12
NA TEMPORADA DOS LIVROS ESCOLARES, FOMOS À LISTA DOS TÍTULOS SUGERIDOS PELO PLANO NACIONAL DE LEITURA – PARA USO FORA DA SALA DE AULA – E ELEGEMOS CERCA DE TRINTA. SÃO A NOSSA ESCOLHA PARA LEITURA OBRIGATÓRIA COM O APOIO DOS PAIS. FAÇAM O FAVOR DE ALARGAR A LISTA DE COMPRAS. PARA ALÉM DOS LIVROS ESCOLARES TEXTOS DE FILIPA MELO, JOSÉ MÁRIO SILVA E ROGÉRIO CASANOVA ©Getty Images 42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 42

30 Livros Do PNL

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 30 Livros Do PNL

NA TEMPORADA DOS LIVROS ESCOLARES, FOMOS À LISTA DOS TÍTULOS SUGERIDOS PELOPLANO NACIONAL DE LEITURA – PARA USO FORA DA SALA DE AULA – E ELEGEMOS CERCADE TRINTA. SÃO A NOSSA ESCOLHA PARA LLEEIITTUURRAA OOBBRRIIGGAATTÓÓRRIIAA COM O APOIO DOSPAIS. FAÇAM O FAVOR DE ALARGAR A LISTA DE COMPRAS.

PARA ALÉM DOSLIVROS ESCOLARES

TEXTOS DE FILIPA MELO, JOSÉ MÁRIO SILVA E ROGÉRIO CASANOVA

©Getty Im

ages

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 42

Page 2: 30 Livros Do PNL

8-10 anosLETRAS & LETRIASJOSÉ JORGE LETRIA (TEXTO) E ANDRÉ LETRIA(ILUSTRAÇÃO) DOM QUIXOTEAtravés de espontâneas figuras fonológicas,sintácticas ou semânticas, as crianças pro -curam reproduzir o mundo da linguagem dosadultos. Então, os adultos surpreendem-se como mundo da linguagem das crianças. E se umadulto decide brincar ao mesmo jogo? O exer-cício só funcionará se conseguir «recriar» o es-tado de liberdade de quem pela primeira vezapreende algo fora de si e o procura verbalizar.Os surrealistas e o espanhol Ramón Gómez dela Serna tentaram-no através de «cadáveres es-quisitos» e «greguerías». A partir desses doisexemplos e da convicção de que «o poeta é umfarol a iluminar as palavras que ainda ninguémusou», José Jorge Letria e o filho, o ilustradorAndré Letria, compuseram Letras & Letrias.O desafio criativo de imaginação verbal e visualdo livro parte de 26 frases, como «a escuridãoé o pijama da noite», «o morcego dorme de cabeça para baixo para ver se, assim, o mundofaz sentido» ou «o amor é o que se diz só paraconfirmar o que se sente». Achados poético-lú -dicos, tão divertidos para as crianças quanto para os adultos. FM

A ILHA DO TESOUROROBERT LOUIS STEVENSON PORTO EDITORA

Esta aventura de marinha-ria e cobiça, publicada porStevenson em 1883, é ogran de arquétipo das histó-rias de piratas, uma narrati-va primorosa que inflamou

a imaginação de sucessivas gerações de crian-ças e adolescentes. No centro de tudo está JimHawkins, um jovem grumete que mergulhaà força na idade adulta, ao partilhar o convéscom homens de barba rija e poucos escrúpulosmorais (como Billy Bones, o cego Pew ou o mí-tico Long John Silver, com a sua perna de pau).Um pouco à semelhança do protagonista deMoby Dick, Hawkins sobrevive ao grande es-pectáculo da loucura humana, acelerada pelabusca insana de um baú cheio de moedas deouro, e regressa a casa para contar as suas pro-vações, tendo ainda a voz afiada do papagaiode Silver a pairar na sua memória. JMS

Apesar de a idade de Peter Pan nunca sermencionada no romance, «entre oito e 10anos» é uma boa aproximação. Esta será,também, a idade ideal para descobrir a imor-tal criação de J.M. Barrie (1860-1937), um ba-ronete escocês cujas características físicas einsólitos hábitos sociais tornariam a sua vi-da, nos dias de hoje, tão juridicamente difícilcomo a de Michael Jackson.Deformado por décadas de adaptações

emerchandising, Peter Pan é um dos arqué -tipos da literatura universal (juntamente como monstro de Frankenstein) que menos seme -lhanças tem com o material original. Qualquer

ser humano sabe que Peter Pan é o rapaz quese recusa a crescer, mas muitos serão surpre-endidos pela revelação de que Peter Pan tam-bém é o rapaz que se recusa a deixar de sercretino. (O Capitão Gancho, em comparação,comporta-se apenas como um tio rabugento.)Petulante, egoísta, mal-educado e praticamen-te suicida, ele é a mórbida encarnação dessaperene fantasia das mães: a «má companhia».Na página, contudo, nunca deixa de ser com-pulsivamente vívido. Enão haverá melhor ma-neira de viciar uma criança na leitura do queapresentar-lhe alguém tão insuportável quan-to ela – mas com a capacidade de voar. RC

PETER PANJAMES MATTHEW BARRIE RELÓGIO D’ÁGUA

SU

revista LER ( setembro 2008 ) 43

©Getty Im

ages

©Getty Images/Jonathan Barry

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 43

Page 3: 30 Livros Do PNL

OS MISERÁVEIS ROMANOSTERRY DEARY EUROPA-AMÉRICA

Horrivelmente divertida, terrivel-mente instrutiva, repleta de ilus-trações humorísticas, situaçõese descrições inconvenientes e depormenores «nojentos». É essa

a imagem de marca da colecção de livros ilus-trados de não-ficção infanto-juvenil «HistóriasHorríveis», criada pelo inglês Terry Deary(n. 1946), ex-actor, director e professor de teatroe gestor de museus. Desde o primeiro sucessode vendas, em 1993, Deary tornou-se uma má-quina de produção de best-sellers (vai em 185),ao ritmo de mais de uma dezena por ano. Pelocaminho, mesmo que alguns a contragosto, ospedagogos reconheceram-lhes qualidade «cien-tífica» e adoptaram-nos para os programas.«Histórias Horríveis» divide-se por várias

subséries que têm por denominador comumuma espécie de (des)dramatização criativado conhecimento. Esquadrinhando os bastido-res do saber e da sua transmissão convencio-nal, Deary explora a atracção das crianças pelatransgressão. Assim assume, também como pose mediática, um radical questionamento dopapel da escola na aquisição de instrumentoscognitivos práticos para a vida. FM

JANELA LARGALEMONY SNICKET TERRAMAR

Tu Escolhes, último livro de TeresaGuedes ilustrado por Rita Oliveira,podia emprestar o título a uma listade títulos para jovens leitores que,mais cedo ou mais tarde, conquis-

tam o seu primeiro território de liberdade.Podem começar por Janela Larga – em Se-

tembro é publicado A Aldeia Infame, o sétimodos 13 títulos desta colecção intitulada «Uma Série de Desgraças». Lemony Snicket, pseudó-nimo de Daniel Handler (n. 1970), é o misterio-so investigador e narrador das desventuras dostrês órfãos Baudelaire. Sobrevivem a adultos excêntricos discutivelmente fiáveis e ao condeOlaf, mestre em disfarces, perfídias e fugas, quetenta apoderar-se da fortuna que hão-de herdarcom a maioridade da irmã mais velha. Por ago-ra têm apenas a inteligente capacidade in ven -tiva de Violet, o saber enciclopédico de Klaus, os

dentes da pequena Sunny e a união, infinita paciência e boa educação. Snicket desacon -selha a leitura a quem gostar de histórias feli-zes. Sílvia Alves

ENCICLOPÉDIA PRÉ-HISTÓRICADINOSSÁURIOSROBERT SABUDA E MATTHEW REINHART ASSÍRIO & ALVIM

Há uns anos, em parte de -vido ao sucesso imenso dofilme Parque Jurássico, deSteven Spielberg, os dinos -sáurios entraram em forçano imaginário infantil e nun-ca mais de lá saíram. Hojeem dia, qualquer miúdo ou

miúda de oito anos sabe perfeitamente o que di -ferencia um Triceratopsde um TyrannossaurusRexe a erudição paleontológica dos petizes chegaaté a esmagar adultos com razoável cultura cien-tífica. Foi justamente a pensar nas crianças, semdeixar de piscar o olho aos mais velhos, que RobertSabuda e Matthew Reinhart, dois especialistas naarte do pop-up (aquelas figuras tridimensionaisque saltam literalmente das páginas), criaram este livro. Além da informação relevante sobre osvários tipos de dinossáurios, há 35 «esculturas» depapel que ora maravilham o leitor desprevenido,ora o assustam (abra-se, por exemplo, as páginasdedicadas aos «carnívoros» para ver o que acon -tece). A adaptação para português foi feita peloProf. Galopim de Carvalho, o que é sempre umagarantia de qualidade. JMS

Transferida para uma escola da área me-tropolitana de Lisboa, Mafalda seria sub-metida a bullying numa escala épica.Moralismos ecológicos, preocupaçõescom a paz mundial ou alusões crípticasa figuras da política internacional nãosão a melhor forma de angariar amigosno recreio; não passaria muito tempo atéque um dos seus inúmeros globos ter -restres lhe fosse arremessado à cabeça.Criada nos anos 60, Mafalda talvez nãotenha envelhecido da melhor forma. Jámuitos acusaram o humor de ser dema-siado datado (ou, mais intrigante, «de-masiado argentino»), mas a sua contí-nua popularidade universal parececontrariar essa ideia. Há muitas tiras ba-nais e muitas fórmulas repetidas de álbum para álbum, mas também há ine -gáveis recompensas.E tem a grande virtude de todas as

bandas-desenhadas de ensemble: pormuito que se antipatize com a prota -gonista, há sempre um ou outro perso-nagem secundário que redime a obrainteira. Particularmente recomendávelé Miguelito, um flâneur precoce comum cacho de bananas na cabeça, quetenta colocar as suas impressões digi-tais num gira-discos, «só para tirar umadúvida». RC

MAFALDA – IQUINO TEOREMA

44 ( setembro 2008 ) revista LER

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 44

Page 4: 30 Livros Do PNL

A VIÚVA E O PAPAGAIOVIRGINIA WOOLF RELÓGIO D’ÁGUA

As legiões de adeptos peque-notes de Virginia Woolf (1882--1941) que peguem em A Viú-va e o Papagaio à espera deum ATL modernista sentir-se--ão cruelmente defraudados.A viúva em questão não se

lança num monólogo interior de 20 páginasenquanto poda roseiras apodrecidas, nem opapagaio se revela um suicida verboso, as-sombrado por memórias de guerra e dado adivagações sobre a arte pelo amor à arte.Escrita num estilo simples e dedicada ao seu

sobrinho (e futuro biógrafo) Quentin Bell, estaé uma pequena fábula didáctica sobre as re-compensas – espirituais e financeiras – da bon-dade para com os animais. A moral da históriaé de fácil assimilação: nunca vendam uma avepsitaciforme por meia coroa. Meia coroa, aliás,não chegaria sequer para adquirir o livro, cujas35 páginas estão disponíveis pela inacreditávelquantia de 15 euros. Dois euros e 33 cêntimospor página: um rácio que irá certamente chocartodos aqueles que, mesmo depois de lerem Vir-ginia Woolf, ainda se sentem capazes de fazercontas de cabeça. RC

A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA DIASJÚLIO VERNE LIVROS DO BRASIL

Os romances de Júlio Verne(1828-1905) são conhecidos, pelo menos no mundo anglo-saxónico, como repositórios demá escrita e iliteracia científica.(Os franceses culpam as más

tra du ções, mas essa é provavelmente a suadescul pa para tudo, desde o caso Dreyfus aJohnny Hallyday.)Se Peter Pan é a visão de um adulto do que

seria uma infância perpétua, A Volta ao Mun-do em Oitenta Dias é uma visão infantil do quedeveria ser a idade adulta. Phileas Fogg, donode uma inexplicável fortuna, planeia meti culo -samente os seus dias em torno da acti vidadecentral da sua existência, que é não fazer nada.Num momento de distracção, envolve-se numaaposta ridícula, e propõe-se dar a volta ao mun-do nos proverbiais 80 dias.

10-12 anos

Era uma vez uma menina que se pôs a cor -rer atrás de um coelho branco e caiu numburaco. No fundo desse buraco há um mun-do em que as coisas mais extraordinárias po-dem acontecer e em que a lógica se suspen-de. Alice aumenta e diminui de tamanho,participa num chá em que o tempo parou,entra em árvores, responde a adivinhas e en-contra os personagens mais inverosímeis: dogato de Cheshire (que deixa o sorriso a pai-rar quando desaparece) ao Chapeleiro Ma-luco e à Rainha de Copas (com a sua mania

de decapitar toda a gente). Poucos livros te -rão marcado tanto o nosso imaginário colec-ti vo como este devaneio onírico de Lewis Car roll (1832-1898), dado à estampa pela pri-meira vez em 1865. A sua influência esten -de-se a outras artes (cinema, música, artesvisuais, teatro) e a várias áreas científicas.A versão escolhida pelo PNL tem magnífi-cas ilustrações de Lisbeth Zwerger, mas pa-ra ler o texto na íntegra é melhor optar pelaedi ção da Relógio d’Água, traduzida por Mar -garida Vale de Gato. JMS

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHASLEWIS CARROLL AMBAR

revista LER ( setembro 2008 ) 45

SU

©Getty Images

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 45

Page 5: 30 Livros Do PNL

Muitos elogios são dirigidos à sua pontua-lidade, inteligência e estupenda capacidadede organização, mas grande parte dos proble-mas com que se depara acabam por ser resol-vidos através de sucessivas aplicações de di -nheiro. E o sucesso final é garantido apenasdepois da intervenção desse improvável deusex machina: o fuso horário.Escrito com um entusiasmo contagiante,

o livro acaba por promover as duas virtudesessenciais de qualquer adulto ajustado: mon-tes de massa e um valete competente. RC

OS DA MINHA RUAONDJAKI CAMINHO«Sem dificuldades de palavrascompridas» e exaltando o prazerde insólitas experiências infantis,como misturar batata-doce e to-

mate, banana com pão ou manga verde com sal.Os da Minha Rua, do angolano Ondjaki (n. 1977),oferece «uma poesia mastigada tipo segredosde fim de tarde». São 22 curtas histórias-memó-rias, registos da infância do autor em Luandanos anos 80. Longe do país desesperançado damiséria e da guerra civil, Ndalu (Ondjaki) é opequeno herói de um tempo que passa devagare em segredo. Acompanhamo-lo, em registo coloquial, melódico e linguisticamente criativo,entre as rotinas do bairro poeirento da avó Nhé,a Escola Juventude em Luta onde a professoraGenoveva ensina a ler «sem ter medo de chegarao fim», as brincadeiras que os adultos esprei-tam «sem corrigir nada», os comícios e o cama-rada Presidente Neto, os beijinhos na boca eas telenovelas brasileiras. Com certeza não se-rá difícil para as crianças identificarem-se comeste tempo de descobertas e inquietações, so-bretudo com os risos «como mil cócegas espa -lhadas no ar» e neste livro. FM

SANDOKAN, O TIGRE DA MALÁSIAEMILIO SALGARI VERBOIncapacitado de ingressar na marinha por cau-sa da má prestação escolar, o jovem Emilio Sal-gari (1862-1911) decidiu-se pela escrita comopassaporte alternativo para explorar o mundo.Autor de mais de 200 narrativas passadas noscenários e culturas mais exóticos e distintos,nunca chegou a viajar para além do Adriático

e suicidou-se aos 49 anos, na miséria. No entan-to, os seus livros proporcionariam inesquecí-veis descobertas adolescentes de «outros mun-dos» a leitores como Jorge Luis Borges, CheGuevara, Umberto Eco, Gabriel García Már-quez ou Pablo Neruda.Para os portugueses, ler Salgari hoje, entre os

10 e os 12 anos, será sem dúvida uma ex pe -riência diferente da vivida por gerações an terio -res, saudosas dos emblemáticos exem plares dacolecção «Salgari» da Livraria Ro mano Torres.É na era da net, dos chats, das play stations, dasviagens low-coste dos wrestlers, que se intensi-fica ainda mais a importância do contacto comséries como «Sandokan, o Tigre da Malásia» ou«O Corsário Negro»: verda deir as aventuras deficção científica e de evasão literária. FM

HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFALJ.K. ROWLING PRESENÇA

Harry Potter e a Pedra Filosofal,primeiro dos sete volumes dasérie que, ao longo da última dé-cada, colocou J.K. Row ling nopódio da mais bem paga autorade sempre (300 milhões de

exemplares vendidos). Década de 90 do sé -culo XX, In glaterra. Quase a fazer 11 anos, o ór-fão Harry Potter contacta pela primeira vezcom o universo paralelo da Escola de Magiae Bruxaria de Hogwarts e o poder malignodo bruxo Lord Voldemort. Seguir-se-ão seisanos de aprendizagem, ao ritmo de um paracada livro.Para os seus livros que crescem com o lei-

tor-alvo, Rowling convocou um caldeirão deinfluências: da tradição inglesa de literaturafantástica infanto-juvenil ao bildungsroman(romance de formação) ou ao policial dedu -tivo, dos temas clássicos da magia do amore da amizade e das dicotomias bem/mal, vi-da/morte, à contemporânea procura de for-mas alternativas de espiritualidade. Inaba -lável apesar de julgamentos negativos comoo do papa da crítica Harold Bloom, a forçada fórmula Harry Potter resume-se na ex-pressão comum a uma legião de fãs: prazerna leitura. FM

Um dia, enquanto folheava o Público, Agos-tinho da Silva explicou-me que começavasempre a ler o jornal de trás para a frente.«Épara fugir à hierarquia das notícias?», per-guntei-lhe. «Não», respondeu, «é porque a pri-meira coisa que me interessa ler – e às vezesa única – está na última página». Referia-seà tira Calvin & Hobbes, para ele «mais filo -sófica do que muitos livros de filosofia». Ashistórias do miúdo com excesso de imagi -nação e do seu tigre de peluche sarcástico

conseguem de facto essa proeza: além de se-rem puro divertimento, elevado aos pínca-ros pela mestria técnica de Bill Waterson (ca-paz de transformar cada prancha desenhadanum microcosmos), são também dispositi-vos para pensar, pequenas máquinas de sen-tido que nos forçam a pôr em causa a manei-ra como olhamos para o mundo. E não hánada de que os adolescentes e pré-adolescen-tes mais precisem do que dessa disponibili-dade para ver as coisas de outro modo. JMS

CALVIN & HOBBESHÁ MONSTROS DEBAIXO DA CAMA?BILL WATERSON GRADIVA

46 ( setembro 2008 ) revista LER

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 46

Page 6: 30 Livros Do PNL

revista LER ( setembro 2008 ) 47

POR FAVOR, NÃO MATEM A COTOVIAHARPER LEE DIFEL

Uma divertida introdução ao mundomaravilhoso da discriminação racial,Por Favor, Não Matem a Cotoviaé umbest-sellermundial há 48 anos. Publi-cado no auge das lutas pelos direitos

civis nos Estados Unidos, o livro viria a completaro circuito completo da censura imbecil. Condena-do, nos anos 60, por reaccionários do Alaba ma,que não achavam bem que uma personagembranca sentisse atracção física por um negro, viu--se, já nos anos 90, alvo de patrulheiros com sensi-bilidades sobredesenvolvidas, desgostosos com as48 vezes que a palavra «nigger» é utilizada. (Sim,há quem as conte. Há sempre quem as conte.) Harper Lee (n. 1926) não voltaria a publicar

uma linha – um nobre exemplo, infelizmente nãoseguido pelo seu amigo de infância Truman Ca-pote. Estranhamente, chegou a haver rumoresde que seria ele o verdadeiro autor de Por Favor,Não Matem a Cotovia. A ausência de gatos sim-bólicos e homossexuais multimilionários deve-ria servir como prova inequívoca de que Capotenão teve nada a ver com isto. RC

O TESOUROSELMA LAGERLÖF CAVALO DE FERRO

Antinaturalista, apaixonada pelas sa-gas e lendas da Suécia natal, SelmaLagerlöf (1821-1880) foi, em 1909,a primeira mulher a receber o Pré-mio Nobel da Literatura. A conquista

do título deve-se em grande parte à autoria deAMaravilhosa Viagem de Nils Holgersson atravésda Suécia, uma das obras-primas absolutas de li-teratura infanto-juvenil, hoje incluída na generali-dade das bibliografias escolares europeias. Pare-ce insólito que o PNL não recomende a obra nempara a sala de aula, nem para leitura autónoma.Em alternativa, propõe O Tesouro, uma novela es-tranha e poderosa sobre os destinos do peixeiroTorarin e da órfã Eisalill, adoptada pelo po derosopadre Arne, assassinado por causa de um tesou-ro em moedas que guardava numa arca. Elogie--se, contudo, a escolha de uma obra disponível nu-ma boa tradução a partir da língua original (estapor Liliete Martins), a lembrar que esse deve sertambém um dos critérios de selecção e exigênciade um bom plano nacional de leitura. FM

12-14 anos

Narcisista, maníaco-depressivo, cocainóma-no e solteiro; Sherlock Holmes é o modeloideal para os anos difíceis da puberdade.Tradicionalmente considerado o primei-

ro detective moderno (completo com todaa parafernália laboratorial de um CSI Lon-don), Sherlock é, acima de tudo, um pro -dígio cerebral, capaz de deduzir, a partir domais inócuo naipe de evidências, toda a ver-dade sobre uma determinada situação. Isto,diga-se, poderá não ser muito impressio -nante para crianças nesta faixa etária, umavez que as mães demonstram fre quen -

temente a mesma assustadora capacidade.A presente colectânea inclui a mais infame

das suas aventuras. «O Problema Final» relataa morte de Holmes e do seu arqui-inimigo, oDr. Moriarty. Quando a história foi publicada,o volume de boicotes, ameaças e correspon-dência indignada foi tal que Arthur ConanDoyle (1859-1930) cedeu, ressuscitando o he-rói algum tempo depois. Talvez os mesmosmétodos possam ser usados para intimidar asPublicações Europa-América: a edição reco-mendada pelo PNL está esgotada há váriosanos, e não há planos para uma reedição. RC

AS MEMÓRIAS DE SHERLOCK HOLMESARTHUR CONAN DOYLE EUROPA-AMÉRICA

SU

©Harold M. Lambert/Hulton Archive/Getty Images

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 47

Page 7: 30 Livros Do PNL

48 ( setembro 2008 ) revista LER

VENTO, AREIA E AMORAS BRAVASAGUSTINA BESSA-LUÍSGUIMARÃES EDITORES

Há títulos que se iluminam quan-do os dizemos em voz alta. Vento,Areia e Amoras Bravasé um des-ses títulos: «todo ele mexe e con-vida a dançar e arrasta o movi-

mento da juventude». Segunda parte da históriaDentes de Rato (sendo «Dentes de Rato» a al -cunha de uma rapariga do Norte chamada Lou-

rença), o livro acompanha as agruras e alegriasdesta personagem tipicamente agustiniana.Aprosa é um primor de elegância e estilo, a quenão faltam sequer os habituais aforismos da au-tora de A Sibila. Uma criada espanhola diz que«a esperança é o pão dos coitados»; certos olha-res são «como uma lâmina a cortar um papel deseda, sem deixar vestígios de ele ter sido corta-do». Lourença cresce, absorve tudo o que vê etorna-se escritora. A sua caligrafia parece «ren-da de Bruxelas» (como a de Agustina). E é justa-

mente por tudo remeter de forma tão clara para o universo da escritora, das relações fa -miliares observadas à lupa ao domínio absolu-to da língua portuguesa, que este livrinho podeser uma excelente porta de entrada para a obrada maior autora portuguesa viva. JMS

CONTOS DE MISTÉRIOOS ÚLTIMOS CASOS DE SHERLOCK HOLMESARTHUR CONAN DOYLE EUROPA-AMÉRICAUM CRIME NO EXPRESSO DO ORIENTEAGATHA CHRISTIE ASA

Dos precursores «contos de ra-ciocínio» de Edgar Allan Poe(indicados para leitura orien -tada na sala de aula no 9.° ano)aos «romances de detective» deSir Arthur Conan Doyle (1859-

-1930) e aos policiais-puzzle «whodunit» de Aga-tha Christie (1890-1976). Destacando o papel cru-cial dos personagens C. Auguste Dupin, Sher-lock Holmes e Hercule Poirot, as listas do PNLsugerem uma boa abordagem à evolução do ro-mance policial até à idade de ouro dos anos 40.Pela dedução, mas também pelo espiritua -

lismo ou pelo nonsense, as obras escolhidas representam um convite a uma particular gi-nás tica de abstracção da realidade. Para mais,nobilitam a importância do género policial eapontam para a aceitação de que o contactocom representações da morte, do crime, oumes mo do terror, corresponde a uma necessi-da de instintiva do adolescente. Afinal, comoquestionou Agatha Christie na sua autobiogra-fia: «Não precisarão os seres humanos de umacerta dose de perigo nas suas vidas? Algumacriança gostaria da história do Capuchinho Ver-melho se dela fosse retirado o lobo?» FM

Escrita no dealbar do séculoXVIII (1724), debaixo de um mis-terioso pseudónimo (que muitosacreditaram esconder nem maisnem menos do que Daniel Defoe,

autor de Robinson Crusoe), esta foi a primei-ra obra de envergadura a abordar os feitos,vilanias, rocambolescas aventuras, roubos eassassínios dos grandes piratas, esses ho-mens que prezavam acima de tudo a próprialiberdade e afogavam os princípios moraisem tonéis cheios de rum. É, ainda hoje, uma

verdadeira bíblia que ordena as «vidas» dosmais temíveis marinheiros de todos os tem-pos. Alguns desconhecidos, como o MajorBonnet e o Capitão Vane. Outros lendários,como o Capitão Kidd ou Mary Read. Pro -fusamente ilustrada, nomeadamente com es-tampas do pintor Howard Pyle, esta ediçãoda Cavalo de Ferro faz justiça à surpreenden-te qualidade literária dos textos ori ginais(a tradução é de Nuno Batalha) e permite-nosentender como era difícil e arriscada a vidano mar há três séculos. JMS

HISTÓRIA GERAL DOS PIRATASCAPITÃO JOHNSON CAVALO DE FERRO

©Candela Foto Art / Kreuziger/Getty Images

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 48

Page 8: 30 Livros Do PNL

revista LER ( setembro 2008 ) 49

O RAPAZ DO PIJAMA ÀS RISCASJOHN BOYNE ASAFoi com este livro de 2006 que John Boyne(n. 1971) se tornou uma estrela literária na Irlan-da, onde o romance ficou 14 meses consecutivosno primeiro lugar do topde vendas. O êxito inter-nacional que se seguiu foi igualmente merecido,porque a tragédia de Bruno é uma das mais belase pungentes aproximações ao tema do Holocaus-to feitas nas últimas décadas. Filho do homemque geria Auschwitz, Bruno olha para a fábrica damorte com os olhos de uma criança, incapaz deperceber a dimensão (ou sequer a possibilidade)de uma tamanha ignomínia. Um dia, aproxima--se da vedação que separa os funcionários do cam-po dos presos com fatos às listas e faz amizadecom um rapazinho judeu. O desfecho, brutal, nãoconvém revelá-lo, para «não prejudicar a expe-riência da leitura» (como se diz na contracapa).Uma coisa é certa: esta espécie de parábola podenão narrar na primeira pessoa factos reais queaconteceram a pessoas concretas (como o Diáriode Anne Frank) mas, enquanto denúncia do na-zismo, é tão poderoso e eficaz quanto aquele. JMS

CONTOS DA SÉTIMA ESFERAMÁRIO DE CARVALHO CAMINHO

Se com o PNL se procura incutirnos jovens o prazer da leitura, entãoeste brilhante volume de contos,com que Mário de Carvalho se es-treou literariamente (em 1981), é

uma escolha na mouche. Quase sempre num re-gisto próximo do fantástico, o narrador revela umeclectismo assinalável, que lhe permite saltar notempo e no espaço com enorme facilidade. Tãodepressa está a falar de manifestações divinas emcivilização arcaicas do Próximo Oriente como daabordagem de um navio português por piratas domar da China. Ora acompanha a tragédia de umhomem que não se consegue livrar do seu anjo--da-guarda, ora nos mostra como uma flecha dis-parada para as alturas pode fazer com que todosos homens percam as suas sombras. Cereja emcima do bolo, lá mais para o fim aparece um dosmelhores contos que já li em língua portuguesa(«Coleccionadores»). Estas 206 páginas conti-nuam a ser, 27 anos depois, um regalo para quemgosta de literatura. E quem julga que não gosta,com elas aprenderá a gostar. JMS

14-16 anos

Longo, com uma estruturaconvencional, mas complexa,muito denso em especifici -dades linguísticas e em refe-rências culturais e históricas(França, de 1815 a 1832). Con-

tudo, Os Miseráveis, do líder do movimento ro-mântico francês Victor Hugo (1802-1885), man-tém-se imperturbável na maior parte das listasde leitura escolar obrigatória ou facultiva dosalunos europeus ou norte-americanos. A es-colha é politicamente correcta e justifica-se pela intemporalidade dos temas centrais do

romance. Como Jean Valjean e a França re -volucionária, todo o homem e toda a nação épassível de redenção moral. O bispo de Digne,Valjean, Cosette e Marius provam que o amorsalva. A lei só serve quando defende e pro -move o bem e a igualdade, e Javert só podiamesmo suicidar-se no final. No encontro comcada leitor, mantêm-se activos os objectivos deVictor Hugo: «Venho destruir a fatalidade humana, condeno a escravatura, persigo a mi-séria, instruo a ignorância, trato a doença, ilu-mino a noite, odeio o ódio. Eis o que sou e porque escrevi Os Miseráveis.» FM

OS MISERÁVEISVICTOR HUGO PORTO EDITORA

SU

©Corbis/VMI

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 49

Page 9: 30 Livros Do PNL

50 ( setembro 2008 ) revista LER

AVENTURAS DE HUCKLEBERRY FINNMARK TWAIN VEGA

Não é fácil dizer o que querque seja sobre As Aventuras deHuckl eberry Finn sem come -çar por repetir a peremptóriaafirmação de Hemingway: to -

da a moderna literatura americana começaaqui. Muitos académicos de joelhos trémulosvalidaram enfaticamente essa teoria. O livro exibe todas as características associa-

das à obra-prima que perdura: uma linguagemrecém-nascida; um protagonista universal,mas que consegue escapar à clausura do sim-ples arquétipo; e um soberbo símbolo tutelar – o Mississípi. Exibe ainda uma vantagem con-siderável sobre muitos outros tratamentos li-terários do racismo: Mark Twain (1835-1910)nunca deixa que as boas intenções asfixiemmoralmente a narrativa. Talvez por isso tam-bém tenha sido sujeito, tal como o livro de Har-per Lee, a pe riódicas acusações de falta de sensibilidade (o inventário de palavras proble-máticas atinge, neste caso, as centenas).Haverá, ainda assim, poucos clássicos me -

lhor apetrechados para inaugurar uma paixãopelos clássicos. (Nota para a pequenada: o capí-tulo XVIII termina com um tiroteio, no qualuma família inteira é massacrada.) RC

A PÉROLAJOHN STEINBECK EUROPA-AMÉRICA

John Steinbeck (1902-1968)foi, durante décadas, um dosautores mais aclamados, mastambém mais contestados ebanidos dos currículos de lei-tura escolar nos EUA. Nobelda Literatura em 1962, cres-

ceu numa família pobre de origens alemã e ir-landesa, o que o fez colocar no centro dos objec-tivos literários a percepção dos mecanismos deestratificação social e de (in)adaptação do ho-mem ao meio social e biológico. O romance AsVinhas da Ira (1939, Prémio Pulitzer) é o me -lhor exemplo dessa preocupação, com um im-pacto na discussão pública dos direitos raciaise das reivindicações de populações desfavore-cidas apenas comparável ao de A Cabana do PaiTomás, de Harriet Beecher Stowe (também es-tranhamente ausente do PNL) ou O PequenoGrande Homem, de Thomas Berger. A parábo-la curta A Pérola é a adaptação pessimista deuma história verídica que Steinbeck escutou emLa Paz, e trata de como a descoberta de uma pé-rola valiosa pode destruir a vida de um mise -rável pescador mexicano-indiano. Espirituali-dade, cobiça e opressão social são alguns dosmúltiplos temas de discussão que suscita. FM

Não é fácil dizer o que quer que sejasobre As Aventuras de Tom Swayersem começar por notar, de sobrolhofranzido, a ausência de qualquer afir-mação de Hemingway sobre o factode toda a moderna literatura ameri-cana começar aqui. No consenso crí-tico, Tom Sawyer está para HuckFinn um pouco como Santana Lopesestá para Sá Carneiro: um é um peso--pluma, carismático por todos os mo-tivos errados; o outro foi raptado pelocânone, carregando nos ombros dema -siado peso simbólico.O pathos pode estar todo acumula-

do no seu parceiro de zeitgeist, mas odéfice de complexidade literária écompensado com uma panóplia de in-discutíveis virtudes: leveza, inocência,generosidade e humor. Algumas daspassagens fazem parte da memóriacomum – como aquela em que o pro-tagonista se livra de pintar uma cercaatravés de um engenhoso expedienteretórico posteriormente adoptado pe-lo Conselho de Segurança da ONU.Em vez da edição da Porto Editora

recomendada pela comissão peda gógi -ca, é aconselhável ler uma versão como texto integral, até para que não seper ca uma única intervenção de MuffPotter, o pescador bêbedo que melho-ra significativamente todas as cenasem que aparece.» RC

AS AVENTURASDE TOM SAWYERMARK TWAIN DOM QUIXOTE

©Getty Images

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 50

Page 10: 30 Livros Do PNL

revista LER ( setembro 2008 ) 51

NA PATAGÓNIABRUCE CHATWIN QUETZAL

Diz a lenda que Bruce Chatwin(1940-1989) abandonou o seu lu-gar de jornalista na Sunday Ti-mes Magazinecom o mais lacóni-co e libertador dos telegramas:

«Fui para a Patagónia.» A Patagónia era o outro la-do do mundo, os antípodas, um lugar extremo,uma espécie de utopia do viajante. Depois de deambular durante meses pela região, Chatwinfixou as suas memórias da jornada num livro quede certa forma reinventa o conceito de literaturade viagens. Com capítulos curtos e uma escrita deprecisão fotográfica, Na Patagóniacruza todo o ti-po de informações, evocando ao mesmo tempo fi-guras míticas que por ali andaram noutros tem-pos (a dupla Butch Cassidy-Sundance Kid, porexemplo) e as vidas de pessoas simples que en-controu no seu caminho. O livro foi publicado em1977, antecipando de certa forma o espírito de al-gumas obras-primas que escreveu mais tarde, co-mo O Canto Nómadaou O Que Faço Eu aqui?. JMS

STARDUST. MISTÉRIO DA ESTRELA CADENTENEIL GAIMAN EDITORIAL PRESENÇA

A capa do livro é a primeiraaposta na atenção dos leitores.À semelhança do que foi feitoem várias traduções, Stardustreproduz, nesta segunda edição,os personagens do filme homó-nimo que estreou este ano. E es-

te pode ser um bom começo para a vasta obra deNeil Gaiman (n. 1960), dividida por diferentes gé-neros, adaptações para cinema e muitos prémios.Tristan Thorn vive em Wall, uma aldeia cerca-

da por um muro. Do outro lado, um mundo má-gico que aflora, de nove em nove anos, num mer-cado junto a uma fenda ciosamente guardadaao longo dos tempos. Para conquistar a bela Vi-tória, Tristan atravessará o muro pela segundavez, em sentido contrário – e saberemos porquê.Encontrará Yvaine, a estrela, e muitos habitan-tes desse mundo mágico. Na escrita de Gaiman,todos os personagens têm individualidade. Podem cruzar a narrativa como uma estrela ca-dente mas o seu brilho permanece. A magia des-te livro é capaz de deixar Harry Potter para tráscomo leitura para os mais novos. Sílvia Alves

A partir dos 16 anos

Este livro é uma colecção de histórias. Algu-mas das histórias são muito boas. Outrasnão. A história que dá título ao livro nãoémuito boa. É sobre a morte. No fundo, sãotodas sobre a morte. Ernest Hemingway(1899-1961) era um homem. Para se ser ho-mem é preciso pensar na morte, é precisosaber morrer. Hemingway via os velhos nocanto da taberna e pensava na vida que ti -nham tido e na morte que os esperava. Pe -dia outra bebida e falava de touros. A toura-da é uma celebração da vida, mas também éuma celebração da morte. Lá fora a chuvacomeça a cair. O livro tem muitos pontos

finais. Algumas vírgulas, mas não muitas;pontos e vírgulas, nem vê-los. As criançasvão adorar. Os professores das crianças tam-bém. Os debates literários nas aulas nuncamais serão os mesmos. «Qual é o tema?»«Não sei. Tu sabes qual é o tema?» «Tambémnão sei. Repara como chove.» De facto, cho-ve bastante. Uma vez, em África, Heming-way deu um tiro num adjectivo. O adjectivoficou deitado no capim a contorcer-se. E de-pois expirou. Morreu com dignidade. Mui-tos anos depois, Hemingway ainda o odiava,mas também sentia a sua falta.Lá fora chove torrencialmente. RC

AS NEVES DO KILIMANJAROERNEST HEMINGWAY LIVROS DO BRASIL

SU

©Getty Images

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 51

Page 11: 30 Livros Do PNL

52 ( setembro 2008 ) revista LER

O DEUS DAS MOSCASWILLIAM GOLDING TEXTO EDITORA

Num território inóspito, ondeas ameaças são múltiplas e osrecursos são escassos, um gru-po de crianças divide-se em doisgangues rivais, revertendo a umestado pré-civilizacional e en-

volvendo-se em actos de brutalidade hobbesia-na. O cenário é familiar para qualquer leitordo Correio da Manhã, mas William Golding(1911-1993) decidiu situar a sua versão numailha perdida no Pacífico, e não numa escola se-cundária em Sacavém. Tanto o cenário para-disíaco como o tom alegórico devem apelaraos fãs da série Lost – desde que não se impor-tem de seguir, uma vez sem exemplo, um en-redo não-soporífero.De interesse formativo para futuros pessimis-

tas profissionais, O Deus das Moscas tem a pioropinião possível sobre a espécie humana. Oprin -cípio filosófico que coordena o desenrolar da narrativa pode ser encapsulado num singelo epigrama: «Rousseau era um idiota.»O romance também desmonta uma falácia

muito popular nos recreios nacionais: por me -lhor que a ideia pareça em determinadas altu-ras, bater no miúdo gordo dos óculos raramen-te funciona como uma solução milagrosa paratodos os problemas. RC

CARTAS A UMA JOVEM MATEMÁTICAIAN STEWART RELÓGIO D’ÁGUA

Ian Stewart é um professor daUniversidade de Warwick (ReinoUnido) que se tornou conhecidoenquanto divulgador científico,sobretudo de questões relaciona-das com o mundo da Matemática.

Com o brilho dos verdadeiros sábios, conseguiutransformar um papão num tema apaixonantee esse não será, decerto, o menor dos seus mé-ritos. Em 2006, publicou este livro epistolar emque se corresponde com uma rapariga ima -ginária chamada Meg, partilhando as suasideias sobre temas tão diversos como a presen-ça da Matemática na vida quotidiana, os proble-mas que há séculos desafiam os melhores cére-bros, o papel dos computadores na investigaçãomoderna, a importância das demonstraçõesmatemáticas ou a melhor forma de organizarum percurso académico. O estilo é acessível, directo, atractivo. Em mais do que um momen-to, o leitor identifica-se tanto com Meg que qua-se deseja seguir os seus passos na via crucisdosaspirantes a matemáticos, mesmo sabendo quejá nem consegue resolver uma equação de segundo grau. JMS

UMA CANA DE PESCA PARA O MEU AVÔ GAO XINGJIAN DOM QUIXOTE

Distante e «estranha». Para muitosadolescentes, a realidade históricae contemporânea de países não--ocidentais como a China não pas-sa de uma incógnita, não solucio-

nada ao longo do currículo escolar, à excepçãode algumas, poucas, noções extemporâneas efugazes. Pouco aberto a uma pedagogia multi-cultural e multiétnica, demasiado focado na realidade nacional, o ensino português aindanão forma verdadeiros cidadãos do mundo,que o questionem a partir da diferença. Elo-giem-se portanto pequenos sinais contrários,como a recomendação da leitura autónomadeste Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, doprimeiro Nobel chinês, o dissidente Gao Xing--jian (n. 1940, cidadão francês desde 1997). Emseis contos para um volume espesso e uma es-tética inimitável, Xingjian descreve a reacçãoa um acidente de viação, a ansiedade numanoite de núpcias, a perenidade dos laços entredois amigos, a expectativa da morte ou apenaso quotidiano mais comezinho. Longe da «corlocal», mostra a China (o mundo) a partir debuscas existenciais indeterminadas, cruza-mentos poéticos da sensibilidade modernacom a tradição chinesa. FM

Notas sobre um plano inclinado

Das centenas de livros recomendados esteano, pelo PNL, «para leitura autónoma e/oucom apoio do professor ou dos pais», pedi-ram-me que seleccionasse dez. À partida,a tarefa parecia fácil: era só identificar osmelhores entre os melhores. Mas foi tudomenos fácil. A longlist (chamemos-lhe as-sim) acabou por resumir-se, e com muitoboa vontade, a uns 15 títulos. Se um dos objectivos do plano – elevado a «desígnionacional» – é fazer com que os jovens des-frutem das «grandes obras da Literatura»,o mínimo que se pode dizer é que a esco lhafeita por uma «equipa de especialistas»acerta quase sempre ao lado.O problema não é haver muito Harry

Potter e Alice Vieira, que são perfeitos pa-ra «suscitar adesão do maior número pos-sível de leitores» e bastante adequados aos

grupos etários abrangidos. O problema é apresença excessiva de autores medianosou medíocres, como António Mota e MariaTeresa Maia Gonzalez, face à escassez deverdadeiros clássicos da literatura infanto--juvenil. Dito isto, vale a pena saudar a in-clu são de Sandokan, o Tigre da Malásia, deEmilio Salgari, que permitirá decerto a par-tilha de entusiasmos e reminiscências comas gerações mais velhas. Incompreensível, seja a que luz for, é

a aposta da dita «equipa de especialistas»

Escolher é sempre difícil,mas deve-se correr riscos.No caso das obras do PlanoNacional de Leitura, vale a pena fazer uma avaliaçãodos cerca de 200 títulos seleccionados.

[ ]Se um dos objectivos do PNLé fazer com que os jovens des-frutem das «grandes obrasda literatura», acerta qua sesempre ao lado.

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 52

Page 12: 30 Livros Do PNL

revista LER ( setembro 2008 ) 53

em livros que são manifestamente cartas fo-ra do baralho. Refiro-me em concreto a três:Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach (le-ram bem: Fernão Capelo Gaivota); Os Portu-gas no Dakar, de Elisabete Jacinto (uma BDmanhosa que faz publicidade ostensiva, nacapa, ao patrocinador oficial da piloto de camiões: uma marca de analgésicos para asdores menstruais); e O Meu Livro de Patinsem Linha, de Detlev Patz, que suponho ser ame-lhor forma de pôr os miúdos a rolar paralonge das bibliotecas.Mas indesculpável mesmo é o chorrilho de

gralhas que infesta estas listas destinadas aorientar professores e pais. Numa das refe-rências, Ondjaki passa a «Onjaki». Noutra,Marion Zimmer Bradley transforma-se em«Marian Dimmer Bradley». Já para não falardos títulos mal transcritos. São lapsos? Sim,mas lapsos que não se admitem em quemse propõe «elevar os níveis de literacia dosportugueses». José Mário Silva

À terceira página, uma nave espacial descedos céus e aterra numa pequena aldeia gau-lesa que resiste ainda e sempre ao invasor.Esta imagem lamentável pode ser encon -trada em O Céu Cai-lhe em cima da Cabeça,a 33ª aventura de Astérix, que a comissão pe-dagógica atribui ominosamente a «R. Gosciny[sic] e Outro». Uma vez que Goscinny faleceu23 anos antes da publicação do álbum, po -demos, de consciência tranquila, culpar o Outro. As senilidades de Uderzo (em francodeclínio criativo desde a viragem do século)têm todo o direito a poluir as livrarias, masporquê envenenar os jovens contra a melhorbanda-desenhada de todos os tempos en -caminhando-os precisamente para o seu piorexemplar?Nenhuma lista deste género pode, eviden-

temente, almejar ao consenso. Nesse sentido,a comissão pedagógica do PNL efectuou lou-váveis diligências no sentido de polvilhar a se-lecção com escolhas irracionais em númerosuficiente para manter toda a gente indigna-da. Muitos argumentos podem ser montados,

por exemplo, contra a inclusão de As Brumasde Avalon, cuja autora é identificada como«Marian Dimmer Bradley». Mas o mais per-suasivo é seguramente o argumento da re -dun dância: qualquer aluno do ensino secun-dário já leu, está a ler, ou irá ler As Brumas deAvalon. Na mais remota das hipóteses, na -mora com alguém que já leu, está a ler ou irá

ler As Brumas de Avalon. Qualquer aluno dosecundário sabe o enredo – e já aprendeu agrafar correctamente o nome de Marion Zim-mer Bradley.A escolha mais subversiva de toda a lista

é inquestionavelmente Fernão Capelo Gai -vota. Uma catastrófica celebração do indi -vidualismo, escrita numa prosa exuberan -temente péssima por alguém que só pode serum embaraçado pseudónimo de Ayn Rand,a his tória da pequena gaivota não-confor -mista representa uma ameaça maior à in -tegridade do nosso sistema educativo do quea dis tribuição gratuita de pornografia nos recreios. Creio que nada justifica a queimapública de livros, mas, em qualquer debate sobre o assunto, Fernão Capelo Gaivota ser -virá sempre para lançar a dúvida. RogérioCasanova

O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de laMancha, de Miguel de Cervantes Saavedra,é a grande ausência das recomendações doPNL. Uma surpresa, já que a obra setecentis-ta tem lugar cativo no cânone universal comoprimeiro romance moderno e é um símbolode como se pode ensinar o prazer e a aventu-ra da leitura. Em 1920, foi mesmo decretadaem Espanha a sua leitura obrigatória na salade aula pelo menos durante 15 minutos diá-rios. Poderá argumentar-se que o clássico édemasiado longo (126 capítulos), mas dele

estão disponíveis as mais diversas adapta -ções, entre elas um excelente O Meu Primei-ro Dom Quixote, traduzido por Alice Vieiraem 2005 para a editora Dom Quixote.Estão também ausentes as versões origi-

nais de As Aventuras de Pinóquio (1883) e deO Livro da Selva (1894), de Rudyard Kipling.O carácter de sátira sádica da obra do italia-no Carlo Collodi (que a adaptação da Disneyofuscou a partir dos anos 40) pode torná-lauma escolha controversa, mas nem por issoesta deixa de ser uma das melhores alegoriasmoral e pedagógica na história da literaturainfanto-juvenil europeia.Quanto a Mogli, o menino adoptado por lo-

bos, e às fábulas da selva criadas por Kipling(que viveu até aos seis anos na Índia britâ -nica, cenário inspirador da acção), perten-cem a uma espécie de património universaldo imaginário infantil, cujo acesso pela lei -tura deve ser garantido. A riqueza e precisãoestilística e narrativa dos contos de O Livroda Selva sobrepõem-se às críticas a Klipingcomo «arquiapóstolo do imperialismo britâ-nico». O autor poderá até ter protagonizadouma moralista e preconceituosa visão vito-riana sobre as relações de poder e as leis desobrevivência, mas foi exímio a atribuir aospersonagens perspectivas distintas sobre

uma realidade paralela. Por tudo isto, e por-que O Livro da Selva é a obra-prima de Ki-pling, a única justificação para a recomenda-ção alternativa deLobos do Mar (a ler na salade aula no 7º ano) talvez seja o facto de umdos protagonistas ser um corajoso pescadorportuguês que salva um menino de um de-sastre marítimo. Uma justificação que con-trariaria o melhor legado de Kipling: a ideiade que «colocar-se na pele de outro homem»é um dos objectivos maiores da criação lite-rária e da leitura. Filipa Melo

SUNotas sobre um plano inclinado

[ ]A comissão pedagógica do PNLefectuou louváveis diligênciasno sentido de polvilhar a selec -ção com escolhas para mantertoda a gente indignada.

[ ]O Dom Quixote é a grande au -sên cia das recomendações. Umasurpresa já que é um símbolo decomo se pode ensinar o prazer e a aventura da leitura.

42-53-plano.qxd:Layout 1 8/25/08 7:50 PM Page 53