8
AUTORES DO LIVRO “50 ANOS EM SEIS BRASÍLIA PROSA E VERSO” Os amantes do Eixo Rodoviário O homem atravessou as seis pistas do Eixão, correndo em ziguezague no meio do trânsito enfurecido, mas a mulher empacou, paralisada pelo medo. A separação já dura cinco dias: ele do lado de cá, ela do lado de lá, e os automóveis voando-zunindo entre um e outro. E se ninguém avisou que existe passagem subterrânea pra pedestre nem foi por maldade: é que dá gosto ver aqueles dois, ela desenhando corações no ar, ele mandando carta em aviõezinhos de papel. Acho que nunca se amaram tanto. José Rezende Jr., poeta mineiro, natural de Aimorés. Texto transcrito do livro “50 anos em Seis: Brasília, prosa e poesia” Buraco do Tatu Mergulhou sob a Rodoviária e o dia ficou mais escuro do que nunca, mas quando emergiu do outro lado e começou a subir a pista a claridade era tanta que ele foi subindo subindo subindo, até que não parou de subir, e o céu fazia um azul de tão-agosto que nem havia nuvens entre as esquinas inexistentes, só a solidão e os pássaros pousados nos vidros do carro. José Rezende Jr, poeta mineiro, natural de Aimorés. Texto transcrito do livro “50 anos em seis – Brasília, prosa e poesia” Teixeira Gráfica e Editora MAQUETE Foi amor à primeira vista, os dois se gostando à distância, no Espaço Lúcio Costa, diante da maquete do Plano Piloto: ele no final da Asa Sul, ela no fim da Asa Norte. Mas era domingo e não tinha ônibus... José Rezende Jr, poeta mineiro, natural de Aimorés. Texto transcrito do livro “50 anos em seis: Brasília, prosa e poesia” Teixeira Gráfica e Editora

50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

AUTORES DO LIVRO “50 ANOS EM SEIS BRASÍLIA PROSA E VERSO”

Os amantes do Eixo Rodoviário

O homem atravessou as seis pistas do Eixão, correndo em ziguezague nomeio do trânsito enfurecido, mas a mulher empacou, paralisada pelomedo. A separação já dura cinco dias: ele do lado de cá, ela do ladode lá, e os automóveis voando-zunindo entre um e outro. E se ninguémavisou que existe passagem subterrânea pra pedestre nem foi pormaldade: é que dá gosto ver aqueles dois, ela desenhando corações noar, ele mandando carta em aviõezinhos de papel. Acho que nunca seamaram tanto.

José Rezende Jr., poeta mineiro, natural de Aimorés.Texto transcrito do livro “50 anos em Seis: Brasília, prosa e poesia”

Buraco do Tatu

Mergulhou sob a Rodoviária e o dia ficou mais escurodo que nunca, mas quando emergiu do outro lado ecomeçou a subir a pista a claridade era tanta que ele foisubindo subindo subindo, até que não parou de subir, eo céu fazia um azul de tão-agosto que nem havia nuvensentre as esquinas inexistentes, só a solidão e os pássarospousados nos vidros do carro. José Rezende Jr, poeta mineiro, natural de Aimorés.Texto transcrito do livro “50 anos em seis – Brasília, prosa e poesia”Teixeira Gráfica e Editora

MAQUETE

Foi amor à primeira vista, os dois se gostando à distância, no Espaço Lúcio Costa, diante da maquete do Plano Piloto: ele no final da Asa Sul, ela no fim da Asa Norte. Mas era domingo e não tinha ônibus...

José Rezende Jr, poeta mineiro, natural de Aimorés.Texto transcrito do livro “50 anos em seis: Brasília, prosa e poesia”Teixeira Gráfica e Editora

Brasília 100 anos  (Número 2) Meu avô me falava das flores do cerrado. Mas aí acabaramcom o cerrado, porque já não havia lugar pra tantoautomóvel.  Meu pai me falava do céu azul sem nuvens.

Page 2: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

Mas aí acabaram com o céu, porque já não havia lugarpra tanta espaçonave.  E eu, vou falar o que pro meufilho? José Rezende Jr, poeta mineiro, natural de Aimorés.Texto transcrito do livro “50 anos em seis: Brasília, prosa e poesia”Teixeira Gráfica e Editora

José Rezende Jr.5 ANOS EM 50Pois desse tempo todo o que prestou foi só a época da construção. Cinco anos de trabalho duro, sol quente, comida fria, derrubando árvore, levantando moradia chique pra gente não morar, varando noite sem dormir. Mas a gente sonhava. Ah, moço, cada sonho…

Pedro BiondiE BRASÍLIA, AO FIM E AO CABO, É a Atlântida de Niemeyer

ou o Projac do Paulo Octavio?

(Ou o Projac do Niemeyer? Ou a Atlântida de Paulo Octavio?)

7 DE SETEMBRONão jogue amendoim para os urutus

Fernanda BarretoPLANALTO

desacostumadoà imensidãodos detalhes,as paisagens soamtodas iguaisao tato do principiante.

AMOR CARTESIANO

Page 3: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

estes dois olhosquadradosde cima mim, tirai!afastai de mim teuspontos cardeais.livrai-me da tua paixãopor simetrias,arrancai teus eixos domeu caminhoe correi comigo pelos roseiraispara todo horizonte.além. 

Nicolas Behrcasare ter um filhomas antes passarnum concurso públicopassoue concursindo nasceu

O traço equivocado do arquiteto11 de Junho de 2012

o traço equivocado do arquitetoé superfíciepapel oficio é superfíciea superfície da catedralé superfíciegrama também é superfíciea solidão da superquadraé superfícieo volume do bloco é superfícieo lago Paranoá, mesmo seco,é superfície brasília é superficial 

Durante as escavações

Page 4: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

tambémdurante as escavações também foram encontrados clips pré- históricos, grampeadores de pedra lascada, crachás em plaquinhas de ouro, carimbos petrificados, ministros embalsamados e ofícios em escrita ainda não decifrada

Brasília em janeiro

Brasília em janeiro Árvores tortasDecalcam o maior céu do mundo:Penso nelas como gestosde quem se afoga,de quem dá adeus da plataforma. O sol prateia nuvens musculosas.Atravessando o Lago,A vela persegueLembrança de baía. Em algum lugarBem próximoDo horizonteA tempestadeEspreita o fim da tarde. 

ANDRÉ GIUSTI

Page 5: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

A nostalgia juvenil de Brasília 

 Debaixo do bloco  Texto André [email protected] 

Há uma nostalgia em Brasília nada condizente com sua modernidade, menos ainda com seus 53 anos, tão poucos perto dos mais de quatro séculos atravessados por Salvador, São Paulo e Rio. Mas, repare se a cidade em forma de avião (borboleta! corrigiria Lucio Costa) não se assemelha a um jovem ainda imberbe que suspira de saudades de um tempo que não viveu. Tente encontrar um prédio da época da construção que ainda mantenha seus pilotis no formato original. Encoste em um deles numa tarde ensolarada e silenciosa de domingo. É nessa hora sonolenta que uma porta do passado se abre e por ela passam apressadas as sombras dos candangos de braços fortes, erguendo a toque de caixa a capital do País. Gire de costas em torno da pilastra redonda, pressione levemente o corpo no concreto viril. Gire, feito uma criança que tem a liberdade dos movimentos, proibida aos adultos. Nesse momento, passarão, barulhentos e em correria, meninos e meninas, um atrás do outro ou de mãos dadas. São amizades para a vida inteira, namoros, casamentos ou mesmo amores eternos que nasceram

Page 6: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso

debaixo do bloco, quando Brasília era livre feito suas primeiras crianças, sem grades, sem cercas, sem câmeras. Mesmo sem qualquer registro histórico, não é difícil imaginar que exatamente onde fincaram o bloco em que moramos poderia haver, cento e tantos anos atrás, a humilde choupana de um caboclo ou preto velho que vivia solitário em meio ao nada do Cerrado quase virgem. Na cidade que abriu mão dos pés para se mover sobre pneus, repare bem se em cada eixo ou em cada avenida W ou L não há um vulto colorido de um simpático Fusquinha ou de um imponente Opala levando toda a família para passear. E nesta época em que estão pondo abaixo os antigos hotéis da zona central, para que comece uma espécie de segundo tempo da modernidade, há um interminável suspiro dos velhos colunistas sociais pelos bailes e pelas boates de uma época em que a elite do Planalto buscava o glamour dos seus semelhantes paulistas, cariocas e mineiros. Por fim, ainda aproveitando o silêncio, ouça na caixa de som do tempo: é o Aborto Elétrico se apresentando no gramado de alguma quadra da Asa Sul. A nostalgia juvenil de Brasília é a mesma de um país inteligente que existiu nas letras, na música, na arquitetura, e que deixamos escorrer pelas mãos, que emburreceu com a anuência da nossa omissão. É a nostalgia do seu próprio projeto original de cidade, que hoje parece nada mais do que uma ideia perdida no passado.

Brasília revisitadaChega de conversa sobre arquitetura, espaços amplos e céu azul. Chega de papo sobre a ousadia de JK e a genialidade de Niemeyer. Chega de cartões postais para turistas. Eu vi um cavalo morto. Morto. Tinha pelo marrom e nenhuma marca de sangue. Ainda estava preso a uma carroça virada sobre a grama. Eu vi a multidão suada atravessando a W3 em dia de sol no Setor Comercial Sul. Eu vi a sola de um chinelo de borracha grudar no asfalto quente. Eu vi um palhaço argentino que põe fogo pela boca tentando ganhar uns trocados quando os carros param no sinal vermelho em frente à rodoviária. Eu vi os olhos mortos de um garoto fumando crack na Torre de televisão. Mortos. Eu vi a roda de um carro esmagar uma pomba na L2 norte. Eu vi um catador de lixo comer o resto de um bife vencido na lixeira do meu prédio. Eu vi uma garota nua chupar um taxista no setor hoteleiro sul de madrugada. Eu vi um menino de quatro anos xingar um garçom de mais de cinquenta em um restaurante. Eu vi uma mulher grávida de sete meses cair em um buraco no eixinho sul e não conseguir ajuda. Eu vi um homem morto no Eixão sul. Morto. Estava de camisa branca e gravata desarrumada. Tinha perdido um pé do sapato de couro e um filete de sangue escorria de sua cabeça. Eu vi.

Brasiliensis, um verbeteBrasiliensis: gente típica do cerrado, resultado da mistura de diferentes falares do Brasil e da experimentação entre várias culturas regionais. É caracterizada pela diversidade de biotipos, amor ao espaço livre e ao céu amplo. Mas também é conhecida por enfrentar a seca,a poeira e a desigualdade social.

Page 7: 50 anos em seis: Brasília em Prosa e Verso