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____________________________________________________________________ 204 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA N º 5 OUT./DEZ. 2008 Doutrina Nacional JURISDIÇÃO, HOJE, NO BRASIL * * * * JOSÉ MARIA TESHEINER * MARIÂNGELA GUERREIRO MILHORANZA ** RESUMO: Examinadas algumas das principais teorias a respeito do tema, a jurisdição é apresentada como atividade cometida ao Poder Judiciário, pela Constituição, visando aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição. Teorias da Jurisdição. Ações Diretas de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade. ABSTRACT: After examining some of the main theories on the subject, jurisdiction is presented as an activity imparted upon the Judiciary Power, by the Constitution, aimed at fulfilling the fundamental objectives of the Brazilian Federal Republic. KEYWORDS: Jurisdiction. Jurisdiction Theories. Direct Actions of Constitutionality and Unconstitutionality. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito de jurisdição; 2.1 Teorias; 2.1.1 Atividade de substituição; 2.1.2. Coisa julgada; 2.1.3. Lide; 2.1.4. Imparcialidade; 3. Jurisdição e Ação Direta de Inconstitucionalidade; 4. Jurisdição e ações coletivas; 5. Conclusão. SUMMARY: 1. Introduction; 2. Concept of Jurisdiction; 2.1. Theories; 2.1.1 Substitution activity; 2.1.2. Res judicata; 2.1.3. Strife; 2.1.4. Disinterestedness; 3. Jurisdiction and the Direct Action of Unconstitutionality; 4. Jurisdiction and class actions; 5. Conclusion. 1. INTRODUÇÃO Ao se tratar do tema “jurisdição”, perguntas sobre seu conceito, finalidade, origem e modo de exercício afloram naturalmente. Neste ensaio, não trataremos, senão incidentemente, do histórico da jurisdição (origem) e do modo como é exercida. As perguntas que procuraremos responder são estas: o que é jurisdição? E para que serve? Interpenetram-se as duas questões, porque não nos move um interesse meramente conceitual. Queremos saber o que é jurisdição, para determinar a função que o Poder Judiciário é chamado a exercer. Pode-se fazer do Direito um “vetor de redução de desigualdade e vetor do * Professor de Processo Civil na PUC/RS, Desembargador aposentado do TJRGS. * * Mestre em Direito pela PUC/RS, Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/RS, Advogada em Porto Alegre/RS.

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    204 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIA N 5 OUT./DEZ. 2008

    Doutrina Nacional

    JURISDIO, HOJE, NO BRASIL

    JOS MARIA TESHEINER* MARINGELA GUERREIRO MILHORANZA**

    RESUMO: Examinadas algumas das principais teorias a respeito do tema, a jurisdio apresentada como atividade cometida ao Poder Judicirio, pela Constituio, visando aos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Jurisdio. Teorias da Jurisdio. Aes Diretas de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade.

    ABSTRACT: After examining some of the main theories on the subject, jurisdiction is presented as an activity imparted upon the Judiciary Power, by the Constitution, aimed at fulfilling the fundamental objectives of the Brazilian Federal Republic. KEYWORDS: Jurisdiction. Jurisdiction Theories. Direct Actions of Constitutionality and Unconstitutionality.

    SUMRIO: 1. Introduo; 2. Conceito de jurisdio; 2.1 Teorias; 2.1.1 Atividade de substituio; 2.1.2. Coisa julgada; 2.1.3. Lide; 2.1.4. Imparcialidade; 3. Jurisdio e Ao Direta de Inconstitucionalidade; 4. Jurisdio e aes coletivas; 5. Concluso.

    SUMMARY: 1. Introduction; 2. Concept of Jurisdiction; 2.1. Theories; 2.1.1 Substitution activity; 2.1.2. Res judicata; 2.1.3. Strife; 2.1.4. Disinterestedness; 3. Jurisdiction and the Direct Action of Unconstitutionality; 4. Jurisdiction and class actions; 5. Conclusion.

    1. INTRODUO Ao se tratar do tema jurisdio, perguntas sobre seu conceito, finalidade,

    origem e modo de exerccio afloram naturalmente. Neste ensaio, no trataremos, seno incidentemente, do histrico da jurisdio

    (origem) e do modo como exercida. As perguntas que procuraremos responder so estas: o que jurisdio? E para

    que serve? Interpenetram-se as duas questes, porque no nos move um interesse

    meramente conceitual. Queremos saber o que jurisdio, para determinar a funo que o Poder Judicirio chamado a exercer.

    Pode-se fazer do Direito um vetor de reduo de desigualdade e vetor do

    Professor de Processo Civil na PUC/RS, Desembargador aposentado do TJRGS.

    Mestre em Direito pela PUC/RS, Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/RS, Advogada em

    Porto Alegre/RS.

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    desenvolvimento1? E, nesse caso, qual o papel do Poder Judicirio, se que tem algum? So questes como essas que se deve ter em mente, quando se busca determinar

    o que jurisdio, hoje, no Brasil. 2. CONCEITO DE JURISDIO A experincia inglesa, recolhida e sistematizada por Montesquieu, e as

    revolues americana (1776) e francesa (1789) romperam o ncleo do poder poltico implantando o princpio da separao dos Poderes. Em vez de um centro nico, rei, os trs Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judicirio. Ao Poder Legislativo atribuiu-se a funo de elaborao das leis, normas gerais e abstratas. Ao Poder Executivo, a administrao do Estado. Ao Poder Judicirio, a jurisdio.

    Nessa linha de pensamento dispe o art. 2 da Constituio de 1988: So Poderes da Unio, independentes e harmnicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judicirio.

    Em outro passo, diz a Constituio que a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito2, donde se pode extrair a afirmao a jurisdio, funo precpua do Poder Judicirio, consiste na apreciao (julgamento) de alegaes de leso a direito, mas no s, porque lhe compete tambm impedir a consumao de ameaas a direito. Em outras palavras, a tutela dos direitos subjetivos violados ou ameaados compete ao Poder Judicirio.

    A idia de jurisdio vai, portanto, alm do seu timo: dizer o direito. Como funo atribuda a um dos Poderes do Estado, no se limita declarao de direitos, mas envolve a execuo de suas prprias decises.

    Por se tratar de um poder do Estado, apresenta-se como inseparvel do imperium.3 A jurisdio, diz Darci Guimares Ribeiro, constitui monoplio do Estado.4

    vedada qualquer espcie de justia particular.5 O monoplio da jurisdio resultado natural da formao do Estado. Dele decorre, para o Estado, o dever de prestar a tutela jurisdicional apropriada pretenso processual da parte.6 Da soberania do Estado decorre o monoplio da jurisdio e dele, o direito de acesso ao Judicirio.

    A jurisdio atividade estatal, diz Araken de Assis: Ao proibir os cidados de resolverem por si suas contendas, o Estado avocou o poder de resolver os conflitos de interesses, inerentes vida social, e, correlatamente, adquiriu o dever de prestar certo servio pblico, que a jurisdio. Aos interessados nessa atividade, o Estado reconhece

    1 Diogo R. Coutinho. Desenvolvimento, desigualdade e o papel do Direito. Valor Econmico, 9.04.2008, E2.

    2 Art. 5, XXXV.

    3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. Rio de

    Janeiro: Forense, 1973, t. I, p. 104. 4 RIBEIRO, Darci Guimares. Provas Atpicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 19.

    5 Afirma Darci Guimares Ribeiro: Es el Estado quien administra la justicia e detenta el monopolio de la

    jurisdiccin, o como prefere denominar BORDIEU el monopolio de la violencia simblica legitima, razn por la cual los mandatos utilizados por l para dirimir los conflitos se realizan atravs de la jurisdiccin. RIBEIRO, Darci Guimares. La pretensin procesal y la tutela judicial efectiva Hacia una teora procesal del derecho. Barcelona: J.M. Bosch, 2004, p. 75. 6 RIBEIRO, Darci Guimares. La pretensin procesal y la tutela judicial efectiva Hacia una teora

    procesal del derecho. Barcelona: J.M. Bosch, 2004, pp. 76-7.

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    o direito de provoc-la, preventiva ou repressivamente (art. 5, XXXV, da CF/88).7 No Direito brasileiro, a atividade jurisdicional compete quase integralmente ao

    Poder Judicirio. Num sistema como o nosso, que consagra a separao dos Poderes, a jurisdio

    corresponde a determinadas atividades-fim, atribudas ao Poder Judicirio, pela Constituio, e que, por isso mesmo, no lhe podem ser subtradas.

    Entre essas atividades encontra-se, fora de qualquer dvida, o julgamento das acusaes, em matria penal (jurisdio penal).

    H, porem, a exceo do processo de impeachment (julgamento do Presidente da Repblica e do Vice-Presidente e de ministros de Estado nos crimes de responsabilidade), da competncia privativa do Senado Federal, aps haver a Cmara dos Deputados declarado a admissibilidade da acusao formulada contra tais autoridades.

    Tambm cabe ao Senado, processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-geral da Repblica e o Advogado-Geral da Unio nos crimes de responsabilidade (Constituio Federal de 1988, arts. 51, I e 52, I e II).8

    A pena prevista limita-se previso de perda do cargo e inabilidade, por oito anos, para o exerccio de funo pblica. Trata-se de processo dominantemente poltico, que no prejudica a imposio das demais sanes judiciais cabveis (Constituio Federal de 1988, art. 52, pargrafo nico).

    So casos ditos de jurisdio anmala. 2.1 TEORIAS No se empreende uma indagao sobre um conceito jurdico, como o de

    jurisdio, com o intuito de se apontar a essncia de um instituto. A ambio bem mais modesta. Trata-se, em primeiro lugar, de se propiciar um acordo semntico, tendo-se conscincia de que as caractersticas descobertas so verdadeiras somente dentro de determinadas coordenadas de tempo e espao.

    Ainda que com essas limitaes, passamos ao exame de algumas das teorias da jurisdio, ainda que do sculo passado, vinculadas ao Estado liberal e de autores italianos, mas em voga no Brasil.

    2.1.1 Atividade de substituio Jurisdio, disse Chiovenda, a funo do Estado que tem por escopo a

    atuao da vontade concreta da lei por meio da substituio, pela atividade de rgos

    7 ASSIS, Araken de. Garantia de acesso justia: benefcio da gratuidade. In Garantias Constitucionais

    do Processo Civil. TUCCI, Jos Rogrio Cruz e (coord.). So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 9. 8 Art. 51 - Compete privativamente Cmara dos Deputados: I - autorizar, por dois teros de seus

    membros, a instaurao de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da Repblica e os Ministros de Estado; Art. 52 - Compete privativamente ao Senado Federal: I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da Repblica nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha do Exrcito e da Aeronutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justia e do Conselho Nacional do Ministrio Pblico, o Procurador-Geral da Repblica e o Advogado-Geral da Unio nos crimes de responsabilidade.

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    pblicos, da atividade de particulares ou de outros rgos pblicos, j no afirmar a existncia da vontade da lei, j no torn-la, praticamente, efetiva.

    a) Na cognio, a jurisdio consiste na substituio definitiva e obrigatria da atividade intelectiva do juiz atividade intelectiva, no s das partes, mas de todos os cidados, no afimar existente ou no existente uma vontade concreta da lei concernente s partes.

    b) E quanto atuao definitiva da vontade verificada, se se trata de uma vontade s exeqvel pelos rgos pblicos, tal execuo em si no jurisdio: assim, no jurisdio a execuo da sentena penal. Quando, porm, se trata de uma vontade de lei exeqvel pela parte em causa, a jurisdio consiste na substituio, pela atividade material dos rgos do Estado, da atividade devida, seja que a atividade pblica tenha por fim constranger o obrigado a agir, seja que vise ao resultado da atividade. Em qualquer caso, portanto, uma atividade pblica exercida em lugar de outrem (no, entendamos, em representao de outros).

    No existe jurisdio somente quando, no curso da execuo, surgem contestaes que preciso resolver (seja sobre a existncia da ao executria, ou sobre certas medidas executrias); antes, importa em jurisdio a prpria aplicao das medidas executrias, porque se coordena com a atuao da lei. (...) Na (anterior) doutrina italiana (. . .) dominava a opinio de que a execuo constitua mero exerccio de imprio, atividade administrativa, e de que a jurisdio se adscrevia cognio e se exauria com a sentena. Suposto o conceito, ento corrente, de escopo processual (definio de controvrsia), isso era compreensvel.

    Mas plausvel no era a tentativa de justificar semelhante conceito com a idia romana do jus dicere ligada ao especial ordenamento judicirio dos romanos. S no direito comum foi que se desenvolveu o princpio jurisdictio in sola notione consistit, acolhido, depois, pela doutrina italiana e francesa.

    Ora, no devemos contrapor imprio e jurisdio como qualitativamente diversos: a jurisdio no , ao contrrio, mais que um complexo de atos de imprio reagrupados por deteminado escopo que o caracteriza, e emanados em virtude dos correspondentes poderes postos a servio desse escopo e da funo jurisdicional.9

    Em crtica a essa concepo, Galeno Lacerda observou que, nas atividades que dizem respeito prpria atividade do juiz (ao se pronunciar, por exemplo, sobre a prpria competncia ou suspeio), no h qualquer trao de substitutividade.10

    Na mesma linha, objeta Araken de Assis:

    O fato de o processo, geralmente, restaurar valores que os particulares ou a Administrao desrespeitaram, sub-rogando-se, portanto, quela conduta, induziu concluso errnea, considerando substitutiva a atividade jurisdicional. Ora, ao aplicar as regras de competncia, por exemplo, a ningum o juiz substituir, medida que tais normas a ele, e no s partes, se destinam. Descobre-se, a, a cognio sobre o prprio processo.

    9 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de Direito Processual Civil, 2. ed., So Paulo: Saraiva, 1965, v. 2, pp. 4-11.

    10 LACERDA, Galeno. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1980. v. III, t. I, p. 22.

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    Mais relevante (parece-nos) o motivo apresentado por Ovdio Arajo Baptista da Silva para rejeitar essa concepo: A objeo a ser feita clebre doutrina chiovendiana sobre a jurisdio, est em que o eminente processualista italiano, sob a influncia ainda das idias jurdico-filosficas predominantes no sculo XIX, concebia como coisas separadas e at, em certo sentido, antagnicas a funo de legislar e a funo de aplicar a lei. 11

    Efetivamente, h um abismo entre as concepes de ontem e de hoje sobre a funo jurisdicional. O princpio da legalidade, que reinava soberano, foi suplantado pelas diretrizes traadas pela Constituio, seus princpios explcitos e implcitos e, sobretudo, pelos direitos fundamentais nela proclamados. O Poder Judicirio, antes geralmente submisso aos atos dos Poderes Legislativo e Executivo, passou freqentemente a julg-los, em nome da Constituio e dos direitos fundamentais.

    2.1.2 Coisa julgada Segundo Allorio, jurisdicional apenas a sentena que produza certeza jurdica. Seu ponto de partida uma lio de Kelsen, no sentido de que as funes do

    Estado no se distinguem por seus fins (o juzo quanto finalidade sociolgico), mas apenas pelas formas e conseqentes efeitos. O direito cincia dos efeitos jurdicos e no haveria interesse em estudar a funo jurisdicional como atividade distinta se no fossem diversos os seus efeitos. Ora, a sentena produz um efeito jurdico que lhe peculiar e que no se encontra em qualquer outro ato: o efeito declarativo, a coisa julgada material.

    Se verdade que esta no ocorre nos atos administrativos, inclusive nos de jurisdio voluntria, e se verdade que ela se faz presente na jurisdio propriamente dita, por que no apontar tal circunstncia como caracterstica e elemento diferenciador? Entre a jurisdio voluntria e a contenciosa no h diferena de substncia, mas apenas de forma, o que explica a fungibilidade de determinadas matrias, enquadradas pelo direito positivo ora numa ora noutra categoria. A sentena constitutiva proferida em sede contenciosa produz coisa julgada material. , portanto, incondicionalmente jurisdicional, sendo correto afirmar-se que a mudana jurdica dela decorrente devia produzir-se porque presentes os pressupostos legais. Quanto aos atos de instruo, evidente que so atos processuais, mas no jurisdicionais. Quanto s medidas cautelares, certo que no produzem coisa julgada material. Portanto, no so jurisdicionais, o que no significa que entrem no mbito da jurisdio voluntria.

    A coisa julgada que diferencia a jurisdio em sentido prprio, mas isso no significa que a falta de coisa julgada seja um fenmeno exclusivo da jurisdio voluntria, pois bvio que no produzem tal efeito os atos legislativos e os administrativos; nem por isso a legislao e a administrao entram na jurisdio voluntria. Em suma, jurisdicional todo ato e s o ato que produza coisa julgada material, entendida esta nos termos do art. 2.909 do Cdigo Civil italiano (A declarao de certeza contida na sentena passada em julgado forma estado para todo efeito entre as partes, seus herdeiros e sucessores).12

    11 SILVA, Ovdio Arajo Baptista da. Curso de Processo Civil. 2. ed. Porto Alegre: SAFE, 1991. v. I, p. 21.

    12 ALLORIO, Enrico. Problemi di diritto, Milano, Giuffr, 1957, v. 2.

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    Embora nada impea que se convencione chamar de jurisdicionais apenas as decises aptas a produzir coisa julgada material, certo que uma teoria processual nada ganha com essa reduo conceitual, que exclui de seu mbito no apenas os atos judiciais executivos e cautelares, mas, dentro mesmo do processo de conhecimento, os atos de instruo e as sentenas meramente processuais.

    Mais relevante, porm, apontar para o fato de que, em comparao com o passado, o princpio da segurana jurdica e, com ele, o instituto da coisa julgada, perdeu importncia, como prova a forte aceitao, entre ns, do movimento de relativizao da coisa julgada.

    Observa Eugnio Facchini Neto que, agora, o juiz no mais somente intrprete da lei, mas intrprete e resolutor direto dos conflitos e mediador dos interesses. Ao lado de sua clssica funo de fornecer segurana aos particulares, o Estado assumiu prevalentemente as funes de reformulao e de retificao de equilbrios sociais atravs da distribuio e redistribuio de recursos, do que resultou a reduo da importncia do valor da certeza do direito que, segundo o Autor, no deve ser uma grande preocupao do juiz. Enquanto antigamente o juiz era chamado sobretudo para decidir com o olhar voltado para o passado de modo, pode-se dizer, retrospectivo hoje freqentemente chamado a escolher, relativamente s possveis alternativas que lhe so explicitamente deixadas abertas, aquela que melhor se presta a satisfazer os objetivos pr-fixados no horizonte constitucional.13

    Ora, a coisa julgada no pode seno se referir ao passado. A sentena pode ser imutvel, porque o passado imutvel. Mas no se pode atribuir imutabilidade a uma sentena prospectiva, emitida para regular o futuro, porque este incerto e sujeito a alteraes decorrentes de fatos imprevistos e imprevisveis.

    2.1.3 Lide O conceito de lide, tal como construdo por Carnelutti, tem fundamental

    importncia para aqueles tantos que vem na lide o objeto do processo, definindo a jurisdio como atividade voltada sua composio.

    Ao conceito de lide chega-se passo a passo a partir da idia de interesse. Interesse a relao entre o homem e os bens. Sujeito do interesse o homem;

    o bem, o seu objeto. O trgico est em que os interesses humanos so ilimitados, mas limitados os bens.14

    Conflito de interesses. Se duas ou mais pessoas tm interesse pelo mesmo bem, que a uma s possa satisfazer, tem-se um conflito intersubjetivo de interesses ou, simplesmente, um conflito de interesses.

    Pretenso. o ato de se exigir a subordinao do interesse de outrem ao prprio.15

    13 FACCHINI NETO, Eugenio. O Judicirio no mundo contemporneo. Porto Alegre: Revista da Ajuris,

    n. 108, 139-166, dez/2007. 14

    (Interesse, situazione favorevole al soddisfacimento di un bisogno - Francesco Carnelutti, Lezione di diritto processuale civile, Padova: CEDAM, 1931, v. 1, p. 5 o meglio, possibilit del soddisfacimento di un bisogno mediante un bene - Principi del proceso penale, Napoli: Morano, 1960, p. 44). 15

    "Il concetto di pretesa, assai variamente inteso, era stato da me definito, dopo alcune incertezze, quale esigenza della soddisfazione di un proprio interesse in confronto con um interesse altrui" (Carnelutti,

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    Lide: Conflito de interesses, qualificado por uma pretenso resistida.16 Inicialmente, Carnelutti excluiu a execuo do conceito de jurisdio:

    No me preocupa que no transcurso da histria e inclusive na lei atual a palavra jurisdio se utilize fora dos limites de seu significado natural, para indicar qualquer funo processual. Tal uso se deve preponderncia que teve o processo jurisdicional na lenta elaborao do pensamento acerca dos fenmenos processuais. O processo executivo e, em geral, os outros tipos de processo permaneceram at ontem na sombra, e desse modo a noo de jurisdio absorveu integralmente a noo de processo.17

    Posteriormente, veio a ampliar o conceito de lide, para incluir no s as pretenses negadas ou resistidas, mas tambm as pretenses reconhecidas mas insatisfeitas (lides de pretenso insatisfeita), estas correspondentes aos processos de execuo.

    A concepo de Carnelutti atraente, pela simplicidade de seu ponto de partida e bem explica as aes fundadas em alegados direitos de crdito, negados ou insatisfeitos. Mas no abrange sequer todo o universo das aes individuais, como demonstrou Calamandrei, argumentando com as sentenas constitutivas necessrias.18 Tome-se o exemplo da ao anulatria de casamento. A anulao, requerida por um dos cnjuges, somente pode ser decretada por sentena judicial, nada importando que o outro concorde (submisso pretenso) ou no (resistncia pretenso).

    De igual forma, irrelevante, no processo penal, a submisso do ru. Ainda que ele concorde com a pena pretendida pelo Ministrio Pblico, necessria a sentena, para que ela possa efetivamente ser aplicada.

    Por outro lado, o desaparecimento da pretenso acarreta o da lide e deveria, por conseqncia lgica, determinar a extino do processo. Contudo, e isso pode ocorrer em processo penal, pode o Ministrio Pblico pedir a absolvio do ru (renncia pretenso) e conden-lo o juiz.

    E no parece razovel afirmar-se que a atividade do juiz administrativa ou jurisdicional, conforme o ru concorde ou no com a pretenso do autor, quando juridicamente irrelevante a opo do demandado.

    Segundo Jos Frederico Marques. H lide, no processo penal, mesmo quando o Ministrio Pblico pede a absolvio, caso em que permanece latente19, mas o prprio Carnelutti veio a afirmar que no processo penal no h lide, o que o levou a

    Sistema de derecho procesal civil, Buenos Aires: Uthea, 1944, v. 1, p. 40; Istituzzioni, v. 1, p. 78; Teoria generale del diritto, p. 20, Diritto e processo, Napoli: Morano, 1958, p. 53; e Principi del processo penale. Napoli: Morano, 1960, p. 93). 16

    "La lite i1 confitto di interessi tra due persone qualificato dalla pretesa dell'una e dalla resistenza dell'altra" (Carnelutti, Sistema, cit., p. 40, Istituzoni, cit., p. 78; Teoria, cit., p. 20; Diritto e proceso, Napoli: Morano, 1958, p. 53; e Principi del processo penale. Napoli: Morano, 1960, p. 93). 17

    CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. So Paulo: Classic Book, 2000, v. I, p. 222. 18

    Litis y jurisdiccin, in Estdios sobre el proceso civil. Buenos Aires: Bibliogrfica Argentina, 1961. 19

    Ensaio sobre a jurisdio voluntria, 2. ed., So Paulo: Saraiva, 1959, p. 253.

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    enquadr-lo na categoria da jurisdio voluntria.20 Disse Ada Pellegrini Grinover:

    certo que Calamandrei criticou o conceito de lide de Carnelutti, afirmando ter ele sentido sociolgico e no jurdico; tambm Liebman realou que o conflito de interesses existente entre as partes fora do processo a razo de ser, a causa remota, mas no o objeto do processo. Mas para transferir a posio de Carnelutti do plano sociolgico para o plano jurdico, basta identificar o mrito com aquela parcela de lide que deduzida pelo autor, em juzo, atravs da pretenso, e qual o ru resiste, atravs de suas excees ou da mera insatisfao".21

    Mas, com essa restrio, j no a lide que se apresenta como objeto do processo, mas o pedido do autor, isto , a parcela da lide deduzida em juzo. E se a lide, como tal, no o objeto do processo, no se pode definir jurisdio como atividade tendente sua composio.

    Mais importante do que essas crticas pontuais destacar que, de ento para c, a jurisdio passou a ter por objeto matrias que vo muito alm do conflito individual de interesses, que Carnelutti teve em mente, ao construir sua teoria.

    No cabem no esquema carneluttiano: a ao popular, para anular ato lesivo ao patrimnio pblico (Constituio, art. LXXIII); o mandado de injuno, por falta de norma regulamentadora que torne invivel o exerccio de direitos e liberdades constitucionais (Const., art. 5, 1); a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (Const., art. 129)22, a ao declaratria de inconstitucionalidade por omisso (Const., art. 103, 2) e, de um modo geral, as aes diretas de constitucionalidade e de inconstitucionalidade.

    Em outras palavras, a jurisdio j no se limita resoluo de conflitos entre particulares ou mesmo entre um particular e o poder pblico. Ampliou-se o seu objeto, tornando insuficientes explicaes que, por antigas, no levaram em conta esse dado novo.

    2.1.4 Imparcialidade Deixemos de lado os autores italianos do sculo passado, para colher a lio de

    um processualista brasileiro e contemporneo. Conforme Ovdio Arajo Baptista da Silva, so caractersticas da jurisdio a

    estatalidade e a imparcialidade. a) O ato jurisdicional praticado pelo juiz, autoridade estatal, que o pratica

    com a finalidade especfica de aplicar a lei ao caso concreto, o que o distingue do ato administrativo, porque o administrador desenvolve a atividade especfica de sua

    20 Principi del processo penale. Napoli: Morano, 1960. pp. 48-9.

    21 As condies da ao penal: So Paulo: Bushatsky, 1977, pp. 10-1.

    22 Considere-se, por exemplo, a liminar conseguida pelo Ministrio Pblico do Estado de So Paulo, impedindo a

    cobrana da Taxa de Liquidao Antecipada (TLA) pelo Banco Santander, nos casos em que o cliente pretende quitar antecipadamente um emprstimo ou uma operao de leasing (Valor. So Paulo, 10.04.2008. C2).

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    funo, tendo a lei por limite e o bem comum por objetivo, o que vai alm da simples aplicao da lei ao caso concreto.

    b) Ao praticar o ato jurisdicional, o juiz encontra-se numa posio de independncia e estraneidade, relativamente aos interesses em jogo.23

    Define-se, assim, a jurisdio como regulao de uma relao interpessoal por um terceiro imparcial.

    Como fundamento dessa concepo, pode-se apontar o artigo 10 da Declarao Universal dos Direitos do Homem, em que se l: "Toda pessoa tem direito, em condies de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justia por um Tribunal independente e imparcial, para a determinao de seus direitos e obrigaes ou para o exame de qualquer acusao contra ela em matria penal".

    Indicam-se, a, o contedo ou matria jurisdicional: determinao dos direitos e deveres de uma pessoa em face de outra (jurisdio civil); exame de acusao formulada contra algum, em matria penal (jurisdio penal).

    Pode-se apontar, como elemento formal da jurisdio, a circunstncia de emanar tal regulao de um rgo "independente e imparcial", como parece decorrer do citado artigo da Declarao dos Direitos do Homem?

    No se trata, evidente, da virtude da imparcialidade, que se exige, sim, do juiz, sem que se possa, porm, transform-la em fundamento da jurisdio, sob pena de se criar uma teoria processual limitada aos juizes virtuosos; nem se trata de imparcialidade no sentido de que o juiz no deva ter um interesse direto e pessoal na causa, diverso do interesse geral e impessoal do Estado, o que tambm se exige do administrador pblico, no se constituindo em caracterstica da jurisdio.

    A imparcialidade deve ser entendida no sentido: a) de que existam partes, um autor e um ru; b) que o juiz no seja uma delas, pois ningum juiz em causa prpria (Nemo judex in rem suam); c) que o juiz seja "independente", isto , no subordinado nem ao autor nem ao ru, o que implicaria, em ltima aniise, a transformao de uma das partes em juiz. Jurisdio implica, pois, heterorregulao: regulao de relaes estranhas ao julgador; no de relaes de que seja parte.

    Na jurisdio civil, abstrados os casos em que o prprio Estado seja uma das partes, no h dificuldade em se ver no juiz um terceiro, independente e imparcial.

    Todavia, na jurisdio penal (e essa uma possvel crtica caracterizao da jurisdio a partir da idia de imparcialidade), no se pode olvidar que o juiz rgo do Estado e, portanto, est o Estado a regular relao entre ele prprio e o acusado e no relao a que seja estranho.

    A essa objeo pode-se responder dizendo que, realmente, no seno atravs do artifcio da distino entre Estado-juiz e Estado-acusador que se atribui ao julgador a condio de terceiro.

    Parcializa-se o Ministrio Pblico para que se possa ter um juiz imparcial. Trata-se, sim, de um artifcio, mas que atinge o seu objetivo.

    23 SILVA, Ovdio Arajo Baptista da. Curso de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 24.

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    A jurisdio penal possvel porque se pode separar a funo de acusar da funo de julgar. H possibilidade lgica, porque o juiz, embora seja rgo do Estado, no se confunde com o Estado (a parte no se confunde com o todo em que se integra). H possibilidade psicolgica, porque nada impede que o juiz se posicione com independncia em face de outro rgo do Estado. H possibilidade jurdica, porque se pode atribuir a rgos diversos as funes essencialmente diversas de acusar e de julgar.

    Por fim, observa-se que, de fato, pode ocorrer que o juiz no seja nem independente nem imparcial, sem que isso afete os efeitos da sentena. que, no composto poder jurisdicional, desaparecido o jurisdicional, resta ainda a realidade bruta do poder.

    Que isso no surpreenda, porque o direito no representa seno um imenso esforo para coibir o arbtrio e transformar a fora bruta em justia.

    3. JURISDIO E AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE A funo exercida pelo Supremo Tribunal Federal, nas aes diretas de

    inconstitucionalidade, tem natureza jurisdicional? A dvida surge, em primeiro lugar, porque, as aes diretas de inconstitucionalidade

    e de constitucionalidade determinam a constituio de processos ditos objetivos, isto , sem partes, no havendo, pois, um terceiro imparcial, a regular relaes entre partes; em segundo lugar, porque a deciso produz efeitos erga omnes, havendo, particularmente no caso de declarao de inconstitucionalidade, inovao na ordem jurdica24, pela subtrao de uma norma ou de uma interpretao, dita inconstitucional.

    A questo controvertida. Conforme Piero Calamandrei, trata-se de atividade legislativa:

    A verdade que o recurso Corte Constitucional para obter a declarao de ilegitimidade de uma lei no se dirige a obter um ato jurisdicional, seno, que tende a obter um ato substancialmente legislativo: isto , um ato que, mesmo quando se chame de deciso ou sentena, ter os mesmos efeitos de um ato legislativo; no um ato que diga como deve ser aplicada ao caso concreto a lei que permanece em si, como norma geral, sem modificao, seno um ato que modifique a lei em geral, para todos os possveis casos aos quais ser aplicada no porvir.25

    o que tambm sustenta Athos Gusmo Carneiro:

    Em duas hipteses, todavia, a Constituio Federal atribui ao Poder Judicirio, mais especificamente ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justia, o exerccio, embora sob vestes jurisdicionais, de uma atividade legislativa, porque no vinculada aplicao do direito a um caso concreto [...]

    24 A atividade legislativa consiste em expresso de um poder poltico consistente em inovar a ordem jurdica,

    a partir de critrios de convenincia legislativa, fixando normas cogentes de comportamento (princpio da legalidade), de natureza geral e abstrata, as quais sero cumpridas mediante o uso da fora do Estado. (APPIO, Eduardo. Controle judicial das polticas pblicas no Brasil. Curitiba: Juru, 2005, p. 79). 25

    CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Traduzido por Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999, v. 3, p. 83.

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    Referimo-nos, em primeiro lugar ao direta de inconstitucionalidade [...] em segundo lugar [...] ao declaratria de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.26

    Kelsen diz que a anulao de uma lei uma funo legislativa, um ato por assim dizer de legislao negativa. Um Tribunal que competente para abolir leis de modo individual ou geral funciona como legislador negativo.27 No obstante, afirma a natureza jurisdicional da atividade:

    A livre criao que caracteriza a legislao est aqui quase completamente ausente. Enquanto o legislador s est preso pela Constituio no que concerne a seu procedimento e, de forma totalmente excepcional, no que concerne ao contedo das leis que deve editar, e mesmo assim, apenas por princpios e diretivas gerais, a atividade do legislador negativo, da jurisdio constitucional, absolutamente determinada pela Constituio. E precisamente nisso que sua funo se parece com a de qualquer outro Tribunal em geral: ela principalmente aplicao e somente em pequena medida criao do direito. , por conseguinte, efetivamente jurisdicional.28

    Depreende-se, das lies de Kelsen, que a funo legislativa pode eventualmente estar contida na jurisdio, quando observa:

    Um Tribunal, especialmente um Tribunal de ltima instncia, pode receber competncia para criar, atravs de uma deciso, no s uma norma individual, apenas vinculante para o caso sub-judice, mas tambm normas gerais. Isto assim quando a deciso judicial cria o chamado precedente judicial, quer dizer: quando a deciso judicial do caso concreto vinculante para a deciso de casos idnticos. Uma deciso judicial pode ter um tal carter de precedente quando a norma individual por ela estabelecida no predeterminada, quanto ao seu contedo, for uma norma geral criada por via legislativa ou consuetudinria, ou quando essa determinao no equvoca e, por isso, permite diferentes possibilidades de interpretao. No primeiro caso, o Tribunal cria, com a deciso dotada de fora de precedente, Direito material novo; no segundo caso, a interpretao contida na deciso assume o carter de norma geral. Em ambos os casos o Tribunal que cria o precedente funciona como legislador.29

    A doutrina de Kelsen foi recepcionada pelo Supremo Tribunal Federal, nos seguintes acrdos, entre outros mais:

    Ao Supremo Tribunal Federal, em sede de controle normativo abstrato, somente assiste o poder de atuar como legislador negativo. No lhe compete, em

    26 CARNEIRO, Athos Gusmo. Jurisdio e competncia. 13. ed. So Paulo: Saraiva, 2004, pp. 20-1.

    27 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2. ed. Traduzido por Lus Carlos Borges. So

    Paulo: Martin Fontes, 1992, p. 261. 28

    KELSEN, Hans. Jurisdio Constitucional. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 153. 29

    KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduzido por Joo Baptista Machado. 4. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1979, p. 343.

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    conseqncia, praticar atos que importem em inovao de carter legislativo, tal como a modificao da data j fixada pelo Congresso Nacional para a realizao de eleies municipais. (STF, Pleno, Adi 779 Agr / DF - Distrito Federal Ag. Reg. na Ao Direta de Inconstitucionalidade, Min. Celso de Mello, Relator, J. 8.10.1992).

    Ao direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n 75, de 20.05.1993 (art. 270 e seus pars. 1. e 2., bem como as expresses no alcanados pelo artigo anterior constantes do caput do art. 271). No s a Corte esta restrita a examinar os dispositivos ou expresses deles cuja inconstitucionalidade for argida, mas tambm no pode ela declarar inconstitucionalidade parcial que mude o sentido e o alcance da norma impugnada (quando isso ocorre, a declarao de inconstitucionalidade tem de alcanar todo o dispositivo), porquanto, se assim no fosse, a Corte se transformaria em legislador positivo, uma vez que, com a supresso da expresso atacada, estaria modificando o sentido e o alcance da norma impugnada. E o controle de constitucionalidade dos atos normativos pelo Poder Judicirio s lhe permite agir como legislador negativo. Em conseqncia, se uma das alternativas necessrias ao julgamento da presente ao direta de inconstitucionalidade (a da procedncia dessa ao) no pode ser acolhida por esta Corte, por no poder ela atuar como legislador positivo, o pedido de declarao de inconstitucionalidade como posto no atende a uma das condies da ao direta que e a da sua possibilidade jurdica. Ao direta de inconstitucionalidade que no se conhece por impossibilidade jurdica do pedido. (STF, Pleno. Adi 896 Mc / DF - Distrito Federal Medida Cautelar na Ao Direta de Inconstitucionalidade, Min. Moreira Alves, Relator, J. 3.11.1993).

    O que pretendem os recorrentes que, com base no princpio constitucional da igualdade, lhes seja estendida a transferncia determinada pelo Decreto-Lei n 2.225/85. Ora, se esse Decreto fosse inconstitucional nessa parte por violao do princpio da igualdade, sua declarao de inconstitucionalidade teria o efeito de t-lo como nulo, no podendo, portanto, ser aplicado s categorias por ele beneficiadas, e no o de estender a transferncia por ele concedida a outra categoria que ele no alcana. Em se tratando de inconstitucionalidade de ato normativo, o Poder Judicirio atua como legislador negativo, jamais como legislador positivo. Portanto, a acolhida da pretenso dos ora recorrentes juridicamente impossvel por parte do Poder Judicirio. Recurso extraordinrio no conhecido. (STF, 1 Turma, Re 196590 / Al Alagoas Recurso Extraordinrio, Min. Moreira Alves, Relator, J. 16.04.1996).

    Quanto ao primeiro pedido alternativo sobre a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n 9.504/97 impugnados, a declarao de inconstitucionalidade, se acolhida como foi requerida, modificar o sistema da Lei pela alterao do seu sentido, o que importa sua impossibilidade jurdica, uma vez que o Poder Judicirio, no controle de constitucionalidade dos atos normativos, s atua como legislador negativo e no como legislador positivo. (STF, Pleno, Adi 1822 / DF Distrito Federal Ao Direta de Inconstitucionalidade, Relator Min. Moreira Alves, J. 26.06.1998).

    Como j observamos, a jurisdio correspondente a determinadas atividades-fim, pela Constituio atribudas ao Poder Judicirio.

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    Significa isso que o contedo da jurisdio varivel no tempo e no espao. Nossa indagao volta-se, por isso, para a jurisdio, hoje, no Brasil.

    Sobre o tema, observamos inicialmente que, no controle difuso de constitucionalidade, no h declarao de inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade apenas fundamento da deciso. Recusando aplicao norma inconstitucional, o juiz no anula nem decreta nulidade. A hiptese, pois, de ineficcia da norma, no caso sub judice.

    J no controle concentrado, h sim anulao ou decretao da nulidade, com eficcia erga omnes.

    Ora, se o acrscimo, ao ordenamento jurdico, de uma norma geral e abstrata tem natureza de lei, no se pode negar idntica natureza subtrao.

    Manifesta, por esse ngulo, a natureza legislativa da deciso que, com eficcia erga omnes, declara a inconstitucionalidade de norma jurdica, como observou Kelsen.

    isso suficiente para negar a essa deciso a natureza de jurisdicional? A resposta, que deve ser dada luz de nossa Constituio, conduz a uma outra

    pergunta: pode uma lei ser anulada por outra, posterior? A resposta, em nosso Direito, sim, mas desde que sem prejuzo a direito

    adquirido, a ato jurdico perfeito ou a coisa julgada, o que, na essncia, implica um no, porque a anulao visa exatamente desconstituio dos efeitos do ato anulado.

    Podemos, pois, afirmar que, no atual sistema constitucional brasileiro, no se pode editar lei para desconstituir direito subjetivo, ato jurdico perfeito ou caso julgado.

    Mas exatamente isso, que no se pode obter por lei, pode-se conseguir mediante ato judicial.

    A deciso que declara a inconstitucionalidade de uma norma, com efeitos ex tunc, desconstitutiva negativa: retira a norma do ordenamento jurdico, mesmo porque a nulidade somente existe depois de declarada, donde melhor dizer-se que h decretao da nulidade.

    preciso, portanto, ampliar-se o conceito de jurisdio, para ajust-lo a essa previso constitucional.

    Que conseqncias prticas da se podem, extrair? A principal a de que, em ao direta, a decretao de inconstitucionalidade

    deveria, como regra, ter efeitos ex nunc, diferentemente do que se afirma e do que dispe a prpria Lei.30 A situao diferente do que ocorre no controle difuso, em que o efeito ex tunc da declarao tem a natureza de questo prejudicial para o acolhimento ou a rejeio do pedido.

    A sentena, abstrata, no desconstitui, automaticamente, direitos adquiridos, atos jurdicos perfeitos e a coisa julgada, fundados na lei declarada inconstitucional.

    30 Lei n 9868/99, Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista

    razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

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    outra conseqncia da exepcionalidade dos efeitos ex tunc da deciso. Os atos no mais suscetveis de reviso, diz Gilmar Ferreira Mendes, no so afetados pela declarao de inconstitucionalidade, mediante a utilizao das chamadas frmulas de precluso.31

    4. JURISDIO NAS AES COLETIVAS A teoria do processo civil foi construda vista de conflitos entre pessoas

    determinadas, especialmente o de um sedizente credor em face do indigitado devedor. Impe-se agora rever os conceitos, inclusive o de jurisdio, luz das aes coletivas e, em particular, da ao civil pblica intentada para a tutela de direitos difusos.

    Trata-se de tutela outrora circunscrita Administrao Pblica, salvo se o administrado, sentindo-se lesado pelo ato administrativo, recorresse ao Judicirio, hiptese que se enquadrava no esquema clssico, como conflito entre um particular e a Administrao, processado e julgado, no Brasil, pelo Poder Judicirio.

    A novidade est em que, agora, pode ocorrer que atue primariamente, no a Administrao Pblica, mas o Poder Judicirio, provocado principalmente pelo Ministrio Pblico.

    Tome-se como exemplo o de uma liminar concedida para desbloqueio de uma estrada ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra ou por produtores rurais.

    Para afirmar a jurisdicionalidade desse ato, poder-se-ia invocar a idia chiovendiana de substituio: estaria o Ministrio Pblico a pedir que o juiz substitusse a Administrao, determinando o que ela indevidamente deixou de determinar. Ocorre que, para propor ao civil pblica, o Ministrio Pblico no precisa provar, nem sequer alegar, omisso da Administrao. Mais ainda: A Administrao, ainda que omissa, no necessariamente parte na ao civil pblica. O juiz no precisa conden-la, nem contra ela expedir alguma ordem.

    Tampouco se apresenta adequada a idia carneluttiana de lide. De pretenso resistida pode-se falar se a Administrao busca o Judicirio para dobrar a vontade do administrado, ou se este dele se socorre para no ser indevidamente constrangido. Mas, nos casos que estamos a considerar, o Judicirio chamado a atuar exatamente em funo da ausncia de lide entre o ru e Administrao, que deixou de exigir o que devera ter exigido, ambos implicitamente de acordo em deixar as coisas no estado em que se encontram.

    Defrontamo-nos, em casos como esses, com atos essencialmente administrativos, que assumem colorao jurisdicional porque praticados pelo Poder Judicirio, como terceiro imparcial. So, na verdade, atos apenas formalmente jurisdicionais.

    Conseqncia prtica dessa constatao a pertinncia de juzos de convenincia e de oportunidade, como ocorre, por exemplo, quando se mantm em funcionamento fbrica poluidora, tendo em vista os empregos que gera ou a natureza dos bens por ela produzidos.

    31 Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdio Constitucional. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 1999. p. 271.

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    Outra conseqncia a inadequao do instituto da coisa julgada, dada a natureza prospectiva da atividade judicial exercida em casos tais. Assim, a coisa julgada erga omnes, a que se refere o art. 16 da Lei n 7.347/85, h de ser interpretada como atinente eficcia vinculativa da deciso, muito mais do que com a imutabilidade a que se refere o art. 467 do Cdigo de Processo Civil. Seja como for, nas relaes continuativas, a reviso sempre possvel (CPC, art. 471, I).

    5. CONCLUSO Num sistema como o nosso, que consagra a separao de Poderes, faz sentido

    conceituar-se a jurisdio: a) como atividade estatal, o que exclui a arbitragem, que pode ser cometida at mesmo a rgo estrangeiro; b) como atividade-fim de Poder Judicirio, o que exclui a chamada jurisdio anmala.

    Faz sentido, tambm, buscar-se na Constituio as funes atribudas ao Poder Judicirio, ainda que nem todas possam ser havidas como jurisdicionais. A organizao de eleies, cometidas Justia Eleitoral, certamente no o .

    A caracterizao de uma atividade jurisdicional no obedece a um critrio nico. Na maioria dos casos, v-se na jurisdio atividade do Poder Judicirio a regular relaes interpessoais, na condio de terceiro imparcial.

    Mas no repugna a insero, no conceito, da atividade exercida pelo Poder Judicirio nos processos objetivos, em que no h partes e, por isso mesmo, tampouco h um terceiro imparcial, dada a possibilidade de eficcia retroativa, o que, em nosso sistema constitucional, vedado lei, sempre que prejudique direito adquirido, ato jurdico perfeito ou caso julgado.

    E para que todo esse aparato do Poder Judicirio, com funes bem definidas? A resposta tambm h de ser buscada na Constituio. Os fins do Estado, nela

    determinados, so tambm os fins da jurisdio: a construo de uma sociedade livre, justa e solidria; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalizao; reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao (Constituio Federal, art. 3).