53351056 Ronda Da Noite Agustina Bessa Luis

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agustina bessa-lus

A RONDA DA NOITEromance

LISBOA GUIMARES EDITORES

Copyright: Agustina Bessa-Lus, 2006

Guimares Editores, Lda. Todos os direitos reservados Editor: Francisco Cunha Leo Rua da Misericrdia, 68 1200-273 LISBOA Telef. 21 324 31 20 - Fax. 21 324 31 29 email: [email protected] www.guimaraes-ed.pt

CAPTULO I DIA DE FINADOS

N

aquele ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma famlia numerosa e abastada, ao cemitrio da terra natal. Ainda havia muitos descendentes no estrangeiro, mas a casa em que se reuniam objectos e memrias mais presentes estava praticamente desabitada. Com o mau humor que caracteriza os jovens ao ter que proteger publicamente os velhos, Martinho deu a mo av para ela no tropear nos seixos levantados da calada. Um mar de automveis cobria a estrada. Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo diante dos portes e entradas que prometiam no ser frequentadas na manh austera de Finados, as carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitrio, que Martinho conhecera ainda meio rural, com alguns jazigos de capela elevando-se sobre as campas de terra, alargara-se, apinhado de sepulturas recentes; os mrmores e o granito polido davam ao campo-santo um aspecto de cozinhas bem arrumadas, alegradas por braadas de ores. Entre a massa de crisntemos, despontavam orqudeas claras. Era um luxo, uma glria prestados aos mortos. E que mortos! Martinho admirava os rostos patticos em caixilhos dourados e as letras tambm douradas nas lpides novas em folha.

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Parece que morreram todos ao mesmo tempo disse, ainda a segurar a mo da av, fria e de dedos esquelticos e bonitos. Tem compostura e sobretudo no me faas rir. Eu? A av que se ri de tudo sem compaixo. Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo est estragado! Mas tem dignidade assim como est. O o da sua camisola pegou-se balaustrada do jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado por troncos ngidos de cimento, o que na poca devia representar o mximo, se no de bom gosto, pelo menos de ousadia. Comeava a poca do beto, e o velho engenheiro, de quem Martinho mal sabia o nome, deixava ali a sua marca desaadora. Era av do av, o que para Martinho vinha a dar um parentesco distante e labirntico. Pelos retratos, via-se que era um homem elegante, no seu fato de pied-de-poule cinzento e a barba que provavelmente lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avanado e estreito. Um nariz de judeu, e est tudo dito. No deixava por isso de ser bonito, o jovem Martinho. Era doce como o acar quando queria e paciente como Cristo. Se bem que, tambm como Cristo, tivesse sbitas cleras que s a av compreendia. Isto vai passar. um homem e os homens so imprevisveis dizia ela me de Martinho, a sua lha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase verdes, e que no tinham perdido ainda o brilho. A av passara o cabo dos cinquenta anos com alguma diculdade, e um broma que se desenvolvera nessa idade diminua-a a ponto de a pr nervosa e pronta a desfazer-se em lgrimas. Consultou em Paris um mdico velho e compassivo; passou-lhe uma receita que ela aviou Praa da pera, indo depois comer ostras entre desenganada

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e ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho Dias Nabasco crescera entre duas mulheres que o amavam. Era um amor sujeito a mudanas, como tudo na vida. Nesse ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as frias em Biarritz e no pde ir orir a campa dos mortos, cada vez mais distante na provncia que fora o bero dos Nabasco e que se urbanizara at car irreconhecvel. O que ligava Paula a Biarritz era uma velha histria de famlia; o exlio dos Nabasco nos tempos da Repblica e tambm a fortuna de que dispunham para se fazerem respeitar sem se olhar ao nome ou origem. Duma irmandade de muitos irmos, que mais parecia convento do que lar de propores normais, os Nabasco tinham-se corrompido a ter poucos lhos, depois da guerra de 14, quando a vida se tornou bizarra e divertida. Ter s um lho ou um casalinho tornou-se um capricho da burguesia bem nascida. O tempo do av Nabasco, o do jazigo em beto armado, fora o ltimo da procriao natural sem o recurso ao preservativo e ao coito interrompido. Teve nove lhos, dos quais trs eram decientes mentais, de instintos matreiros e pirmanos, e assim por diante. Mas Maria Rosa Nabasco, a av de Martinho, limitou-se a dar luz um rapaz e uma rapariga a quem ps o nome de Paula, nome que ainda no existia na famlia e que ela, a av, achava indispensvel numa genealogia catlica. S. Paulo era, entre outros, o seu amigo preferido por razes que ela dicilmente abordava mas que no eram as mais cannicas. At aos nove anos, Martinho Nabasco esteve convencido que o mundo era partilhado por pessoas inteligentes, inventivas e criadoras. Quando se apercebeu que havia muita gente parada, como a av Maria Rosa dizia, isso perturbou-o. Numa famlia em que at os decientes mentais eram bem servidos de massa cinzenta que dava origem a anedotas, ditos

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de esprito e calembures geniais, o facto de se perceber que aquilo no era tudo e que podia haver verdadeiras hordas de brutos e de melanclicos activos e passivos, teve grande efeito em Martinho. At os Cunhas, que eram por tradio criados dos Nabasco, constituam uma elite de gente apurada de gostos e de entendimento. Os Cunhas eram sete irmos e uma irm chamada Ana. Muito feia, ao contrrio dos outros, que eram elegantes e bonitos rapazes, ela detinha o esprito mais elevado e a graa correspondente. Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes para lhe alegrar o corao, que era dado a sbitas apreenses, como o rei David. Acho que somos parentes. Tambm eu gosto de msica como remdio e no como prazer dizia. Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente graciosas e cozinhavam muito bem. Durante duas geraes foram presentes na casa dos Nabasco e contriburam para a felicidade dos dias que nem sempre eram de aproveitar. Atrs de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma herdeira dos Cunhas e que carregava as ores do dia de nados. Simples crisntemos, novelo, brancos e redondos como nuvens brancas e redondas. A Elisa era uma mulher robusta que vestia um uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer um uniforme, com colarinho e um gilet cizento a completar. O efeito era sbrio mas parecia uma extravagncia numa poca em que os costumes eram ditados pelos espaos de pronto-a-vestir. Ela orgulhava-se de no se converter aos jeans, se bem que ao preferir as saias de pregas estava a valorizar o porte de matrona. Ainda havemos de ver o dia em que os homens usem saias. So mais cmodas e mais arejadas dizia. Estabeleciam-se grandes discusses em volta de questes pequenas, e

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aquilo despertava o esprito e tornava-o incandescente. Na hora perto do jantar, quando se entrava na cozinha para destapar as panelas e provar os molhos, acontecia aquela variada conversa sobre palavras, hbitos e o que os explicava. Martinho j no conhecera a casa da Rua de Belomonte que tinha a cozinha e a sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mtica. s seis horas da tarde abria-se a porta do quintal aos ces e eles subiam pelas escadas como um esquadro da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram ces de caa; e embora no houvesse mais caadores em casa, alimentava-se essa tradio com os setters bonitos, cor de fogo cujo plo luzia ao lume do fogo de lenha. Porque at muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os foges de sala. Ouvia-se o crepitar das achas secas como um rudo de bom augrio na manh enevoada. O rio tinha ainda humores de estao, crescia no Inverno e acumulava nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na corrente, rpido na or das ondas j invadidas pelo mar aberto. Tudo isso Martinho no tinha conhecido. Nem a me dele, Paula, que se distinguia por ser dessas mulheres enclausuradas ainda, e que aprendem equitao para o caso de ir viver em grande estilo com um senhor das lezrias ou com um lorde ingls. Imaginaes que se desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, j em declnio mas ainda consultoria de casamentos. Martinho apertou, sem querer, o brao da av ao ter diante dos olhos a pesada pedra do tmulo. Era de facto terrvel, com as argolas de ferro enferrujadas e o musgo negro que a cobria. No vou deixar que a metam aqui pensou, desolado. E um toque de p-de-arroz na face dela, junto orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma mulher bonita.

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At ao m somos amantes uns dos outros pensou, triste. A educao de mulheres dera-lhe um descaramento ritual, sem nada de perverso, s amadurecido pela reexo. Deteve-se a olhar para as campas cobertas de inscries saudosas, de ores caras, de candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma vaidade mais, uma festa de anos em que s faltava o parabns a voc mas no a mesa abundante. Tem frio, av? perguntou. No, s um pouco de fome. Mas, espera: no fome, talvez no seja. A morte excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com pegas e tudo. No se devem frequentar lugares destes na minha idade. So lbricos e quase mal afamados. Um dente dela abanava quando ela falava, e Martinho podia distinguir um ligeiro ciciar da voz que dantes no tinha. Pronto, a velhice est a bater-lhe porta. No vamos pensar nisso, no quero pensar nisso. Pronto, acabou, pensamentos vagabundos! Beijou-a, a rir-se, e notou que os cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado. Os cabelos. De repente as mulheres puseram-se a usar franja e Nietzsche disse que era para esconder a testa e o que ela presume: inteligncia, independncia de vida, sexo, gerncia dos negcios e outras coisas. Por mais que olhasse para todos os lados, as mulheres no pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se adaptassem com mais diculdade a um destino de donas de casa e mes de cinco lhos ranhosos e impertinentes. A verdade estava vista, a crueldade era uma forma de razo prtica, mas isso sempre existira entre as mulheres e os homens tambm. S uma educao muito rgida as controlava. Casavam-se por amor, mas o amor inclua tudo o que se pode imaginar como na histria do Humpty Dumpty. Cascas

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de ostras e peles de raposa ou daquelas guas de Colnia estafadas cujos frascos eram sempre uma ralao pois no pertenciam a nenhum lugar: nem ao lixo nem a uma coleco, nem para encher outra vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe dessem um frasco desses o mandava de volta de presente para outra pessoa. Eu s gosto de lavanda. Mas quando quei grvida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais a pude suportar. Isto deve ter um sentido, no sei. Paula penteava os compridos cabelos pretos. To pretos quanto podiam ser, com reexos metlicos. H coisas que se lem nos livros mas que, nem por isso, deixam de ser assim. Negro asa de corvo existia. Eram os cabelos de Paula. A est uma coisa que no se desfaz depressa. O cabelo pensou Martinho. Ps-se a olhar para a cabea das pessoas que enchiam o cemitrio e cou desconcertado. Pareciam todas como as dos condenados guilhotina ou ao machado, pontas cortadas ao acaso segundo o critrio do barbeiro da priso. Os pensamentos dele voaram noutra direco, conduzidos por uma curiosidade que o fazia memorizar os momentos menos interessantes da vida. Coisas de que ningum se lembrava saam da memria como ratos dum queijo gigantesco. Era uma ideia tola mas divertida como as crianas costumam gostar. A av apoiou-se ao gradeamento da campa e cou um instante recolhida depois de fazer o sinal da cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que com a av no se podia ter a certeza de nada. Decerto estava a pensar em coisas completamente alheias ocasio e que tinham que ver com necessidades bsicas, pequenas compras ou contactos com as amigas. Tinha poucas, grande parte delas tinham morrido, o que a no a afectara muito. Os velhos so para morrer e as capoeiras

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devem ser remoadas, com o cacarejo alegre das novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e brilhantes a fazia rir. Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! Ela ajuntou as pregas do vestido e endireitou-se como se lhe fossem tirar uma fotograa. Odiava que a fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos, um receio de que a fotograa lhe levasse a alma, o que no deixava de ter algum fundamento. Martinho pensou que ela tinha a pose perfeita para ser retratada, tendo aos ps, at cintura, a massa de crisntemos brancos e enormes. Era uma mulher linda, mais ainda do que fora em nova. Paula tinha muitos cimes dela, passara o tempo a imit-la, rastejando em volta dela como um cozinho que implorasse carinhos. A av era parca em beijos e afagos. Do-me volta ao estmago, as crianas felizes dispensam-nos muito bem dizia. Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho vericou o indestrutvel dos cabelos foi quando abriram o tmulo de Patrcia Xavier para procederem a reparaes de alvenaria. Os cabelos estavam intactos. Enrolados debaixo da cabea reduzida a caveira completamente descarnada, pareciam uma almofada. Martinho estava presente porque o jazigo pertencia aos Nabasco e, por deferncia, estando o tmulo dos Xavier ocupado pelos sucessivos mortos desta famlia, Patrcia cou sepultada numa antiga capela do cemitrio da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revoluo dos Cravos. Tinha as propores majestosas dum andar de boa rea, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar, donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre. O lampadrio, que viera de Veneza, tambm faltava. O ar era hmido, havia inltraes e os ratos tinham rodo papis, talvez pagelas com a vida dos santos ou

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restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto. E os cabelos. Espessos, abundantes, como tantas vezes Martinho vira em Patrcia. Ela ia jogar bridge com Maria Rosa Nabasco, s quartas-feiras. Ao todo, quatro mulheres vestidas a rigor e que calavam luvas de sude e tomavam ch na confeitaria Oliveira, uma vez por outra, quando saam para compras. Eram mulheres em que se sentiam os hbitos caros, que no perguntavam o preo das coisas, que se limitavam a mandar a casa. No estavam dependentes do oramento e, praticamente, eram seguras do marido que tinham e da modista que as vestia. O gnero de mulheres de que Maria Rosa Nabasco era a ltima, como relquia dum tempo acabado, tempo de privilgios que tinham a sua moda, como os chapus e as receitas de pastelaria e os pudins sem um p de farinha. Patrcia Xavier fora a primeira a faltar, como se dizia. Era alta, sempre bem calada e com meias to nas que era preciso vesti-las com luvas, como se recomendava sempre na embalagem de origem. No se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi assim. O espanto varrera as salas descobrindo o segredo mais do que era permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos, aquilo cou encoberto e ela no sofreu nenhum prejuzo no seu Natal em que tudo correu normalmente; sem faltarem os presentes de Patrcia Xavier, coisas de preo como era costume ela dar, caxemiras e estojos para as unhas de pele de qualquer bicho raro, ventre de aligator ou assim. Patrcia foi sepultada na capela dos Nabasco, no porque no houvesse lugar no jazigo de famlia dela, mas porque se levantou uma resistncia muito dura devido s causas da morte. Um aborto no era to extraordinrio e sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos mdicos para se recomporem dum acidente que, na verdade, tinham

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previsto mas no acautelado. Patrcia disse apenas a Maria Rosa o que tencionava fazer. O Rogrio Conceio, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos o recorde dele. Maria Rosa olhou para ela com inquietao. No a censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldio que pesava sobre as mulheres. Algum lhe tinha dito que o mundo s tinha salvao quando as mulheres deixassem de ter lhos e os sexos fossem um s. Era inconcebvel, mas talvez se chegasse l um dia. Onde ouviste isso? disse Patrcia. Aquilo parecia-lhe um atentado sua dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante comprometida. No sei. Comigo no faas mistrios. No fao mistrios, no sou pessoa para isso. Foi uma coisa que li. O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady Chaterley julguei que j tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do sexo nico. Fazes ideia do que ests a dizer? Fao. J no te metias em sarilhos nem ias parar a uma clnica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! J ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo. Tu nunca choras, Maria Rosa. s vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo rapaz. Dei gritos tamanhos que at se ouviram nos vizinhos. E no era pequena distncia; ns vivamos num chal dentro dum jardim grande. No querias parecer um rapaz. No sei. Era uma grande pena. Nunca me senti to infeliz depois disso. s vezes pensava no que me fez chorar

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tanto e no encontro o motivo. Morreu-me um lho em pequenino mas no a mesma coisa. Ests certa que sermos mulheres a origem de todo o mal? O desejo dos homens, o prazer com que convencem o desejo, so coisas horrveis, se lhes pintarmos toda a sorte de maldades que so o excitante necessrio. J agora que falaste de Lady Chaterley, essa mulher tremenda e sem compaixo. Sem compaixo, o sexo uma batalha vulgar, um crime como no h outro igual. Deixas-me arrasada. Agora no sei se hei-de fazer o aborto ou no. Dizes bem: aquele burro do Lawrence no percebeu nada das mulheres. Ou s percebeu o que era para perceber por ele prprio. No houve o primeiro Ado mas a primeira Eva. D-me mais uma pinga de ch. Onde compras o ch? A mam comprava-o numa loja de modas, era chique. Nunca percebi a diferena do que chique e do que no chique. Disse-me o Mariano, que professor na Universidade: Porque que o amarelo no h-de dizer com o rosa? Depois as cores psicodlicas caram na moda. uma questo de votos e no de gostos? O que que faz o voto? Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage avariou. O voto uma inveja compulsiva, a tens. Passados dias Patrcia Xavier morreu e aquilo entendeu-se como um desastre. Os mdicos calaram-se no diagnstico, o que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira e no teve a assistncia do tal experiente arrombador de cofres. Maria Rosa afastou do esprito a ideia de que a amiga se achara invulnervel e que no era possvel acontecer-lhe nada. No viu o perigo, quando o perigo nos rodeia por toda a parte e no nos d trguas. H quinhentos milhes de anos ramos mais espertos, quer dizer, o crocodilo dos pntanos com o seu olho que no se sabe se est a dormir ou acordado. Talvez no dormisse nunca e os seus quatro comandos

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cerebrais estivessem sempre alerta. Sendo assim, no nos temos aperfeioado, mas sim a natureza cometeu erros uns atrs dos outros. Que vida! Patrcia Xavier ia impecavelmente penteada quando foi para o caixo; e parecia bem, que era o que ela mais desejava. O velho pardieiro dos Nabasco, como lhe chamava o doutor Horcio Assis, merecia agora o nome. O estrado que lhe dava acesso a cavalo tinha sofrido derrocadas tais que era um perigo frequent-lo. Diferente das outras propriedades cuja casa se encontrava a meia-encosta, aquela fazia-se notar porque se erguia no cimo duma colina. A cor amarela, na tradio vienense, tinha desbotado a ponto de parecer parda. Rodeava-a uma srie de planos que iam at um ptio que justicava em tempos a entrada principal e que guardava a beleza primitiva, hmida, musgosa e tranquila. E dentro, como acomodaes, havia trs salas consecutivas com retratos de famlia e canaps de jacarand. O mais estranho era uma cpia nas dimenses naturais da Ronda da Noite de Rembrandt. Ocupava toda uma parede da sala de jantar, e os ps do capito Banning Cocq e do seu lugar-tenente tocavam o cho. Para prevenir qualquer avaria, um dos famosos canaps protegia a parte baixa do quadro. O que durante os anos de infncia de Martinho, lhe causava terror e curiosidade. Os Nabasco viveram sempre de heranas, de peclios de tios e tias, da chegada de arcas com enxovais intactos, de loias, livros e mais retratos de damas rgidas e fessimas. Nos Nabasco a beleza chegou tarde com os casamentos que j no eram com primas, mas bonitas passeantes de Carreiros, na Foz do Douro. Dantes, o casamento planeava-se desde o bero; depois passou a ser mais inspirado e insubmisso.

(...) A RONDA DA NOITE - cap. II (...)

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sofrimento e imaginava possuir dons extraordinrios, de transformao em pessoas prodigiosas capazes de voar e de vencer grandes perigos. Isto era, em parte, resultado dos lmes que via e que lhe provocavam uma excitao sombria. Aparentemente era obediente e amvel para toda a gente, mas guardava uma soma de ideias maliciosas que um dia talvez se iriam libertar. Sobretudo o facto de haver na sala de jantar um quadro que era a cpia da Ronda da Noite de Rembrandt. Na sua vaidade mstica que no admitia contradio, Maria Rosa habituara-se a no duvidar. Para ela a Ronda da Noite era autntica e tudo o mais que pudesse assemelhar-se era pura falsicao. Bastava um s olhar para ver que Rembrandt no lhe pusera a mo. Mas o mesmo se diz do quadro que com tanta fama se pode ver no Rijksmuseum. Filipe Nabasco, no tinha uma ideia muito clara de quem era o pintor, nem isso lhe interessava. Bastava-lhe acumular na honra da famlia o factor duma celebridade. Entre os amigos de Martinho havia dois irmos que no se impressionavam com A Ronda da Noite. Tiveram mesmo a ideia destruidora de apagar uma gura a que chamavam o quarto mosqueteiro. Nos dois anos em que frequentaram a casa dos Nabasco, tomaram como entretenimento fazer pequenas alteraes no quadro como se faz nos enigmas quais as diferenas. Ningum ia descobrir, tanto mais que A Ronda da Noite, como a tela era conhecida, nunca foi observada com ateno. Mas isso cou gravado to profundamente em Martinho que sonhava amide com A Ronda da Noite, como uma cena que estivesse por detrs dum porto chapeado de ferro e impossvel de mover. No entanto, ele abria-se lentamente e A Ronda da Noite ganhava vida. Como na realidade, tratava-se da preparao dum desle onde todos

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procuravam o lugar certo, fazendo daquela agitao uma festa ou preparativos para uma festa. Os amigos de Martinho depressa cresceram e esqueceram A Ronda da Noite e os seus pequenos vandalismos. Mas Martinho no. De tempos a tempos, tinha aquele sonho, ntido e sem alteraes nos seus pormenores. Constava que Filipe Nabasco tinha vendido o quadro, porque vendia tudo sem o mais pequeno remorso e mesmo sem precisar de dinheiro. A fortuna deu-lhe at ao m da vida e Maria Rosa quando ele morreu teve algumas surpresas desagradveis. Tinham desaparecido algumas jias de famlia, dessas que no so usadas pela falta de ocasio adequada, que eram os bailes da corte, no tempo da rainha Maria Pia. Na famlia Nabasco houve duas aafatas cujos vestidos de gala estavam ainda guardados dentro de folhas de papel de seda. A educao que Maria Rosa (Maria Rosa Firmina, era o nome dela) dava a Martinho era ainda um resduo desse passado que no tinha nada de austero e onde a educao literria era reputada como pedantaria. Com a viuvez da soberana D. Amlia fez-se um concerto beato entre a corte e o clero e chamaram-lhe a santa Amlia. Foi depois da implantao da Repblica que a famlia se dividiu, cando o ncleo monrquico dos Nabasco, imigrando no Brasil na poca mais agitada, e tomando o rumo da esquerda os que tinham sido afectos burguesia intelectual de inclinao republicana. No Brasil, o Nabasco desse tempo apanhou hbitos francamente vagabundos, jogava e valia-se da sua estirpe europeia para exercer inuncia numa sociedade opulenta e ainda ancorada nos costumes da escravatura. O hbito de presentear com ouro as criadas e que durou at aos meados do sculo vinte em Portugal, era, ou parecia ser, um captulo da casa de engenho, onde as escravas se adornavam com ouro em abundncia. Fosse como fosse, os Nabasco antigos trouxeram, quando vol-

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taram do exlio, uma criada preta chamada Esperana que foi lendria, pelo lado mau, na famlia. Maria Rosa teve a parte mais favorvel da histria porque se casou com o Nabasco enriquecido no se sabe porque combinaes de negcios de guerra e expropriaes, ou coisa pior ainda. Foi nessa altura que A Ronda da Noite entrou em casa, pela janela, ou seja, por uma varanda envidraada das traseiras, porque pela porta no cabia. O facto de ter havido parentes que foram embaixadores em Berlim e Amsterdo dava um pouco de crdito autenticidade de Rembrandt. Os dias mais felizes de Martinho decorreram no campo, na propriedade que cou a chamar-se a Ronda. Porque o quadro lhe serviu de estudo antes que soubesse ler e contar. Com a sade do av avariada, foram para a cidade, onde havia melhores recursos mdicos. E a Ronda da Noite cou na parede, travada pelo sof de jacarand. O Nabasco durou pouco. Martinho lembrava-se de que o caixo deu problemas para sair de casa, que tinha uma escada de caracol ngreme como tudo. Era a Casa do Co, assim chamada pelas suas dimenses apertadas no meio dum parque luxuriante. De qualquer modo, os amigos da casa mais acreditados em coisas de arte, aanavam que se tratava duma falsicao. Ou, quando muito, duma obra do atelier de Rembrandt mas dum dos seus discpulos. Havia, ao que diziam, pinturas originais e outras esprias que se reconheciam porque no tinham mos ou estas se encontravam dobradas para vencer a diculdade de as desenhar. A Ronda da Noite dos Nabasco sofria desse defeito ou digamos que evasiva do seu autor. Mas o quadro abandonado na casa da Ronda continuou a estar presente nos sonhos de Martinho. Adormecia, e l estava A Ronda da Noite com os seus cavaleiros a tomar medidas

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para incorporar um cortejo mas pouco dispostos a colaborar, s a gozar a sua liberdade. Martinho acabou por tomar o sonho como uma premonio e isso aumentou a conana nele prprio. Acreditava que lhe estava destinado um papel no mundo e que, como Cristo, nascera num lugar desconhecido para melhor formular um pensamento original. Era, aos doze anos, um rapaz de paixes e que facilmente se entregava a desvairadas crises de irrealidade ou de ambio contida. A Companhia do Capito Frans Banning Cocq, como se deve chamar A Ronda da Noite, um homem rico e futuro presidente da cmara de Amesterdo, uma composio atrevida duma cena que no reecte o passado. No a pose de qualquer coisa que deve ser lembrada na sua imobilidade acadmica, mas um momento em que aco se junta com uma espcie de entusiasmo fogoso. No o que aconteceu que l est, mas um acontecimento em vias de se produzir. Por isso que, to inesperadamente, como o smbolo da inspirao, aparece a menina luxuosamente vestida, como uma gura de procisso mas qual no foi distribudo o seu papel. Martinho reectiu nisto, ou seja, na Companhia do Capito Frans Banning Cocq, como numa charada que lhe fosse proposta a ele somente. Como lhe explicou um amigo da av, provavelmente algum que a tinha amado quando era nova, A Ronda da Noite no signicava nada de militar, mas talvez uma confraria que se prepara para se juntar em dia de festa, tendo frente o capito Cocq e o seu lugar-tenente, vestidos para o luxuoso retrato em propores grandiosas. To grandiosas que no coube na parede da cmara de Amesterdo. Quando o capito foi eleito presidente, ou burgomestre, quis dar ao quadro o lugar conveniente; s que no cabia. Ento mandou cortar o tambor e uma parte esquerda, sem prejuzo da cena, ao que ele julgava. As suas relaes com Rembrandt,

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que era ntimo dos burgomestres e os pintava com grande respeito e sosticao (quem paga tem direito mincia e at a um olhar desvanecido) favoreceram o estilo do quadro. Um estilo eufrico, prprio duma alegre parada que se prepara na melhor das intenes, simulando gente armada mas, de facto, sem movimento blico. Martinho lembrava-se de que quando Maria Rosa punha o colar de prolas, Bento Webster, que tinha tido numa trajectria pelas casas de vinhos, a visitava. Pelo aspecto que ele tinha, tendo j dobrado os sessenta anos, fora um elegante cavalheiro que fazia poesia e agradava s mulheres. Usava ainda luvas de camura clara e Maria Rosa tratava-o com deferncia, como se ele fosse parente da rainha de Inglaterra. O bigode loiro e a corpulncia majestosa, faziam supor que fosse um lho do rei D. Carlos. Tambm havia a hiptese de Bento dever a paternidade ao Infante D. Afonso, a quem chamavam o arreda porque passeava em Lisboa a conduzir os seus Mercedes com mo mais inbil do que segura. De qualquer modo, Bento Webster Soares era um homem de sociedade, casado com uma senhora da provncia, do tempo em que a provncia tinha pequenas cortes lindamente servidas de jovens e de peixe assado. Ele enganou-a sempre, porque um poeta sempre um Eros faminto de emoes novas. Cultivava a dor imaginria e a nostalgia dos emigrados, ainda que nunca tivesse sado do Porto nem isso lhe zesse falta. S depois dos anos cinquenta, mais precisamente depois da segunda Guerra Mundial que as pessoas comearam a querer viajar, mais por curiosidade sexual do que por esprito de aventura. Maria Rosa, s depois de casar saiu do pas e foi ao Louvre conhecer a Mona Lisa, que estava, muito vulnervel, altura dos olhos de qualquer estudante.

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No geral, s os ricos iam para a neve, em Saint Moritz, e davam a primeira queda antes dos vinte anos. Maria Rosa, aos trinta e seis anos era o que se chama uma mulher que apetece elogiar, justamente porque no se tem a ideia de casar com ela. Era culta, polida, inteligente; e tinha muitos apaixonados, casados e solteiros, e sobretudo daqueles rapazes em vias de car solteires por excesso de bom gosto e pela faculdade, que alguns tm, de antecipar as coisas, como a felicidade improvvel no casamento. As mulheres costumam respeitar os incasveis e permitem-lhes que entrem nas casas delas como se fossem maridos platnicos. Bento Webster Soares pensou em tirar uma mulher dos braos dum marido, seno por algumas horas, ao m da tarde. O adultrio tem o seu horrio, como o calista e as provas na modista tinham o seu. J no h calistas, no Porto creio que tem dois ou trs; foram substitudos pelas manicuras, o que no a mesma coisa, nem se lhe compara. Um calista era uma arte, uma manicura uma prosso disse Maria Rosa, que tinha estranhos dilogos com Bento Webster. Como poeta, como homem, como tudo, ele estava fora de moda. Era destes homens de quem se tem vergonha de ser vista a almoar no restaurante, mas que se convida para jantar. Fica bem mesa e no se embaraa com os talheres. Do seu trato com ingleses, tinha uma sombria simpatia pela jardinagem; depois de regar o jardim ( havia muitos jardins no Porto) vestia o smoking nem que fosse para comer uma talhada de vitela fria que j tinha trs dias de frigorco. Nunca desejara ser rico, isso pertencia a um mundo que a alma viril no habita. Detestava as mulheres muito novas e os pickles de conserva. Ambos so legumes avariados disse Webster. Martinho ouviu isto, tinha oito anos, e pensou que Bento

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Webster Soares era de desconar. Desconava das pessoas adultas como se fossem ladres ou chantagistas em potncia. Um dia o colar de prolas da av desaparecia e s ele sabia quem o tinha levado no bolso do sobretudo. O colar de prolas que servira vrias vezes como cauo, quando as nanas estavam por baixo e no havia dinheiro seno para as despesas elementares. Para comprar um bonito par de prolas cinzentas, no havia; nem para trazer para o salo o espelho de Veneza com aquela moldura de ores de cristal, no havia. O supruo, o que envolve o prazer sensvel na sensao dum objecto belo, arrastava-os como a paixo do jogo. Os Nabasco jogavam por prazer e no por vcio. De resto, tinham a ideia de que podiam suspender de repente uma vasa, levantarem-se e ir embora s porque o txi chegara. No era verdade mas que importa? A verdade era uma coisa prescindvel e no de todo se podia avaliar. S os ricos sabem o valor do dinheiro, dizia o Nabasco, fumando a sua cigarrilha que lhe dava o prazer dum beijo. Como Maria Rosa odiava aquela cigarrilha! Ele fumava como se zesse sexo, com uma lentido mascada, uma visvel audincia dada ao prazer. Nunca a beijara daquela maneira; com aquele contido ardor, o silencioso pasmo de se achar possudo. Nem eu queria disse ela. E veio ao de cima um vmito, como se tomasse conscincia da sua violao, qualquer coisa que a segurava terra e punha dentro dela um insecto a que era preciso dar um nome e uma identidade. Que querem de mim? disse ela. A ideia de que um dia no daria luz, nem teria prazer nem dor, agiu nela como um sedativo. Libertao do desejo e da morte. Era decerto isso que estava na Ronda da Noite. Gente que se preparava para um festejo, a sua liberdade; mas estava armada e vestida como se de antemo lhe destinassem um

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papel que no tinham escolhido. O burgomestre vestido para presidir sesso solene com a sua faixa de gala e os sapatos de laos das grandes ocasies; o lugar-tenente, segurando a acha com que daria sinal para a audincia comear. O chapu com plumas brancas no podia ser mais adequado. As botas acima do joelho, as galochas a meia-perna. A casaca bordada com arabescos e os cabelos ondulados como que com ferro de frisar. E atrs dele as armas aperradas, os piques alados, risos e exclamaes. O tambor-mor, o tal que cou mutilado porque no cabia na parede; um belo cavaleiro de gola frisada como s se frisava em Amesterdo; os cascos, as mos toscas, a bandeira, um negro ou um gnomo que foge por entre a multido. A criana luminosa e feliz, to vontade no meio dos homens que vo deslar e no combater. De repente, tudo pode mudar e todos tomam um lugar diferente na parada. As expresses mudam, aquele que est escondido atrs dum brao estendido, adianta-se. um espio, o que sabe qual o rumo a tomar? O burgomestre sabe alguma coisa, tem um olhar surpreendido, vai tomar a palavra. Ter tempo para isso ou apenas um gesto teatral, ensaiado, inofensivo? Pode ser mal interpretado e o capito Cocq est em riscos de fazer da sua Companhia um monto de cadveres. No est previsto e tudo est em movimento. O desfecho? A menina no conta com nenhum desfecho e tem o rosto inocente e est vontade no meio da gente que ela conhece bem, todos familiares e que lhe prometeram um lugar importante no desle. Nos seus sonhos, Martinho, quando tinha sete anos, gostaria de se vestir como a menina, a pequena Saskia, uma herdeira rica. Punha uma camisa da av, do tempo em que se usavam as baby-doll, e danava abrindo os braos, sem parar. Maria Rosa surpreendeu-o mais de uma vez e bateu-lhe. Arrependeu-se logo porque Martinho no perce( ... )

CAPTULO IV O QUE AS TELHAS ESCONDEM

ara comear, as coisas passam-se normalmente. As casas so seguras, quando uma torneira pinga no se demora a consert-la; se a gata deu luz seis crias, afogam-se quatro; se um pobre bate porta, como dantes fazia, d-se uma esmola, pequena, para no se car sem trocos. Pede-se sempre um abatimento nas lojas, e isso funciona em todas as longitudes, tanto no Cairo como numa aldeia perto do Lago Maggiore. uma cortesia, no equivale a outra coisa seno a uma cortesia. Os saldos so o cerimonial do comrcio que dantes ocorria de maneira muito imaginativa. No muito caro? Fao um abatimento por ser para si. Um silncio em que se trocava a linguagem do afecto; gratido e parentesco de bairro. Depois o embrulho feito com sentimento e precauo, o o atado em cruz e rematado com um pequeno toro de madeira, para no magoar os dedos. Maria Rosa lembrava-se disso, mas no se lembrava dos preos. No perguntava, apenas dizia: Mande a casa, senhor Alves. Posso vir trocar? O senhor Alves olhava para ela com ternura. Merecia um beijo aquela graa de menina, com cinta rme e pernas bem feitas. O que ele no sabia que no Vero ela no trazia calcinhas e o vento da tarde lhe beijava as partes ntimas. Bem

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melhor do que se o senhor Alves, neto duma aristocrata, lhe aorasse o rosto nem que fosse para retirar uma formiga. Uma formiga nos cabelos? Porque no? Tudo so bons pretextos para conviver com aquela beldade de frente e de costas, uma beldade circular. Os rapazes que estavam a trabalhar numa obra diziam uma obscenidade quando ela passava. Maria Rosa gostava e ofendia-se, as duas coisas. Era o tempo mais bonito da sua vida, cheio de doces encontros prometidos felicidade. Gostava de rapazes de bom parecer, no s os que jogavam hquei e que passavam ao domingo no passeio fronteiro; mas tambm de operrios, de cabelos soltos e mal cortados, com a caixa das ferramentas e talvez um po com queijo de bola, ou um pouco de ambrino. Melhor do que a cama era aquele olhar trocado em que ia o desejo honesto de corromper a usura da consso. Amavam-se em poucos segundos, deixavam-se com a satisfao de se merecerem em cinco segundos. E, contudo, ela desviava os olhos, sem dissimular a atraco. Era incontvel a felicidade desses encontros. Chegava a casa, a me achava-a estranha. Que zeste? No respondia. E Marg, a que se casou com o irmo de Maria Rosa, j tinha invadido a casa, s quatro horas, quando vinha do Instituto Ingls e descia a escada aos saltos para lhe dar as boas-vindas. Era grande, sabia lnguas e o pai dela era um mdico de grande nome na capital. Onde andaste? Compraste alguma coisa? Iam merendar po com manteiga e tinham por prmio, no sempre, uma noz de chocolate, que acabaram; j ningum as v nas confeitarias. S clairs gigantes para pobres gulosos. O sol descia, levantavam-se os estores tardinha. E at ao jantar Maria Rosa parecia meio sonmbula, toda metida no gozo dos encontros compadecidos, com amantes que nunca se vol-

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tavam a ver, e no respondia eterna pergunta: Que zeste? Teve um perodo de anorexia, cou to denhada que lhe desapareceu o perodo. Chorava sem razo, chegaram a temer pela sade dela, e o pai disse que era preciso distra-la. Atravessava uma crise de dinheiro e na mesa isso era bem visvel. Os belos rodovalhos grelhados com gros de pimenta a eriar-lhes a pele, j no apareciam. Nem as peas de caa, faiso ou perdiz que se vendiam gravemente com um pouco da solenidade do que raro; como uma jia em veludo negro. E, todavia, o pai ps de parte a avareza que lhe raiava os olhos de sangue, quando lhe pediam para ir de frias ou dar um presente a uma amiga; punha de parte essa raiva de homem de no cumprir com o seu dever de fazer a casa farta e a mulher contente entre lenis. Vendeu, pediu a usurrios, empenhou o seu Patek-Phillipe e Maria Rosa teve rosas e anis, o que quer dizer que tudo se preparou para a alegrar como a idade dela pedia. Dezoito anos, olhos de azeite or da gua. Comeava a comer melhor, perdoou ser to impertinente e sofrer por coisas que no aconteciam. Perdoou alguns sonhos maliciosos, como quando uma noite acordou e viu o irmo no quarto, a olhar para ela, sem se mover. s vezes, mesmo estando de costas, percebia aquele olhar. E o pai tambm, tinha dias. Ela indignava-se mas, antes disso, sabia que estava culpada, que era ela quem comeava com o despudor duma inocncia que o pior pecado. Inocncia que espreita como um drago, e se esconde como o sal na neve fria. E o pai esteve prestes a arruinar-se completamente por ela, a ngir que tudo estava na maior prosperidade, mandou-a estudar para Inglaterra e conhecer pessoas, tudo. E at o

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irmo se queixou porque no teve um carro de corrida que tanto queria e no teve. Para outra vez disse o pai. O caso cou arrumado. Se nesse tempo a Ronda da Noite j estivesse por perto, tinha-a negociado ao desbarato para cobrir as dvidas s quais dava nomes, como a dentua ou a movedia: uma porque a trazia ferrada na perna, outra porque o atolava cada vez mais. Quando a Ronda da Noite foi atribuda a Filipe Nabasco, numa dessas heranas que constavam no seu cadastro de parente presente apenas na rvore geneolgica, ele nem sequer a quis ver. Nem tinha muitas luzes sobre arte e dava mais ateno a um negcio de volfrmio (onde, de resto, perdeu muito dinheiro por multas e vrios danos) do que a um Museu do Louvre todo inteiro. S o que podia comprar e vender num prazo curto que envolvesse uma conversa de caf, era o que lhe interessava. A Ronda cou enrolada como um tapete velho na parte de cima das antigas cavalarias, muito maiores do que a Casa do Co. Filipe Nabasco, no tendo onde estender a Ronda em todo o seu tamanho ( como no houve largura suciente na cmara de Amesterdo e por isso foi mutilada ), deixou-a na cavalaria onde dormia o feitor. Nessa altura Maria Rosa desviou os seus problemas ntimos para a maldio da Casa do Co e falou na mudana. Quando a Ronda foi mostrada em toda a sua extenso (3,63m por 4,37m), fez-se um silncio. Na cavalaria, banhada pela luz fraca da porta meio encostada, o Capito Frans Banning Cocq, senhor de Purmerland e de Ilpendam, parecia um tanto recomposto da surpresa por ter visto o seu tenente Van Ruytenburch, vestido com tanto luxo. Para no se confundir com ele, deu um passo (de modo quase imperceptvel) para diante, o que faz com que se notem os ps calados com

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sapatos de laos, tendo altura dos joelhos tambm laos abundantes. Podia estar tranquilo o capito Cocq porque o fato de veludo preto, a faixa traada no peito, de seda cor-de-cravo, alm da luva de camura que segura o basto, serem prova evidente da sua categoria. Contudo, ele no deixa de ter um olhar de preocupao e procura no reparar na gura do seu tenente. Mas difcil no reparar. Todo ele luminoso, a nota mais luminosa da tela, se exceptuarmos a pequena, e doce, e divertida menina que est a tentar atravessar a companhia do capito ainda desprendida da ordem de marcha, ainda entregue a uma despiciente desordem. O tenente sobressai pelas galochas de cano largo sobre as botas com joelheiras bordadas. Devem-lhe ter custado um ms de soldo, ou mais, assim como o chapu emplumado. O nosso tenente quis fazer boa gura e no se poupou a despesas. No todos os dias que se posa para o mestre Rembrandt que est afogado em lutos e provavelmente em dvidas. Ele acaba a Ronda da Noite quando Saskia morre. No ser a alma de Saskia que se converte num duende para romper caminho pelo meio da companhia do capito? Uma criatura tenebrosa, coroada de folhas de carvalho, parece estorvar-lhe o passo. O carvalho, pela sua dureza e resistncia, estava relacionado com a ideia de imortalidade. possvel que Rembrandt quisesse simbolizar na gura macabra a morte, um condutor da alma feliz e infantil de Saskia, ou da pequena Cordlia morta de pouca idade. O sentimento pago e delirante vai impregnar a Ronda da Noite que terminada em 1642, ano em que morre Saskia, depois da lha Cordlia; a segunda Cordlia, a primeira morre em 1638. O estado moral e mental do pintor seria precrio, e isso que d profundidade Ronda da Noite. Pinta como se falasse com ele prprio, indiferente em desatinar, levado por um escrpulo apenas quanto ao destino que continuamente lhe marca en-

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contro. Interroga-se, enquanto pinta. Os contnuos auto-retratos dizem que se preocupa consigo mesmo. um luntico, um homem que persegue honras e uma vida de luxo e estabilidade, como qualquer judeu de Amesterdo? No , com certeza, um judeu. Os judeus so maus pintores, mas pode-se dizer que Rembrandt um bom pintor? Dos seus oito discpulos, ou colaboradores, h quem pinte melhor do que ele. Mas no h quem recolha, dum s trao, aquele olhar, sempre o mesmo, que se alimenta dum vazio que h na vida, vazio da cultura e do amor, em tudo. Era este olhar que Martinho achava ser-lhe dirigido. Aos poucos sentiu-se visado pelo autor da Ronda. A ltima colocao do quadro, no cimo da escadaria principal e numa sala que era suposto ser o trio, no foi o mais favorvel. A Ronda cou na penumbra e a nica coisa que sobressaiu nela foi a rapariguinha e o tenente com as suas galochas novas e o ar de primeira gura, o gal da cena. Tudo o mais cava mergulhado na sombra, como que velado por um reposteiro espesso. Pintar para ele um ganha-po, mas signica tambm um pedido de explicaes. Pede obscuridade que se abra e tome a palavra; os momentos culminantes, como a ressurreio de Lzaro, so momentos profusamente iluminados, correspondem a um desejo que sai do mais profundo da alma. A rapariguinha da Ronda que avana entre a multido, distrada e sem orientao, parece dizer: Segue-me e sabers porqu. O quadro chegou a ter, para Martinho, o sentido dum livro de adivinhas. Tinha que o ler e interpretar. Escondia, em grande parte, a sua fascinao pela Ronda, a ponto de falar em vend-la para cobrir as dvidas da casa. Mas fazia isso, como aqueles que esto perdidamente apaixonados e ngem desprendimento para no serem alvo de ateno particular e

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que, com ela, lhes seja arrancado o segredo. O melhor do amor o segredo. A sua aparente rendio a ponto de se tornar difano e vulgar, serve apenas para preservar o segredo. No uma coisa a que se renuncie abertamente; apenas se pode misturar com outros sentimentos para no ter que o beber em estado puro, o que causaria a morte, como s vezes acontece. Felizes os que no amam seno a sombra das coisas, disse Martinho. Tinha subido a alta escadaria, cujos muros estavam cobertos de azulejos verdes, e respirava com diculdade. Judite estava a falar com algum na sala nobre, quase despojada de mveis e com um piano de cauda a marcar a importncia desse lugar; embora ningum tocasse piano, ele impunha-se, parecia pedir o seu concertista, algum que o amasse e no apenas decifrasse os seus sons. Martinho estava perto de fazer dez anos de casado, data considerada de crise para o casal. Isso talvez explicasse os pequenos e quase teatrais empenhos que Judite mostrava em agradar-lhe: Amo-te tanto! dizia ela. Como Cordlia dizia ao pai, o rei Lear. Mas isso no signicava que o amasse deveras. Era mais astuta do que as irms, apenas isso. Porque o amor, como as cenas obscuras de Rembrandt, assim obscuro, toldado como a gua escura dum lago ou dum poo muito profundo. Martinho, que ia refazendo as casas arruinadas da famlia, tendo, para isso, conferncias com os arquitectos e mestres-de-obras, pensava que as pessoas no ocupavam na sua vida nada de comparvel. Porque que hei-de amar as pessoas? Basta ser-lhes grato, se for caso disso, ou gratic-las se tambm for caso disso. Mas am-las fora de questo. O amor como se diz de Deus: No devemos jurar o seu santo nome em vo, pensava ele.

A RONDA DA NOITEcap. VII

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se ria dele e era o que o irmo mais temia. Tinha sido educado como um prncipe da Renascena, e quando estava sentado no cadeiro de couro, cabeceira da mesa, parecia um prncipe da Renascena ou coisa que o valha. Para nada lhe servia tanta sabedoria e o dinheiro que tinha. Porque Paula dizia constantemente, a ponto de aborrecer toda a gente l em casa, como eram opulentos os Nabasco e como tinham seis solares vazios no Nordeste e Maria Rosa dormia com um colar que valia milhes. Era uma lenda e era uma chatice. No era possvel atribuir-lhe anedotas como aos alentejanos, que esses mesmos estavam mudados e constituam um feudo parte. A primeira vez em que Bernardo teve a conscincia de que as coisas tinham mudado e que a frustrao marcara encontro com a poltica, foi quando, estava ele no Chiado, comeou a chover. No meio daquele trnsito de repente catico, um carro cinzento-claro (no prateado mas s dum cinza frio) parou bem no meio da rua e um homem alto, indiferente, conante, saiu; abriu a mala do carro, com vagar mas sem mostras de provocao, e, depois de encontrar o que queria, voltou a fech-la. O motorista no se tinha mexido do lugar. A um sinal que Bernardo no pde ver, o carro arrancou como se fosse entrar num cortejo e em poucos segundos desapareceu. Parecia uma imagem recortada num espao que no lhe era atribudo; um cenrio corrido sobre outro que continuou a funcionar na tarde chuvosa, bonita tarde de luzes que se acendiam demasiado cedo como por comando dum funcionrio mal disposto. Foi uma cena muito breve, desses instantes que parecem roubados a outro circuito de acontecimentos sem data e sem histria. Mas Bernardo teve tempo para o localizar: So os novos feudais.

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Vinham, sem se demorarem, da provncia. O seu temperamento resoluto, sem mesquinhez, feito duma memria de reinado local, no consente que lhes faam resistncia, o que na poltica uma diculdade maior. Os feudais no chegam ao poder pela falta de pacincia com os parceiros da capital, para com as suas manhas, palavras desditas e retomadas, alianas, semi-alianas e camaradagem de Assembleia e de pose para a fotograa. O riso com que se alivia a tenso das preocupaes partilhado com os novos feudais. Eles no frequentam cartomantes, no se fazem manejar, depilar e arredondar a barba, ou pintar o cabelo. So homens inteiros, aliados das suas mulheres que os graticam com lhos belos e que na moldura duma porta parecem retratos de si mesmos. Odeiam a poltica, odeiam a globalizao, os ns-de-semana, a imitao da riqueza, as unhas tratadas e os banhos de imerso. Bernardo gostaria de os frequentar e de ser recebido nas suas herdades vigiadas por guarda-costas e cmaras fotogrcas. E de pretender as suas jovens que ele no saberia como tratar, porque so fogosas sem ser levianas e se destinam a criar uma famlia igual sua. Tradicional na intimidade e cnica com os estranhos. Joo, o irmo mais novo, saiu-lhe melhor com os novos feudais. Comeou por cultivar os mais velhos, falando pouco e sorrindo sobriamente com as suas piadas, a sua informao, a sua ideia de eccia. Tornou-se um desses hspedes bem recebidos a quem no se fazem perguntas porque no esto ali seno para ilustrar os belos dias em que se acentua o valor dalguma coisa como um convidado especial; este pode ser um s do futebol, um ex-presidente americano, um msico de renome mas ligeiramente ultrapassado. preciso cuidado com as novidades, os inltrados que depois resultam serem caadores de escndalos ou sedutores das raparigas da casa.

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Joo comportou-se, como os feudais gostavam de dizer: como um senhor. Usava jeans com palet preto, sabia comer marisco com as mos e bebia sem se embriagar. At que teve a sua recompensa, a de casar com uma prima dos novos feudais. O que Bernardo achou um sucesso. A verdade que os novos feudais estavam a apoderar-se de regies at a proibitivas, mas que se mostravam preparadas para os receber. Os media, as revistas de lazer e laudatrias do grande empresrio; e toda uma leira da direita liberal, enm verdadeiramente segura de que a hora tinha chegado. Acabara o tempo em que tentavam convencer que tinham na manga um projecto poltico. O poder estava nalmente ao seu alcance, e foi isso que Bernardo percebeu naquela tarde chuvosa no Chiado, quando, como que vaporizado no cinzento da tarde, o carro cinzento parou e dele saiu um feudal, rme, eciente, fazendo parar o trnsito como se trouxesse uma ordem policial para o fazer. O trnsito parou realmente e Bernardo, estupefacto, disse: So os novos feudais. Joo tinha razo: o honesto centro reclamado pela democracia. Joo j estava em Londres a provar o fato de casamento e, no quarto de hotel que dava para Kesington Park, pensou que nalmente se livrava do pai marinheiro, dos medocres amigos que tinham uma coluna nos jornais e da comida dos restaurantes. Havia um segredo que os feudais no conseguiram atingir: Joo detestava coentros. Era o seu ponto fraco e pedia a Deus que nunca fosse percebido pela gente perfeita e salutar com quem se ia aliar.