito e energético esforço para endireita-lo. 26
Essa breve analise nos fornecerá o alicerce para um estudo das propostas e
modelos de democracia atuais, bem como da crítica à democracia tradicional no mundo
de hoje.
2.2. A tradição
Primeiro, enquanto Karl Marx nos apontava a “História como a História das lutas
de classes”, onde o capitalismo se traduziu numa violenta exploração do homem sobre o
homem e num inafastável conflito entre as classes, Tocqueville, conforme visto,
apontava que com o avanço da sociedade haveria uma tendência à maior igualdade entre
as classes e os indivíduos. De fato isso não ocorreu, prevalecendo a visão marxista,
histórico materialista, da exploração e da guerra de classes.
Marx concebia a relação da produção capitalista, como uma relação de
exploração. De forma breve, os donos dos meios de produção exploravam os
trabalhadores assalariados através da compra de sua força de trabalho por um
determinado tempo, atribuindo a essa “força de trabalho” um valor (salário). Os gastos
da produção (salário, matéria-prima, manutenção das máquinas etc.) seriam muito
menores quando comparados aos valores obtidos na venda dos produtos (lucro) e
corresponderiam a uma parcela ínfima do tempo do trabalhador, que comparado ao
lucro obtido deveria ter um valor muito maior, para que esse trabalhador não trabalhasse
de graça a maior parte de seu tempo.
Essa relação que Marx denominou de “mais valia” estava presente em toda
produção capitalista. Essa condição colocava em cheque a democracia formal para Marx
que não era capaz de sanar esse impasse, legitimado pelo liberalismo. Para que essa
relação se tornasse justa, numa realidade de exploração desumana, ele concluiu que os
meios de produção deveriam ser socializados. O Estado deveria tomá-los e torna-los
comuns, distribuindo o resultado de uma produção cada vez maior para toda sociedade
que poderia desfrutar de mais tempo e menos trabalho, já que todos trabalhariam uma
parcela de tempo mais ou menos equivalente e viveriam em condições semelhantes.
26 TOCQUEVILLE, Aléxis de. Op. Cit. p.300
13
Para esse paraíso social, os trabalhadores deveriam se organizar e tomar o poder do
Estado, através de uma revolução, e implementar o ideal socialista.27
A idéia racionalizada de Marx, de uma sociedade ideal, encontrou tentativa de
materialidade nas revoluções socialistas do século XX. Embora estas tenham se dado
em um “meio” que Marx não considerava o ideal – a revolução ocorreu em países de
industrialização tardia – mais uma vez os “ideais” se viram contrariar um a um de seus
postulados; lançando milhões de pessoas para a morte e se transformando em um
totalitarismo que ostentava inúmeros problemas, dentre eles, a desigualdade, privilégios
e outras formas de exploração. A questão é que a desigualdade não mais estava atrelada
ao capital, mas aos vínculos diretos com o Estado.
Esse modelo sucumbiu com a queda da URSS e o fim da Guerra Fria, enquanto a
realidade dos países que não eram comunistas foi se reconfigurando, modificando
completamente as relações de exploração e condições de vida, demonstrando um
razoável otimismo. A democracia majoritária tradicional passa a ser o modelo político
predominante, a serviço de uma dominação capitalista global, predatória e insustentável,
que exacerbou as condições de desigualdade e colocou em risco o equilíbrio ecológico
do planeta, ameaçando uma gama infindável de seres humanos e outras formas de vida.
Mas essa democracia, no cenário global que se apresenta, do consumismo e do
individualismo, embora não seja condizente com a própria palavra –“falsa democracia
do consumo” – ainda é percebida como menos problemática do que os regimes
totalitários, propriamente ditos.
Mas a crítica e o pensamento marxista continuam, sobretudo na denuncia dessa
sociedade de consumo e no individualismo democrático. E, é nesse ponto que a análise
de Tocqueville se torna mais condizente. Ainda que ele acreditasse numa existência
harmoniosa entre o capitalismo e a democracia e no avanço da sociedade tendendo a
maior igualdade (o que a realidade não confirmou). Por outro lado ele profetizou a
“perversão democrática da sociedade de consumo” e o totalitarismo mascarado que ela
representa – conforme visto também – na medida em que os homens se abstêm da “vida
política” e mergulham com avidez em seus prazeres “sempre novos e destruidores do
bem-comum”.
27 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. 4.ed Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
14
Tocqueville constatou que o mundo igualitário seria necessariamente
individualista. Com o rompimento dos laços aristocráticos de família e de comunidade,
os indivíduos dependiam, mais e mais, para sobreviver do seu esforço individual num
mundo de trabalho e competição que os aprisionava na esfera privada e gerava a apatia
e a alienação na prática da política. Outra constatação de sua interpretação da história
são os traços de continuidade existentes nos períodos pré e pós revoluções, ele percebia
que mudanças efetivas se davam mais por condições do meio, de um leito apropriado,
do que por projetos idealizados, impostos de cima para baixo.
Uma reflexão para o atual sistema político e sua estrutura é motivo para muita
desilusão, o que não é novidade. Toda a estrutura: o Estado-república, os três poderes, a
democracia majoritária, a representatividade, os partidos políticos, o sufrágio universal,
as campanhas eleitorais, os políticos, o parlamento, o senado, a Direita e a Esquerda,
enfim toda a “velha” estrutura, que se diz garantir um regime democrático, parece ser
subserviente aos desmandos da elite que age através do Estado coator. A falsa idéia
propagada de que essa estrutura garante a democracia, já encontrava em Tocqueville
posicionamento contrário; e, confrontada com a realidade do neoliberalismo, conforme
o professor David Graeber, temos o maior sistema totalitário da história que é capaz de
subjugar tudo e qualquer coisa que tocar28.
Quanto à tradição partidária do modelo representativo, seja ela pluripartidarista
ou bipartidarista, observa-se uma verdadeira luta pelo poder e pela sua perpetuação.
Primeiro – de uma forma muito simplista e sem pretensão de abarcar toda a realidade –
para atingir esse poder há uma lógica perversa. Se pegarmos como exemplo o Brasil,
onde o dinheiro para as campanhas pode vir de instituições privadas e há uma evidente
comercialização das campanhas; percebemos para, além disso, e em qualquer outro
lugar, que as alianças são fundamentais para a conquista do poder e para a
governabilidade. Essas alianças se dão não apenas com outros partidos, mas com a elite,
com empresas, bancos etc. Nessas alianças uma pureza ideológica fica comprometida
por si só. Mas, uma vez que um dos determinantes para se atingir o poder está nas
propagandas de campanha, e quem possuir mais dinheiro faz mais propaganda (que é a
alma do negócio). O dinheiro vindo de entidades privadas não há garantias de que não
haverá uma contrapartida, uma espécie de contrato que amarra e direciona (excluindo-se
28 GRAEBER, David. O Carnaval está em Marcha. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves IN Mais! Suplemento da Folha de São Paulo. P. 4-6. Em 14 de agosto de 2005
15
aí os favorecimentos pessoais de uma corrupção patológica que assola nosso país,
limitando aos interesses da governabilidade). Dessa forma os princípios que um
possível político altruísta poderia ter como motivo para tentar se eleger seriam
abandonados.
Por outro lado, esse dinheiro de campanha poderia ser público, o mínimo
necessário, mas mesmo assim as alianças deverão existir para a governabilidade. E se
determinado partido contrário aos interesses dos dominantes resolve, na figura de seu
candidato, desafiar o capitalismo e os mandos do mercado internacional, ele terá de
faze-lo presidindo um Estado policial autoritário e conforme a realidade vem
mostrando, esse não é o melhor caminho.
Além do mais, a realidade nos mostra também que tanto a Direita quanto a
Esquerda no poder são a mesma coisa com “roupas” diferentes, são o “poder”. Cada vez
mais se percebe que tomar o poder do Estado não é uma maneira de vencer os males do
capitalismo ou de mudar o mundo. Ambas as versões, seja o poder representado pelo
mercado, seja pelo estatismo de uma classe, atendem seus interesses arrogando o
monopólio do planejamento das ações de interesse público e desconsiderando seus
principais titulares, os cidadãos. “O estatismo tenta impor ao mercado e à sociedade
civil a lógica do Estado. O neoliberalismo tenta impor ao Estado e a sociedade civil a
lógica do mercado”29.
A figura do político profissional, também está desgastada. De um lado, esse é
muitas das vezes um demagogo por vocação, do outro é a pessoa dita “competente” que,
enquanto os cidadãos gozam seus prazeres fúteis privados, ele “confisca” o poder,
através de toda a estrutura legitimadora. E atende aos interesses de seu partido, que por
sua vez atende os de suas alianças, de seus financiadores, seus próprios etc. que se em
última instância atendessem aos interesses da sociedade, não dariam conta da
pluralidade em que ela se apresenta na atualidade.
Por esses e outros motivos que demonstram a insuficiência do modelo
tradicional da democracia representativa, que vem surgindo, cada vez com mais força,
propostas de se reinventar a democracia num contexto de justiça global. Por uma
democracia mais verdadeira em que o cidadão exerça a cidadania muito além do voto –
o que de certa forma está sendo buscado. Por uma democracia que considera a
pluralidade da sociedade atual, aceitando-se como uma construção cotidiana – não como
29 VIEIRA, Liszt. Op. cit. p. 80
16
um projeto ideal acabado que vai dar conta do mundo – mas algo que aceite e conviva
nas diferenças dos humanos e nas mudanças do mundo.
O que estamos presenciando é definitivamente uma
desilusão sobre as possibilidades de mudar o mundo tomando o controle do Estado. Mas parece-me que esse é realmente um sinal positivo, e que de fato estamos vivendo um momento muito esperançoso. Porque a antiga estratégia de mudar o mundo apoderando-se do Estado – que em última análise não passa de um mecanismo de violência – sempre foi criticamente defeituosa. Existem motivos pelos quais um dia ela pode ter parecido realista. Mas nunca poderia funcionar realmente. O fato de os revolucionários e os reformadores sociais a estarem abandonando amplamente abrirá, em ultima instância, um mundo de possibilidades. Ele nos permite, por um lado, repensar completamente o que entendemos pelo termo “democracia”. 30
2.3.Um novo enredo
Conforme ressalta Liszt Vieira “o ponto de partida da prática democrática passa
a ser a própria sociedade, vista como origem do poder”31. O poder deve emanar do
povo. Uma proposta de se modernizar a sociedade civil para combater as tradicionais
estruturas de dominação e exclusão que se apresentam incrustadas na sociedade dentro e
fora do aparelho Estatal.
Essa perspectiva não se distancia do que já é previsto na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Além de prever explicitamente o exercício
direto do poder pelo povo (parágrafo único do artigo primeiro), foram criados uma série
de instrumentos de co-gestão e co-participação cidadã no processo decisório de políticas
públicas como educação, saúde, seguridade social entre outras, que coadunam com a
idéia de uma democracia descentralizada, participativa e deliberativa.
Materializar essa perspectiva induz remeter a análise ao movimento cidadão que
retoma as reivindicações dos movimentos sociais como o feminismo, o pacifismo, o
ambientalismo, fundindo-os com as propostas do movimento operário de redistribuição
30 GRAEBER, David. Op. cit. 31 VIEIRA, Liszt. Op. cit. p.78
17
de renda, redução da carga horária de trabalho, direitos sociais. Todos unificados pela
cidadania. Esse movimento não objetiva o afrontamento com o Estado e nem a tomada
de poder do mesmo, reconhecendo o seu poder e o do mercado dentro de uma
legitimidade democrática. Constitui na construção da sociedade civil face ao Estado e
ao Mercado, seu eixo central32.
Para a materialidade de sua proposta, essa democracia cidadã deve ser mais do
que um status legal, mas o elemento central de uma cultura política compartilhada. O
Estado deverá ampliar sua eficácia não apenas de aperfeiçoamentos técnicos e
burocráticos de sua governabilidade, mas principalmente democratizando todas as suas
instituições e abrindo canais permanentes de comunicação e participação da sociedade
civil nas decisões com uma verdadeira descentralização do poder através de espaços-
públicos não estatais como condição para a democracia contemporânea33.
A realização desse modelo, que já se encontra como uma tendência na realidade
social, requer transparência absoluta das atividades do Estado e o seu controle irrestrito
pela sociedade. Para tanto são necessários instrumentos que combinem as instituições
atuais com mecanismos de participação efetiva e deliberativa como: consultas,
referendo, plebiscito e formas de participação paritárias que comportem elementos do
poder público e da sociedade civil, como as instituições conselhistas. 34
O filósofo Jürgen Habermas, herdeiro e expoente da segunda geração da Escola de
Frankfurt, projeta-se em um ideal de democratização da sociedade sob uma ótica
emancipatória e universalizável. Fundamentado por sua teoria do discurso, Habermas
sustenta a idéia da necessidade de espaços públicos independentes onde os cidadãos
ativos, através do discurso argumentativo, produziriam consensualmente as leis que
vigorariam na sociedade.35
A concepção de mundo da vida para Habermas, local de onde emerge a moral, se
traduz por três componentes estruturais, sendo: a cultura como estoque de saber da
comunidade; a sociedade (integração social) como o conjunto de ordenamentos
legítimos pelos quais são reguladas as solidariedades dos membros da comunidade; e, a
personalidade representando as identidades pessoais que qualificam o viver em
sociedade; Habermas propõe que essas relações sociais ocorrem por um processo
mediatizado lingüisticamente, onde os indivíduos interagem organizando suas ligações
32 Idem. Ibidem 33 Idem. Ibidem 34 Idem. Ibidem. 35 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, v.I
18
recíprocas e coordenando seus projetos de ação. Para esse fenômeno Habermas
designou o termo “agir comunicativo”.36
Para Habermas existe um nexo interno entre a democracia e o Estado de direito.
Ao considerar a complexidade da sociedade contemporânea – essencialmente pluralista
– Habermas percebe que a legitimação do direito, de uma maneira ideal, só se concebe
através do processo democrático, pois apenas esse garante a autonomia privada e
pública dos sujeitos do direito. Ou seja, o processo democrático, permite que os direitos
sejam formulados de maneira adequada, uma vez que os afetados pela imposição
política desses direitos, foram esclarecidos em discussões públicas sobre a sua
relevância e esses direitos são conseqüência de um consenso mediatizado por discussões
regradas.37
Na proposta habermasiana os participantes do discurso, em um espaço público
autônomo, são conduzidos, na discussão argumentativa, por regras pertinentes a um
discurso prático, devendo ser orientados por princípios. No caso, é imposto um
princípio de universalização que pressupõe que interesses que não são universalizáveis
não podem ser pautados como fundamentação de normas legítimas. Supõe que as
normas são racionalmente validáveis e suscetíveis de serem falsas ou verdadeiras, sendo
frutos de um consenso fundado num discurso conduzido por uma regra de
argumentação prescrita no que Habermas denomina princípio “U”:
“Toda norma válida deve satisfazer a seguinte condição:
as conseqüências e os efeitos secundários que presumivelmente afetarão a satisfação dos interesses de cada um em particular, caso a norma venha a ser obedecida em geral, devem poder ser aceitas, sem constrangimento, por todas as pessoas afetadas”38
Por sua vez, o princípio de universalização justifica o da ética do discurso, ou
princípio “D”, sendo este pressuposto pela escolha de normas fundamentadas, cuja
pressuposição é o princípio “U”, compreendido como “princípio ponte”39. O enunciado
do princípio “D” é: “são válidas as normas de ação com as quais poderiam concordar,
enquanto participantes de discursos racionais, todas as pessoas possivelmente
36 Id. Ibid 37 Id. Ibid 38 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, vol II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.pág.322 39 CASTRO FARIAS, José Fernando de. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumens Júris, 2004. pág.76
19
afetadas.”40 As condições de validade das normas, são interpretadas por uma
comunidade, cujos membros se entendem entre si no interior de um mundo da vida
compartilhado intersubjetivamente41.
A teoria do discurso de Habermas traz elementos importantes para uma
radicalização da democracia. Tendo o espaço público, como uma arena de discursos,
independente do poder político do Estado, ele parte do pressuposto de que cidadãos
conscientes e civicamente ativos agem pelo entendimento solidário e não pelo interesse
pessoal. Essa reconstrução emancipatória racionalizada do espaço público, que
contempla elementos pluralistas, discursivos, solidários e sobretudo participativos, é
uma proposta condizente com as demandas coletivas das novas democracias, dentro do
aspecto procedimental e ético que ela representa.
No entanto, ela se sustenta por pilares frágeis. Primeiro pela necessidade de uma
“comunicação perfeita” que leva ao entendimento. Ela inclui o dissenso, mas a
discussão regrada extrai os argumentos mais pertinentes que prevalecerão e daí deve
ocorrer a aceitação, pelos participantes, desses preceitos. Segundo, ela pressupõe que os
participantes ajam por interesses universalizáveis e não estritamente individuais, ou
seja, que haja uma convergência de interesses individuais com o bem comum. Terceiro,
que as normas decorrentes sejam obedecidas mais por “respeito à lei”, do que por
coação uma vez que são advenientes de um consenso. Habermas embora seja contrário a
“idealizações excessivas”, parece sustentar sua teoria em “ideais fortes”, que requerem
mais do que uma tradição cultural, costumes estabelecidos, educação fortemente cívica
e meios propícios... Portanto deve ser tomada apenas como um ideal procedimental que
assegura mecanismos de participação de todos, sob igualdade de acesso e condições e
na multiplicidade de conteúdos.
Em direções similares, além da proposta de Habermas que já foi
estudada, se dão os apontamentos de Boaventura de Souza Santos. Primeiro quanto a
um novo contrato social, que deve englobar não apenas o homem e os grupos sociais,
mas também a natureza. Essa inclusão se daria por critérios de igualdade e de diferença
e incluiria o espaço-tempo local, regional e global – um pouco da máxima ambientalista
de pensar globalmente e agir localmente – também não haveria uma sede própria para a
sociedade civil e o estado, o público e o privado; e nem uma materialidade institucional
40 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, vol II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.pág.323. 41 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, v.I
20
específica como cultura, política e economia, fundando-se na deliberação democrática
enquanto exigência cosmopolita42.
Na esfera do trabalho, este deveria ser democraticamente compartilhado,
sabendo partilhar da atividade criadora do mundo com o trabalho da natureza. O
trabalho deveria ser redistribuído em nível global através de redução de carga horária e
de uma cidadania global desnacionalizada. Outros pontos que fortaleceriam o trabalho
seriam a separação do trabalho produtivo e economia real de um lado e capitalismo
financeiro (economia de cassino) de outro; a adoção de impostos globais que
desacelerem o espaço-tempo das relações de cambio; perdão da dívida externa dos
países pobres e reinvenção do movimento sindical que se tornou demasiadamente
institucionalizado e deixou de ser movimento.43
Boaventura concebe no seu modelo o Estado como um “novíssimo movimento
social” que se representaria como uma luta pela democratização das tarefas de
coordenação estatal. A perda Estatal do monopólio regulatório da economia seria
compensada pelo fortalecimento da cidadania ativa, sendo que, nesse estado vigoraria
uma democracia redistributiva que se daria por uma complementação da democracia
representativa por uma participativa, de maneira similar à proposta anterior. Para esse
Estado, fundado na solidariedade, deveria haver uma cooperação entre Estados na busca
da redução das desigualdades, onde o espaço-tempo nacional se estenderia ao global.44
Os caminhos sucintamente apontados enredam o direcionamento para uma
democracia contemporânea, conforme dito, mais condizentes com a sociedade atual e
com a acepção da palavra. Contudo, não há como negar que as teorias apontadas aqui se
sustentam por idealizações excessivas e que há uma sobrecarga na capacidade funcional
da sociedade civil, dos movimentos sociais e do associativismo em geral em promover
maior legitimidade democrática e correções institucionais.
Estudos como o de Kerstenetzky, acusam o associativismo de certo conformismo,
gerador de apatia política e às vezes de políticas de facções. Ao longo da existência de
uma associação, há um esvaziamento do discurso político na proporção que se aumenta
a coesão associativa, onde se passa a buscar a provisão de um bem coletivo específico e
produzir ativamente apatia política45. Boschi, por sua vez, diz que, embora os
42 SOUZA SANTOS, Boaventura de. Op. cit. 43 Idem. Ibidem. 44 Idem. Ibidem. 45 KERSTENETZKY, Célia L. Sobre associativismo, desigualdades e democracia. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 18 n. 53. São Paulo, out. 2003.
21
movimentos associativos possam prover e expressar alguma democracia interna, não se
pode negligenciar o aspecto que os próprios movimentos podem “conter as sementes
imperceptíveis da opressão, em vista de sua dinâmica interna e o fato de que podem
reproduzir elementos do ambiente institucional ao seu redor”46.
Nesse sentido é apontado a ação positiva do Estado, através de políticas
redistributivas (como nas perspectivas rawlsianas), como melhor caminho para ampliar
a legitimidade democrática e reduzir as desigualdades políticas. Já que o estímulo ao
associativismo não se traduz necessariamente em maior participação e menor
desigualdade47.
Esse direcionamento, também amplamente discutido academicamente, aposta na
ação estatal e no próprio Estado e suas instituições como veiculo capaz de corrigir as
assimetrias sociais e ampliar a democracia na sociedade, reduzindo a pressão na
participação social, pois aos indivíduos cumpre um papel mais limitado e secundário.
Acredito ser a ação do Estado complementar e necessária, principalmente na
direção de algumas ações que convergem significativamente com o segundo princípio
da justiça de John Rawls. O princípio da diferença, onde: as desigualdades sociais e
econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: a)
consideradas vantajosas para todos dentro dos limites do razoável; e b) vinculadas a
posições e cargos acessíveis a todos 48. Nesse sentido, alguns exemplos de ações
positivas governamentais como “o sistema de quotas” e a “bolsa família”, apesar das
fragilidades e distorções, são importantes e podem trazer resultados positivos.
Entretanto, focando os conflitos de interesses que perfazem na realidade social, a
máquina estatal e suas ações vem se mostrando insuficientes e extremamente limitadas
ainda que nas políticas redistributivas. Principalmente se se considera a nossa história
em promover soluções equilibradas (democráticas) para esses conflitos. Ao contrário, a
realidade nos mostra que o Estado trabalha muito mais em prol de grupos
economicamente mais favorecidos ou de as suas alianças do que daqueles que realmente
precisam dele. Nesse viés a fiscalização da sociedade civil e a ampla participação
democrática são inarredáveis como complementares a atuação do Estado na busca de
caminhos para as mudanças sociais.
46 BOSCHI, Renato Raul. A Arte da Associação, Política de Base e Democracia no Brasil. Rio de Janeiro : Vértice, 1987. p. 31 47 KERSTENETZKY, Célia L. Op. cit. 48 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pesetta e Lenita M.R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
22
3 – Os personagens
Conforme previsto por Tocqueville, o mundo moderno dentro de suas
perspectivas igualitárias seria necessariamente individualista e tenderia a alienação
política. A análise de Durkheim converge em alguns pontos, mas sustentada por outras
veias da realidade. Segundo ele, se distinguem duas formas de solidariedade social: 1ª -
a mecânica, encontrada nas sociedades anteriores ao capitalismo. Nessa solidariedade,
em que os indivíduos se identificam através da família, da religião, da tradição, dos
costumes, há uma maior coesão social pela pequena diferenciação entre os indivíduos
que reconhecem os mesmos valores e tradições. E, 2ª - a solidariedade orgânica,
presente nas sociedades capitalistas, onde, através da divisão do trabalho social, os
indivíduos tornam-se mais individualizados. A integração social e a solidariedade não
se garantem mais pela tradição. A organicidade está nas distintas funções necessárias
que os indivíduos exercem na sociedade, analogamente aos órgãos de um ser vivo.
Assim a divisão do trabalho compreende mais do que o aumento da produtividade, mas
uma solidariedade gerada entre os homens. Na solidariedade mecânica o direito que
vigoraria seria mais próximo ao penal, já nas orgânicas seria mais próximo ao civil.49
Quando a solidariedade social era mecânica a consciência coletiva atingia a maior
parte dos membros desta sociedade. Nas sociedades dominadas pela solidariedade
orgânica há uma redução desta consciência coletiva pela diferenciação dos indivíduos.
Desta forma, à medida que a solidariedade social mecânica se transformava em
solidariedade orgânica, a consciência coletiva dos indivíduos diminuiria e aumentaria a
consciência individual.50
Não pretendendo confrontar os autores, o que demandaria muito mais
profundidade, apenas adentrar num pormenor quanto algumas formas de se conceber o
mundo. Enquanto Durkheim compreendia a sociedade como um todo, não relevando
muito alguns elementos como os indivíduos, considerando-a como um epifenômeno
pautado numa cultura científica tradicional que o levava a propor modelos mais
“fechados” com leis gerais. Tocqueville percebia uma maior sinergia entre os elementos
do mundo, encontrava traços de continuidade no caminhar da história, além de não se
colocar em uma posição de “imparcial observador”, convergindo ciência e política. Essa
49 DURKHEIM , Emile. A Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 50 Id. Ibid.
23
posição parece mais condizente com as orientações mais complexas de se conceber o
mundo, o que se mostra mais afim a perspectiva desse estudo.
Excluindo-se esse pormenor, retornamos ao fato de que o individualismo, para
ambos os autores, é uma característica marcante da sociedade capitalista e a apatia
política impera dentre a maior parte dos cidadãos. Conforme ressalta Zygmunt Balman
“a individualização é uma fatalidade e não uma escolha. Na terra da liberdade
individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a
participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada”. 51
Não pretendo aqui esgotar os fatores que corroboram o comportamento em
sociedade dos indivíduos e nem pretendo excluir as idiossincrasias pertinentes a cada
um, suas características próprias que somadas à formação determinam a personalidade.
Apenas agrupar alguns elementos mais facilmente identificáveis na busca de
compreender como poderia se dar um exercício mais amplo de cidadania no atual
contexto.
Partindo para uma reflexão sobre como os indivíduos que se encontram no cenário
em que o mundo se configurou, é possível extrair alguns elementos que colaborem
nessa compreensão. Primeiro não existe grandes fomentos para uma educação familiar
ou institucional cívica, de exercício da cidadania. Isso é algo quase inexistente em
países como o Brasil e talvez, indesejada, predominando as orientações no sentido de
agir pelos próprios interesses e não solidariamente. Por outro lado, as orientações
religiosas costumam conduzir o indivíduo à aceitação de sua condição ou missão,
quando não são absorvidas pelo sistema.
Ademais, deve-se reconhecer que a sociedade de consumo: I - alimenta bem os
prazeres narcisísticos mais entranhados nos desejos humanos, os indivíduos são
seduzidos por cores, imagens e propagandas que despertam profundamente suas
necessidades materiais mais fúteis e os compele a consumir. II - Numa inegável e forte
competição individual, o termo “status” atinge ainda uma conotação mais profunda e
“ter” tem muitas vezes ligação direta com sociabilidade e aceitação em grupos. III - A
relação de compra é uma relação de prazer (para alguns, muitas vezes análoga, ou talvez
homóloga, à utilização de um entorpecente). No final das contas a sociedade de
consumo satisfaz bem às tendências à estabilidade, ao acesso fácil, ao conforto etc.
51 BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p.43
24
A estrutura social garante conforto e satisfação em níveis razoáveis para uma
parcela significativa da população, sobretudo os que têm mais consciência e educação.
O dinamismo do mundo atual, fator importante no que diz respeito à participação
política dos indivíduos, obriga que estes estejam sempre se reciclando para entrar e
permanecer no supercompetitivo mercado de trabalho, isso lhes toma tempo e energia
significativos, refletindo na desconsideração de assuntos que não os seus próprios.
Conforme ressalta Richard Sennett, a perda acentuada da “rotina”, outrora
característica marcante da sociedade moderna, reflete na perda da segurança e proteção
que a mesma garantia ao indivíduo, que era guiado por seus hábitos, que por sua vez
davam sentido à sua vida e configuravam o seu caráter52.
Já os que vivem em condições mais precárias, sem emprego ou qualquer tipo de
trabalho formalizado, são os menos educados e muitas vezes a sua própria condição,
lhes impede de se organizarem e reivindicar melhoras. Possuem como seus maiores
educadores a mídia que, quando não os conduz a uma conformação, os alimenta no
sonho de acesso aos bens e produtos das classes mais altas, induzindo-os a acreditar em
uma mobilidade social que não condiz com a realidade, quando não os fascina a tomar
caminhos tortuosos e violentos para atingir esses bens de consumo. De qualquer
maneira encontram seu “ópio” e sua “felicidade” independentemente da precariedade
material e vivem suas vidas.
Para a analise de Bauman, o contexto do mundo atual conflui para uma falsa
sensação de liberdade, onde as pessoas vivem um tipo de “escravidão” e se sentem
livres dentro dela, não necessitando se libertar. Bauman aponta que a liberdade não
pode se dar contra a sociedade, que não obstante o insuperável individualismo e a
liberdade que ele gera, as condições de controlabilidade das relações sociais devem ser
garantidas contra a anomia.
Ele expõe dentro desse contexto duas formas de liberdade que se sucedem em
dois tipos de indivíduos: os de jure que são aqueles cuja liberdade se dá de forma
negativa, legalmente imposta e corresponde a uma alienação da situação real pelo
invólucro da vida privada; e, os de facto onde prevalece a autonomia, a
autodeterminação e uma liberdade genuína, o indivíduo é um cidadão ativo e
participante das questões públicas que lhes são pertinentes.
52 SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1999.
25
A constante invasão da esfera publica pelos problemas privados, esse
esvaziamento do espaço público das questões verdadeiramente públicas para “a
confissão dos segredos e intimidades privadas”53, representa um grande e crescente
óbice à transição do indivíduo de jure para o de facto, pois ela despe o indivíduo de sua
cidadania e o expropria de seus “interesses e capacidades de cidadãos” 54. Nesse
sentido, a transição só é possível caso o indivíduo de jure se torne um cidadão, onde a
autonomia individual representa a autonomia da sociedade através de uma constituição
deliberada compartilhadamente pela sociedade e pelo indivíduo55. Dessa forma se
repovoaria o espaço público como um lugar de encontro, debate e negociação entre o
indivíduo e o bem comum; e, só assim dando sentido a qualquer busca emancipatória
para o ser humano.
3.1 -A atuação
O modelo liberal pode ser considerado o precursor da idéia de uma cidadania
universal, estabelecendo garantias contra o poder Estatal e implementando a concepção
de que todos nascem livres e iguais. Esse modelo traz a idéia de liberdade individual,
compreendida como um acervo de garantias legais. Por outro lado, ele não concebe a
necessidade de idéias como consciência pública e cívica que levam a participação ativa
na vida política56.
A inserção do indivíduo numa comunidade política e a valorização de sua
participação, encontrava no modelo republicano maior atenção, constatando que para
verdadeiramente garantir a liberdade, era necessário que se participasse da vida política
e se dedicasse ao bem comum57. A tradição histórica republicana excluía grande parcela
da população dessa participação, sempre limitada aos homens “bons” da sociedade e foi
caminhando para a profissionalização dos políticos. A estrutura em si, conforme afirma
David Graeber, era o modelo da república romana, combinava elementos da monarquia
– um presidente – elementos da aristocracia – o senado – e alguns elementos
53BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p.49 54 Idem. Inidem. p.50 55 Id. Ibid. 56 VIEIRA, Liszt. Op. cit.2001 57 Id. Ibid.
26
democráticos limitados. Mantinha uma estrutura centralizadora e mantenedora do
poder58. As conquistas maiores estão associadas ao modelo representativo,
principalmente quanto ao sufrágio universal, sem prejuízo de instancias outras de
participação.
O voto representa propagadamente o auge da cidadania. A escolha pelos cidadãos
dos seus representantes de forma universalizada, ainda é tido como o fundamento
máximo da democracia. Por outro lado, conforme visto, essa democracia não se mostra
suficientemente democrática, assumindo mais ares de uma oligarquia aristocrática
travestida de democracia, supostamente poliárquica (poliarquia de Dall). O cidadão vota
e como se tirasse um peso dos ombros, deposita sua confiança em seu candidato que
exercerá para ele todos os seus demais deveres cívicos, enquanto vive sua vida privada.
Tomando como exemplo a nação brasileira, como aponta José Murilo de
Carvalho, primeiramente a ascensão do exercício da cidadania na história, ao contrário
de países como a Inglaterra, Alemanha e EUA, se deu por uma ordem inversa na
evolução dos direitos. Primeiro, através do presidente Getúlio Vargas, se deram os
direitos sociais, num contexto de um ditador populista e de forma paternalista; depois
vieram os direitos políticos, num momento de ditadura militar onde os órgãos de
representação política eram meramente decorativos; e, por último vieram os direitos
civis, ainda inacessíveis a grande parte da população59.
Essa inversão na pirâmide ocasionou uma excessiva valorização do Poder
Executivo, onde tradicionalmente a população busca um messias para salvar a nação
dos problemas que a assolam e trazer a felicidade para todos. O que corrobora na
política clientelista, paternalista e corporativista que predomina no país e desemboca nas
crises políticas que cada vez mais calejam a sociedade e lhes planta a incerteza ou o
cinismo quanto ao atual sistema político60.
Por outro lado, a passividade ainda impera para a grande maioria. A sociedade não
se organiza autonomamente e os interesses corporativos sempre prevalecem. Onde o
modelo representativo atende muito mais a interesses de grupos específicos do que ao
verdadeiro interesse da nação, sobretudo quando se considera a situação global, onde
58 GRAEBER, David. Op. cit. 59 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2001 60 Id. Ibid.
27
essa representatividade, não apenas no Brasil, mas em grande parte do mundo, atende
aos obscuros interesses do mercado hegemônico.61
Hoje, pode-se destacar a emergência de uma nova perspectiva de cidadania,
diferente do modelo liberal e do republicano, de caráter culturalista, que busca deixar de
ser um processo funcional e passageiro, para se tornar um processo contínuo de
participação e um processo ininterrupto de legitimação e legalidade. Representado pelas
associações que surgem do seio da sociedade, através dessa perspectiva democrática,
demandas públicas coletivas ou difusas podem ser levadas ao debate dentro de espaços
públicos de forma política, ampliando o aspecto da própria política e exercendo um
importante papel na construção desses espaços62.
Objeta-se contra a perspectiva culturalista apontamentos de uma corrente
imobilização das associações civis que se institucionalizam sendo “dominadas” pelo
poder estatal e muitas vezes (conforme visto) a apatia política gerada quando interesses
privados se sobrepõem ou interesses muito específicos se tornam formas de exclusão63.
Entretanto, essas objeções devem ser tomadas como alerta no sentido de se implementar
meios que diminuam ou impeçam essas distorções de forma a garantir que a perspectiva
culturalista continue despontando como melhoras efetivas na estrutura política no
caminho de uma democracia mais verdadeira.
4 - O desfecho
Apesar de uma constatável insuficiência da estrutura democrática tradicional, que
exclui do jogo das decisões os interesses da maior parte dos indivíduos. De uma falsa
democracia a serviço de grupos economicamente favorecidos (elites globais ou locais
dependendo da perspectiva). De um totalitarismo quase imperceptível travestido nos
formalismos e na estrutura legitimadora do Estado. A luta contra os males do “novo
capitalismo” vem encontrando enormes dificuldades e vem se mostrando como algo
muito distante e utópico dentro de um horizonte possível.
Primeiro a estrutura ideológica e de poder global é quase onipotente, podendo
sofrer no máximo pequenas fissuras. Segundo, a sociedade de consumo domestica
muito bem o ser humano, acorrentando-o dentro de sua própria vida individual e o
61 Id. Ibid. 62 VIEIRA, Liszt. Op. cit. 2001 63 Id. Ibid.
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alimentando com entretenimentos e prazeres que lhes amansa os anseios. Não que não
haja anseios de melhoras ou necessidades reais, ou que todos estejam satisfeitos e não
haja indignação, mas, as condições do mundo atual, de uma grande e voluntária
alienação, não apontam caminhos imediatos de mudanças. Isso acarreta a apatia e a
incerteza generalizada daqueles que se vêm descrentes do sistema, mas o aceitam por
acreditar que as coisas são como são e não vão mudar.
No caso dos que se rebelam, individualmente ou se organizam em movimentos
sociais, ONGs entre outros, vimos – quando não agem em benefício próprio, ou se
tornam partidos políticos ou similares, almejando o poder para se tornarem a “mesma
coisa de outro jeito” – apontar um caminho condizente com o mundo multiculturalista e
com as aspirações mais profundas de democracia. Conforme Tocqueville deve haver um
leito adequado, um “costume”, uma educação profunda que oriente na participação
política efetiva. Mas trata-se de uma educação que se aprende fazendo, que se cria e se
recria além das formas tradicionais, na prática, no dia-a-dia. Deve ser considerada a
condição humana em seus múltiplos aspectos, em sua complexidade conforme Edgar
Morin, para que modelos ideiais sejam tomados como referências a serem seguidas e
não projetos acabados a serem impostos. Observar a história para além da história tida
como importante, que na verdade é excludente, e perceber que as relações de poder,
hierarquização, violência, exploração etc. que acompanham a espécie humana nas
diferentes culturas e meios, são muito mais distintas nos nomes que foram dados para
dadas épocas, do que o são realmente (ainda que existam diferenças).
Alguns potentes argumentos, como os de Joseph Heath e Andrew Potter, em sua
obra conjunta The Rebel Sell, afirmam ser impossível contestar o atual sistema
capitalista, porque qualquer meio que se empregue para contestá-lo – na crença de que
este requer o conformismo de seus consumidores – será absorvido por ele e vendido de
volta para o subversivo. Na realidade se estaria alimentando o sistema partindo da
competição entre os próprios rebeldes, corroborando na lógica funcional do mesmo. Ou
seja, uma subcultura subversiva, as rebeliões do tipo Fórum Social Mundial, um sistema
alternativo de troca, um movimento social revolucionário, tudo isso faz parte da própria
lógica interna do capitalismo e, da mesma forma em que os Hippies, que eram nas
décadas de 60 e 70 o auge da contra-cultura e da contestação do sistema, foram
cooptados pelo sistema e tiveram seus “ideais” revendidos com etiquetas de grife, as
demais formas de contestação tendem a seguir o mesmo destino. Desta forma seria mais
significativo operar dentro do sistema político tradicional do que bater de frente contra
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ele, abrindo mais canais de participação, gastando energia desnecessária com exigências
radicais, e impossibilitando pequenas mudanças (ou alguma) pela via das políticas
tradicionais64.
Conforme ressalta David Graeber, “... o argumento é perfeitamente circular. Ele
define princípios a partir de sua conclusão...”, mas confrontados com uma perspectiva
histórica maior, perdem completamente o sentido, pelo fato de tenderem a uma
imutabilidade que não existe. Graeber aponta as festas carnavalescas na era medieval,
que zombavam dos senhores, mas que eram amplamente aceitas como forma de se
liberar energia dos camponeses e que na realidade foram os maiores palcos das revoltas
camponesas e contribuíram sobremaneira para produzir o mundo de hoje. O que
Graeber aponta é que não importa o quão forte o capitalismo possa parecer, ele não
pode deter o tempo e mudanças estão vindo e sempre virão, não importam quais sejam
elas.65
A perspectiva de Graeber é de que a percepção dos revolucionários e
reformadores sociais em não mais lutar pelo poder, e buscar radicalizar o processo
democrático, despertam otimismo quanto a mudanças. Para ele, essas estruturas
culturalistas – de auto-organização, de associação voluntária, de autonomia, de
autogestão, de horizontalidade, os associativismos de uma forma geral e suas propostas
subversivas – estão incrustadas nas fissuras do atual sistema e representam para ele a
mais profunda democracia, a democracia sem poder, ou anarquia (conforme o autor, os
rótulos não importam)66.
Para o desfecho desta discussão, cabe explicitar que uma questão central a
permeou em cada um de seus parágrafos: o que é democracia? Navega-se sobre uma
realidade que se impõe, das muitas nações num contexto global que são consideradas
democracias (ao menos um número significativo delas), mas que essencialmente e
historicamente atendem aos interesses de uma parcela restrita de indivíduos, relegando
ao segundo plano um todo global, cultural e etnicamente diverso (caso contrário,
acredito, não haveriam tantas e tão extremas desigualdades).
Por outro lado deposita-se uma credulidade especial na abertura de canais de
participação que permitem a atuação direta da sociedade civil, auxiliando o Estado para
64 BUARQUE, Daniel. O Avesso do Avesso. IN Mais! Suplemento da Folha de São Paulo. P. 4-6. Em 14 de agosto de 2005 65 GRAEBER, David. Op. cit. 66 Id. Ibid.
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ampliar a legitimidade democrática e reduzir as desigualdades políticas (por vezes
flutuando sobre idealismos e utopias). Uma perspectiva que também não apresenta
garantia nenhuma de que venha a funcionar dentro do que se propõe.
BIBLIOGRAFIA
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