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III ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA POPULAR Negócio da música em tempos de interatividade 30 de agosto a 1º de setembro de 2011 – Faculdade Boa Viagem–Recife-PE 1 ARTISTA IGUAL PEDREIRO: 1 Notas sobre o papel do músico hoje Sarah Oliveira Quines 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Resumo: Este trabalho é uma tentativa de apontar algumas modificações no papel do músico no atual contexto da música brasileira. A partir do referencial teórico dos Estudos Culturais, utiliza-se o processo das representações – inserido no Circuito da Cultura, descrito por Paul Du Gay e por Stuart Hall, em conjunto com a Economia Política da Comunicação, para desenvolver ideias acerca de como se reconfigura a atuação do artista em meio à já anunciada crise da indústria da música. O ponto de partida desta pesquisa foi a análise de um texto e de sua repercussão no fórum de um site na internet, que gerou quase 500 comentários. O texto em questão é a “Carta aberta aos músicos e artistas” 3 , de autoria de João Parahyba, percussionista do Trio Mocotó. Inicialmente publicada na lista de discussão da Rede Música Brasil, a carta foi liberada pelo autor para publicação no site Scream and Yell locus desta pesquisa empírica. Não se buscou apontar a verdade por trás do que foi dito, julgando quem está certo e quem está errado, nem fazer o papel de advogado do diabo, mas pensar criticamente os temas imbricados no debate e como eles representam o que é ser músico na atual cena independente. Palavras-chave: Estudos Culturais, Representações, Música independente, Indústria da música e campo musical. Introdução O histórico da produção fonográfica independente no país data do começo da década de 1960, apesar de se encontrar registros esparsos anteriores, com a Disco Popular, fundada em 1919 no Rio de Janeiro, por João, ex-diretor de gravação da Casa Edison (DIAS, 2000, 135-136). 1 Trabalho apresentado ao GT (3): Mídia, música e mercado, do III Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 30 de agosto a 1º de setembro de 2011, na Faculdade Boa Viagem, em Recife-PE. 2 Bolsista CAPES e mestranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ, na linha de Mídia e Mediações Socioculturais, sob orientação do Profº Drº Micael Herschmann. E-mail: [email protected] . Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4484794A0 3 A carta pode ser conferida na íntegra no link http://screamyell.com.br/site/2010/04/13/carta-aos-musicos-e- artistas/. Acessado em 07/06/2011

30 de agosto a 1º de setembro de 2011 - musica.ufma.brmusica.ufma.br/musicom/trab/2011_GT3_06.pdf · que funciona desse modo, pode ser pensado, de modo geral, de acordo com os princípios

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Negócio da música em tempos de interatividade

30 de agosto a 1º de setembro de 2011 – Faculdade Boa Viagem–Recife-PE

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ARTISTA IGUAL PEDREIRO: 1

Notas sobre o papel do músico hoje

Sarah Oliveira Quines2

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro /

Resumo: Este trabalho é uma tentativa de apontar algumas modificações no papel do músico no atual contexto da música brasileira. A partir do referencial teórico dos Estudos Culturais, utiliza-se o processo das representações – inserido no Circuito da Cultura, descrito por Paul Du Gay e por Stuart Hall, em conjunto com a Economia Política da Comunicação, para desenvolver ideias acerca de como se reconfigura a atuação do artista em meio à já anunciada crise da indústria da música. O ponto de partida desta pesquisa foi a análise de um texto e de sua repercussão no fórum de um site na internet, que gerou quase 500 comentários. O texto em questão é a “Carta aberta aos músicos e artistas” 3, de autoria de João Parahyba, percussionista do Trio Mocotó. Inicialmente publicada na lista de discussão da Rede Música Brasil, a carta foi liberada pelo autor para publicação no site Scream and Yell – locus desta pesquisa empírica. Não se buscou apontar a verdade por trás do que foi dito, julgando quem está certo e quem está errado, nem fazer o papel de advogado do diabo, mas pensar criticamente os temas imbricados no debate e como eles representam o que é ser músico na atual cena independente.

Palavras-chave: Estudos Culturais, Representações, Música independente, Indústria da música e campo musical.

Introdução

O histórico da produção fonográfica independente no país data do começo da década de 1960,

apesar de se encontrar registros esparsos anteriores, com a Disco Popular, fundada em 1919 no Rio de

Janeiro, por João, ex-diretor de gravação da Casa Edison (DIAS, 2000, 135-136).

1 Trabalho apresentado ao GT (3): Mídia, música e mercado, do III Musicom – Encontro de Pesquisadores em

Comunicação e Música Popular, realizado no período de 30 de agosto a 1º de setembro de 2011, na Faculdade

Boa Viagem, em Recife-PE.

2 Bolsista CAPES e mestranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ, na linha de Mídia e Mediações

Socioculturais, sob orientação do Profº Drº Micael Herschmann. E-mail: [email protected] .

Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4484794A0

3 A carta pode ser conferida na íntegra no link http://screamyell.com.br/site/2010/04/13/carta-aos-musicos-e-

artistas/. Acessado em 07/06/2011

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A literatura da área toma por marco inicial a produção realizada a partir da década de 1970,

em que de fato há uma articulação da música alternativa em São Paulo. O disco “Feito em casa”, de

Antônio Adolfo, é significativo para o desenvolvimento da cena independente. (VICENTE, 2005).

Nesse sentido, surge uma organização política alternativa ao mercado da indústria fonográfica

tradicional.

A cena alternativa desenvolvida na região da Vila Madalena e na Praça Benedito Calixto foi o

grande catalisador das produções da música independente no começo dos anos 80. A “Vanguarda

Paulista” foi o cenário onde Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, dentre outros, emergiram com suas

produções musicais, no espaço do Lira Paulistana (OLIVEIRA, 2002). Entretanto, naquela época a

movimentação da música independente se dava em localidades muito específicas, e ainda não existia

uma conexão entre os diferentes pontos de produção e consumo de música, nem uma circulação que

atravessasse o país fora das metrópoles, principalmente Rio e São Paulo.

O surgimento de novas tecnologias traz a mudança significativa das relações produtivas do

rock no final do século XX, bem como da configuração do mercado de trabalho para músicos. O

formato de armazenamento de arquivo de áudio em mp3 foi crucial para a alteração do consumo de

música. Devido ao seu tamanho compacto em relação ao de um CD, o mp3 possibilita a facilidade de

realizar download de uma música ou de um álbum inteiro pela internet. A partir dessa mudança, há

uma demanda por novas relações com a produção de música. Por exemplo, o armazenamento de faixas

em sites como o Myspace. É necessário um domínio das novas tecnologias, para mudar o status de

produção massificada para uma produção alternativa, a ser consumida pelas minorias. (BRANDINI,

2007, p. 53)

A visibilidade da música produzida no Brasil sempre esteve concentrada no eixo hegemônico

Rio-São Paulo. Atualmente, por meio de divulgação em blogs e portais, o que se percebe é a

valorização da música feita também fora dos limites das grandes metrópoles. Além da circulação dos

artistas na rede, também há uma intensa articulação no âmbito virtual, entre os diferentes agentes, que

se concretiza na organização de festivais de música independente.

A certeza é a de que a velha fórmula dos fonogramas dos grandes conglomerados já não

contempla o cenário atual da música, tendo em vista o desenvolvimento da internet, e a consequente

troca de arquivos em sites P2P, que facilitou e aumentou substancialmente o consumo de música, ao

mesmo tempo em que diminuiu as cifras de consumo de discos. A crise não é da música propriamente,

mas do sistema que deve se reestruturar de acordo com o momento atual.

Há um deslocamento nos processos de consumo de música, nos quais a indústria tem

investido: se antes a finalidade era vender mais discos, hoje as apresentações ao vivo parecem ser uma

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alternativa para a promoção de novos artistas. No Brasil, há uma intensa movimentação nesse sentido:

a Abrafin (Associação Brasileira de Festivais Independentes) reúne mais de 40 festivais, que, em um

ano, atingem um público estimado em 300 mil pessoas, fazendo circular mais de 600 bandas pelo

país4.

No entanto, como apontado por Herschmann (2010, p.148), ainda que os festivais

independentes tenham desenvolvido um modelo sustentável, o artista/banda continua enfrentando o

problema da sustentabilidade. O festival é visto como o celeiro das grandes novidades, um espaço de

circulação de diferentes agentes do processo, facilitando o diálogo entre eles. Também é um espaço

onde as banquinhas de produtos dos músicos (discos, camisetas, bottons, adesivos) são vendidos. No

entanto, deve-se ter a noção de que o artista não sobrevive apenas dos festivais, apesar de estabelecer

contatos para shows e outras programações a partir deles.

É nesse contexto de transição e instabilidade, em que o disco está em franca decadência, e as

fórmulas da indústria da música são reconfiguradas, como no caso dos festivais, que devemos também

pensar o papel do artista no meio de toda essa movimentação. Há quase uma década, em 1992, um dos

donos do estúdio Uptown, Cícero Pestana, já havia declarado “acabou-se o tempo dos músicos que

sabiam apenas tocar. Hoje tem que entender estas maquininhas (computadores)”5.

Os Estudos Culturais hoje

Para pensar a representação do papel do artista no contexto atual da música, a abordagem dos

Estudos Culturais parece-nos pertinente. De modo sucinto, os estudos culturais estão interessados nas

relações entre textos, grupos sociais e contextos, ou ainda, em termos mais genéricos, entre práticas

simbólicas e estruturas de poder (ESCOSTEGUY & JACKS, 2005, p. 39).

A corrente pioneira de estudos desenvolvida no Center for Contemporary Cultural Studies

(CCCS) realizou pesquisas sobre as subculturas emergidas no pós-guerra na Inglaterra. A partir de

uma análise do texto e da técnica etnográfica, realçaram o lazer subcultural de mods, teddy boys,

rockers, skinheads, como veículo de dissenso e os estilos emergentes como símbolo de respostas

4 Fonte: site da Abrafin. http://www.abrafin.com.br/sobre.php Acessado em: 06/06/2011.

5 Depoimento presente no artigo de Vicente (2005).

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culturais dos jovens para os problemas advindos de sua condição de classe (FREIRE FILHO, 2007, p.

33).

A partir dos anos 1980, as pesquisas passaram a focar o âmbito da recepção, nas análises de

audiência dos meios de comunicação. Entre as críticas direcionadas aos estudos culturais, Kellner

(2001) aponta que eles estariam deixando de lado a produção da cultura e sua relação com a economia

política, apenas celebrando as mensagens analisadas oriundas das audiências. O que não se pode

esquecer é o princípio fundamental dos estudos em questão: analisar o texto e o contexto, aliando os

estudos culturais à economia política, numa análise da economia política da cultura.

O circuito da cultura foi empreendido na análise do Sony Walkman, numa biografia desse

artefato cultural, em um modelo teórico baseado em processos distintos cuja interação pode levar a

diferentes resultados. O circuito busca explorar como o artefato está representado, quais identidades

sociais estão atreladas a ele, como ele é produzido e consumido, e quais mecanismos regulam seu uso

e distribuição (DU GAY et al, 1997a, p. 3).

A parte do circuito que analisaremos aqui, a representação, é entendida como a prática de

construir sentidos através do uso de signos e da linguagem (id, p.24). A representação atua

simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior, de modo que as identidades

adquirem sentido por meio da linguagem e os sistemas simbólicos pelos quais são representadas

(HALL apud WOODWARD, 2000, p. 8). Nosso objetivo é o de verificar quais os significados que

circulam nas respostas dos sujeitos no que se refere à função do artista.

Para Hall (1997), a linguagem é uma prática significante, e qualquer sistema representacional

que funciona desse modo, pode ser pensado, de modo geral, de acordo com os princípios da

representação através da linguagem. Fotografia, exibição em um museu ou galeria, a música, ou a

própria fala dos sujeitos – que é o caso analisado aqui - são exemplos do que pode ser entendido como

um sistema de representações.

Aumentar o escopo de objetos dos Estudos Culturais é imperativo, tanto para combater as

críticas quanto para empreender análises dos processos contemporâneos na esfera cultural, se não

solucionando, ao menos refletindo acerca das problemáticas que se formulam hoje. Negus (apud

HERSCHMANN, 2010, p. 53) afirma que para compreender a relação dialética de como a indústria

produz cultura e de como a cultura também produz a indústria, devemos constituir uma agenda de

pesquisa e metodologia que correspondam à demanda dos questionamentos.

Interessa-nos analisar o papel do músico a partir da combinação do aspecto simbólico, com

uma análise da representação do que é ser músico na cena independente, aliada a uma análise do

aspecto da economia política da comunicação, isto é, quais são as estratégias de sustentabilidade dos

artistas no contexto da crise da indústria fonográfica? A cultura econômica auxilia na reflexão acerca

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da importância da linguagem e da representação para além da esfera econômica, influenciando no

consumo e na construção de identidades (DU GAY, 1997b).

Buscamos, portanto, realizar uma análise da relação do artista com as modificações da

indústria da música, aplicando o circuito da cultura6. Nossa contribuição é pertinente no sentido em

que se utiliza de uma teoria usada anteriormente na análise de um artefato cultural específico – o Sony

Walkman, para pensar uma relação entre sujeitos – os artistas da música independente brasileira - e

seu contexto.

Nossa análise se dá num campo específico, o da música. Para tanto, é interessante citar o

conceito de campo desenvolvido por Bourdieu:

“um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desses espaços – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças” (1997, p.57).

Para Frith (1996, p.61), o campo musical é formado por quatro atores sociais: os músicos, os

produtores, a crítica e os consumidores. Como dito por Bourdieu em sua teoria dos campos

(CANCLINI, 2004, p.61), deve-se situar o artista e sua obra no sistema de relações formado pelos

agentes sociais vinculados à produção e comunicação da obra, o qual inclui artistas, editores,

publicitários, críticos e público.

A reconfiguração do papel do músico

A representação clássica do rockstar é a de uma vida regada a festas, seguido por uma legião

de aficionados pelo seu som, não raro recebendo o status de celebridade divina que pisou na Terra.

Sem falar nas exigências extravagantes de camarim, como o famoso caso da tigela de M&M’s de Van

Halen, que não poderia ter nenhum marrom ou o mito das 200 toalhas brancas. É necessário esclarecer

que aqui não estamos tratando dos artistas circunscritos ao mainstream, os quais, apesar de também

6 Neste primeiro momento, nossa abordagem está centrada na instancia da representação. Nos próximos

passos da pesquisa de dissertação, desenvolveremos as outras etapas do circuito da cultura.

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sentirem o impacto da crise da indústria fonográfica, já são consagrados e estão inseridos na lógica

produtiva dos grandes selos. Nosso foco é o rol de artistas atuantes na cena musical independente do

país.

A partir dos anos 2000, podemos indicar o nascimento de algumas entidades importantes para

o momento atual da música independente no país: a fundação da ABMI (Associação Brasileira de

Música Independente)7 em 2002, que reúne pequenos e médios selos/gravadoras; as Casas Associadas

(Associação Brasileira das Casas de Shows Independentes)8, criada em 2008, com o objetivo de

conectar os espaços que abrem oportunidades a bandas autorais, DJs e novos produtores; e os festivais

como Abril Pró Rock, que já está na sua 19ª edição, sendo o primeiro entre outros festivais que

integram a Abrafin (Associaçao Brasileira de Festivais Independentes), criada em 2005, com o intuito

de reunir, organizar e potencializar o circuito de festivais de música independente. Outro ponto que é

fundamental para a articulação da cena independente nacional é o Circuito Fora do Eixo, uma rede de

trabalhos concebida por produtores culturais das regiões centro-oeste, norte e sul no final de 2005,

cuja meta inicial era estimular a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o

escoamento de produtos nesta rota que ficava à margem do eixo Rio-São Paulo.

Em meio a essa efervescência que está sendo celebrada nos festivais por todo o Brasil, fora e

dentro do eixo, chamou a atenção a discussão gerada em torno do manifesto de João Parahyba,

principalmente pelos sujeitos envolvidos no debate: jornalistas, produtores de festivais, consumidores

entusiastas da música independente e, claro, os músicos. Nomes como os jornalistas Alex Antunes,

Terence Machado, José Flávio Júnior, Humberto Finatti; os produtores culturais Miranda, Anderson

Foca e Fernando Rosa; os integrantes da Abrafin – Pablo Capilé, Fabrício Nobre e Talles Lopes; os

músicos como Otto Ramos (Minibox Lunar), Ynaiã Benthroldo (Macaco Bong), além de integrantes

dos coletivos integrados ao Fora do Eixo se manifestaram na discussão.

A grande questão levantada por Parahyba é a de que o músico, que seria o “verdadeiro sujeito”

do que acontece na música, estaria tendo seu papel diminuído em relação ao dos produtores e seus

festivais, que recebem verba pública para realizar os eventos, mas que não pagam cachê para os

artistas. O músico acusa os festivais de serem jabá institucionalizado, como as rádios das quais se

reclama há tanto tempo:

7 http://www.abmi.com.br/website/default.asp Acessado em 07/06/2011.

8 http://casasassociadas.com.br/ Acessado em 07/06/2011.

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“Se reclamar não entra mais na rádio, TV e/ou no circuito dos festivais, como temos exemplos de vários amigos artistas que foram excluídos das rádios e dos festivais por se manifestarem contra o jabá e/ou não pagamento de cachês nos festivais pelo Brasil afora”.

Da leitura realizada dos quase 500 comentários juntamente ao manifesto de Parahyba,

desconsiderando as ofensas e acusações de cunho pessoal, podemos inferir alguns pontos relevantes: a

questão do cachê do artista; a visão dos festivais como o novo jabá institucionalizado; o equilíbrio na

circulação das bandas pelos festivais, a qualidade estética das bandas x ativismo empreendedor e, por

último, a importância do artista em relação aos outros agentes da cadeia produtiva da música.

A sustentabilidade do músico é a questão da qual Parahyba parte: os festivais não pagam

cachê para as bandas, alegando que o evento é uma vitrine para o trabalho do artista. De fato, para os

artistas que já estão em circulação a um certo tempo, parece um absurdo não receber pelo trabalho

realizado. No entanto, para as novas bandas, é uma oportunidade poder circular pelo país:

Eu nunca toquei em Manaus, então não adianta eu chegar e pedir pra me pagarem 2000 reais de transporte pra eu chegar lá. Iguais à minha banda (Visitantes, muito prazer) existem trocentas bandas independentes levantando o dedinho pra tocar nas mesmas condições! Eu sei que, embora a gente já tenha rodado bastante, eu não vou levar 100 pessoas que vão pagar entrada e consumir, num rolê na capital do amazonas. (Fábio Cardelli)

A partir da sua exposição nos festivais, a banda fica conhecida, podendo estabelecer contatos

para apresentações futuras na localidade. Além de adquirir capital econômico por meio da venda de

CDs, camisetas e adesivos, o artista também investe no capital simbólico (BOURDIEU, 1998), através

da formação de público:

Investir é querer que um novo modelo de circulação aconteça no país. É o que tá rolando nas Turnês Fora do Eixo, por enquanto no Sudeste e no Nordeste. É saber que em determinados momentos é estratégico investir o cachê de um festival pra viabilizar outros shows. Em vez de dois, fazer 12 shows numa região distante da sua. (Eduardo Di Deus)

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Sobre o jabá institucionalizado, a acusação é a de que os festivais contam com apoio da

iniciativa pública e privada, mas ainda assim não pagam cachê para as bandas, e aquelas que não

concordam ficam de fora, da mesma forma que ficaram de fora das rádios, as bandas que eram contra

o jabá. Esse é um ponto que está relacionado ao anterior: uma banda nova, que no modelo anterior da

lógica das gravadoras não teria chance de divulgar seu trabalho, tem nos festivais a oportunidade de

tocar para um público considerável. Dias (2000, p.165) apurou informalmente que, numa transação

entre um músico independente e a rádio Música FM, para tocar cinco vezes num dia uma mesma

música, durante um mês, o valor era de 10 mil reais. Quantas bandas iniciantes teriam capital para

investir em jabá? Como foi dito ao longo dos comentários, enquanto as rádios investiam em hits como

Anna Júlia, de Los Hermanos, hoje várias bandas menores conseguem circular com mais facilidade do

nordeste ao sul.

Um ponto levantado por Marcelo Costa, editor do site, é o de que haveria uma “panela” na

qual determinadas bandas tocam mais do que outras nos festivais e questiona o porquê disso. Como

dito por Woodward (2000, p.18), as relações de poder estão presentes em todas as práticas de

significação, e é nesse sentido que se enquadra a questão: quem tem o poder de decidir quais bandas

vão tocar e quais são os motivos de escolher a banda x e não a banda y. É fato que existem muito mais

bandas do que espaço para todas divulgarem de modo igual o seu trabalho. Como levantado em uma

das respostas do jornalista Alex Antunes, alguns dos possíveis motivos de isso acontecer seriam:

artistas com cachê proibitivo e/ou agendas apertadas; artistas com perfil difícil ou controverso pra

festival; artistas superestimados pela lista citada antes por Marcelo Costa.

Se as condições de distribuição da música nova brasileira são hoje muito mais amplas e acessíveis, isso passa pelo grande quantidade de festivais, que chegam ao papel de educar cidades a respeito dos gêneros muitas vezes renegados na região, como o caso do rock em Goiânia, antes império sertanejo. Se existem dúvidas em relação a eles, precisam ser levantadas junto às fontes e soluções precisam ser sugeridas. Especialmente quanto à curadoria artística dos mesmos. (Miranda)

Outra questão importante mencionada é o que pesa mais, se a qualidade estética da banda ou o

seu modo de autogestão. Marcelo Costa comenta que, da lista dos 25 melhores discos de 2009 segundo

68 convidados do site, “boa parte nunca tocou [nos festivais] enquanto banda que nem disco tem já

tocou dezenas de vezes”. A pergunta direcionada ao baterista da banda Macaco Bong: “uma banda

ruim que - como você disse - mete a mão na massa, vai atrás, ganha edital de passagem e faz a roda

girar, mesmo sendo ruim é mais importante que uma banda boa que não meta a mão na massa?”. A

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legitimação de um artista no campo musical não depende apenas da esfera da produção. Ela também

depende do consumo cultural:

O consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais consuminos como algo mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais, tal como costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado (CANCLINI, 1996, p.53).

É a partir do consumo cultural realizado pelo público e pela crítica que a banda continuará

circulando na cena:

Uma banda ruim, mesmo que ralar, passar em editais e o escambal a quatro, vai conseguir tocar durante um ano e depois vai sumir, ja que não terá publico e não agradará os jornalistas, portanto não será mais chamada pra tocar. Desta forma é obvio que uma banda boa que não meta a mão na massa será mais importante do que a ruim. (Ynaiã Benthroldo)

Por fim, a última questão a ser citada aqui se refere à importância do artista na cadeia musical.

No seu manifesto, Parahyba afirma:

Quem são os verdadeiros sujeitos disso tudo que está acontecendo na música brasileira, ontem, hoje e amanhã?! Somos Nós! Artistas! Músicos e autores! Que fazemos desta arte a nossa vida, e no que diz respeito a estilos, gêneros e ritmos. Somos únicos! Sem nós, não existe música…. CD, DVD, Fonograma, rádio, show na televisão, mostra, festival, baile, casamento, carnaval e São João. Não existe nada!

A Revista Rolling Stone elegeu o álbum “Artista igual pedreiro” da banda Macaco

Bong como o melhor álbum nacional de 2008. A lógica presente no título do disco e

defendida pela banda é a de que o trabalho do músico é mais uma parte integrante do circuito

da música, e derruba a ideia do gênio iluminado e endeusado, representação com a qual os

músicos se identificavam no passado, mas que ainda tem remanescentes.

Esse ser, o “roqueiro”, foi criado numa fase da contracultura em que ela era antimercado. Só que depois se tornou chique destruir quarto de hotel - e ser pago pra

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isso. E ainda ser incensado pela imprensa. O melhor dos mundos. O Guns’n'roses foi o último suspiro disso, já faz tempo. (...) ora, o mercado já foi destruído, porra. Trabalhamos quase cinco décadas para isso. Acabou a mega grana da mega venda de suporte físico. Portanto, não adianta ter banzo dos anos 80. (Alex Antunes)

Talvez o rockstar ainda não esteja morto, mas tá agonizando. O que tá nascendo ainda tá na infância, mas já mostra sua cara: uma mistura de empreendedor com anarquista, de técnico com louco, de transpiração com inspiração. Não necessariamente tudo-ao-mesmo-tempo, mas cada vez mais o artista-rockstar vai se reproduzir menos. (Eduardo di Deus)

A análise das respostas ao manifesto de João Parahyba, podemos perceber os sentidos

presentes na representação do trabalho do artista hoje como não mais restrito à esfera da

composição criativa das músicas e da performance ao vivo. Nessa construção, de tijolo em

tijolo, também se inserem estratégias de circulação, pois não basta mais apenas produzir, é

preciso pensar também a circulação do produto, de maneira a conquistar público para

consumi-lo.

Hoje músico tem que pensar em sua carreira como um todo, não tem mais gravadora, empresário, babá. Ou se faz tudo de forma integrada, ou não vai rolar nada. E isso, citando novamente o Miranda, não é culpa de ninguém, é da vida. A solução sim, não pode ficar esperando pela vida, mas precisa da nossa intervenção. E hoje, como disse no Twitter outro dia, a produção cultural, musical, é tão importante quanto a construção de redes, plataformas… (Fernando Rosa)

Nesse sentido, os artistas independentes exploram as ferramentas presentes na internet,

como as redes sociais de divulgação de música, tais como MySpace e as nacionais Melody

Box9 e Toque no Brasil10. Esta última, além de servir como uma ferramenta para divulgação

das bandas, também oferece oportunidades nas quais os artistas podem se inscrever e contatar

produtores. Além do uso das ferramentas da internet, alguns artistas também integram

coletivos do Fora do Eixo, possibilitando o seu diálogo com diferentes regiões do país. A

9 http://www.melodybox.com.br/ Na Melody Box, os artistas são filtrados e ranqueados, têm acesso a uma

rede de serviços oferecidos por profissionais da indústria, e a chance de participar de oportunidades como

shows e coletâneas. Acessado em 07/06/2011.

10 http://tnb.art.br/ O Toque no Brasil é uma rede de oportunidades que visa dinamizar e fortalecer o laço

entre os elos da cadeia de valor da música, facilitando o encontro entre quem faz música e quem contrata

músicos. Acessado em 07/06/2011.

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partir dessas novas estratégias e modos de se articular na cena musical, os artistas passam a

ser os sujeitos da sua produção, e também da circulação.

Pelas respostas, podemos identificar duas principais representações do papel do artista

atualmente: a de que ele é apenas um dos agentes da “construção”; a qual conta com outros

pedreiros, como o produtor musical, a crítica e o público. A outra representação é a de que o

artista pode realizar um autogerenciamento de sua carreira, indo em busca da tão sonhada

sustentabilidade. Como disse o integrante da banda Mini Box Lunar:

Artista que sobreviverá será aquele que se descobrir que o palco não é dádiva e que ele não é a gênese e nem o fim, é parte de um todo. (Otto Ramos)

Referências bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1997.

_________________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BRANDINI, Valéria. Cenários do Rock: Mercado, produção e tendências no Brasil. 2. ed. São Paulo: Olho D' água, 2007.

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III ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA POPULAR

Negócio da música em tempos de interatividade

30 de agosto a 1º de setembro de 2011 – Faculdade Boa Viagem–Recife-PE

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