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3 Capitalismo, poder e a saúde contemporânea 3.1 Liberdade, igualdade e direito social Como exposto anteriormente, o Iluminismo do século XVIII propaga um ideal de autonomia do indivíduo contra a autoridade externa. No campo do conhecimento, essa concepção de liberdade resulta no individualismo, na reflexividade do “eu”, ou subjetivismo, e no racionalismo. Conforme esclarece Marcondes (2007), nas esferas da política e da economia, essa valorização da individualidade corresponde ao chamado liberalismo e a noção de livre inciativa. Esse movimento de liberação política e econômica contestava o absolutismo monárquico, a ordem do clero, e a hierarquizada sociedade medieval. Dessa proposta revolucionária emerge o Estado-Nação, entidade sociopolítica característica da modernidade. Sobre essa forma social, Giddens (2002) destaca que os Estados são como exemplos em maior proporção do monitoramento reflexivo das organizações modernas. Com características peculiares que o distingue da forma de poder tradicional, o Estado-Nação participa de um sistema mais amplo que envolve outros Estados, detém o monopólio do controle sobre os meios de violência, e atua particularmente na vigilância de fronteiras e nas questões de territorialidade. Difere, portanto, de uma superestrutura burocrática pré-moderna, no sentido de que realmente tem ação, mesmo que não literal, mas através de planos e medidas coordenadas de alcance geopolítico. De todo modo, o Estado-Nação estabelece uma nova forma de poder em substituição às autoridades combalidas nas revoluções iluministas. A constituição do poder e sua importância para a organização social foi objeto de reflexão de importantes pensadores, como Hobbes, Locke e Rousseau, que inspiraram o imaginário da modernidade. Como analisa Marcondes (2007), Hobbes nutria uma visão “pessimista” da natureza humana. Para ele, o que diferencia o homem de um animal é essencialmente o discurso, alicerce da razão. Mas, se verdade e falsidade são os dois atributos do discurso, a racionalidade é dada ao homem de maneira impura, misturada com o que há de animalesco em

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3 Capitalismo, poder e a saúde contemporânea

3.1 Liberdade, igualdade e direito social

Como exposto anteriormente, o Iluminismo do século XVIII propaga um

ideal de autonomia do indivíduo contra a autoridade externa. No campo do

conhecimento, essa concepção de liberdade resulta no individualismo, na

reflexividade do “eu”, ou subjetivismo, e no racionalismo. Conforme esclarece

Marcondes (2007), nas esferas da política e da economia, essa valorização da

individualidade corresponde ao chamado liberalismo e a noção de livre inciativa.

Esse movimento de liberação política e econômica contestava o absolutismo

monárquico, a ordem do clero, e a hierarquizada sociedade medieval. Dessa

proposta revolucionária emerge o Estado-Nação, entidade sociopolítica

característica da modernidade.

Sobre essa forma social, Giddens (2002) destaca que os Estados são como

exemplos em maior proporção do monitoramento reflexivo das organizações

modernas. Com características peculiares que o distingue da forma de poder

tradicional, o Estado-Nação participa de um sistema mais amplo que envolve

outros Estados, detém o monopólio do controle sobre os meios de violência, e

atua particularmente na vigilância de fronteiras e nas questões de territorialidade.

Difere, portanto, de uma superestrutura burocrática pré-moderna, no sentido de

que realmente tem ação, mesmo que não literal, mas através de planos e medidas

coordenadas de alcance geopolítico. De todo modo, o Estado-Nação estabelece

uma nova forma de poder em substituição às autoridades combalidas nas

revoluções iluministas.

A constituição do poder e sua importância para a organização social foi

objeto de reflexão de importantes pensadores, como Hobbes, Locke e Rousseau,

que inspiraram o imaginário da modernidade. Como analisa Marcondes (2007),

Hobbes nutria uma visão “pessimista” da natureza humana. Para ele, o que

diferencia o homem de um animal é essencialmente o discurso, alicerce da razão.

Mas, se verdade e falsidade são os dois atributos do discurso, a racionalidade é

dada ao homem de maneira impura, misturada com o que há de animalesco em

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todos nós. Por isso, a racionalidade só encontra condições para florescer de forma

legítima com a construção de uma nação artificial. Em outras palavras, para

Hobbes, a razão somente é plena através da constituição do poder. O preço pago

pelo ser humano por sua racionalidade - seu desejo por segurança, bem-estar e

desenvolvimento - é a sua subordinação. A vida do ser racional não é aquela do

indivíduo livre, mas sim a vida de um humano que se tornou absolutamente

dependente do Estado (Dumont, 1992).

Por outro lado, Locke tinha uma visão mais “otimista”. Para o pensador, a

sociedade resulta de uma reunião de indivíduos que buscam garantir,

coletivamente, o que pertence a cada um - sua segurança, liberdade e propriedade.

O poder, portanto, é legitimado pelo consentimento dos indivíduos em

comunidade, e pode ser destituído pelos mesmos indivíduos, caso ameace os

interesses da maioria ou a liberdade e os direitos individuais. Segundo a “teoria do

contrato social” de Rousseau, a soberania política se baseia na “vontade geral” dos

membros da comunidade. Enquanto cidadão, o individuo deve possuir também

uma vontade em favor da defesa do interesse coletivo. Nesse sentido, a educação

tem papel fundamental na formação dessa vontade geral, que faz do ser humano

um cidadão, transforma o individuo em membro de uma comunidade (Marcondes,

2007).

Assim, a questão nevrálgica do liberalismo, presente nas discussões e

reflexões dos filósofos iluministas, consiste também na dificuldade em conseguir

conciliar as liberdades individuais com a realidade da vida comunitária.

Novamente, a tensão entre autonomia e o imperativo do convívio social. Outro

ponto chave da política liberal deriva dos outros dois inicialmente destacados,

pois se todo indivíduo é livre e carrega o seu o valor em si mesmo, logo, a

condição de igualdade, terceiro pressuposto do ideário iluminista, se torna

essencial. O desafio da sociedade moderna se encontra assim na difícil proposta,

intrínseca ao projeto liberalista, de achar o equilíbrio igualitário entre os direitos

individuais e os deveres sociais.

Segundo Baudrillard (2007), do “mito da Igualdade” que a modernidade

produz deriva o “mito da felicidade” tão presente na sociedade do consumo. A

transferência do valor igualitário para a felicidade, antes relacionada à festa,

fruição e prazer interior, modifica também a expectativa dos indivíduos modernos

sobre esse sentimento. Afinal, se a felicidade deve ser igual para todos precisa ser

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antes de tudo mensurável. Assim, institui-se a categoria do “bem-estar” que

permite medir o conforto, o prazer, a saúde e o que mais fizer o ser humano

“feliz”. Baudrillard aponta, portanto, como a felicidade se torna uma referência

absoluta para o consumo, no sentido que os bens, como propriedade material,

comparável, e disponível a todos, dão a medida do quanto somos e,

principalmente, quanto pretendemos ser felizes. Como esclarece no trecho a

seguir:

A felicidade como fruição total e interior, felicidade independente de

signos que poderiam manifestá-la aos olhos dos outros e de nós

mesmos, sem necessidade de provas, encontra-se desde já excluída do

ideal, de consumo, em que a felicidade surge primeiramente como

exigência de igualdade (ou, claro está, de distinção) e deve, em de tal

demanda, significar-se sempre a “propósito” de critérios visíveis.

Sendo assim, a Felicidade distancia-se ainda mais de toda a “festa” ou

exaltação coletiva, já que, alimentada por uma exigência igualitária, se

funda nos princípios individualistas, fortificados pela Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, que reconhecem explicitamente a

cada um (ao indivíduo) o direito à Felicidade (Baudrillard, 2007, p.47-

48).

A Revolução Burguesa e seu ideal de igualdade deixa um legado que está

muito presente na atualidade, embora muitas vezes não percebamos a importância

de sua herança na vida cotidiana. A “Revolução do Bem-Estar”, nos termos de

Baudrillard (2007), é fruto de um projeto revolucionário que pretende garantir a

igualdade entre todos os indivíduos, porém, sem poder ou sem conseguir sustentar

a sua promessa. A concepção de democracia como o exercício efetivo de direitos

sociais, que conferem oportunidades, capacidades e responsabilidades iguais, é

transposta para uma ideia de felicidade baseada em signos que evidenciam o bom

desempenho social.

Para Baudrillard, as muitas “necessidades” da sociedade moderna são

oriundas dessa noção de bem-estar mensurável. Na economia liberal, a igualdade

entre todos fica então baseada na igualdade de todos diante do “valor de uso” de

bens de consumo. Produtos e serviços estão à disposição de todos, podem ser

necessários e desejados por qualquer pessoa. Porém, são acessíveis apenas por um

custo, isto é, um “valor de troca”, que invariavelmente produz desigualdades. Em

outras palavras, todos têm a oportunidade de usufruir o que o mercado tem a

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oferecer, dependendo do seu poder de compra. Como segue o autor sobre a

política do Estado de Bem-Estar Social, ou “Welfare State”:

Os mitos complementares do bem-estar e das necessidades possuem

assim uma poderosa função ideológica de reabsorção e supressão das

determinações objetivas, sociais e históricas, da desigualdade. Todo o

jogo político do “Welfare State” e da sociedade de consumo consiste

em ultrapassar as próprias contradições, intensificando o volume dos

bens, na perspectiva de uma igualização automática através da

quantidade e de um nível de equilíbrio final, que seria o bem-estar

total para todos (Baudrillard, 2007, p.48).

Nesse sentido, o bem-estar social se traduz na abundância da oferta,

possibilitada por indústrias e mercados em constante expansão. Atualmente, o que

fica cada vez mais claro é como essa concepção de abundância se refere à relação

peculiar da sociedade moderno-contemporânea com a natureza. Em síntese,

primeiro, temos a ideia de progresso racional como um crescimento constante,

uma expansão contínua - do conhecimento, dos meios de produção, das

tecnologias, de mercados consumidores, etc. Segundo, a igualdade como princípio

se transforma em bem-estar social mensurável, que se alcança através de bens de

consumo amplamente disponíveis para satisfazer as necessidades individuais. Em

contraponto ao espírito expansionista, há algumas décadas o discurso alarmista de

ambientalistas e ecologistas dá luz à degradação do meio ambiente provocada pela

exploração “irresponsável” de “recursos naturais”. Mas, se o progresso racional

idealiza, em última análise, um avanço ilimitado, também as necessidades podem

ser incessantemente fabricadas. Assim, configura-se uma noção típica da

contemporaneidade sobre a relação entre os humanos e a natureza: as

necessidades são infinitas, os recursos são finitos. Voltaremos a esse ponto mais

adiante.

Como abordado acima, o liberalismo tem como desafio achar o difícil

equilíbrio entre os estímulos à livre inciativa e a preservação de direitos comuns.

Baudrillard (2007) é contundente em afirmar que a lógica do bem-estar social, no

fim, promove a desigualdade, pois os bens estão disponíveis para quem quiser,

mas, sobretudo, para quem puder. E isso acaba não se limitando somente à

produção de empresas dos mais diversos mercados. Os direitos constitucionais são

pensados para garantir o princípio de igualdade. Mas, como indica Baudrillard

(2007, p.57): “Não há direito ao espaço senão a partir do momento em já não

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existe espaço para todos e em que o espaço e o silêncio constituem o privilégio de

uns quantos, à custa dos outros.”. Ou seja, a passagem de bens comuns, ou

elementos naturais, - como a terra, o ar puro, a água, o ócio, a saúde, entre outros -

para “direitos sociais” solidifica o contrário, pois essa institucionalização confere

a eles o status de mercadoria, sendo enquadrados, portanto, na lógica “valor de

uso” versus “valor de troca”.

O direito à saúde reforça a privatização de bens comuns ao definir um

mercado pela regulação de suas práticas, e endossa a lógica econômica que

vislumbra a igualdade através do acúmulo de bens de consumo, pois sugere a

defesa de interesses particulares. Assim, a saúde representa um paradoxo para as

sociedades ocidentais, alternando entre questões públicas do Estado e

responsabilidades individuais de mercado. A pluralidade de descobertas

científicas e o desenvolvimento tecnológico proporcionam à medicina novos

instrumentos, remédios, exames, máquinas, entre outros recursos, suscitando a

discussão sobre como organizar o acesso aos cuidados médico-hospitalares entre

pacientes. Afinal, o conhecimento e a tecnologia estão à disposição para melhorar

a qualidade de vida de todos, mas por um “valor de troca”. Aqui se intensifica o

confronto entre o público e o privado.

Para aprofundar esse ponto, cabe brevemente mencionar uma história que

exemplifica bem a problemática do chamado mercado de saúde. Remy - professor

universitário, canadense de Montreal, separado e pai de dois filhos - descobre aos

50 anos que está com câncer em estágio avançado. Logo começa a experimentar

as complicações e desconfortos de receber seu tratamento em um hospital público

da sua cidade. No Canadá, o acesso aos serviços de saúde é universal, isto é, todos

os cidadãos têm direito à assistência médica sem arcar com as despesas por

atendimento. Um mundo ideal, assim parece ser. No entanto, ao acompanhar o

início da trajetória de Remy, observamos corredores abarrotados, enfermeiras

mal-humoradas, nenhuma privacidade para os pacientes - uns sofrendo mais,

outros menos -, poucos médicos à disposição, e filas intermináveis para a

realização de exames. Enfim, nenhum conforto, nem “bem-estar”.

O filme “As Invasões Bárbaras” de Denys Arcand (2003) revela, através do

percurso de seu personagem principal, o melhor e o pior da experiência dos

modelos socialista (do qual Remy era defensor) e capitalista - suas

incongruências, dessabores e compensações - sob a ótica do paciente cidadão.

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Sebastian, filho de Remy, um bem sucedido homem de negócios em Londres, fica

incomodado com as condições desconfortáveis que encontra ao chegar a

Montreal, e começa a impor mudanças ao sistema canadense de saúde no estilo

“tudo tem seu preço”. Então, corrompe funcionários para conseguir facilidades

como, por exemplo, o privilégio que nenhum outro paciente tinha de ter uma

acomodação privada. E se a fila para realizar um exame de alta complexidade

estava muito longa, bastou mais uma módica quantia para levar seu pai de

ambulância aos EUA, onde receberam o desejado atendimento imediato.

Embora a questão política não seja o único elemento da história, e como

crítica possa ser exagerada, o filme serve para refletir sobre as dificuldades em

sustentar mercados de saúde, mostrando um pouco dos prós e dos contras de

diferentes concepções que ainda não conseguem “satisfazer” a todos, dentro da

lógica da cultura ocidental. A situação de Remy pode ser observada por ângulos

bem distintos. Por um lado, há uma aparente escassez no modelo canadense,

devido às limitações impostas por uma política que procura se sustentar “igual

para todos”. Nesse sentido, os EUA figuram como a terra da “liberdade” e da

“abundância”, onde o melhor do conhecimento e tecnologia médica está à

disposição para quem precisar a qualquer momento. Lugar onde se pode exercer,

sem restrições, o direito da escolha pelo melhor serviço. Por outro lado, se

pensarmos em pacientes graves que não contam com um filho abastado como

Sebastian, não há muitas escolhas positivas a fazer, de fato, caso seja necessário

pagar por cada consulta, exame de sangue, diagnose de imagem, medicamentos,

materiais, diárias de internação, etc. Dependendo da doença e tratamento médico

proposto, os custos envolvidos podem ser exorbitantes. Para ilustrar, o gasto

médio dos planos de saúde privados no Brasil com as internações de seus

“beneficiários” 1

em 2011 foi de R$ 4.979,34, de acordo com a ANS

(setembro/2012). No mercado, custos por atendimentos particulares tendem a ser

mais caros, visto que os planos negociam tabelas com valores descontados tendo o

tamanho da carteira de clientes como barganha.

O que a história de Remy demonstra é justamente o conflito entre o

universal e o particular. A concentração no Estado da responsabilidade pela saúde

da população garante a todos os cidadãos o acesso aos serviços médico-

1 Pessoa física ou jurídica em cujo proveito se faz o seguro. Fonte: Glossário de Seguros, disponível em

www.fenaseg.com.br

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hospitalares, de acordo com os recursos disponíveis pelo governo, o que implica

em um atendimento padronizado e impõe restrições. No mercado privado, não há

limitações de oferta, mas os próprios indivíduos têm de arcar com as suas

despesas por atendimento médico, o que gera desigualdades.

Um modelo ideal para prover serviços de saúde à população é um dos

grandes dilemas enfrentados por diversos países, inclusive o Brasil. Para a gestão

desse complexo mercado, Kissick (1994) sugere a figura do “triângulo de ferro”

da assistência em saúde, cujos ângulos correspondem a acesso, qualidade e

contenção de custos. Para o cenário mais equilibrado, oferecendo o melhor

possível para o máximo de pessoas, a figura geométrica deve ser equilátera. Se

um dos ângulos cresce além da conta afeta diretamente as duas outras pontas. Dito

de outra forma, se o esforço maior está em qualidade, acesso e gestão de custos

são prejudicados. Se o acesso e os custos são mais importantes, a qualidade deve

deteriorar, e assim por diante. Cabe observar que a qualidade do triângulo é

entendida principalmente como infraestrutura e disponibilidade de recursos

tecnológicos de ponta.

Kissick (1994) fez uma comparação de modelos entre os EUA, Canadá e

Reino Unido que vale para ilustrar as diferentes estratégias de Estados anglo-

saxões em busca de organizar os seus mercados de saúde. Como já indicado, no

Canadá o acesso aos serviços de saúde é universal e público. A gestão do sistema

é responsabilidade do Estado e suas províncias, o que garante maior cobertura da

população, mas em detrimento da qualidade.

O “National Health Service” (Serviço de Saúde Nacional) do Reino Unido

tem sido apontado como uma referência de sistema de saúde público2. Sua

instituição veio com um decreto em 1948 para amenizar os prejuízos à população

causados pela Segunda Guerra Mundial. Assim, a assistência em saúde foi

nacionalizada, de hospitais a serviços de prevenção. Em linhas gerais, o

atendimento à população é público e divido por regiões. O sistema é

hierarquizado e começa com a consulta ao clínico geral da área do paciente,

responsável pelo encaminhamento a médicos especializados, bem como a serviços

2 Jornal Nacional. Grã-Bretanha tem um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo, exibido pela

Rede Globo em 13/12/2012, disponível em http://globotv.globo.com/rede-globo/jornal-nacional/v/gra-

bretanha-tem-um-dos-melhores-sistemas-publicos-de-saude-do-mundo/2293327/ (acessado em 22/12/2012).

Veja. No Reino Unido, um sistema de saúde universal e eficaz, em 21/10/2011, disponível em

http://veja.abril.com.br/noticia/saude/no-reino-unido-um-sistema-de-saude-universal-e-eficaz (acessado em

22/12/2012).

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diagnósticos. Portanto, há uma ordem a ser cumprida e um tempo de espera para

receber o atendimento necessário. No Reino Unido, todos os médicos formados

trabalham para o NHS, com algumas exceções que podem oferecer atendimento

em consultórios privados.

Entre os três países, o cenário dos EUA revela diferenças por causa de

princípios fortemente arraigados no liberalismo. Como sugere Kissick (1994), nos

EUA o governo figura como instrumento para a promoção de interesses

particulares. Diferente do zelo pela igualdade, o país tem como premissa

promover condições iguais de oportunidade. Na saúde, essa concepção se traduz,

em última análise, na possibilidade de aumentar as chances de sobrevida do

indivíduo enfermo. Isso leva a uma forte priorização da busca pela excelência em

detrimento da equidade. De um modo geral, nos EUA a qualidade é pautada pelos

avanços tecnológicos, que proporcionam um crescente de novas formas de

prevenção, diagnóstico, intervenção e cura. A ideia predominante defende o

direito de todos a obter o melhor padrão possível em cuidados com a saúde, desde

que alguém esteja disponível para assumir a conta. Porém, conforme Kissick

(1994), os desenvolvimentos científicos e tecnológicos na área médica são

capazes de proporcionar muito mais para a população de milhões do que a

sociedade norte-americana pode efetivamente pagar.

O autor exemplifica o progresso dos recursos da medicina nos últimos 60

anos pela mudança no tratamento de problemas cardiológicos. Segundo o seu

relato, em 1955 o então Presidente Eisenhower sofreu um infarto agudo do

miocárdio. Na ocasião, ele foi atendido pelo Dr. Paul Dudley White, uma

referência entre os médicos do país, que supervisionou o mais avançado

tratamento cardiológico da época: repouso, oxigênio, digoxina para fortalecer as

contrações do coração, anticoagulantes para afinar o sangue e prevenir novos

coágulos, além de morfina para amenizar a dor. Este procedimento padrão podia

facilmente ser adotado em hospitais país afora para todos os demais casos de

infarto, independente do status social do paciente. Duas décadas depois, técnicas

aprimoradas permitiram a adoção da cirurgia de revascularização miocárdica, ou

ponte de safena, no tratamento de pessoas infartadas.

Hoje, um indivíduo com queixas de dores, ou até assintomático, pode ser

submetido a uma bateria de exames, como um ecocardiograma, um

eletrocardiograma, uma cintilografia das artérias coronárias, ou uma

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angiotomografia das artérias coronárias, antes de determinar a necessidade de

qualquer procedimento invasivo. Caso diagnosticada obstrução dos vasos, realiza-

se uma angioplastia coronária, procedimento não cirúrgico, para colocação do

“stent” 3

. Feito tudo isso, o paciente pode nem chegar a sofrer um infarto.

Uma das grandes discussões que atravessam o governo do Presidente

Barack Obama, eleito pela primeira vez em 2008, envolve uma extensa reforma

do sistema de saúde que visa aumentar substancialmente o acesso à assistência

médica pela população do país. O chamado “Patient Protection and Affordable

Care Act” foi uma iniciativa polêmica e alvo de muitas críticas, cuja proposta é

resolver o paradoxal déficit do Estado na saúde comparado ao limitado acesso dos

cidadãos aos serviços médico-hospitalares.

Resumidamente, em Março de 2010, o Presidente assinou um decreto

visando tornar o seguro-saúde acessível para mais de 30 milhões de pessoas4. O

projeto se fia em alguns conceitos, sendo o comando do indivíduo (“individual

mandate”) o principal. Conforme declarado pela Casa Branca5, o objetivo é

colocar o americano no controle da sua saúde. Esse “controle” tem uma série de

implicações. No cenário atual, a camada da população não coberta recorre às

emergências que, por lei, são obrigadas a prestar assistência independente das

condições do indivíduo em pagar pelo atendimento. Os custos emergenciais

costumam ser altos e, para compensar a despesa, os prestadores tendem, portanto,

a onerar as tarifas de assistência daqueles que pagam ou são cobertos por

seguradoras. O que a nova determinação prevê é a obrigatoriedade de todos os

cidadãos norte-americanos em ter a garantia de um seguro-saúde. Isso significa

que toda a população sem cobertura terá de passar a pagar por um plano

compulsoriamente.

Mas, para tornar esse projeto possível, o acesso às apólices de saúde precisa

ser facilitado. O decreto então vislumbra um aumento da competição no mercado

de planos através de regulações mais estreitas do governo sobre as práticas de

aceitação do seguro e das garantias de cobertura, por exemplo, a imposição às

seguradoras de não negar, sobretaxar ou fazer restrições a pessoas com condições

3 Informações do Hospital do Coração do Brasil. Disponível em http://www.hcbr.com.br/ (acessado em

15/01/2013). 4 The New York Times, Health Care Reform. Disponível em:

http://topics.nytimes.com/top/news/health/diseasesconditionsandhealthtopics/health_insurance_and_managed

_care/health_care_reform/index.html (acessado em 24/09/12). 5 Disponível em: http://www.whitehouse.gov/healthreform/healthcare-overview (acessado em 24/09/12).

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pré-existentes (portadores de câncer, diabetes, doenças autoimunes, entre outras).

Além disso, a facilidade em trocar de plano seria maior, por medidas como a

exigência de transparência nos contratos de forma que consumidores possam

efetivamente comparar produtos. A expectativa é que a ampliação do mercado

consumidor e a competição por qualidade de serviços e preços promovam a

redução dos prêmios6, conferindo acessibilidade mais ampla aos seguros. Os

indivíduos que não adquirirem um plano ficam sujeitos à taxação sobre as suas

rendas, mas essa determinação leva em consideração o percentual sobre os

rendimentos e as pessoas de menor poder aquisitivo. O plano enfim pretende

desonerar o governo pelos impostos recolhidos e pela reformulação do programa

de saúde Medicaid7 em vigor há décadas. A nova lei prevê ainda a criação de um

comitê de especialistas dedicados a tornar mais eficientes os desembolsos do

Estado com custos médico-hospitalares, incentivando acordos de pacotes de

serviços com prestadores ao invés do padrão corrente de tarifa por serviço.

Mais do que os orçamentos, disputas e particularidades à proposta do

governo de Barack Obama, o ponto interessante a observar está na concepção por

trás do projeto de ampliação do acesso da população à assistência médica.

Primeiro, o decreto se baseia na ideia de “comando do indivíduo”, isto é, adota

como estratégia a responsabilização do indivíduo sobre a sua saúde e a

capacitação (em inglês, “empowerment”) do mesmo para conseguir obter por

meios próprios os serviços médico-hospitalares que necessitar. Aliás, o próprio

conceito de cobertura, comum aos sistemas de saúde e, particularmente, ao

mercado de seguros, carrega implícita essa noção, visto que pressupõe que o

indivíduo pode não precisar do serviço, mas está pronto para recebê-lo. Segundo,

o projeto acredita na máxima do capitalismo, a lei da oferta e da procura,

propondo incitar um ambiente de maior competitividade no setor privado para

levar a uma redução dos custos de seguros-saúde. Em uma palavra, a interferência

do Estado agora visa a sua mínima participação futura, mantendo a política

americana o mais próximo possível dos princípios liberalistas, mesmo em uma

6 É a soma em dinheiro, paga pelo segurado ao segurador, para que este assuma a responsabilidade de um

determinado risco. Fonte: Glossário de Seguros, disponível em www.fenaseg.com.br. 7 Medicaid é um programa governamental dos EUA que atualmente oferece cobertura de assistência médica

para aproximadamente 60 milhões de Americanos, entre crianças, grávidas, pais, idosos e pessoas com

deficientes. São estabelecidos critérios mínimos de elegibilidade pelo governo federal que podem ser

ampliados por decisão de cada governo estadual, que coordena as ações locais. Fonte: www.medicaid.com

(acessado em 20/10/2012).

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questão tão complexa e particular aos Estados como é a manutenção da saúde de

seus cidadãos.

3.2 Saúde na prática: um panorama do mercado brasileiro

Apresentadas as experiências das potências ocidentais do Hemisfério Norte,

podemos seguir para uma breve análise sobre a situação brasileira. Desde 1988, o

acesso universal e integral à saúde no Brasil é um direito garantido pelo artigo 196

da Constituição Federal. O Sistema Único de Saúde, mais conhecido como SUS,

consiste em uma rede de assistência médica responsável por ações de promoção,

proteção e recuperação da saúde dos cidadãos brasileiros. Foi criado, portanto,

com o intuito de oferecer atendimento igualitário para toda população. A gestão

desse sistema de abrangência nacional se dá em três níveis: municipal, estadual e

federal.

Cada gestor tem diferentes responsabilidades. Resumidamente, aos

municípios e ao Distrito Federal compete a execução e gerenciamento dos

serviços de saúde prestados em suas localidades; a contratação de prestadores de

serviços privados; a execução de serviços de vigilância epidemiológica, sanitária,

de saneamento básico, entre outras; a participação no financiamento e provimento

de medicamentos básicos; e a participação junto ao governo estadual no

planejamento, programação e organização do SUS na sua região. Os estados e o

Distrito Federal são responsáveis pelo controle das redes assistenciais do SUS; o

apoio técnico e financeiro aos municípios; a gestão de sistemas públicos de alta

complexidade da região; a coordenação de ações de vigilância de forma

complementar aos municípios; o monitoramento de indicadores de morbidade e

mortalidade da sua população; a participação na assistência farmacêutica básica e

na aquisição e distribuição, junto com o governo federal, de medicamentos de alto

custo. Destaca-se que desde 2006, com a assinatura do “Pacto pela Saúde”, o

município passou a ser considerado oficialmente o principal responsável pela

saúde pública de sua população, assumindo integralmente a gestão das ações e

serviços de saúde oferecidos em sua área de abrangência.

Com relação ao custeio da saúde pública no Brasil, vale ressaltar que a

União é a principal financiadora, assumindo em geral metade dos gastos

envolvidos. A outra metade fica na alçada dos estados e municípios. Com o

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“Pacto pela Saúde” de 2006 ficou estabelecido um padrão para as autoridades

estaduais e municipais captarem os recursos da União em cinco blocos de

financiamento que são: atenção básica; atenção de média e alta complexidade;

vigilância em saúde; assistência farmacêutica; e gestão do SUS (Ministério da

Saúde, 2006b).

Como esclarece a “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde” (Ministério

da Saúde, 2006b), o atendimento à população deve começar, preferencialmente,

pelos serviços de atenção básica - postos de saúde, centros de saúde, unidades de

Saúde da Família, entre outros. O cidadão será encaminhado para os hospitais e

clínicas especializadas - serviços de maior complexidade - conforme a

necessidade avaliada no primeiro atendimento ao paciente. O sistema público de

saúde funciona por referenciamento, isto é, caso o gestor local do SUS não

disponha do serviço indicado ao usuário, pode encaminhá-lo para outra localidade

mais próxima que ofereça as condições necessárias. O encaminhamento e

referência de atenção à saúde são estabelecidos por acordos entre os municípios.

Um município que tem poucos recursos de atendimento pode pactuar com as

cidades da região de forma a proporcionar a assistência integral. Esse acordo

também deve passar pela apreciação do gestor estadual.

O governo federal formula as políticas nacionais, mas os executores são

seus parceiros, entre estados, municípios, ONGs e a iniciativa privada. Cabe a

União uma série de responsabilidades, algumas em conjunto com os níveis

estadual e municipal - como a participação na assistência farmacêutica básica e de

alto custo - e outras de competência exclusiva. O Ministério da Saúde é a

autoridade do sistema responsável pela elaboração das diretrizes gerais de saúde

do Brasil. Suas atribuições incluem também atividades de escopo mais amplo,

como a participação nas discussões de políticas de controle às agressões ao meio

ambiente, de saneamento básico e de condições de trabalho. A disseminação de

informação em saúde também é um de seus papéis mais relevantes.

Para conduzir algumas das competências do governo federal em relação à

saúde, o Ministério conta com secretarias subordinadas, órgãos colegiados, e

unidades vinculadas, como as autarquias ANVISA (Agência Nacional de

Vigilância Sanitária) e ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). A

ANVISA fica ligada às responsabilidades federais de fiscalização de

procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde, o que inclui

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medicações e alimentos, e de criação e execução de normas de vigilância sanitária

nos portos, aeroportos e fronteiras em parceria com estados e municípios. Já a

ANS foi constituída para se ocupar da regulação do mercado privado de planos de

saúde.

No Brasil, o sistema de saúde tem caráter misto, isto é, provê o sistema

universal, mas também permite condições regulamentadas para a atividade de

empresas privadas. A institucionalização do setor de planos de saúde é na

realidade bastante recente, determinado pela Lei 9.656 de 1998. A ANS foi criada

no ano 2000 com a Lei 9.961 para regular as práticas do mercado, que deve ser

acessório ao SUS. Desde então, a autarquia é responsável pela deliberação do rol

de coberturas mínimas, isto é, determina os eventos e procedimentos que todos os

planos de saúde do país devem compreender. Outras atividades incluem a

avaliação da qualidade das operadoras em atuação e o levantamento, análise e

divulgação de dados sobre o desempenho do mercado nacional.

Desde instituída a regulação dos planos de saúde no Brasil, houve uma forte

expansão desse mercado em termos de população abrangida. O universo de

pessoas cobertas por planos privados cresceu mais de 50% de 2000 a 2012 (ANS,

setembro/2012). O crescimento observado desde o marco regulatório é indicativo

que a legislação sobre o mercado não prejudicou e pode até ter favorecido o seu

desenvolvimento. Os planos exclusivamente odontológicos também são regulados

pela ANS e são produtos mais recentes, mas que também apresentam evolução

contínua nos últimos 12 anos. Em Junho de 2012, foram registradas 48,7 milhões

pessoas beneficiárias da cobertura de assistência médica privada e 17,6 milhões da

cobertura de assistência exclusivamente odontológica (ANS, setembro/2012).

Os tipos de cobertura assistencial também são segmentados por modalidades

de contratação. Basicamente, hoje uma pessoa pode optar por fechar um plano

individual, isto é, um contrato particular como pessoa física, ou, fazer parte de um

plano coletivo contratado por uma pessoa jurídica, como proprietário, sócio ou

empregado da “estipulante”8 ou como membro de uma entidade de classe. Como

indicam as estatísticas, há uma tendência de maior concentração nos planos

coletivos, que em 2012 já contam com 3,77 beneficiários para cada integrante de

8 É o terceiro interveniente ao contrato de seguro que representa um grupo segurado. Fonte: Glossário de

Seguros, disponível em www.fenaseg.com.br.

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um plano individual (ANS, setembro/2012). Vale observar que esses números

contabilizam titulares e dependentes dos contratos.

O plano de saúde se tornou um importante benefício das empresas como

parte de seus pacotes para atração e retenção de talentos, bem como um recurso

para garantir a produtividade e reduzir absenteísmos entre seus colaboradores.

Além desse possível entendimento dos empregadores, o crescimento de contratos

coletivos sobre os individuais também tem relação com demandas sindicais (por

exemplo, na construção civil) e com a própria estratégia adotada por algumas

operadoras em priorizar os produtos coletivos. Nos últimos anos, duas importantes

seguradoras brasileiras cessaram a comercialização de planos individuais, focando

apenas na oferta de produtos para as empresas de pequeno, médio e grande porte.

Outro investimento recente das operadoras são os chamados planos por adesão,

fechados com entidades de classe que ofertam a cobertura opcional para os seus

associados. Uma das vantagens em concentrar os negócios em planos coletivos

está na diluição do risco por contrato, isto é, o montante arrecadado consegue

absorver melhor os sinistros9 da apólice sem desequilibrar a relação

sinistro/prêmio.

Para ilustrar, imagine uma internação de R$60.000 para uma cirurgia de

coluna de um beneficiário em plano individual, cuja fatura mensal é de

R$1.000,00. A sinistralidade desse contrato no mês do evento

10 ficará em 6.000%,

e mesmo considerando o histórico da apólice, o custo equivale a 60 meses de

pagamentos. Agora, o mesmo sinistro em um contrato de 1.000 pessoas a um

custo médio de R$ 200,00, tem um impacto apenas de 30% sobre o prêmio. É

claro, em um universo de milhares de pessoas, outros procedimentos são

realizados simultaneamente à cirurgia de coluna, mas o exemplo vale para

demonstrar a ideia de diluição de riscos que motiva a preferência de algumas

empresas do setor privado a direcionar suas operações para os contratos coletivos.

A taxa de cobertura da população brasileira por planos privados de

assistência médica ainda difere bastante entre as regiões, conforme os dados da

ANS (setembro/2012). A maior concentração de beneficiários hoje está no

Sudeste, particularmente, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, onde mais

9 O termo sinistro define, em qualquer ramo ou carteira de seguro, o acontecimento do evento previsto e

coberto no contrato. A sinistralidade consiste, portanto, na razão Sinistro/Prêmio. 10 Termo que define sinistro ou acontecimento previsto e cobertura ou não no contrato, que resulta em dano

para o segurado; ex. incêndio, roubo etc. Fonte: Glossário de Seguros, disponível em www.fenaseg.org.br.

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de 30% dos habitantes contam com planos de saúde privados. Além dos estados

compreenderem alguns dos municípios de maior poder aquisitivo da população,

há também uma concentração maior de negócios nessas regiões do país,

especialmente, de grandes empresas nacionais e multinacionais. A região Sul e

Minas Gerais têm de 20% a 30% de sua população coberta por planos privados.

Os estados com as menores taxas de cobertura ficam nas regiões Norte e

Nordeste.

As operadoras são dividas em modalidades por perfil de empresa, conforme

esclarecem as definições da ANS (setembro/12). As “administradoras de

benefícios” são aquelas que prestam o serviço de gestão do plano de saúde para

outras empresas por uma taxa de administração, deixando o risco de sinistros com

o contratante. A “autogestão” se refere às entidades ou empresas que operam os

planos de saúde destinados aos empregados ativos de uma ou mais empresas,

associados de uma categoria profissional, aposentados, pensionistas ou ex-

empregados. As “cooperativas médicas” são associações sem fins lucrativos,

constituídas por médicos, que comercializam ou operam planos de saúde,

conforme a Lei no

5.769 de 1971. O mesmo vale para as “cooperativas

odontológicas” como associações de dentistas. As “seguradoras especializadas em

saúde” são empresas com fins lucrativos, constituídas em sociedade seguradora,

que obrigatoriamente oferecem o reembolso de despesas médico-hospitalares ou

odontológicas, ou que comercializam e operam seguros com garantia de

assistência à saúde, conforme a Lei 10.185 de 2001. Finalmente, as modalidades

de “medicina de grupo” e “odontologia de grupo” se referem às demais

sociedades que comercializam e operam planos privados.

Como mencionado anteriormente, a cobertura mínima dos planos é

determinada pelo Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS. Hoje, essa

relação já é bastante compreensiva, deixando de fora muito pouco entre

diagnósticos e tratamentos médicos (por exemplo, procedimentos estéticos ou

exames e técnicas ainda consideradas de caráter experimental). O rol é atualizado

periodicamente a fim de abarcar as novidades já chanceladas pela medicina

baseada em evidências. A princípio, essa padronização de coberturas deixa todos

os produtos do mercado virtualmente equiparados. Mas, as distinções aparecem

em outros quesitos, como o preço, a rede de prestadores de serviços e a

abrangência geográfica do atendimento.

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A segmentação assistencial dos produtos também amplia as possibilidades

de oferta. Atualmente, existem os planos hospitalares (cobre exclusivamente

despesas de emergência e em regime de internação), os ambulatoriais (cobre

exclusivamente despesas com exames, consultas e procedimentos em regime

ambulatorial), e aqueles que combinam a cobertura hospitalar e ambulatorial, que

atendem a 80% dos beneficiários no país, segundo a ANS (setembro/2012). Há

ainda alguns planos que, apesar de cobrirem gastos hospitalares, não incluem a

parte obstétrica. Em geral, o chamado plano referência de uma operadora é aquele

que garante a assistência mais compreensiva dentre os produtos do seu portfólio.

A comparação entre planos também pode ser colocada em termos de

qualidade na prestação dos serviços. Isso envolve o cumprimento das normas da

ANS, o atendimento ao consumidor pelos canais de comunicação da operadora, os

prazos de resposta às solicitações, dúvidas e reclamações, a transparência sobre as

condições contratuais da apólice, entre outras questões. Um aspecto importante,

que tem impacto considerável tanto sobre a percepção de qualidade quanto sobre a

assistência médica que o beneficiário recebe de fato, está relacionado à rede de

prestadores credenciados à operadora. Hospitais, laboratórios, clínicas e

consultórios particulares são os responsáveis por efetivamente prover os serviços

de assistência médica, e podem negociar com as operadoras as condições para

aceitação de atendimento aos planos. O credenciamento pode ser tido como uma

oportunidade de ampliar o número de pacientes assistidos, mas esses acordos

variam conforme tarifas negociadas por serviço, importância e reputação da

operadora, capacidade do prestador em atender a demanda, ente outros fatores.

No Brasil, existem estabelecimentos que atuam unicamente com

atendimento particular, pois não há no país uma determinação para a adesão

compulsória ao SUS, nem aos planos de saúde. Assim, os produtos disponíveis

pelas operadoras também podem variar pelo tamanho (número de credenciados) e

qualidade (dos prestadores) da sua rede. Por exemplo, alguns hospitais de

referência no país, como o Hospital Israelita Albert Einstein e o Hospital Sírio

Libanês, ambos de São Paulo, atendem através de convênios, porém, somente

com algumas operadoras e, mesmo assim, apenas aos planos de padrão mais

elevado. Por isso, outro ponto importante a observar é a possibilidade ou não do

usuário ser reembolsado por despesas fora da rede credenciada, e os valores por

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serviço que variam conforme o padrão estipulado pelas condições contratuais do

seu plano.

Também não há restrições explicitadas quanto ao tipo de convênio aceito

pelos estabelecimentos de saúde. Isso significa que um mesmo hospital, por

exemplo, pode oferecer atendimento como particular, aos planos de saúde e até ao

SUS, visto que o sistema público não conta com uma rede própria de prestadores

capaz de absorver toda a sua demanda. Essa flexibilidade dos estabelecimentos

em firmar convênios amplia, portanto, o leque de credenciados aos planos de

saúde e ao SUS, porém, sem implicar verdadeiramente em uma efetiva expansão

da rede de atendimento. Pois, se um mesmo prestador recebe a todos os tipos de

convênios, isso provavelmente gera uma maior demanda para o local. Além disso,

mais do que a quantidade de estabelecimentos de saúde, muitas vezes a questão

está nas condições desses locais, como número de leitos, profissionais

qualificados para o atendimento e disponibilidade de materiais, medicações e

tecnologia. Então, surgem questões como prontos-socorros cheios, maior tempo

de espera, filas longas, dificuldades de agenda, equipes estressadas, complicações

burocráticas, e depreciação da infraestrutura; problemas estes que podem ser mais

ou menos graves dependendo da gestão do estabelecimento e dos recursos

disponíveis.

Pode não ser impraticável o atendimento a vários convênios, e a solução

não deve ser de modo algum o reforço da segregação por prestadores de serviço

de assistência médica. Mas, hoje no Brasil a maior parte da população tem

dificuldade de acesso ao atendimento médico-hospitalar. Não são incomuns as

reportagens sobre as condições precárias de atendimento pelo SUS.

Recentemente, o programa de televisão “Profissão Repórter”11 foi até os hospitais

de atendimento público em São Paulo, no Pará e no Ceará e denunciou a

insuficiência de profissionais, as filas de espera com pacientes dormindo em

cadeiras de praia e outros que aguardavam há dias para a sutura de ferimentos,

além da carência de recursos que expõem recém-nascidos e mães a riscos na

maternidade.

Embora ainda em condições bem menos alarmantes, a percepção de

deficiência na assistência ocorre inclusive entre os beneficiários de planos de

saúde privados, que hoje representam, aproximadamente, 26% da população

11 Exibido em 13/09/12 pela Rede Globo.

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brasileira (ANS, setembro/2012). A expectativa desses consumidores seria,

evidentemente, ter um atendimento diferenciado, pois o “suplementar” ao SUS

deve ser “melhor” que este, visto que o acesso ao mercado privado é restrito a

quem pode pagar ou a quem tem um “bom emprego”. Mas, conforme reportagem

da Veja (ano 45, no29), o número de usuários dos convênios particulares

aumentou 13% entre 2009 e 2011, já o número de médicos credenciados e de

leitos hospitalares cresceram, respectivamente, apenas 6% e 3%.

A exclusividade, noção virtualmente oposta à universalidade, é a que parece

predominar no mercado privado. Nesse sentido, a insatisfação dos consumidores

com a demora em conseguir agendar consultas, exames e internações, motivou a

publicação em junho de 2011 pela ANS da Resolução Normativa (RN) no

259 que

estipula prazos de 3 a 21 dias para atender aos consumidores em suas

necessidades. Conforme publicado em nota12

no portal da agência, a medida busca

garantir que o beneficiário tenha acesso adequado às condições contratadas e

pretende estimular o amplo credenciamento de prestadores de serviços por parte

das operadoras de planos de saúde em todos os municípios onde atuam. Porém,

como sugere o texto, a RN determina que a operadora disponha ao menos de uma

opção de serviço ou profissional, dentro do prazo, em cada área contratada, o que

não garante que a alternativa seja de acordo com a “escolha” do beneficiário.

Certamente as inciativas brasileiras têm seus pontos positivos, mas é

importante fazer algumas colocações sobre esse modelo de mercado misto.

Embora a proposta de universalidade seja concreta, esse é um intento difícil de

sustentar. A delegação aos municípios confere capilaridade para a execução e

coordenação dos serviços de assistência em saúde. Mas, para o sistema funcionar

são necessários profissionais, infraestrutura, recursos, etc., em igual medida para

todas as regiões, de forma que a saúde não permaneça como mais uma estatística

das desigualdades do país. A concentração especialmente no Sudeste de

beneficiários de planos de saúde acompanha tantos outros mapas de distribuição -

de empresas, de dinheiro, de pessoas - no Brasil que indicam disparidades entre as

regiões.

12 ANS. Norma sobre garantia e tempos máximos de atendimento entra em vigor. Publicada em 16/12/2011.

Disponível em:

http://www.ans.gov.br/index.php/a-ans/sala-de-noticias-ans/consumidor/1249-norma-sobre-garantia-e-

tempos-maximos-de-atendimento-entra-em-vigor (acessado em 20/10/2012).

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O país acaba nutrindo um pensamento ambíguo sobre o que é proporcionar

uma boa assistência à saúde dos seus cidadãos. Ambiguidade esta própria da

cultura brasileira que, como sugere DaMatta (1997, 2003), não é nem totalmente

hierarquizada, nem totalmente individualista, buscando sempre a conciliação, a

mediação, as gradações, as soluções de meio-termo. Por um lado, o ideal da

universalidade sugere o provimento de serviços médico-hospitalares para toda a

população brasileira de forma padronizada, digna e eficiente - desafio que tem se

demonstrado de difícil administração. Por outro lado, a lógica de mercado reforça

a individualidade e a livre iniciativa, noções que são traduzidas cotidianamente

em termos de poder de escolha, exclusividade, prioridade e atendimento

personalizado.

Assim, o objetivo da igualdade, já difícil de alcançar com os problemas

internos ao SUS, fica ainda mais distante quando, em outra ponta, esforços se

concentram em gerir interesses individuais do mercado privado. Seguindo a lógica

capitalista, o nível de acesso aos serviços de saúde deve corresponder às

condições do plano adquirido. Mas, como observado anteriormente, o direito à

saúde sugere a defesa pela vida individual. Assim cresce cada vez mais a

frequência de casos jurídicos, que, novamente, priorizam os episódios particulares

e não o contexto global. Nesse cenário, a mídia busca cumprir o seu papel

informativo, lembrando que “você tem mais direitos do que imagina” (IstoÉ, ano

36, no2235) e ajudando os consumidores a escapar às “armadilhas dos planos de

saúde” (Veja, ano 45, no29). Sem deixar, no entanto, de transmitir esse espírito

dividido, como podemos observar na passagem em destaque a seguir:

Nada preocupa mais os brasileiros do que a saúde. Ao menos desde

2008, a questão ocupa o primeiro lugar no ranking das aflições

nacionais, à frente de assuntos não menos tormentosos, como

educação e segurança. Assim é natural que, com a estabilidade da

economia e o aumento da renda da população, os brasileiros tenham

saído em disparada na busca pela contratação de planos de saúde

particulares. (...) O desempenho do governo federal no campo da

saúde não é visto com bons olhos. Segundo divulgou o Datafolha no

início deste ano, quatro em cada dez brasileiros consideram que, nessa

área, a gestão de Dilma Rousseff exibe sua pior performance. (...) A

oferta de novos planos de saúde hoje é vital para o Brasil. “Se ela não

existisse, apenas uma ínfima parte da população continuaria tendo

acesso a certos tratamentos”, afirma José Marcus Rotta, presidente da

Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. “Mas é preciso encontrar um

equilíbrio entre a saúde financeira dos planos, a dos pacientes e as

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condições de trabalhos dos médicos”, diz. (...) Queixas de

procedimentos negados e cirurgias atrasadas são as mais comuns – o

tipo de dor de cabeça que as pessoas pensaram que evitariam ao

contratar um plano particular. A melhor saída, de acordo com

entidades de defesa do consumidor e advogados que atuam na área, é

recorre à Justiça (...). Um número crescente de brasileiros está

sacrificando parte do orçamento familiar para garantir um melhor

atendimento na área de saúde. É justo exigir que os prestadores de

serviços correspondam ao esforço (Veja, ano 45, no29).

O descrédito do Estado em sua capacidade de garantir o bem-estar da

população nutre uma concepção favorável à saúde privatizada. Hoje, a realidade

brasileira é divida entre os cidadãos que podem e os que não podem pagar pela

assistência médico-hospitalar. O cenário daqueles que contam apenas com o SUS

é fundamentado pelo princípio da coletividade. Já a experiência dos consumidores

que participam do mercado privado é inspirada por noções que valorizam a

individualidade. Porém, por mais que a proposta dos produtos e serviços de saúde

seja de cuidados personalizados, a noção do que constitui um indivíduo saudável é

elaborada coletivamente. O bem-estar individual tem como referência uma ideia

compartilhada de boa forma física e psíquica: noção esta que torna cada um

responsável por si a fim de que possa participar do todo.

3.3 Riqueza, poder e individualismo em sociedade

Segundo Kissick (1994), nenhuma sociedade pode oferecer todos os

serviços que a sua população é capaz de utilizar. Dito isso, retomamos então a

questão que abre esse capítulo: as necessidades são infinitas, os recursos são

finitos, eis o dilema do capitalismo atualizado na medicina moderno-

contemporânea. A conta parece realmente difícil de fechar, portanto, precisamos

fazer escolhas. Sob a ótica administrativa, no contexto cultura atual, dentro da

lógica capitalista, o raciocínio parece perfeito. Mas, talvez um dos grandes

equívocos esteja mesmo em acreditar que as necessidades são infinitas. A

constatação gera no mínimo angústia e desespero ao imaginarmos que nunca

conseguiremos estar plenamente satisfeitos, felizes e saudáveis.

Como lembra Baudrillard (2007), o que para nós parece imprevidência e

prodigalidade das tribos de caçadores e coletores, na realidade, constituem os

sinais da abundância real de sua cultura. Porque o pensamento primitivo confia na

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natureza. Para eles, o mundo tinha muito mais a proporcionar do que eles

poderiam receber. Isso consiste em uma inversão da nossa própria concepção de

vida. Para os “selvagens”, a vida é plena em si. Para nós, “civilizados”, é um

planejamento sempre por concluir. A confiança dos “primitivos” se baseia em

relações de reciprocidade entre os seres humanos, e destes com a natureza, que

geram a riqueza do grupo por meio de trocas infinitas entre os seus membros. Por

outro lado, se na cultura ocidental vivemos em estado de carência é porque

baseamos nossa prosperidade no monopólio e acúmulo de objetos. Não há troca,

não há relacionamento. O que temos são apenas os signos da abundância,

seguidos de perto pelos signos da raridade e da pobreza. Pois os bens são finitos -

tem data de validade, quebram, podem ser roubados ou perdidos. Uma ideia

interessante para reflexão: os primitivos sim podem viver na abundância, e nós

não. Como explica o autor:

A pobreza, porém, não consiste - afirma Sahlins - nem na fraca

quantidade de bens nem apenas na relação entre fins e meios; revela-

se sobretudo como relação entre os homens. Em última análise, a

transparência e a reciprocidade das relações sociais é que fundam a

“confiança” dos primitivos, levando-os a viver a abundância em plena

fome. (...) Na economia do dom e da permuta simbólica, uma

quantidade fraca e sempre finita de bens basta para criar a riqueza

geral, já que eles passam constantemente de uns para os outros. A

riqueza não se baseia nos bens, mas na permuta concreta entre as

pessoas. Por consequência, é ilimitada, porque o ciclo da troca não

tem fim (...) (Baudrillard, 2007, p.67).

Por maior que seja o acúmulo de bens, o ser humano moderno-

contemporâneo tende a viver na insegurança porque, afinal, sempre é possível

perdê-los. A ideia de risco está ligada de forma intrínseca ao sentimento de

incerteza, e tem uma profunda relação com culturas que fundamentalmente vivem

para o futuro - para estimar, projetar e construir uma realidade que ainda está por

vir. O risco revela a crença moderna de que podemos de alguma forma submeter o

futuro ao nosso domínio. Essa concepção não aparece nas culturas “primitivas”,

ou nas culturas pré-modernas, pois nelas o tempo é cíclico e as venturas e

desventuras são, em geral, desígnios de entidades mitológicas - responsabilidade

que hoje atribuímos ao risco. Como define Giddens (2000, p.33):

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Risco não é o mesmo que infortúnio ou perigo. Risco se refere a

infortúnios ativamente avaliados em relação a possibilidades futuras.

A palavra só passa a ser amplamente utilizada em sociedades

orientadas para o futuro - que veem o futuro precisamente como um

território a ser conquistado ou colonizado. O conceito de risco

pressupõe uma sociedade que tenta ativamente romper com seu

passado - de fato, a característica primordial da civilização industrial

moderna.

Como indica Giddens (2000), o termo aparece com as grandes navegações,

nos séculos XVI e XVII, empregado por exploradores que partiam por águas

desconhecidas, ainda não mapeadas, ou, ainda não riscadas. O conceito foi então

transferido para o tempo, designando os cálculos feitos para avaliar

probabilidades em transações bancárias e de investimento. E assim,

paulatinamente, a palavra risco passa a assinalar uma variedade sempre maior de

situações de incerteza.

Acompanhando o risco, também no século XVI surge a categoria do seguro,

“(...) algo só concebível quando acreditamos num futuro humanamente

arquitetado.” (Giddens, 2000, p.35). O seguro indica a disposição ou não de uma

pessoa a assumir um dado risco. Alguém que compra um carro novo e não faz

qualquer seguro estaria, portanto, disposto a assumir todos os riscos possíveis,

como avarias, acidentes e roubo. Isto é, irá arcar integralmente com todas as

despesas resultantes de eventos adversos, no limite, com a perda do carro. Por

outro lado, quem não sai de casa sem estar com o seguro do seu carro em dia,

transfere para uma seguradora os riscos que não está disposto a assumir além de

um valor mínimo acordado, que no mercado é a chamada franquia13

.

Na economia capitalista, a ideia de risco é, portanto, fundamental para o

jogo do mercado (Giddens, 2000). Como o exemplo da reforma do sistema de

saúde americano indica, as noções de risco e seguro implicam no “comando do

indivíduo” sobre a sua vida, ao responsabilizá-lo por suas “escolhas”, incitando a

reflexão sobre como pretende lidar com as possibilidades futuras. Logo, a

proposta de exigir a toda uma população que “assuma o controle” e compre uma

apólice de seguro-saúde condiz plenamente com a política de um Estado liberal

que pretende ser desonerado do fardo social para investir no progresso da nação.

13

Franquia é um valor inicial da importância segurada, pelo qual o segurado fica responsável como segurador

de si mesmo e pode ser simples ou dedutível. Fonte: Dicionário de seguros, disponível em

http://www.funenseg.org.br/dicionario_de_seguros.php.

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O risco é a antecipação de cenários futuros prováveis, contra os quais

devemos nos resguardar. O seguro é o recurso para minimizar os prejuízos caso

um dos cenários projetados aconteça. Como diz um ditado: “seguro morreu de

velho”. No entanto, o risco não desaparece com o seguro. A operação securitária é

nada mais que uma redistribuição, ou diluição, do risco, baseada no mutualismo14

.

Este princípio sugere a reunião de pessoas expostas ao mesmo risco de forma a

permitir o equilíbrio entre o prêmio pago pelos segurados e os sinistros cobertos

pela seguradora. A justificativa para fazer um seguro se apoia, portanto, em

cenários futuros indesejáveis para um determinado grupo de pessoas. Em tese,

quanto maior a população que deseja evitar um mesmo tipo risco, maior será a

adesão ao seguro contra esse determinado risco, o que pode explicar, por

exemplo, a expansão do mercado de planos de saúde no Brasil.

A concepção de risco adquiriu uma importância central na

contemporaneidade. Isso pode ser atribuído ao fim da Guerra Fria. A grande

bipolarização do mundo que atravessou décadas ao longo do século XX desviava

esforços para o combate ao inimigo que ameaçava o futuro da sociedade ocidental

e o seu projeto capitalista. Findado o conflito, não haveria mais empecilho

concreto para o progresso, exceto os riscos imateriais, porque ainda não

realizados, mas, nem por isso, menos ameaçadores. Como sugere Giddens (2002),

substituímos inimigos por riscos.

E para cada novo mercado que surge, novas possibilidades se abrem e, logo,

novas modalidades de riscos e seguros se instituem. Hoje, praticamente vivemos

em função de riscos, que se tornam fatores cada vez mais determinantes sobre os

nossos comportamentos, gostos e escolhas. Segundo Pessôa (2010: 56), o

consumo, como “(...) processo de absorção de um imaginário que praticamente

determina a vida do homem contemporâneo (...)”, é arena para a busca da

segurança. No entanto, a perturbadora sensação de incerteza permanece. Afinal,

continuamos a projetar nossas expectativas, vontades, desejos para o futuro -

sempre misterioso. “A única certeza é a morte”, diz o sábio. Vivendo para o

futuro, a felicidade nunca é experimentada no agora. “O futuro promete. Eu quero

chegar bem lá.”, diz o slogan de uma campanha lançada em 2011 por entidades

médicas em parceria com agências publicitárias. O anúncio de um plano de

14

Fonte: Dicionário de seguros, disponível em http://www.funenseg.org.br/dicionario_de_seguros.php.

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previdência privada resume bem essa eterna projeção de um futuro melhor que o

presente. Afinal, em quanto tempo você deseja realizar o seu projeto de vida?

Realize seus projetos de vida! Cada pessoa tem um projeto de vida.

Pode ser comprar uma casa, um carro, garantir os estudos dos filhos

ou fazer uma viagem com toda a família. Para materializar esses

sonhos, você pode investir em um plano de previdência Brasilprev.

Planeje o seu futuro e realize seus projetos de vida!

A probabilidade dos riscos se torna uma preocupação central para uma

sociedade que rompeu com o passado e se direciona para um amanhã incerto. A

Organização Mundial da Saúde, ou OMS (2002), define risco como a

probabilidade de um resultado adverso, ou um fator que aumenta a sua

probabilidade. Na saúde, a concepção de risco fica, portanto, relacionada à

predisposição do indivíduo em sofrer com certas doenças ou limitações, o que tem

impacto direto sobre a sua “expectativa de vida”.

Em 2002, a OMS divulgou um relatório que detalha, estatisticamente, o

total de doenças, deficiências e mortes provocadas por um determinado grupo de

riscos, os mais “ameaçadores” contra a saúde humana na contemporaneidade. Os

fatores de risco identificados são: “peso abaixo do normal”; “sexo desprotegido”;

“pressão arterial alta”; “consumo de tabaco; consumo de álcool”; “condições de

saneamento, água e higiene precárias”; “carência de ferro”; “fumaça de

combustível sólido em ambiente fechado”; “colesterol alto”; e “obesidade”. Na

ocasião, a organização atribuiu 30% das mortes no mundo a esses dez fatores. Por

outro lado, dentre esses riscos, apenas um número limitado é responsável pelo

“fardo” da doença e da lesão de cada país (OMS, 2002). Como aponta a

organização, fatores de riscos individuais implicam em um cenário de risco social,

que para o Estado pode representar, no limite, seu insucesso perante o contexto

global.

A OMS (2000) define um sistema de saúde como todas as atividades cujo

principal objetivo é promover, reestabelecer e manter a saúde. Essa concepção

abrange aspectos além da prestação de serviços de assistência médica, como, por

exemplo, ações para reduzir os acidentes e mortes no trânsito. De acordo com a

organização, medir quantas pessoas morrem todos os anos e, sobretudo, porque

morrem, é um dos recursos mais importantes para avaliar a efetividade do sistema

de saúde de um país. As estatísticas ajudam as autoridades governamentais a

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determinar se estão concentrando esforços nas ações certas para reduzir o número

de doenças e mortes “evitáveis”. A noção de prevenção está, portanto, diretamente

relacionada ao controle dos riscos e se torna um ponto chave na saúde

contemporânea, tal como revela a perspectiva da OMS.

Como indicado acima, o Estado-Nação constitui uma forma de poder

particular a modernidade, portanto, decisiva sobre as formas como a cultura

ocidental estrutura suas relações e práticas. Clastres (2010) esclarece que as

sociedades “primitivas” consistem fundamentalmente em sociedades sem Estado,

isto é, não possuem uma entidade social apartada detentora da palavra e do poder.

O líder das sociedades primitivas tem funções que para nós se assemelham a de

um diplomata ou de um ministro de relações internacionais, pois consistem

principalmente em falar pela sociedade para os “outros”, amigos ou inimigos.

Porém, ele fala em nome do grupo, como um porta-voz, e não responde pelo

grupo, como a autoridade. Aí esta a diferença fundamental das sociedades

“primitivas”.

O Estado constitui uma forma social autoritária que divide a sociedade entre

os dominadores e os dominados. Por sua vez, os chamados primitivos recusam

essa divisão. Como pondera Clastres (2010), a perspectiva evolucionista percebe

na história uma necessidade humana por formas sociais que são mecanicamente

produzidas e conectadas, o que leva a uma noção equivocada da sociedade sem

Estado como o “grau zero” do progresso. Mas, não. Os esforços dos “selvagens”

estão em negar esse poder autoritário, impedir a relação de dominador e

dominado, e preservar a unidade plena da sociedade.

Rocha (2002) faz uma associação entre o poder nas sociedades sem Estado e

a influência da Comunicação de Massa na sociedade contemporânea. Se as tribos

rejeitam a divisão entre dominadores e dominados, o chefe não deve exercer

autoridade sobre a comunidade. Sua função fica, portanto, limitada a servir como

porta-voz entre seu grupo e os “outros”. Conforme indica o autor: “Ele é emissor,

na direção da tribo, de um discurso do poder que, aí sim, a tribo, e apenas ela,

pode possuir e exercer.” (Rocha, 2010, p.186). Mas, se o chefe é destituído do

poder, ele tem o desafio de persuadir o grupo para as decisões que são tomadas

coletivamente. O chefe não declara ou desiste da guerra em seu comando. Ele

deve ser antes de tudo conciliador e esta função se dá pela palavra, que é

incessante, porém, nunca autoritária. Nesse sentido, a persuasão da Comunicação

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de Massa se aproxima da noção de poder das sociedades primitivas, tal como

esclarece a passagem abaixo:

Qualquer etnógrafo que “entrasse” nesta sociedade iria perceber que

nela existe algo como um vácuo de poder, uma ausência da

configuração do espaço do Estado. Não há lugar para o poder de

polícia. Ali é muitíssimo estranho para alguém dar uma ordem. Mais

ainda, para o outro ter que a obedecer. Lá dentro a palavra é

obrigatória e, como vimos, a obrigação da palavra é uma forma de

mantê-la na disjunção do poder. E a palavra ali tem nome: persuasão.

A Indústria Cultural tem que falar, é obrigada a esta fala. Mas,

ninguém é obrigado a ouvir, muito menos dar atenção. É a palavra

vazia de poder e plena de persuasão (Rocha, 2002, p.190).

Na sociedade moderno-contemporânea, a mídia apresenta cotidianamente

uma série de informações, ideias, dicas, truques, alertas e recomendações que

indicam quais comportamentos de consumo são bons ou ruins, aceitáveis ou

condenáveis, saudáveis ou perigosos. Mas, para atrair o leitor, ouvinte ou

telespectador, o seu discurso não deve ser autoritário, mas persuasivo. A força da

sua “fala” está no convencimento e não na imposição. Já a entidade do Estado-

Nação pode ser resumida da seguinte forma:

Do lado prático, os governos dos Estados-nações, ou dos Estados

territoriais modernos - quaisquer governos -, apoiam-se em três

presunções: primeiro, que eles têm mais poder do que qualquer outra

unidade que opere em seus territórios; segundo, que os habitantes dos

seus territórios aceitam mais ou menos de bom grado a sua autoridade;

e terceiro, que eles podem proporcionar aos habitantes serviços que de

outra maneira não poderiam ser prestados com efetividade, como é o

caso da manutenção da lei e da ordem (Hobsbawn, 2007, p.104).

Essa relação de segregação e dominação se encontra, portanto, no cerne da

sociedade moderno-contemporânea. Conforme esclarecido no primeiro capítulo,

toda cultura carrega o etnocentrismo em si, pois esse sentimento de estranheza em

relação ao “outro” consiste em uma reação de defesa contra a diferença a fim de

preservar a identidade cultural. Porém, se todas as culturas são etnocêntricas,

apenas a cultura moderna é etnocidária. Segundo define Clastres (2010), o

etnocídio sustenta uma visão do “outro” como diferença, mas, sobretudo,

diferença errada. Não que o “diferente” seja visto como positivo nas demais

culturas, pois no etnocentrismo também há uma lógica hierárquica onde uma

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cultura se considera em um grau superior de humanidade em relação às outras.

Mas, enquanto a visão etnocêntrica se limita a distinguir o “outro”, a prática

etnocidária pretende eliminar a diferença no outro. O etnocídio constitui assim

uma forma de supressão das diferenças culturais tidas como inferiores ou

maléficas: resulta na dissolução da pluralidade em unidade, transforma a

diversidade em igualdade. Pois, esse movimento de unificação consiste no próprio

projeto do Estado, que recusa a diferença e produz a identificação em um

exercício de autoridade.

Segundo Clastres (2010), etnocídio e genocídio tem em comum a negação

da diferença. No entanto, a visão genocidária é “pessimista” ao enxergar o

diferente como um mal que precisa ser exterminado. Já a perspectiva etnocidária é

“otimista”, pois reconhece o nocivo na diferença, mas acredita que pode modificá-

la e impor ao “outro” a identificação com a sua cultura dominadora. Por exemplo,

a imposição da religião católica na América do Sul durante o período de

colonização, que buscava extinguir qualquer particularidade cultural dos povos

indígenas. Mas, se a sociedade moderno-contemporânea nutre o etnocídio em

relação à diferença, esse impulso em negar a multiplicidade acaba se revelando

em outros níveis que não somente em direção a uma etnia distinta. A negação da

diferença se volta contra nós mesmos. Em níveis variados, tendemos a rejeitar o

que há de plural entre nós e buscar a identificação em um modelo único.

Parece uma contradição, quando tomamos o individualismo como valor

dominante da cultura ocidental de hoje, sugerir que rejeitamos a diferença e

almejamos um modelo comum. Mas, vejamos o seguinte. Sfez (1996) faz um

paralelo entre o reducionismo, como método prático e argumento metafísico, e o

movimento da ciência contemporânea em desvendar a vida humana por sua menor

unidade, os genes. A “verdade” está no indivíduo, em sua partícula mais

microscópica, pronta para ser decodificada. Ocorre que uma vez revelada ao

mundo, essa verdade não alimenta uma aceitação às diferenças, e sim uma

exclusão dos desviantes. O “eugenismo” busca o modelo ideal tanto por incentivar

os mais aptos quanto pela eliminação dos mais fracos. Exemplo radical desse

conceito foi o chamado Aktion T415

iniciado por Hitler em 1939 como um

programa de eutanásia para os indivíduos indicados como doentes incuráveis,

15 T4 Program (Nazi Policy), Brittanica online. Disponível em:

http://www.britannica.com/EBchecked/topic/714411/T4-Program.br (acessado em 21/01/2013).

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deficientes físicos ou mentais, histéricos e idosos. Essas pessoas seriam

classificadas como inadequadas para viver e, portanto, deveriam receber uma

morte misericordiosa em câmaras de gás. O programa é considerado precursor do

Holocausto, pois, mesmo tendo sido descontinuado oficialmente em 1941, na

prática se manteve até o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945. Extinguem-se

as imperfeições, e assim cria-se um mundo perfeito. Como resume Sfez (1996,

p.176):

O que é assombroso desde o século XIX é a continuidade, que se

acreditou rompida pela experiência nazista. O que acabou em 1945 foi

a dupla política do eugenismo positivo (o estímulo dos mais aptos) e

do eugenismo negativo (a eliminação dos mais fracos). Mas o

essencial continua sob a forma nobre e “incontestável” da ideologia do

progresso humano. Como sublinha Joan Rotschild, essa ideologia

consiste na crença hierárquica da espécie (o homem no topo), na

crença nas hierarquias no interior da espécie (alguns humanos são

melhores que outros) e na crença na melhoria do homem e sua

perfectibilidade.

Essa negação interna das diferenças se funda na predominância do valor do

indivíduo na cultura moderna, que busca em si um padrão idealizado de perfeição.

No cotidiano contemporâneo, essa perspectiva pode aparecer em doses mais

brandas, no discurso e práticas discriminatórias, que observamos com razoável

condescendência, contra gordos, deficientes, idosos, doentes, pobres, etc. No

limite, essa noção produz consequências graves, como as que ocorreram durante

as décadas 1930 e 1940 com o nazismo. Dumont (1992) sugere o totalitarismo

como uma doença própria da cultura moderna: uma reação da sociedade contra o

individualismo, profundamente enraizado e predominante como valor, que se

traduz em uma tentativa drástica de subordiná-lo. É uma reflexão complexa. Mas,

por mais individualistas que possamos ser a convivência social é realidade

concreta e imprescindível à existência. Ao menos por enquanto.

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