353 Mestrado RatificacaoCQCT

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INSTITUTO RIO BRANCO

MARCELA POMPEU DE SOUSA CAMPOS SOGOCIO

O BRASIL ADVERTE: FUMAR PREJUDICIAL SADEANLISE DO PROCESSO DE RATIFICAO DA CONVENO-QUADRO PARA O CONTROLE DO TABACO

BRASLIA 2008

Autora: Marcela Pompeu de Sousa Campos Sogocio Ttulo: O Brasil Adverte: Fumar Prejudicial Sade: Anlise do Processo de Ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco.

Dissertao apresentada ao Instituto Rio Branco do Ministrio das Relaes Exteriores, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Diplomacia.

Orientadora: Profa Dra Luciana Melchert Saguas Presas

Braslia 2008

Sogocio, Marcela Pompeu de Sousa CamposO Brasil Adverte: Fumar Prejudicial Sade: Anlise do Processo de Ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco/ Marcela Pompeu de Sousa Campos Sogocio. Braslia: IRBr, 2008. 145 f. Orientadora: Luciana Melchert Saguas Presas Dissertao (mestrado) Instituto Rio Branco, Mestrado em Diplomacia, 2008. Referncias bibliogrficas: f. 101-110 1. Diplomacia. 2. Polticas Pblicas. 3. Tabaco. 4. Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco. 5. Ratificao. - Dissertao. I. Sogocio, Marcela Pompeu. II. Melchert, Luciana. III. Instituto Rio Branco. IV. Ttulo.

Autora: Marcela Pompeu de Sousa Campos Sogocio Ttulo: O Brasil Adverte: Fumar Prejudicial Sade: Anlise do Processo de Ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco.

Dissertao apresentada ao Instituto Rio Branco do Ministrio das Relaes Exteriores, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Diplomacia.

Braslia,

de

de 200 .

Aprovada por:

Profa Dra Luciana Melchert Saguas Presas

Profa Dra Lilian Cristina Burlamaqui Duarte

Prof. Dr. Carlos Pio

minha me

AGRADECIMENTOS Ao Senador Cristovam Buarque; Ao Embaixador Fernando Guimares Reis, professores, funcionrios e colegas do Instituto Rio Branco; Ao Embaixador Marco Antnio Diniz Brando, ao Ministro Jos Carlos da Fonseca e colegas da Embaixada em Nova Dlhi; Ao Embaixador Santiago Alczar; Doutora Tnia Cavalcante e equipe do Inca; aos integrantes da Conicq, por sugerir leituras, fornecer material e esclarecer recorrentes e variadas dvidas; s Ministras Ana Cabral e Mariangela Rebu, principalmente pelas estimulantes conversas s sextas-feiras, que me despertaram o interesse pela Conveno-Quadro pela perspectiva da diplomacia, no mais da medicina, e ao Ministro Silvio Albuquerque, com quem convivi por pouco tempo, o suficiente para ter muitos motivos para agradecer; Professora Luciana Melchert, minha guia, mais que orientadora; Muitssimo obrigada a todos os entrevistados, pelo tempo e a ateno dispensados e por compartilhar informaes sobre um tema que conhecem em profundidade. Agradeo, tambm, a todos os envolvidos nos processos de negociao e ratificao da ConvenoQuadro. Ao Pedro Saldanha, em particular. Aos Consultores e Assessores Legislativos do Senado Federal, pelos esclarecimentos; A todos os grandes amigos, mais que colegas, da DTS. Agradeo tanto a meus contemporneos, em especial Viviane Balbino e Mrcio Lobato, por incentivaram minha pesquisa mais diretamente, quanto a meus predecessores Marise Guebel e Igor Resende, sempre dispostos a compartilhar dicas e experincias; Ao Professor Carlos Pio, pela preciosa orientao ainda na fase do Projeto; Professora Lilian Duarte; ao Professor Marcelo Varella, pelo apoio srio e profissional no incio do trabalho; A Sandra e Pedro Montenegro, amigos e acadmicos experientes, sem os quais esta dissertao continuaria apenas no campo das idias. Obrigada pelas longas conversas; pelas sugestes de temas, metodologia, textos e at orientador; pelo incentivo a prosseguir apesar das adversidades; Aos queridos Melina Maia, Clarissa Forecchi e Flavio Werneck, por ajudar a vencer os 15 mil quilmetros que me distanciam de Braslia. Agradeo por poder sempre contar com vocs; Aos muito amados pais, irm e Eric, pelos incentivos pessoal e acadmico.

RESUMO Primeiro Tratado da OMS, a Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco visa a reduzir conseqncias sanitrias, socioeconmicas e ambientais indesejadas do consumo do tabaco. Apesar de ser o maior exportador e o segundo maior produtor mundial de folha de tabaco, o Brasil liderou com legitimidade negociaes do Tratado, porm o Governo teve dificuldades em aprov-lo internamente. A ratificao da Conveno demorou 27 meses, abrangeu diversos grupos de interesse e foi responsvel pela primeira srie de Audincias Pblicas do Senado Federal fora de sede, nas regies fumicultoras. Esta dissertao aplica mtodos de anlise do processo decisrio de polticas pblicas de Lindblom; Allison; Easton e Putnam, a fim de realizar estudo de caso da ratificao da Conveno-Quadro no Brasil. Para tanto, recorre-se, em primeiro lugar, contextualizao do ambiente, desde o inovador Programa de controle do tabaco, alicerce da liderana internacional brasileira, at a dicotomia cigarro que mata x fumo que alimenta. Em seguida, analisa-se o processo de ratificao, o papel dos atores, com destaque para o heterogneo grupo dos fumicultores, e os embates. A ratificao do Tratado foi aprovada pelo Senado Federal apenas dez dias antes do prazo limite para a participao na Conferncia das Partes, permitindo ao Brasil negociar a implementao do documento. Os opositores do Tratado receberam como concesso a garantia de Programa nacional de apoio aos fumicultores, alm de Declarao Interpretativa ao Tratado, pela qual o Brasil se comprometia a no proibir a fumicultura. Conquanto a indstria de fumo e um grupo de fumicultores tenham disseminado a idia de embate entre sade pblica e subsistncia dos trabalhadores no mbito da Conveno, entende-se que os interesses mais ameaados sejam apenas os das indstrias de tabaco que, mesmo assim, tero algumas dcadas de lucros crescentes para preparar-se para queda do consumo de tabaco. A lucratividade da produo de fumo pouco alcana agricultores familiares, obrigados a lidar com gastos crescentes. Alm disso, a queda de demanda por cigarro j era certa quando da ratificao brasileira, tendo em conta o compromisso anterior de grandes importadores e exportadores. Assim, a melhor alternativa para o Brasil era ratificar a Conveno, no apenas por motivos de sade, mas tambm por garantir apoio internacional aos agricultores, previsto no documento. PALAVRAS-CHAVE: tabaco; fumo; tabagismo; ratificao; processo decisrio; polticas pblicas; Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT).

ABSTRACT WHOs first Treaty, the Framework Convention on Tobacco Control aims at reducing sanitary, social, economic and environmental unwanted consequences of the consumption of tobacco. Despite being the major world exporter and the second major producer of tobacco leaves, Brazil leaded with legitimacy the negotiations of the Treaty; however, the Government found difficulties with internal approval of the document. The ratification of the Convention took 27 months, involved several interest groups, and was responsible for the first series of Public Audiences of the Senate out of the Capital city, in tobacco growing regions. This dissertation applies methods of analysis of the decision-making process of public policies from Lindblom; Allison; Easton and Putnam, in order to develop a case study of the ratification of the Framework Convention in Brazil. For that, there is, firstly, the contextualization of the environment, from the innovative national Programme of tobacco control, the bedrock of the Brazilian international leadership, to the dichotomy cigarette that kills x tobacco that feeds. Secondly, one analyses the process of ratification, the role of the actors, in particular the heterogeneous group of tobacco growers, and the struggles. The ratification of the Treaty was only approved ten days before the due date for the participation in the Conference of Parts, enabling Brazil to negotiate the implementation of the document. The Treaty opposition received as concessions the warrantee of a national Programme of support to tobacco growers, besides an Interpretative Declaration, by which Brazil compromised not to forbid tobacco growth. Even though the tobacco industry and a group of growers had disseminated the idea of opposition between public health and workers subsistence within the Convention, it is understood that the most threatened interests are only those from the industry which, even so, will have some decades of growing profits in order to prepare themselves for the decrease of the use of tobacco. The profits of the tobacco growth hardly reach family rural workers, forced to deal with growing costs. Furthermore, the reduction of the demand for cigarettes was already certain by the time Brazil ratified the Treaty, taking into consideration the previous agreement of huge importers and exporters. As such, the best alternative for Brazil was to ratify the Convention, not only for health issues, but also for warranting international support to rural workers, as predicted in the document. KEY WORDS: tobacco; smoking; decision-making process; ratification; public policies; Framework Convention on Tobacco Control (FCTC).

RESMEN Primer Tratado de la OMS, el Convenio Marco para el Control del Tabaco visa reducir las consecuencias sanitarias, socioeconmicas y ambientales indeseadas del consumo de tabaco. A pesar de ser el ms grande exportador y el segundo ms grande productor de hojas de tabaco en el mundo, Brasil ha liderado con legitimidad las negociaciones del Tratado. Todava, el Gobierno encontr dificultad en aprobarlo internamente. La ratificacin del Convenio tard 27 meses, involucr diversos grupos de inters y fue responsable por la primera serie de Audiencias Pblicas del Senado de la Repblica fuera de sede, en las regiones productoras de tabaco. Esta disertacin emplea mtodos de anlisis del proceso de decisin de polticas pblicas de Lindblom; Allison; Easton y Putnam, con objeto de que se conduzca estudio de caso de la ratificacin del Convenio en Brasil. Para hacerlo, es necesario recurrrselo, en primer lugar, a la contextualizacin del ambiente, desde el innovador Programa de control del tabaco, basis del liderazgo internacional brasileo, hasta la dicotoma cigarrillo que mata x tabaco que alimenta. En segundo lugar, hcese el anlisis del proceso de ratificacin, el rol de los actores, con destaque para el heterogneo grupo de los productores de tabaco, y los embates. La ratificacin del Tratado ha sido aprobada slo diez das antes del plazo lmite para la participacin en la Conferencia de las Partes, permitiendo a Brasil negociar la implementacin del documento. Los opositores del Tratado recibieron como concesin la garanta de un Programa nacional de apoyo a los productores de tabaco, adems de la Declaracin Interpretativa al Tratado, por la cual Brasil asuma compromiso de no prohibir lo cultivo de tabaco. Aunque la industria de tabaco y algunos productores hayan diseminado la idea de embate entre la salud pblica y la subsistencia de los trabajadores en el mbito del Convenio, entindeselo que los intereses ms amenazados sean solamente los de las industrias de tabaco que, asimismo, tendrn algunas dcadas de lucros crecientes para preparrselas para la cada del consumo de tabaco. El lucro de la produccin de tabaco casi no alcanza a los agricultores familiares, obligados a trabajar con costos crecientes. Adems, la cada de la demanda por tabaco ya era cierta en el momento de la ratificacin brasilea, llevando en consideracin el compromiso anterior de grandes importadores y exportadores. Por lo tanto, la mejor alternativa para Brasil era ratificar el Convenio, no slo por raciones de salud, sino tambin para garantizar apoyo internacional a los agricultores, previsto en el documento. PALABRAS CLAVE: tabaco; humo; tabaquismo; ratificacin, proceso decisorio; polticas pblicas; Convenio Marco para el Control del Tabaco (CMCT).

ILUSTRAO Figura 1- Modelo simplificado de sistema poltico de Easton TABELAS Tabela 1- Comparao entre consumo de cigarro em unidades per capita ao ano e acontecimentos relevantes para o controle do fumo no Brasil, de 1987 a 2007 Tabela 2- Efeitos colaterais do tabaco Tabela 3- Maiores produtores mundiais de folha de tabaco e valor da produo em preos internacionais (valores em preos constantes de 1999 a 2001), de 1998 a 2005 Tabela 4- Produo de commodities pelo Brasil em 2005 em preos internacionais (valores em preos constantes de 1999 a 2001) Tabela 5- Percentual das exportaes brasileiras nas exportaes mundiais de tabaco; crescimento das exportaes brasileiras ao ano em valor e em volume, de 2002 a 2006 Tabela 6- Porcentagem das exportaes mundiais de folha de tabaco em 2006, principais exportadores Tabela 7- Pases que mais receberam exportaes brasileiras de tabaco, de 2002 a 2006 Tabela 8- Motivo de o produtor agrcola ter optado pelo plantio de fumo, em porcentagem. Possibilidade de mltiplas respostas Tabela 9- Principais municpios fumicultores do Brasil e classificao no ndice de Desenvolvimento Socioeconmico Tabela 10- A ratificao da CQCT: principais fatos; nmero dos documentos e data Tabela 11- Cronologia dos eventos mais significativos para o processo de ratificao da CQCT Tabela 12- Valor total de exportaes brasileiras de tabaco em dlares FOB e em quilos; valor total das exportaes brasileiras em dlares FOB; e porcentagem da exportao de tabaco na exportao total do Brasil de 2000 a 2007 Tabela 13- Percentual de participao de exportaes brasileiras de folha de tabaco nas exportaes mundiais, de 2002 a 2006 35

44 52 55 55 56 57 58 59 63 68 70

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SIGLAS E ABREVIATURAS ACT: Aliana de Controle do Tabagismo Afubra: Associao dos Fumicultores do Brasil BAT: British American Tobacco CAS: Comisso de Assuntos Sociais do Senado Federal CQCT: Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco Conicq: Comisso Nacional para Implementao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco CRA: Comisso de Agricultura e Reforma Agrria do Senado Federal CRE: Comisso de Relaes Exteriores e Defesa do Senado Federal CUT: Central nica dos Trabalhadores Deser: Departamento de Estudos Sociorurais DTS: Diviso de Temas Sociais do Ministrio das Relaes Exteriores Fetraf-Sul: Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Regio Sul Idese: ndice de Desenvolvimento Socioeconmico Inca: Instituto Nacional de Cncer Infotab: Centro de Informao Internacional sobre o Tabaco IPI: Imposto sobre Produtos Industrializados ITGA: Associao Internacional de Produtores de Tabaco Mapa: Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento MDA: Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MRE: Ministrio das Relaes Exteriores MS: Ministrio da Sade MTE: Ministrio do Trabalho e Emprego OMS: Organizao Mundial de Sade ONI: rgo de Negociao Intergovernamental Opas: Organizao Pan-Americana de Sade ONG: Organizao No-Governamental PNCT: Programa Nacional de Controle do Tabagismo RVBI: Rede Virtual de Bibliotecas do Congresso Nacional SciELO: Scientific Electronic Library Online UnB: Universidade de Braslia

SUMRIO

Introduo Metodologia 1- Anlise do Processo de Deciso Poltica 1.1- A Arte de Incrementar 1.2- Lentes Alternativas 1.3- Output: Junte Input e Withinput. Misture no Sistema Poltico 1.4- Um Tabuleiro s j Difcil 1.5- Interesses Nacionais 2- Antecedentes 2.1- Sistema nico de Sade 2.2- Programa Nacional de Controle do Tabagismo 2.3- Impostos e Tabaco 2.4- A Liderana Brasileira na Elaborao da Conveno-Quadro. Por Qu? 2.5- A Causa 2.5.1- O Cigarro que Mata 2.5.2- O Fumo que Alimenta 2.5.3- Mas, o Fumo Alimenta a Quem? 3- Processo Decisrio 3.1- A Ratificao 3.2- Os Atores. Os Embates 3.2.1- Organizao Mundial da Sade 3.2.2- Ministrio da Sade 3.2.3- Organizaes No-Governamentais Dedicadas Sade Pblica 3.2.4- Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Regio Sul 3.2.5- Ministrio das Relaes Exteriores 3.2.6- Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento 3.2.7- Ministrio do Desenvolvimento Agrrio 3.2.8- A Oposio Declarada: Indstria e Afubra 3.2.9- Casa Civil 3.2.10- Deputados 3.2.11- Senadores Concluso Bibliografia

12 23 29 29 32 34 36 38 40 40 41 46 49 50 50 54 60 66 66 69 71 72 73 75 76 79 80 81 86 88 90 94 101

Apndice A- Roteiro de Entrevistas 111 Anexo A- Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco 114 Anexo B- Declarao Interpretativa do Brasil 136 Anexo C- Mensagem Presidencial que Encaminha a Conveno ao Congresso Nacional 137 Anexo D- Aviso da Ministra da Casa Civil ao Senador Herclito Fortes 138 Anexo E- Lista de Assinaturas do Parecer da Comisso de Agricultura e Reforma Agrria do Senado Federal que Aprova a Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco 145

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INTRODUO

Em 1996, a Organizao Mundial da Sade solicitou estudo de viabilidade de Conveno sobre o uso do tabaco. Trs anos depois, sob direo da norueguesa Gro Brundland, a OMS aprovou resoluo que criava Grupo de Trabalho para discutir bases tcnicas do Tratado. No ano seguinte, constituiu-se o rgo de Negociao Intergovernamental (ONI), composto por todos os 192 Estados-Membros da OMS. O Embaixador Celso Amorim, atual Chanceler brasileiro, foi eleito para presidir o ONI, e o Embaixador Seixas Corra assumiu o mesmo cargo nos momentos finais da negociao. O processo negociador no comeou sem antes a OMS haver convocado Audincias Pblicas, com vistas a ouvir as partes interessadas na Conveno-Quadro. No total, 144 organizaes, inclusive representantes da indstria; produtores de tabaco; consumidores e organizaes de sade pblica, expressaram seus pontos de vista naquela ocasio. Em 2003, assina-se a Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), que, em vigor desde 2005, constitui o primeiro Tratado celebrado por iniciativa da Organizao Mundial de Sade (OMS) e conta, na data de apresentao deste trabalho, com 161 Estados-Parte. A motivao do Tratado clara: melhorar a sade da populao, eliminando ou reduzindo o consumo e a exposio fumaa de produtos de tabaco, tendo em conta suas devastadoras conseqncias sanitrias, sociais, econmicas e ambientais1. No Brasil, a questo do tabaco configura uma aparente dicotomia. Por um lado, apresentam-se questes irrefutveis de sade pblica: o tabagismo representa a maior causa evitvel de morte no mundo, alm de causa relevante de doena e de deficincia. O tabaco causa a morte de metade de seus consumidores, sendo o nico bem de consumo a matar se usado conforme instrues do fabricante (WHO, 2006). Por outro, manifestam-se os interesses da fumicultura, afinal, o Pas o maior exportador e o segundo maior produtor mundial de tabaco. A fumicultura fonte relevante de renda para o Estado e, em particular, para municpios produtores de fumo na regio Sul, assim como para as famlias que se fixaram no campo h geraes com o objetivo de produzir fumo.

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Verso oficial em portugus da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco, conforme registro da Diviso de Atos Internacionais do Ministrio das Relaes Exteriores em anexo.

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Apesar disso, o Brasil reuniu legitimidade suficiente para liderar o processo negociador da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco e, posteriormente, ratificar o documento, em processo decisrio lento e complexo. O processo de tramitao domstica do documento foi ilustrativo da divergncia de interesses sobre o assunto no Brasil. De acordo com o ordenamento jurdico brasileiro, textos de Tratados assinados devem ser submetidos aprovao do Parlamento, para posterior ratificao. Durante esse processo, alguns produtores de tabaco e as indstrias de cigarro mobilizaram-se contra o documento e revelaram no estar de acordo com a posio manifestada pelo Governo por ocasio da assinatura2. A reao dos discordantes foi tardia, como se pode observar pelo estudo do processo de tomada de deciso do Poder Legislativo. Enviada para a Cmara dos Deputados, a matria havia sido aprovada em regime de urgncia, sem maiores questionamentos. Ao chegar ao Senado; no entanto, a atuao dos grupos de presso intensificou-se, de tal modo que os Senadores protelaram a aprovao do texto por cerca de um ano e meio. O Senador Herclito Fortes (PFL-PI), relator da Comisso de Agricultura, apenas divulgou o parecer favorvel Conveno dez dias antes do prazo final para o Brasil participar da primeira Conferncia das Partes da Conveno-Quadro.3 A participao na Conferncia revestia-se de grande importncia para o Brasil, tanto por ser o coroamento do processo negociador realizado sob liderana brasileira, quanto por constituir oportunidade nica para negociar a regulamentao do texto de modo mais favorvel ao Brasil, em especial, aos produtores de fumo. Por meio desta dissertao, busca-se estudar o processo decisrio brasileiro para a ratificao da CQCT. Para tanto, ser necessrio compreender em que contexto, como e por que motivo a deciso foi tomada e, assim, concluir se o Pas de fato preteriu interesses econmicos em prol de interesses de sade pblica. Busca-se, tambm, avaliar quem so e como agiram os atores influentes na tomada de deciso, por meio de estudo detalhado de fenmeno contemporneo sem precedentes. A pertinncia do tema como objeto de trabalho de investigao cientfica decorre da

2 3

O Brasil assinou o Tratado no primeiro dia disponvel para tal fim. A esse respeito, ver cronologia no captulo 3, pgina 70.

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relevncia em se compreender a interao entre os grupos de interesse no caso em pauta como exemplo das interaes polticas voltadas para a alocao autoritria e coercitiva de valores caracterstica de sociedade democrtica. A delimitao dos fatores envolvidos na deciso poltica em tela trabalhosa e necessariamente imprecisa, pois a identificao do sistema poltico a ser estudado configura complexo processo decisrio em vez de ao concreta, e a utilidade analtica dos elementos selecionados para a pesquisa poltica determinada ex post facto. Para Easton, a cincia poltica incapaz de estudar todos os fenmenos, por implicar necessria simplificao do mundo real, o que leva ao risco de excluir elementos explicativos importantes. O sistema poltico4 isola aspectos do comportamento total e tem carter necessariamente analtico (EASTON, 1968). Nesse contexto, o estudo da ratificao da CQCT tem como objetivo a anlise dos dados obtidos sob a tica das teorias apresentadas, a fim de produzir conhecimento sobre tema relevante, embora desconhecido por grande parte da opinio pblica. A fim de identificar as variveis envolvidas na deciso de ratificar a CQTC de modo mais coerente, este trabalho est divido em 5 partes. Esta Introduo tem por finalidade apresentar o problema; prover a justificativa terica; identificar variveis dependentes e independentes, bem como objetivos e hipteses; alm de esclarecer conceitos a serem compreendidos para o desenvolvimento desta pesquisa. A prxima seo a Metodologia. Em seguida, o Captulo 1, visa a apresentar as Questes Tericas, ou seja, o marco terico da dissertao, constitudo pela anlise de polticas pblicas e processos de tomada de deciso burocrtica. Analisam-se o processo de deciso poltica conforme Lindblom; o modelo de polticas burocrticas, de Allison; as modalidades de anlise poltica segundo Easton e os jogos em dois nveis, de Putnam. Discute-se, ainda, como os modelos tericos podem ser aplicados no caso em estudo. O Captulo 2 prov a Contextualizao do Tema, pela qual se observa o processo histrico de formulao de polticas pblicas que culminou com a ratificao da CQCT. Sustenta-se tambm4

O sistema poltico para Easton ser objeto de anlise no captulo 1.

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na identificao e discusso das principais aspectos relacionados ao cultivo e ao consumo de tabaco. Em seguida, o Captulo 3 refere-se ao Processo Decisrio. So analisadas a dinmica do processo de formulao de poltica pblica, bem como o papel dos diversos atores influentes, entre agentes governamentais e no-governamentais. Na Concluso, por fim, no apenas se compilam dados oriundos de fontes bibliogrficas, documentais e entrevistas, mas tambm se cotejam as teorias clssicas ao caso singular estudado. Apesar do pouco tempo transcorrido desde a ratificao do Tratado, analisam-se resultados preliminares e perspectivas para o futuro. Para melhor conduzir pesquisa sobre a Conveno-Quadro do ponto de vista poltico, foi necessrio delimitar propriamente o tema, assim como o perodo de anlise. Este trabalho visa a analisar a construo do interesse prevalecente no Brasil durante o processo decisrio de ratificao da CQCT, pice da conformao do regime internacional de controle do tabaco, luz de modelos de anlise de polticas pblicas. Para tanto, o perodo estudado de maio de 1999 a novembro de 2005, ou seja, desde a resoluo da OMS que forneceu base tcnica da Conveno at a ratificao brasileira do acordo. Como o nvel de anlise o Estado nacional, d-se nfase ao perodo posterior a 16 junho de 2003, data da assinatura do texto pelo Brasil. A anlise do processo decisrio do Estado brasileiro para a ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco constitui o principal objetivo deste trabalho. Pretende-se cumprir o objetivo geral por meio dos seguintes objetivos especficos, quais sejam: identificar contexto e variveis antecedentes do processo; revelar atores e interesses envolvidos no processo de formulao da poltica pblica em questo, bem como a relevncia de cada grupo de influncia; analisar mtodos utilizados pelos atores; ajudar a explicar, expandir e generalizar modelos tericos de deciso de polticas pblicas, ao verificar a correlao entre as teorias e o caso em tela; analisar a interao entre as esferas de negociao intranacional e internacional no fenmeno estudado e, por fim, analisar a influncia da opinio pblica nas decises nacionais, tendo em conta a CQCT.

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O estudo do caso do processo negociador da ratificao da CQCT contribuir para o entendimento dos processos decisrios de polticas pblicas, como um todo, bem como da interao entre polticas domsticas e relaes internacionais no Brasil. Para a diplomacia brasileira, de particular relevncia a compreenso das variveis que atuam na definio do interesse nacional prevalecente nos mbitos interno e internacional. Quem so os atores envolvidos e como influenciaram as decises tomadas no caso da CQCT so questes relevantes como objeto de estudo. Esta pesquisa poder ser til no s para a comunidade acadmica, mas tambm para o Servio Exterior brasileiro, na medida em que auxiliar a compreenso deste caso concreto, bem como dos demais casos de deciso em polticas pblicas, por extrapolao e aplicao do referencial terico. Nesse contexto, at mesmo a definio de interesse nacional controversa. Seria um conceito escorregadio, usado para descrever e prescrever poltica exterior. Por esse motivo causaria controvrsia (NYE, 1999). Esta pesquisa est em consonncia com a perspectiva de que no h interesse nacional nico, seno interesses nacionais. Da adviriam as falhas em se alcanar consenso domstico a respeito da conduo das relaes internacionais. No entanto, um interesse prevalecente e recebe o ttulo de interesse nacional, por ser resultado da conjuno dos interesses; saldo da hierarquia de poder relativo dos atores ou adequado aos meios disponveis, ou, tambm, como mais freqente, por advir da interao de todos os motivos mencionados. A ttulo de esclarecimento sobre conceitos utilizados nesta pesquisa, consideraremos que poltica o conjunto de procedimentos que expressam relaes de poder, destinados resoluo de conflitos quanto a bens pblicos (no-excludentes e indivisveis). Alm disso, polticas pblicas so o conjunto das decises e aes relativas alocao imperativa de valores, dada a autoridade soberana do poder pblico para lidar com recursos escassos (RUA, 1998). O comportamento poltico no caso da ratificao da CQCT foi afetado por diversos atores, relaes de poder e at decises e aes precedentes. Muitas dessas variveis independentes j podem ser mencionadas, s quais sero acrescentadas outras, reveladas ao longo da pesquisa. Faz-se necessrio, primeiramente, esclarecer alguns dos marcos tericos utilizados no trabalho.

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Como a Conveno bastante recente (o processo de produo do texto teve incio em 1999 e o documento entrou em vigor em 2005), h pouco referencial terico especfico sobre o tema. Comeam a surgir dissertaes sobre a negociao internacional de controle do tabaco no Brasil (TOSCANO, 2006). Conforme ser explicado oportunamente, a metodologia consiste, essencialmente, em anlise de fonte primria, exceto no que tange ao referencial terico. A esse respeito, consideramos os conceitos e autores mencionados a seguir. Lindblom defende que o muddling through, conhecido como incrementalismo, deva ser o mtodo usual de prtica de polticas pblicas. Para o autor, nem revolues, nem mudanas polticas drsticas, nem mesmo grandes passos cuidadosamente planejados costumam ser possveis (LINDBLOM, 1959). A teoria foi bem aceita na transio da dcada de 70 para a dcada de 80, mas alguns analistas duvidam da viabilidade constante do incrementalismo, que seria teoria demasiadamente conservadora, apesar de idealmente satisfatria (LINDBLOM, 1979). Conquanto a anlise preliminar do processo de ratificao da CQCT sugira ruptura de paradigma, este trabalho pretende demonstrar que a continuidade prevaleceu sobre as modificaes repentinas. Allison (1969), por sua vez, props lentes conceituais novas para a poca, atualmente j consagradas, a fim de que o analista perceba problemas no comportamento dos Governos em questes militares e de poltica exterior. Questionou o modelo prevalecente, pelo qual o Governo age como ator nico e conta com informao perfeita para buscar soluo racional para os problemas. Sugeriu dois outros modelos, dos quais cabe destacar o modelo de polticas burocrticas, que consiste em barganhas, atravs de canais regularizados, entre atores posicionados hierarquicamente nos Governos (ALLISON, 1969). Procura-se verificar, nesta pesquisa, de que modo atores governamentais interagiram e, assim, observar a existncia de correlao entre a prtica e o modelo polticas burocrticas de Allison. Para Easton, polticas pblicas advm do processamento dos inputs e withinputs pelo sistema poltico. Os inputs originar-se-iam do ambiente e os withinputs, de dentro do sistema poltico em si. Ambos expressariam demandas que buscam ser satisfeitas pelas polticas e apoios recebidos

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(EASTON, 1968 e RUA 1998). Com este trabalho, tenciona-se observar demandas e apoios envolvidos no processo que levou ratificao da CQCT. Putnam (1988), por fim, ressalta que movimentos no tabuleiro de polticas domsticas e no tabuleiro de polticas internacionais devem ser considerados simultaneamente pelos tomadores de deciso tendo em conta a relao entre ambos. Embora seja evidente que compromisso brasileiro com a Conveno-Quadro tenha configurado jogo em dois nveis, ainda se faz necessrio compreender como e quando. Este mais um dos objetivos tericos desta dissertao. Atores de todas as categorias (pblicos; privados; internacionais e mdia) e interesses diversos relacionaram-se durante o processo de deciso sobre o compromisso definitivo do Brasil com a Conveno-Quadro para o Controle do Uso do Tabaco. Para a OMS, assim como para o Ministrio da Sade e para a maior parte das ONGs envolvidas, a maior preocupao parece ter sido, de fato, a promoo da sade. Ao estudar o consumo do tabaco, nmeros auxiliam a compreenso do problema pela tica da sade pblica. Uma em cada dez mortes em 2006, ou 5,4 milhes de mortes, foram provocadas pelo tabaco. Ademais, mais de um quarto de toda a populao mundial tabagista; destes, 84% vivem em pases no-desenvolvidos (WHO, 2006). O captulo 1 examinar essa questo com maior propriedade. O Ministrio das Relaes Exteriores (MRE), por sua vez, agregava a essas preocupaes a inteno de conferir destaque ao Brasil no mbito internacional, aproveitando o crescente respeito inspirado pelo Pas no que se refere tanto s relaes internacionais em si quanto s polticas de sade e de combate fome e pobreza, todas relacionadas entre si, em ltima instncia. O Ministro de Estado das Relaes Exteriores apresenta a fome e a pobreza como as maiores armas de destruio em massa (AMORIM, 2007), com vistas a difundir a prioridade declarada do governo Lula. As indstrias tabagistas tm interesse em fixar-se e manter-se nos pases em desenvolvimento, inclusive o Brasil, como estratgia de sobrevivncia diminuio dos mercados e aumento da

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regulao anti-tabagista em pases desenvolvidos desde a dcada de 1970, segundo documentos das prprias indstrias, divulgados nos Estados Unidos aps processos judiciais5. Os produtores de tabaco brasileiros, mais de 95% dos quais vivem na regio Sul do Pas, alegam que a produo de fumo cultura tradicional do Brasil e que, de to relevante para o Brasil, at o Braso da Repblica ostenta um ramo de tabaco. Determinados municpios do Rio Grande do Sul, como os da regio do Vale do Rio Pardo, tm no cultivo de fumo a principal fonte de renda. No contexto global, o Brasil , desde 2000 (FAO, 2008), o segundo maior produtor mundial de tabaco, perdendo apenas para a China, cuja produo quase integralmente dedicada ao mercado interno. Por isso o Brasil, ao vender 86% do que produz, constitui o maior exportador mundial de tabaco (AFUBRA, 2008a). No entanto, no houve posicionamento nico dos fumicultores no Brasil. Em geral, os produtores representados pela Afubra tendiam a ser contrrios CQCT. Os agricultores familiares, representados pela Fetraf-Sul, eram favorveis ao texto. O Ministrio da Agricultura e Abastecimento (Mapa) teve postura controversa. Oficialmente, apoiou desde o incio a corrente dominante no Governo, favorvel ratificao da ConvenoQuadro, at mesmo com manifestaes de apoio ao texto nas regies produtoras, por ocasio de Audincias Pblicas. Ao final, no entanto, com a presso de determinados grupos de fumicultores, o Ministrio pareceu prestes a impedir a aprovao do texto em tempo hbil para a participao brasileira na primeira Conferncia das Partes da Conveno-Quadro, como ser possvel observar no captulo 3. Por sua vez, o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), que frequentemente diverge do Mapa, por ter foco em polticas de agricultura familiar, em vez da grande produo agrcola, apoiou integralmente a Conveno, em especial por questes relacionadas qualidade de vida e sade dos fumicultores, alm da preocupao de proteg-los diante de eventual queda de5

Por exemplo, documentos da Philip Morris International, disponveis em: . Acesso em 14 dez 2008; BLOXCIDGE, J. Carta aos membros da International Tobacco Information Centre (Infotab), Inglaterra, 11 out. 1988. Acervo da British American Tobacco. Disponvel em: . Acesso em 09 dez, 2008; ou OLDMAN, M., Assistente do Secretrio-Geral da Infotab, em carta para PEDLOW, G., da British American Tobacco. Londres, 13 mar. 1991. Acervo da British American Tobacco. Disponvel em: . Acesso em 13 dez. 2008, entre diversos outros.

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consumo de tabaco futura. O Tratado previa medidas de apoio a fumicultores que optassem pela diversificao de reas cultivadas com tabaco. Ao MDA tambm coube a tarefa essencial de implementar programa nacional para tal fim, que acabou por ser o principal compromisso entre grupos favorveis e contrrios ratificao e, enfim, tornar possvel a ratificao. A opinio pblica e a mdia nacional, inclusive tabagistas, grosso modo, mostraram-se favorveis a polticas de controle do uso do tabaco desde o incio. O Legislativo formou a opinio aps srie de Audincias Pblicas em regies fumicultoras e em Braslia, alm de consultas s bases e exposio aos grupos de interesse. Pela primeira vez, o Senado disps-se a realizar sesses das Comisses Permanentes fora de sede (BRASIL, 2004a), o que configurou eficiente mecanismo para prover conhecimento da matria e fomentar o debate, como veremos ao longo do texto. Em casos como este, intrigante procurar fatores determinantes da vitria dos que propugnavam por direitos relacionados ao bem comum s recentemente garantidos, em detrimento de interesses econmicos. No caso da CQTC, no entanto, o motivo da ratificao, o objeto de estudo, talvez no se restrinja a soluo nica para a pretensa dicotomia sade pblica x economia. A fim de buscar compreender como se deu a interao entre os fatores mencionados at a deciso definitiva de ratificao da norma, algumas hipteses foram formuladas. Diante do exposto e dadas a complexidade da questo, a quantidade de variveis independentes e a natureza multifatorial do processo de deciso de polticas pblicas, faz-se necessrio aventar mais de uma hiptese a fim de determinar por que o Brasil decidiu comprometer-se com a Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco. Em primeiro lugar, a prpria liderana brasileira no plano internacional durante o processo negociador da Conveno teria influenciado positivamente as decises de carter interno. Por sua vez, a liderana teria como varivel antecedente o xito reconhecido de polticas pblicas intranacionais, como o programa nacional de combate ao tabagismo (polticas domsticas reconhecidas liderana internacional ratificao da CQCT).

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Em segundo lugar, um processo de deciso democrtico teria ocorrido, de modo a permitir arranjo equilibrado dos interesses de diferentes atores governamentais (dos poderes Executivo e Legislativo), grupos de presso da sociedade civil e organismos internacionais. Por fim, a dicotomia entre interesses econmicos e de sade pblica ou entre anti-tabagistas e produtores rurais seria mais aparente que real, por diversos motivos: -Apesar de o Brasil ser grande produtor e exportador em termos comparativos com outros pases, a relevncia da economia do tabaco para a economia do Pas no seria to grande; - A maioria dos pases para os quais o Brasil exportava poca, alm do maior produtor mundial, j se haviam comprometido com a Conveno. Assim, a ratificao pelo Brasil pouco influenciaria o futuro da economia do tabaco; -O texto da CQCT prev apoio aos produtores de tabaco e incentivo a culturas alternativas. Caso o Brasil no ratificasse a CTQC a tempo de participar da primeira Conferncia das Partes da Conveno-Quadro6, ficaria alijado do processo internacional de definio das modalidades de ajuda aos fumicultores; -Ainda que o consumo per capita de tabaco decaia por efeito da Conveno, estima-se que a quantidade absoluta de tabaco consumido cresa ou seja constante nas prximas dcadas, dado o crescimento da populao mundial. Assim, os produtores de tabaco da atualidade no seriam atingidos pela diminuio proporcional da demanda; -Os interesses econmicos afetados pela adeso Conveno seriam muito maiores para a indstria tabagista que para o produtor rural. O cultivo do tabaco lucrativo, mas os benefcios no alcanam os produtores rurais, que ainda perdem em sade, com a exposio nicotina pela folha do tabaco e fumaa pela queima da planta.

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Isto , o limite para a ratificao que ensejasse participao dos pases na CoP era 7 de novembro, 90 dias antes da Conferncia.

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-A economia do Pas ser beneficiria da diminuio do uso do tabaco, em razo da queda de gastos pblicos decorrente de tratamento de doenas relacionadas ao cigarro, alm de internaes, ausncias ao trabalho e mortes. Os opositores da Conveno-Quadro, seriam, portanto, a fonte da disseminao da percepo de dicotomias de modo deliberado, a fim de confundir os trabalhadores rurais e a opinio pblica, em geral. A fim de alcanar os objetivos propostos nesta introduo e propiciar anlise consistente do compromisso brasileiro com a ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco, fezse necessrio determinar estratgia de trabalho eficaz, descrita na seo seguinte, metodologia.

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METODOLOGIA

No que se refere metodologia, foi realizado estudo de caso nico como mtodo majoritariamente dedutivo de pesquisa emprica, com vistas produo de conhecimento nonormativo. A fim de testar as hipteses mencionadas e alcanar os objetivos propostos, so utilizados, como marco terico, estudos sobre anlise de polticas pblicas, como, por exemplo, o modelo de polticas burocrticas, de Allison; o processo de deciso poltica conforme Lindblom; as modalidades de anlise poltica segundo Easton e os jogos em dois nveis, de Putnam. Essas teorias so testadas quanto aplicao no caso em tela. Este trabalho analisa a participao dos atores relevantes no processo decisrio de ratificao da CQCT. Entre os atores pblicos (polticos e burocrticos), destaquem-se os Ministrios da Sade (MS); das Relaes Exteriores (MRE); da Agricultura, Pecuria e Abastecimento (Mapa); do Desenvolvimento Agrrio (MDA) e a Casa Civil. Entre os atores internacionais, ressalte-se a Organizao Mundial da Sade. Por fim, entre os atores privados, mencionem-se organizaes da sociedade civil, como a Aliana de Controle do Tabagismo (ACT) (ex-Rede Tabaco Zero); sociedades de especialidades mdicas; parquias; a Associao dos Fumicultores do Brasil (Afubra); a indstria de cigarros; e a Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Regio Sul (Fetraf-Sul). Houve, tambm, participao reiterada da mdia; e influncia do opinio pblica de modo mais amplo. Cada ator apresentado teve posio diferenciada diante do caso estudado. O Poder Legislativo o executor mesmo do fenmeno estudado, qual seja, a deciso sobre a ratificao da CQCT, que, em ltima instancia, cabe ao Poder Executivo. Desse modo, a reao do Congresso Nacional aos inputs, para decidir ratificar ou no a Conveno objeto de anlise. Os Senadores foram os Parlamentares que levaram mais tempo para decidir sobre a ratificao da Conveno. Muitos chegaram at mesmo a mudar de opinio ao longo do processo. Este trabalho busca compreender como e por que tomaram tal deciso. Para tanto necessrio recorrer, em especial, a fontes primrias, tendo em conta a contemporaneidade do tema e a escassez de bibliografia especializada sobre o assunto. A reviso bibliogrfica; no entanto, essencial para a composio do marco terico. Para a pesquisa em

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livros, peridicos, monografias, teses e dissertaes, foi utilizado o acervo das bibliotecas do MRE; do Instituto Rio Branco; da Universidade de Braslia (UnB); da Rede Virtual de Bibliotecas do Congresso Nacional (RVBI), bem como sistemas virtuais de busca de peridicos, como a base de dados EBSCO e a Scientific Electronic Library Online (SciELO). Alm disso, so analisados documentos e material de divulgao elaborados pelos atores, alguns editados, outros disponveis em rede, como publicaes da OMS; da Organizao Pan-Americana de Sade- Opas; do Banco Mundial; dos Ministrios (em especial do Instituto Nacional de Cncer- Inca, do Ministrio da Sade); do Departamento de Estudos Scio-rurais (Deser); da Afubra; da Fetraf-Sul; da ONG Aliana de Controle do Tabagismo; da Souza Cruz; de empresas de tabaco, entre outros. Comunicaes internas do MRE, principalmente entre a Secretaria de Estado e a Delegao Permanente do Brasil em Genebra, sede da OMS, tambm foram objeto de anlise (telegramas e despachos telegrficos). A fim de evitar limitaes circulao deste trabalho, a autora optou por no incluir comunicaes internas de carter diferente de ostensivo. Documentos oficiais do Senado Federal e da Cmara dos Deputados sobre a tramitao da matria no Parlamento foram considerados, como o parecer do Senador Herclito Fortes (PFLPI), relator do Projeto de Decreto-Legislativo na Comisso Permanente de Agricultura e Reforma Agrria (CRA) do Senado, ademais de Atas das Audincias Pblicas das Comisses de Relaes Exteriores e Defesa (CRE) e a CRA do Senado, bem como da Comisso de Agricultura da Cmara. As Audincias do Senado foram realizadas em Braslia, em 15 de setembro de 2004 e em regies produtoras de fumo, nas cidades de Santa Cruz do Sul-RS, em 6 de dezembro de 2004; Irati-PR, em 19 de agosto de 2005; Florianpolis-SC, em 26 de agosto de 2005; CamaquRS, em 23 de setembro de 2005; e Cruz das Almas-BA, em 11 de outubro de 2005, e a da Cmara, em 8 de dezembro de 2004. A cobertura da mdia impressa nacional e de das regies produtoras de tabaco tambm foi fonte relevante para a compreenso do tema. A aluna trabalhou na diviso encarregada do tema do controle do tabaco no Ministrio das Relaes Exteriores, a Diviso de Temas Sociais (DTS), o que a fez ter contato dirio com o tema e contato eventual com autoridades governamentais e das Naes Unidas encarregadas do controle do Tabagismo, entre as quais o Doutor Haik Nicogosian, Secretrio-Executivo da Conferncia das Partes da CQCT, em visita ao Brasil de 3 a 7 de maro de 2008. A pesquisadora

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foi membro do MRE na Comisso Nacional para Implementao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq). Alm disso, participou de diversos eventos organizados pela Conicq, dos quais vale mencionar o Encontro Nacional de Controle do Tabagismo, realizado entre 30 de junho e 4 de julho de 2008 no Rio de Janeiro, onde estiveram reunidos coordenadores nacionais e representantes de organizaes internacionais responsveis pela implementao da Conveno-Quadro no Brasil. Esteve presente tambm solenidade do Governo brasileiro em comemorao ao Dia Mundial sem Tabaco (31 de maio), que contou com a participao do Ministro da Sade, realizada em 27 de maio de 2008, com o tema Juventude Livre do Tabaco. Em todas as ocasies, foi realizada coleta de dados para a pesquisa. Foram realizadas entrevistas do tipo semi-estruturada com amostra selecionada. Conforme Gil (1999, p. 117), muitos autores consideram a entrevista com a tcnica por excelncia na investigao social, atribuindo-lhe valor semelhante ao tubo de ensaio na Qumica e ao microscpio na Microbiologia. A entrevista na pesquisa social intensamente utilizada por possibilitar a anlise de dados sobre os mais diversos aspectos da vida social; ser eficiente na obteno de dados em profundidade acerca do comportamento humano e obter dados suscetveis a classificao e quantificao. Optou-se pela entrevista semi-estruturada, tendo em conta que a relao pr-estabelecida de perguntas abertas, sem alternativas de respostas, proporciona, ao mesmo tempo, razovel profundidade de respostas e possibilidade de comparao de dados entre os entrevistados. Alm disso, mantm-se a oportunidade para digresses do roteiro que muito podem beneficiar a investigao. Estudos de caso prvios sobre anlise de polticas pblicas constantemente utilizam-se da modalidade de entrevista para a coleta de dados. Cada hiptese a ser testada mereceu uma ou mais perguntas do roteiro de entrevista semi-estruturado anexado a esta dissertao. As perguntas foram formuladas com intuito de possibilitar o teste das hiptese, mas com o cuidado de evitar a predeterminao ou o direcionamento das respostas. O roteiro para entrevistas foi submetido a testes durante o Encontro Nacional de Controle do Tabagismo, o que demonstrou a necessidade apenas de adaptaes pontuais e a supresso de uma pergunta. Afinal, a entrevista passou a ter 22 questes, sendo cinco, de carter pessoal. Houve tambm verso reduzida do roteiro para Parlamentares, com nove questes, a fim de incentiv-los a responder.7

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Ver Apndice.

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Foram realizadas sete entrevistas e dois questionrios. As gravaes ocorreram em ambiente isolado para tal fim, sem maiores interferncia externas, exceto ligaes telefnicas a que dois entrevistados precisaram atender e o caso de uma entrevistada chamada a participar de discusso durante Encontro Nacional de Controle do Tabagismo. Nessas circunstncias, a gravao era interrompida, para ser retomada no mesmo ponto. O tempo de gravao de cada entrevista variou de 17 a 44 minutos, com mdia de 28 minutos e moda de 17 minutos. Os entrevistados foram convidados a optar por ter a entrevista gravada apenas para fins de transcrio e por manter a identidade em sigilo ao final da entrevista, ocasio em que poderiam considerar se haviam revelado alguma informao ou emitido alguma opinio comprometedora. No caso dos questionrios, o roteiro de entrevistas foi enviado e respondido por correio eletrnico, tendo em conta a dificuldade logstica representada pelo fato que a pesquisadora trabalha na Embaixada do Brasil em Nova Dlhi. Todos os sujeitos permitiram tanto a gravao, quanto a divulgao da identidade. Muitos afirmaram terem feito declaraes de carter pblico, muitas vezes j manifestadas em outras oportunidades, inclusive imprensa. Acredita-se que a divulgao da autoria dos entrevistados, no caso especfico desta dissertao, em muito contribuiu para anlise dos dados, pois permitiu correlacionar os depoimentos posio de cada grupo de interesse durante o processo de ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco. A pesquisadora procurou ao menos um representante de cada grupo de interesse, rgo do Governo ou do Parlamento envolvido com a ratificao da Conveno-Quadro sobre Controle do Tabaco, alm de autoridades reconhecidas pela participao no processo. Foi possvel entrevistar representantes dos seguintes rgos e entidades: Senado Federal; Organizao Mundial da Sade; Organizao Pan-Americana de Sade; Ministrio da Sade (Instituto Nacional do Cncer); Aliana de Controle do Tabagismo; Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Regio Sul; Ministrio do Desenvolvimento Agrrio; Associao dos Fumicultores do Brasil e Casa Civil. Colheu-se, tambm, depoimento espontneo da ex-Presidente da Sociedade Paulista de Oncologia Clnica sobre o assunto da dissertao, apresentado por ocasio do mencionado Encontro Nacional de Controle do Tabagismo. A extensa agenda dos envolvidos, bem como eventual desinteresse dos possveis entrevistados em manifestar-se implicaram dificuldades na realizao de algumas entrevistas planejadas.

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Apenas um Senador respondeu ao questionrio, por exemplo, entre oito Parlamentares a quem a pesquisadora recorreu. A fim de complementar a lacuna deixada pela dificuldade em realizar algumas entrevistas relevantes, principalmente com Parlamentares, foram estudados discursos e declaraes imprensa divulgados durante o perodo estudado. Tambm em funo da atividade profissional da pesquisadora, que tem formao mdica e era membro da Conicq, houve maior facilidade para a entrevista de representantes dos grupos favorveis ratificao da Conveno-Quadro. Por isso, a entrevista com o Presidente da Associao dos Fumicultores serve de contraponto. A pesquisadora tentou contato, em vo, com a Gerncia de Mdia e a Assessoria de Imprensa do Grupo Souza Cruz, de acordo com dados da empresa, a lder absoluta no mercado nacional de cigarros e uma das a dez maiores contribuintes de impostos do pas, com participao de 60,2% do mercado total brasileiro, que atua em todo o ciclo do produto, desde a produo e processamento de fumo at a fabricao e distribuio de cigarros (SOUZA CRUZ, 2008a). Com efeito, uma das maiores dificuldades da pesquisadora ao longo da realizao desde trabalho foi o fato de que o lobby dos grupos contrrios ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco foi muito mais velado do que o de seus opositores. A indstria do tabaco, durante todo o processo, pouco se manifestou publicamente sobre o assunto. O grupo prratificao declarou, nas entrevistas para esta pesquisa, acreditar na existncia de fortes indcios de que a indstria agiu, no caso em tela, por meio da Afubra, o que a entidade nega veementemente. O fato de a indstria pouco ter-se manifestado publicamente naquela ocasio e no caso desta dissertao pode estar relacionado a tentativa de preservao da imagem diante de fenmeno crescente de rejeio do tabaco pela sociedade brasileira. Entidades como a British American Tobacco ( qual a Souza Cruz associada) e a Philip Morris so consideradas, para a Publicidade e a Administrao, empresas de negcio controverso e precisam investir cada vez mais em iniciativas de cunho social, a fim de tentar reverter a opinio pblica contrria a sua atividadefim. A Souza Cruz , por exemplo, a nica empresa do Brasil a aplicar os padres da norma AA

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1000 (Accountability 1000), reconhecida mundialmente como um dos principais padres de gesto da responsabilidade social (AVERSA, 2006). A curta histria a seguir ilustra bem a percepo social prevalecente sobre o tabaco. Certa vez, em Santa Cruz do Sul, um empresrio perguntou ao Deputado Ciro Gomes: Por que o fumo no tem essa aceitao, o fumo que to importante para a economia brasileira? D um passo a frente, defende nosso setor!?! Ao que o Deputado respondeu: O fumo, companheiro, indefensvel! (GEWEHER, 2008)

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1- ANLISE DO PROCESSO DE DECISO POLTICA

Para analisar o processo de ratificao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco, essencial ter em mente teorias clssicas sobre o processo decisrio de polticas pblicas. Nesse contexto, h que se reconhecer a validade dos mtodos de anlise resistentes ao recente fluxo acelerado de produo de conhecimento em Cincias Polticas e Relaes Internacionais, tendo em mente, contudo, suas limitaes. Neste primeiro captulo j ser possvel iniciar o processo de aplicao da teoria ao caso emprico, estratgia que ser complementada por remisses aos modelos estudados ao longo de toda a dissertao. O incrementalismo de Lindblom; o modelo de polticas burocrticas de Allison; a concepo de sistema poltico de Easton; assim como o jogo em dois nveis de Putnam sero objeto de considerao a seguir.

1.1- A ARTE DE INCREMENTAR (LINDBLOM, 1959, 1979, 1980)

Lindblom, em 1959, divulgou sua principal teoria sobre processo decisrio e modelos de tomada de deciso. Para o muddling through, que ficou consagrado como incrementalismo, as decises polticas so tomadas tendo em conta no o que desejvel, mas o que possvel e provvel. Passos curtos e graduais levariam ao incremento da poltica, a complementaes e interaes de polticas anteriores, em vez de grandes e constantes rompimentos. Ao contrrio do racionalismo, para o incrementalismo, as decises no implicam a mxima eficincia, mas so tomadas por comparaes consecutivas e limitadas com situaes prvias. Por esse modelo, as decises, ensejam, portanto, mais a manuteno do status quo que a inovao. A caracterizao de um resultado como racional implica sempre um juzo de valor. Um resultado racional simplesmente aquele com que o observador concorde. O modelo foi muito criticado por ser considerado conservador. A teoria de Lindblom no seria capaz de explicar os acontecimentos polticos da poca, os momentos de crise e de mudanas bruscas. Lindblom defendeu, vinte anos depois de sua publicao marco, uma releitura do

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incrementalismo com o artigo: Still Muddling, Not Yet Through, pelo qual explicou, por exemplo, que polticas incrementalistas no seriam necessariamente um processo lento, nem conservador. Seriam perfeitamente compatveis com movimentaes rpidas, por meio de uma srie de pequenas mudanas que, por fim, resultariam em drsticas alteraes da situao anterior, por vezes mais rapidamente do que uma nica grande mudana poltica fora do padro. Posteriormente, consolidou seus estudos de polticas pblicas no livro O Processo de Deciso Poltica, pelo qual tece consideraes aplicveis ao estudo do processo de ratificao da Conveno-Quadro sobre Controle do Tabaco. Para compreender um processo poltico decisrio no contexto da democracia liberal, as questes mais significativas relacionam-se com a eficcia na soluo de problemas, bem como na sensibilidade ao controle popular. Alm disso, cabe questionar quem formula as polticas de Governo, que podem ser deciso das elites e/ou ter influncia do cidado comum. No entanto, a soluo para um grupo pode representar um problema para outro: no caso estudado, a soluo para o grupo de interesse da sade pblica poderia ser prejudicial aos fumicultores. Por isso, s vezes, a poltica decidida resultado de processo negociador de vrias partes interessadas, que chegam a uma terceira via, um acordo diferente do que interessaria a cada uma das partes, o que tambm o caso do processo de deciso poltica brasileiro sobre a ratificao da CQCT, como veremos no captulo 3. Nesse contexto, torna-se difcil julgar o processo de deciso poltica. Um processo lento, como a ratificao do Tratado em tela pelo Brasil pode significar ao mesmo tempo um defeito do processo de deciso ou uma sensibilidade maior do poder decisrio em relao opinio pblica, como a longa srie de Audincias Pblicas promovidas pelo Senado Federal durante o processo negociador parece sugerir. Do mesmo modo, difcil dizer se a maior atuao de grupos de interesse resulta em processo mais democrtico do que um processo com menor participao. Tampouco fcil determinar se os grupos de interesse envolvidos eram legtimos e representativos. Este trabalho analisar, como preconiza Lindblom, como o Governo e o Parlamento procuraram atingir seus objetivos em vez de explicar por que os escolheram.

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Muitos mtodos do jogo do poder levam em considerao promessas de prmios e ameaas de penalidades. Os participantes do jogo do poder podem exercer controle por diversos mtodos: intimidar adversrios, ocultar verdadeiras intenes para ganhar aliados ou silenciar crticas ou trocar favores. Podem, tambm, jogar com o tempo e vencer a disputa por agir antes do adversrio. Alguns desses mtodos foram comprovadamente usados no processo em questo, e pairam suspeitas sobre algumas das tcnicas utilizadas pela indstria, que, no caso em tela, encontrava-se em situao vantajosa por dois motivos. Em primeiro lugar, as empresas de fumo gozam de vantagens no jogo de poder pela prpria condio empresarial. Para Lindblom, os Governos reconhecem a funo pblica das empresas na manuteno da ordem econmica e social. A desordem econmica provocada pela eventual falha das empresas em cumprir esse papel pode levar at mesmo queda de regimes. Os formuladores de polticas, portanto, desejam a prosperidade das empresas e, para incentivar os gerentes de empresas a desempenhar bem tais funes, os Governos lhes concedem no apenas tudo o que pedem, mas tambm tudo de que necessitam. Alm disso, os grupos empresariais dispe de melhor organizao e recursos mais abundantes. Fazem parte, por conseguinte, das trs elites com poder poltico desproporcionalmente grande: os prprios formuladores das decises; os empresrios e os lideres de grupos de interesse mais influentes. Em segundo lugar, em um processo de deciso de polticas pblicas, mais fcil obstruir uma concluso do que promov-la. A posio da indstria de tabaco de procurar demover os Senadores da idia de aprovar a Conveno-Quadro teria, assim, mais condies de obter xito. Em uma democracia liberal com sistema de mercado, como o Brasil e a maioria dos pases, h poderes de veto largamente distribudos. Por um lado, para que uma poltica no seja executada, basta que os grupos de interesse influenciem um indivduo ou um rgo que tenha aquele poder. Por outro, para que a poltica seja aprovada, os grupos de interesse precisam convencer todos os potenciais detentores do poder de veto. Por fim, ressalte-se que, para decidir por uma poltica pblica, o Parlamentar tem de enfrentar a uma escolha clssica: pode optar por defender os interesses dos eleitores ou optar pelo que ele mesmo julga adequado, nem sempre h coincidncia de opinies entre os eleitores e o eleito, mas

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o eleitor tem o poder de manter o Parlamentar no poder ou negar-lhe um prximo mandato. Poderemos analisar se as eleies locais que ocorreram em meio ao processo de ratificao do acordo no Senado Federal tambm entraram na balana poltica. Alm disso, ser possvel compreender melhor o papel da opinio pblica no processo. Acompanharemos, por exemplo, a reao dos Senadores ampla divulgao na mdia de suas posies perante o caso, se favorveis ou contrrios ao documento.

1.2- LENTES ALTERNATIVAS (ALLISON, 1969)

Enquanto Lindblom apresentou modelo de anlise do processo de deciso de polticas pblicas baseado no incremento gradual dos movimentos, Allison escreve em outro contexto, tendo em conta justamente uma situao de ruptura de paradigma. Sete anos depois da Crise dos Msseis8, em plena Guerra Fria, o autor prope-se a analisar a deciso de polticas com novas lentes conceituais. Para ele, as lentes ou os modelos com que se analisa cada processo de deciso poltica tm implicaes na concluso da anlise e no que o analista julga importante. A maior parte dos analistas tentou prever resultados de decises polticas nas relaes internacionais por meio de um modelo que Allison chama de Modelo de Polticas Racionais. O autor apresenta, ento, dois outros modelos que tambm podem ser utilizados na anlise da deciso poltica: o Modelo de Processo Organizacional e o Modelo de Polticas Burocrticas. Conquanto seja direcionado para anlise de decises na arena internacional, a descrio do Modelo de Polticas Burocrticas baseada no modo de deciso de polticas de Governo e pode, portanto, ser til para esta dissertao. Para Allison, as polticas internas no so simplesmente resultado de escolhas. So, sim, conseqncia de vrios jogos de barganha entre jogadores hierarquicamente organizados no mbito interno. A anlise desse processo depende da avaliao de diferentes variveis, como percepes; motivaes e posies dos principais atores, o poder relativo de cada um, bem como suas manobras no processo negociador. uma anlise8

Quando, em 1962, os Estados Unidos e a Unio Sovitica estiveram muito prximos de iniciar guerra nuclear em funo de suspeita norte-americana da existncia de msseis soviticos em Cuba. Isso constituiria ruptura brusca com os modelos de anlise de deciso poltica at ento existentes.

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multifatorial complexa, condizente com o que se pretende neste trabalho. Pretende-se compreender os interesses de cada grupo, como se deu a interao entre os atores e quais as barganhas necessrias para o resultado final da ratificao da Conveno-Quadro. Os jogadores centrais desse processo so os lderes polticos que tomam a deciso final, neste caso, o Poder Legislativo e tambm o Executivo, em particular, a Casa Civil, alm dos lideres das organizaes influentes. Allison argumenta que, neste modelo, h descentralizao das decises necessrias para a ao final, portanto, as responsabilidades e o poder so compartilhados. Isso implica diferenas de posio entre os atores centrais sobre o que deveria ser feito. Assim, a resultante mais provvel no triunfo de um grupo sobre outros, mas uma resultante diferente do que gostaria qualquer dos grupos. No caso da Conveno-Quadro, houve uma soluo conciliatria para os grupos de interesse que, no entanto, no implicou nus relevante para uma das partes, que se pode dizer principal vencedora do processo, como veremos adiante. bem verdade que muitas questes competem simultaneamente pela ateno dos tomadores de deciso. Por esse motivo, e quanto mais questes e canais de competio envolvidos existam no processo, maiores so as lutas dos jogadores secundrios pela ateno dos jogadores centrais. Passa a existir presso dos grupos para que os lderes enxerguem os fatos e tenham tempo de pensar seriamente na questo sob perspectiva ampla. Na maioria das vezes, isso representa apenas parte do jogo de barganha, convencimento e protelao, como parece tambm ter sido estratgia da indstria e de associaes de fumicultores ao requerer grande numero de Audincias Pblicas fora do Senado (uma deciso indita), em regies produtoras de fumo. No caso em tela, ao que parece, apesar da presso e, como afirmou uma representante de grupo de interesse pela ratificao do texto, a indstria deu um tiro no prprio p (JOHNS, 2008). Mais adiante poderemos entender como e por qu. Por fim, faz-se necessrio ter em mente que at mesmo atores no topo das organizaes e tomadores de deciso tm prioridades paroquiais, ou relacionadas a sua origem ou ao grupo a que pertencem e a que respondem. As prioridades paroquiais da maioria dos Parlamentares da regio Sul do Brasil fizeram com que se posicionassem, no primeiro momento, contrariamente ratificao da CQCT. Quando, no entanto, como afirmou Allison, as sensibilidades foram

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contrabalanadas com a bagagem de cada um, as decises mudaram de rumo. Essas bagagens podem ser facilmente compreendidas como inputs e withinputs, no mbito do modelo de sistema poltico de Easton, que veremos a seguir.

1.3- OUTPUT: JUNTE INPUT E WITHINPUT. MISTURE NO SISTEMA POLTICO (EASTON, 1968 RUA, 1998)

E

Easton tomou emprestado conceitos da Fsica e da Psicologia para chegar a seu modelo de sistema poltico. Ao mencionar inputs e outputs, Easton no se refere interpretao clssica para a Economia ou a Sociologia. Em vez disso, cria conceitos e abordagens inovadores. Para o autor, as perspectivas da anlise de sistema so parte concomitante das cincias naturais e sociais. Assim, uma abordagem multidisciplinar facilita a soluo de questes. A fim de compreender o sistema que teve como resultado, ou output, a ratificao da Conveno-Quadro, tambm faz-se necessrio aproveitar as vantagens de uma abordagem multidisciplinar. Elementos de Cincia Poltica; Economia; Direito; Cincias da Sade e Relaes Internacionais estaro intimamente relacionados ao longo de todo o estudo. O sistema poltico pode ser apresentado em diferentes graus de complexidade, que aumentam medida que se acrescentam elementos descritos gradualmente ao longo da obra de Easton. Para simplificar bastante, podemos dizer que os inputs, ou demandas originadas no meio ambiente (ou em outro sistema) coordenam-se com os withinputs, ou demandas oriundas do mesmo sistema, para gerar o resultado, uma deciso ou uma poltica: o output daquele sistema. Estes, por sua vez, podero retornar ao sistema como um circuito de feedback, ao modificar o meio ambiente a que esto submetidos e, assim, influir novamente no prprio sistema poltico. Os withinputs so, na verdade, espcie da qual input gnero, quer dizer, so uma forma de input que, por definio, difere-se do input no senso estrito, por originar-se no prprio sistema. Isso pode ocorrer por meio de demandas de agentes dos trs poderes de um Governo, por exemplo. Para seguir esse modelo (figura 1) ser necessrio, no entanto, reduzir influncias maiores e mais relevantes a poucos indicadores e preterir influncias menos significativas.

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I N P U T

Demandas Sistema Poltico Suporte Feedback

O U T P U T

Meio AmbienteFigura 1- Modelo simplificado de sistema poltico de Easton. (EASTON, 1968). Adaptado pela autora.

A variedade de influncias do meio ambiente de um sistema poltico de grande vulto. Os inputs podem causar problemas no funcionamento regular dos sistemas e acontecem igualmente em ambientes estveis, numa abordagem mais condizente com o incrementalismo de Lindblom, ou em ambientes de crise e convulso. Esses estmulos podem ser entendidos como qualquer acontecimento externo ao sistema (input em senso estrito) que altera ou modifica o sistema, porm essa definio levaria a uma quantidade to grande de resultados, que seria muito difcil analis-los. Os inputs podem, portanto, ser divididos entre duas categorias principais: de demanda ou de suporte (apoio). Parte substantiva da atividade decisria de Governo visa satisfao de demandas, que podem ser dirigidas por atores externos ou internos ao sistema. No processo, o Governo procura angariar apoios tanto para o atendimento das demandas, quanto para a soluo pacfica de conflitos. Podemos avaliar quais foram os inputs e withinputs atuantes no sistema poltico que teve como output a deciso de comprometer-se com a Conveno-Quadro. Para melhor analisar as variveis mais significativas do processo, faz-se necessrio simplificar o sistema, como bem recomendou Easton. Os elementos do sistema de Easton, contudo, devero ser complementados por outra varivel analisada por Putnam: o jogo em diferentes nveis. Os nveis de deciso domstico e internacional

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so interdependentes, assim, quando um jogo se d primordialmente em um nvel, pode-se dizer que o outro nvel constitui novo input a ser considerado no sistema poltico

1.4- UM TABULEIRO S J DIFCIL... (PUTNAM, 1988)

certa a existncia de relaes freqentemente intrincadas entre a poltica interna e poltica internacional, ou seja, de um jogo em dois nveis, pelo qual o movimento de uma pea tem implicaes nos dois tabuleiros. No tabuleiro domstico, grupos de interesse pressionam Governos para a adoo de polticas, ou oferecem inputs de apoio e de demanda, na concepo de Easton, e polticos buscam poder pela formao de coalizes. J no tabuleiro internacional, Governos procuram no apenas satisfazer atores internos, mas tambm deixar fluir o desenvolvimento das relaes internacionais. Movimentos lgicos em um dos tabuleiros pode ter implicaes graves em outro. Assim, os tomadores de deciso devem ter em mente os dois nveis do jogo em todo o processo. Restringir interpretaes sobre a interao entre a poltica interna e a internacional deteco de causas domsticas com efeitos internacionais ou causas internacionais com efeitos domsticos constitui anlise parcial, na medida em que o interessante saber como as polticas internas relacionam-se com as polticas internacionais. A teoria de ratificao de Putnam adapta-se perfeitamente s necessidades de avaliao da ratificao da CQCT, pois destina-se a explicar justamente procedimentos aprovados em dois momentos, como a assinatura do Tratado, pelo poder Executivo, e a ratificao, por meio da anuncia do Poder Legislativo. Para melhor correlacionar a teoria experincia, necessrio conceituar os dois nveis de atuao poltica. Para Putnam, no nvel 1, so consideradas as barganhas entre negociadores, como as do processo de polticas burocrticas de Allison. J o nvel 2 se refere a discusses entre grupos para decidir sobre a ratificao do acordo. Para evitar inconvenientes ao longo do processo, consultas e anlise do cenrio no nvel 2 so relevantes para a tomada de deciso no nvel 1. Em nosso caso, para o Executivo, seria fundamental saber se o Congresso concordaria com as polticas da Conveno-Quadro. De fato,

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nada indicava que o Parlamento pudesse discordar do texto, pois o Brasil, progressista, j havia implementado domesticamente a quase totalidade das normas do Acordo antes mesmo de existir um Tratado. Do mesmo modo, as negociaes no nvel domstico e a prpria necessidade de ratificao influenciam o nvel internacional. Caso no haja expectativa de ratificao no h que se falar em continuidade do processo negociador. Nesse contexto, no caso do Brasil, como o Pas no apenas assinou o texto, mas tambm foi lder das negociaes da Conveno, sua noaceitao domstica significaria, ao mesmo tempo, perda de credibilidade para o Brasil; para a instituio patrocinadora, a OMS, e para o Tratado como um todo. Esta conseqncia, inclusive o que pode ter motivado o lobby contrrio ratificao da CQCT. A esse respeito, representante da Casa Civil afirmou (FELTRIN, 2008):Se o Brasil no ratificasse no momento que ratificou, no participaria da I Conferncia das Partes [CoP], () como o Brasil participou com uma atividade muito grande, como uma liderana na construo do texto, imaginou-se que seria muito bom se o Pas no estivesse na I CoP como membro ativo. Embora pudesse falar, no teria poder de voto, no a mesma coisa. Ento talvez fosse essa a estratgia [dos contrrios Conveno], postergar o mximo [a ratificao].

Outro risco representado pela defeco do Brasil seria apartar o Pas das decises da primeira Conferncia das Partes da Conveno-Quadro, que contaria apenas com a participao dos pases a ratificar e depositar o Tratado at trs meses antes da reunio. O Brasil correu srios riscos de perder o prazo para integrar a instncia deliberativa sobre a implementao da Conveno, pois o Senado aprovou a ratificao apenas dez dias antes do limite. Um complicador no processo de ratificao e no jogo em dois nveis que o texto aprovado h de ser o mesmo nos dois momentos, em especial em casos, como o analisado, nos quais o Tratado no admite reservas. Isso obriga o negociador internacional a antever dificuldades e procurar enfrent-las. De fato, a OMS realizou Audincias Pblicas com todos os atores envolvidos no processo antes de consolidar o texto e, o Brasil, ciente da posio de maior exportador mundial, props a meno de clusulas especificamente voltadas para a proteo dos fumicultores. Testemunhas do processo afirmam que, no fosse o Brasil, o Artigo 17 da CQCT, sobre Proviso de apoio para alternativas economicamente viveis fumicultura, entre outras menes questo, como o Artigo 23(3) e os pargrafos preambulares 15 e 16, no estariam

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presentes no acordo. Isso se deve ao fato, notrio para a OMS, de que polticas voltadas para a reduo de oferta de tabaco no so eficientes para a reduo do consumo nem a curto, nem a mdio prazo. Tais menes aos produtores de tabaco, portanto, destinam-se to somente proteo dos fumicultores, diante de queda prevista e programada do comrcio de tabaco. A reduo global do volume de tabaco consumido independeria at mesmo da ratificao brasileira, tendo em conta que diversos grandes produtores, como o maior de todos, a China, e o terceiro maior, a ndia, j tinham-se comprometido com o texto. Amplo processo de discusses internas levaram o Brasil a buscar uma ltima soluo conciliatria para ratificar o texto: uma Declarao Interpretativa pela qual o Pas comprometia-se a no proibir a fumicultura, bem como a no restringir as polticas de apoio j existentes aos fumicultores9. Os grupos de interesse contrrios negociao possuem vantagem, em um primeiro momento, em funo do poder de veto de determinados atores e da conseqente facilidade em obstruir o processo, mais do que promov-lo, para o que tambm alertava Easton. No entanto, os custos dos tomadores de deciso em posicionar-se favoravelmente ratificao diminuem medida que o tema ganha destaque na mdia e bem recebido pela opinio pblica. Para Putnam, a publicidade e a politizao das questes restringem a flexibilidade dos tomadores de deciso e dos negociadores, pois o sistema poltico passa a ter de tomar no mais uma deciso com amplas alternativas capazes de agradar a diversos atores, mas, sim, uma deciso do tipo sim ou no.

1.5- I NTERESSES N ACIONAIS

Os modelos de anlise do processo decisrio sobre polticas pblicas seriam muito mais simples caso houvesse um interesse nacional para explicar cada deciso e fosse relativamente fcil identific-lo. Se a promoo da sade pblica pudesse ser identificada como um interesse nacional brasileiro, essa poderia ser a explicao mais plausvel para a liderana no processo negociador da Conveno-Quadro, bem como para a ratificao. Para Condoleezza Rice (2000), por exemplo, o interesse nacional norte-americano seria identificvel como o desejo de9

A declarao interpretativa do Brasil ao ratificar a Conveno-Quadro est anexa a esta dissertao.

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promover a difuso da liberdade, da prosperidade e da paz. Nye (1999) discorda de Rice, ao afirmar que o conceito de interesse nacional pode servir ao mesmo tempo para descrever e promover polticas. Se um nico interesse nacional existisse, no haveria, portanto, motivos para reiteradas falhas ou dificuldades em alcanar consenso domstico. Tendo em conta que h diversos interesses nacionais, os modelos de anlise de deciso de polticas de Lindblom; Allison; Easton e Putnam tm validade para o estudo da ConvenoQuadro para o Controle do Tabaco. Na concluso deste trabalho, ser possvel retornar ao contedo do marco terico e observar a aplicabilidade das construes, levando-se em considerao o conhecimento do panorama da questo do tabaco no Brasil. A fim de compreender a ratificao da Conveno-Quadro, deve-se ter em conta no somente como ocorreu processo, o que ser objeto do captulo 3, mas tambm quais as variveis envolvidas e em que ambiente10 se deu a deciso poltica de ratificar a Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco. o que se pretende fazer no captulo seguinte.

10

Em conformidade com a teoria de Easton.

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2- ANTECEDENTES

Tendo visto o referencial terico que permitir a anlise do processo decisrio de ratificao da Conveno-Quadro principalmente a partir do captulo 3 desta dissertao, pode-se partir para a contextualizao dos antecedentes e do ambiente do sistema poltico estudado, o que configura o objetivo do presente captulo. H mais de trinta anos, o Brasil conta com um Programa Nacional de Controle do Tabagismo. Criado em 1979, o Programa Nacional contra o Fumo era iniciativa coordenada por mdicos experientes da Comisso de Combate ao Tabagismo da Associao Mdica Brasileira. A partir de 1989, o Instituto Nacional do Cncer passou a coordenar o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT), instituio pioneira e reconhecida internacionalmente. O programa brasileiro foi o primeiro programa nacional de controle do uso do tabaco a ser estudado em projeto-piloto da OMS, em funo de dois principais motivos. Em primeiro lugar, mencione-se a complexidade do sistema de sade do Brasil, que conta com rede descentralizada de assistncia sade e mltiplas aes para o controle do tabagismo. Em segundo lugar, ressaltem-se os ntidos resultados do programa, dos quais o mais ilustrativo a reduo da prevalncia11 do uso de tabaco na populao adulta, de 34%, em 1989, para 16,4%, em 2007, conforme dados do Ministrio da Sade (SANTINI, 2008). Para o Ministro da Sade, Dr. Jos Gomes Temporo, a qualidade e o impacto de alguns programas nacionais de sade so altamente reconhecidos em termos internacionais, a exemplo dos programas de imunizao, de Aids e do controle do tabagismo, atingindo resultados dificilmente igualveis no mundo. (BRASIL, 2008a, p.5)

2.1- SISTEMA NICO DE SADE

O prprio Sistema nico de Sade, em que se insere o Programa de Controle do Tabagismo, considerado um programa de destaque entre pases em desenvolvimento. Institudo pela Constituio Federal de 1988 e baseado em princpios como universalidade, eqidade e11

Prevalncia: nmero de casos da doena em determinada populao em um dado ponto no tempo.

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integralidade, o SUS rompeu com um modelo assistencial, direcionado para o tratamento de doenas. O Estado passou a concentrar esforos no sentido da preveno de doenas em todos os estgios, com nfase na preveno primria, que pretende evitar doenas, removendo suas causas. O Programa de Sade da Famlia, por exemplo, atende 56,8% da populao brasileira (BRASIL, 2008b) e constitui smbolo das estratgias de ateno bsica sade que foram incorporadas pelo modelo brasileiro. Os modelos de assistncia sade mais comuns entre pases em desenvolvimento tm enfoque nas prevenes secundria ou terciria, que, apesar de serem consideradas formas de preveno pela epidemiologia, visam apenas ao diagnstico e ao tratamento precoce de doenas j estabelecidas. Em 1946, a OMS (WHO, 1946) conceituou a sade como um ambicioso estado completo de bem-estar fsico, mental e social, no a mera ausncia de doenas. Poucos pases nodesenvolvidos puderam aplicar esse conceito desde ento; o SUS, porm, foi estabelecido com o intuito de promover a sade integral para todos os brasileiros, independentemente de classe social ou de vinculao ao sistema previdencirio. Cerca de 70% da populao brasileira depende exclusivamente do SUS para a assistncia sade (BRASIL, 2008a, p.5). Os outros 30% utilizam-no em situaes que podem ser de grande complexidade, alm de fonte de despesas relevantes para o sistema pblico de sade: imunizaes; transplantes; provimento gratuito de medicamentos, como antiretrovirais e para o tratamento de doenas crnicas, inclusive o tabagismo; assistncia a politraumatizados e quimio e radioterapia. O SUS necessariamente tem falhas, inerentes grande dimenso de seus projetos, portanto requer contnuo aprimoramento por meio de instncias formais de participao dos governos federal, estadual e municipal. No entanto, em uma anlise retrospectiva, pode-se dizer que o modelo do Sistema nico de Sade tem atendido satisfatoriamente aos objetivos que informaram sua fundao.

2.2- PROGRAMA NACIONAL DE CONTROLE DO TABAGISMO

Em conformidade com o modelo do SUS, o Programa Nacional de Controle do Tabagismo desenvolvido pelo Governo central em parceria com Secretarias Estaduais e Municipais de

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Sade, alm de setores da sociedade civil organizada, tais quais sociedades cientficas e conselhos profissionais. O objetivo reduzir a prevalncia do tabagismo do Brasil e, por conseqncia, a morbimortalidade12 relacionada doena. Em termos especficos, o Programa destina-se, em primeiro lugar, a prevenir o incio tabagismo entre os jovens, grupo que tem sido alvo prioritrio da indstria de tabaco; em segundo, a aumentar os casos de cessao do uso do tabaco e, em terceiro, reduzir a exposio fumaa ambiental do tabaco, ou seja, o tabagismo passivo (CAVALCANTE, 2004). Aps a conscientizao dos malefcios para a sade do tabagismo, so cada vez mais claras tambm as conseqncias do fumo passivo. Para o Departamento de Sade do Governo do Estados Unidos, fumantes passivos, em casa ou no trabalho, tm risco de 25% a 30% maior para doenas cardio-vasculares e de 20% a 30% para cncer de pulmo. Alm disso, o Governo americano destacou que os efeitos para a sade do tabagismo passivo so mais preocupantes do que se pensava anteriormente. O fumo de segundamo uma condio que pode causar doenas e mortes prematuras em crianas e adultos nofumantes. (ESTADOS UNIDOS, 2006) O Programa Nacional de Controle do Tabaco reconhecido entre os pases em desenvolvimento (BRASIL, 2008a) e pioneiro na implementao de determinadas aes, principalmente no que se refere a publicidade e propaganda, alm da restrio do fumo em lugares pblicos. O Brasil, por exemplo, foi o primeiro pas a proibir expresses semelhantes a light nos maos de cigarro e segundo, aps o Canad, a adotar a obrigatoriedade de mensagens de advertncia sobre os riscos do tabagismo nos rtulos de cigarro (CAVALCANTE, 2008). A inscrio nos maos de cigarro O Ministrio da Sade Adverte: Fumar prejudicial Sade foi adotada em 1988 e tornou-se obrigatria em 1999. Desde ento, foi substituda por frases mais incisivas, mas ficou registrada na memria dos brasileiros, como uma estratgia de propaganda exitosa. Note-se que a busca da frase em pauta na ferramenta de pesquisas Google retorna 41.300 entradas, a maioria, derivaes espirituosas da inscrio13. No Dia Mundial Sem Tabaco (31 de maio) de 2008, o Ministrio da Sade lanou a terceira srie de mensagens e fotografias para embalagens de cigarro, com vistas a renovar a sensao de averso entre fumantes, desenvolvida aps estudo de autoria do Inca, da

12 13

Morbimortalidade: impacto das doenas e dos bitos em dada populao. Google, Disponvel em: . Acesso em 9 dez. 2008.

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Anvisa e de trs universidades.14 A medida especialmente destinada aos jovens, j que a idade mdia de incio do tabagismo de 15 anos. Para cerca de 90% dos fumantes, o incio da doena ocorre antes dos 18 anos de idade. Em algumas circunstncias, a idade de incio pode ser ainda menor, como entre estudantes pesquisados no Distrito Federal, que iniciam o tabagismo entre 12 e 13 anos de idade (SOUSA, 2003). As imagens de advertncia nos maos de cigarro, estabelecidas em 2001, contam com grande apoio da populao. Em pesquisa do Instituto de Pesquisas Datafolha em 2002, 76% dos entrevistados so a favor de que as embalagens de cigarros tragam imagens que ilustram males provocados pelo fumo. Na mesma pesquisa, 67% dos fumantes que viram as imagens afirmam terem sentido vontade parar de fumar, e 54% mudaram de opinio sobre as conseqncias do tabagismo para a sade. Para 70% dos entrevistados, as imagens de advertncias so muito eficientes para evitar a iniciao do tabagismo (DATAFOLHA, 2002). A divulgao de imagens de advertncia em maos no Brasil incentivada pela OMS, que apresenta freqentemente o caso brasileiro como exemplo em publicaes da Organizao (WHO, 2008a). As imagens, mais efetivas entre os menos escolarizados, os que ganham menos e os mais jovens, so to impactantes, que, desde o incio da obrigatoriedade, tabagistas procuram artifcios para no ser obrigados a v-las. (CARVALHO, 2002) No incio do Programa, na dcada de oitenta, a estratgia de publicidade era outra, aparentemente to eficaz quanto a atual. difcil esquecer o humor e a ironia fina do cartunista Ziraldo nos cartazes que procuravam ridicularizar o ato de fumar, com frases como: Fumar Cafona; Fumar Pattico; Fumar Brega; e Fumar Careta. O prprio Ziraldo fumou por 40 anos. Comeou porque achava charmoso, elegante, para conquistar as moas (MURRAY, 2002). Por isso, quando foi convidado pelo Governo a fazer a campanha contra o tabaco, decidiu que o foco dos cartazes teria de ser o comportamento:Eu convenci o pessoal das campanhas contra o fumo que a gente tinha que usar o mesmo argumento que convoca voc para fumar, que o comportamento. No adianta voc falar em sade. Voc tem que falar que no elegante, no cheiroso. O ltimo cartaz que eu fiz dizia: 'Fumar fede'.14

Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal Fluminense e Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

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Mais tarde, com o xito da publicidade, o cartunista sentiu-se impelido a parar de fumar:Eu achava chato ver meus cartazes pelo pas inteiro e ser encontrado fumando no meio da rua. Em uma madrugada, eu estava pintando, e tinha um cigarro ao lado da minha prancheta queimando. Um direita, um esquerda outro na pia. Eu descobri que tinha acendido seis cigarros sem acabar de fumar nenhum deles! Eu vim com o pincel, e o pincel tocou na cinza do cigarro, de cinco centmetros, parecia uma lagarta. E aquele toco de cinza colou no pincel, lambuzou o tudo e estragou o desenho. Sa catando os cigarros, amassei o mao e vi que minha prancheta estava toda queimada. A eu falei que nunca mais iria fumar na vida e nunca mais fumei.

Com as medidas do Programa Nacional de Controle do Tabaco, o consumo de cigarro passou a declinar gradativamente, at praticamente se estabilizar nos ltimos anos. A tabela a seguir estabelece comparao entre o consumo de cigarro em unidades per capita ao ano e alguns fatos de destaque para o controle do fumo no Brasil:Tabela 1- Comparao entre consumo de cigarro em unidades per capita ao ano e acontecimentos relevantes para o controle do fumo no Brasil, de 1987 a 2007. ANO FATO CONSUMO DE CIGARRO (EM UNIDADES PERCAPITA/ANO)

1987 1988 1990 1994 1995

CARTAZES DO CARTUNISTA ZIRALDO COM MENSAGENSQUE RIDICULARIZAM O ATO DE FUMAR

1.838 1.770 1.630 1.220 1.358

INCIO DE ADVERTNCIAS NOS MAOS DOS CIGARROS RESTRIO DE FUMO EM AMBIENTES DE TRABALHO EPROIBIO NOS VOS NACIONAIS COM AT DUAS HORAS

RECOMENDAO DO GOVERNO PARA QUE TVS EVITEMVEICULAR PERSONALIDADES FUMANDO

ESTABILIDADE ECONMICA PROVOCA NOVO AUMENTO NOCONSUMO. INDSTRIA EVITA USO DE TERMOS COMO

DEPENDNCIAE IMPOTNCIA NOS TEXTOS DEADVERTNCIA

1996

INCA REVELA MTODOS DA INDSTRIA PARA AUMENTARDEPENDNCIA DOS FUMANTES.

1.421

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ENTRA EM VIGOR LEI COM RESTRIO TANTO AO FUMO EMLUGARES FECHADOS QUANTO PROPAGANDA DO TABACO

2000

PROPAGANDA DE CIGARRO FICA RESTRITA AOS PONTOS DEVENDA.

1.200

PROIBIO DO FUMO EM QUALQUER VO 2001 MAOS DE CIGARRO PASSAM A EXIBIR IMAGENS. PROIBIO DE EVENTOS ESPORTIVOS E CULTURAIS COMPATROCNIO DO SETOR TABACO

1.280

2003

SOUZA CRUZ DIVULGA COMPOSIO DA FUMAA DOCIGARRO, EM TENTATIVA DE MOSTRAR QUE O PRODUTO NO TO NOCIVO

1.180

Fonte: SOARES, R. 2007. (Baseada em dados do Banco Mundial e do Inca). Adaptada pela autora.

O Banco Mundial confirma ter havido estabilizao do nmero de unidades consumidas per capita no Brasil (WORLD BANK, 2007). A tabela 1 demonstra redues no consumo de cigarro at os anos 90 e tambm sugere certa estagnao no consumo de cigarros desde o incio da atual dcada, relacionada, provavelmente, com novo perodo de estabilidade e crescimento econmico no Brasil, porm, esse no seria o nico fator. Os esforos do programa brasileiro nos anos 90 estavam voltados eminentemente para intervenes no relacionadas ao preo do cigarro, mas, na atualidade, no h melhor alternativa que aumentar o valor cobrado pelos maos, para que o consumo volte a cair (WORLD BANK, 2007). Medidas para o aumento dos impostos sobre o cigarro esto sendo discutidas no mbito da Comisso Nacional para Implementao da Conveno-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq) e esto sendo consideradas pela Casa civil, assim como a ampliao do atendimento aos dependentes de nicotina e a restrio total do fumo em ambientes fechados (CAVALCANTE, 2008). Esta medida visa ao mesmo tempo a evitar o fumo passivo para freqentadores e trabalhadores de ambientes contaminados com fumaa e a diminuir a aceitao social do cigarro. A interveno no soa abusiva para a maior parte da populao brasileira; ao contrrio, conta com apoio de 88% da populao brasileira, inclusive de 80% dos fumantes, de acordo com pesquisa do Datafolha para a Aliana de Controle do Tabagismo (ACT, 2008).

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2.3- IMPOSTOS E TABACO (WORLD BANK, 2008)

O aumento dos impostos, no entanto, no ser tarefa fcil. Aumentos de tarifas, em geral, no so tarefa simples para os Governos, sobretudo tendo em conta a possibilidade de que a medida ocasione aumento- ainda que pequeno- das taxas de inflao, j que o cigarro entra na composio da cesta de produtos avaliados para a apurao dos ndices de Preos ao Consumidor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, o que poder dificultar um consenso sobre o assunto. No caso do cigarro, no entanto, o aumento dos impostos beneficia no apenas a sade, mas tambm os cofres pblicos, ao aumentar a arrecadao. Estudos da OMS, do Banco Mundial e evidncias empricas demonstram que, ao contrrio do que o senso comum poderia esperar, mesmo em casos de grandes elevaes dos impostos sobre o cigarro, jamais h ou houve caso de reduo da receita; ao contrrio, observa-se sempre reduo do consumo e incremento da receita. A dependncia causada pelo tabaco torna o cigarro um bem com pouca elasticidadepreo de demanda. Desse modo, o consumo cai, sim, mas pouco e lentamente, nunca o suficiente para reduzir a arrecadao. 15 A boa notcia para a sade pblica que a elasticidade-preo de demanda do cigarro maior entre os grupos alvo dos programas de controle do tabagismo. Os jovens e os de menor poder aquisitivo respondem melhor e mais rapidamente ao incremento dos preos do cigarro. Alm disso, muitos adolescentes deixam de iniciar o consumo de tabaco diante d