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  • MISTURANDO ARTES A ESTTICA DA LRICA MODERNA NO LIVRO DE ARTISTA CONTEMPORNEO

    Juan Mller Fernandez1

    Resumo: O livro de artista uma hyperforma, um objeto artstico hbrido e flutuante

    entre as Artes Visuais e a Literatura. Portanto, mistura heterogeneidades. A partir do

    estudo dos livros de artista Imagens.Palavras, Palavras. Imagens: rvore, Quando por fim e O fruto, da escritora e artista plstica portuguesa Isabel de S, se observou que a mistura se prolonga no mbito esttico, de modo que recupera a esttica da lrica

    produzida na belle poque num processo de atualizao, no de saudosismo. As noes

    de lrica moderna, contemporneo, de retaguarda, gnio no original, respectivamente utilizados por Friedrich, Agamben e Perloff contriburam sobremaneira

    para compreender como a visualidade do livro de artista transcria a aura da poesia moderna, manufaturando assim um novo objeto potico.

    Palavras-chave: literatura e artes visuais, livro de artista, lrica moderna.

    Performance, voz, gesto, visualidade so alguns termos que orientam o fazer

    artstico contemporneo. Buscando dialogar com as atualizaes humanas, mas

    tambm miditicas a poesia tratou de acertar as contas com as subjetividades e com as

    tecnologias, abarcando novas possibilidades de trocas e dilogos. A abertura para o

    surgimento de potica(s), corporais, tecnolgicas e visuais, indica o que h certo tempo

    poetas e crticos j percebiam: a poesia no cabe na palavra escrita, nem termina no

    ltimo verso, digitalizado, datilografado ou manuscrito. A poesia, ao que parece, no

    quer apenas o peso dessa letra escarlate chamada linguagem verbal, antes almeja o

    equilbrio, unindo a histria consagrada da palavra s histrias de outras linguagens,

    agora redescobertas.

    Essas observaes reafirmam que as possibilidades do fazer potico se

    expandiram, de modo que a instncia solitria da letra no satisfaz mais as demandas do

    poeta e de um pblico leitor, ambos molestados pela diversidade de cdigos e

    linguagens do mundo contemporneo, sobretudo pela digital. Tal insatisfao com a

    relao monogmica com a palavra escrita se revela at mesmo nas alcunhas pelas quais

    a escrita potica atende hoje em dia. Dando nfase s facetas que exploram a

    visualidade, por exemplo, possvel elencar as tendncias: poema-colagem; poesia

    1 Aluno de mestrado do Programa de Ps-graduao em Estudo de Linguagens da Universidade

    do Estado da Bahia. E-mail: [email protected].

  • visual; poesia experimental; alguns -ismos: concretismo; imagismo; vorticismo; e num

    espao prprio, o livro de artista. Assim, os enlaces estabelecidos na contemporaneidade

    com a poesia parecem contrariar a mxima de um dos cones da lrica moderna,

    Stephane Mallarm, que calou Czanne ao afirmar poemas so feitos de palavras, no

    de ideias, mostrando que poemas so feitos tambm de palavras.

    Ocorre que a resposta categrica de Mallarm a Czanne no deve ser levada to

    a srio, afinal sintomtica de uma ideologia, predominante na cena artstica da poca,

    que pregava o distanciamento entre as artes e as cincias, da qual o prprio poeta

    conseguiu se libertar. Chama ateno o fato de o prprio Mallarm ser, de certa forma,

    responsvel por esses contatos e aproximaes da poesia contempornea com outras

    formas de arte, pois o propsito de desafiar a pgina em branco e fazer com que a

    disposio da palavra no papel tambm produzisse sentido acaba sendo uma atitude

    precursora do movimento lrico-visual contemporneo. Da a inspirao de poetas e

    artistas da atualidade na atitude libertadora de extrapolar o limite da mancha grfica

    surgida na belle poque [1886 1914].

    Pensar a lrica visual contempornea requer fazer referncia a esse perodo

    porque ele representa o incio de novos fluxos e transformaes pelas quais a lrica

    passaria no decorrer do sculo XX. Alm disso, nele fulguram quatro estrelas da poesia

    moderna (Baudelaire, Mallarm, Rimbaud e Verlaine), indispensveis para conceber o

    estgio embrionrio do apelo da literatura a outras linguagens.

    Do momento destacado, o panorama finissecular representa melhor o cenrio em

    que a lrica moderna se desenvolve. At a segunda metade do sculo, a sensao de

    colapso no havia surgido, tudo caminhava em direo a um padro de vida frvolo de

    encantamento com os inventos mecnico-industriais e com a prpria cidade. O ritmo de

    vida nos grandes centros, sobretudo em Paris, resumia-se agitao e frisson dia e

    noite: enquanto havia luz natural, os transeuntes se dividiam entre boulevards e cafs,

    como mostrou Renoir no Baile no Moulin de la Galette [1876], enquanto noite, eram

    bares, circos e bordis, como pinta Toulouse-Lautrec. Ocorre que a crise latente

    sentida apenas quando, de acordo com Gomes (1985), os malefcios advindos da

    Revoluo Industrial, somados dvida quanto eficcia dos mtodos cientficos para

    desvendar o real e a notria desigualdade social vm tona.

    No mbito artstico, a fenomenologia da percepo, bem como o paradigma

    retinal j no faziam mais sentido em um mundo que escapava muito antes se ser

    capturado pelos olhos do poeta e do pintor. Enquanto na pintura, o olhar acurado cede

  • lugar ao olhar enviesado da distoro, na lrica, a ordem do legvel substituda pela

    sensao. Isso pode ser percebido em Charles Baudelaire, quando se confrontam os

    poemas A uma passante [1855] e Correspondncias [1857]:

    Que luz... e a noite aps! Efmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez,

    No mais hei de te ver seno na eternidade?

    Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! Pois de ti j me fui, de mim tu j fugiste,

    Tu que eu teria amado, tu que bem o viste!

    (BAUDELAIRE, 2015)

    Tendo a efuso das coisas infinitas,

    Como o mbar, o almscar, o benjoim e o incenso,

    Que cantam os xtases do esprito e dos sentidos.

    (BAUDELAIRE apud TELES, 2002, p.45)

    Com o universo j obscurecido e a viso turva, no lugar de usar a palavra como

    extenso do olhar, a lrica, na figura de Arthur Rimbaud2, estabelece a Alquimia do

    Verbo. O surgimento dessa proposta faustiniana de se relacionar com a linguagem

    refora a nsia de um novo formato de escrita potica, em que a comunicao da poesia

    deveria se dar por outras vias de sentido, atingindo a essncia paleoltica do homem que

    se desgastou com o tempo. Dessa forma, a atividade de escrita para Rimbaud, tambm

    para outros poetas, deveria ser o revs do que se conhecia. Deveria apresentar o sabido,

    mas inexprimvel estruturado em linguagem: Eu escrevia os silncios, as noites,

    anotava o inexprimvel. Fixava as vertigens. (RIMBAUD apud TELES, 2002 p.48).

    Essa obscuridade no sentido que ao mesmo tempo fascina e desconcerta e

    aponta para uma crise de linguagem constitui o que Hugo Friedrich (1978) denomina

    tenso dissonante, trao caracterstico da lrica moderna. Para o autor (1978), a tenso

    dissonante o objetivo das artes modernas e se manifesta quando predominam,

    Interioridade neutra em vez de sentimento, fantasia em vez de realidade,

    fragmentos do mundo em vez de unidade do mundo, mistura daquilo que

    heterogneo, caos, fascinao por meio da obscuridade e da magia

    lingustica, mas tambm um operar frio anlogo ao regulado pela matemtica,

    que alheia o habitual [...]. (FRIEDRICH, 1978, p. 29, grifo nosso).

    2 Convm lembrar tambm da atitude ousada de Rimbaud ao misturar linguagens heterogneas, letras e

    cores, especificamente no poema Voyelles (Vogais) [1883]. Com esse poema, Rimbaud provoca a

    linguagem verbal, mostrando como o verbo se completa em sua alteridade, isto , nas cores. Por

    conseguinte, como a literatura e artes visuais se completam.

  • Apesar de essas diretrizes configurarem o bojo do paradigma moderno de poetar

    e estarem vinculadas quele perodo histrico comparecem repaginadas s tendncias da

    contemporaneidade, o que permite estabelecer uma aproximao entre as estticas.

    Ainda em 1966, o prprio Hugo Friedrich, j observava que tais feies continuavam se

    manifestando em obras quela poca. Certamente, ele tinha em vista o florescimento de

    movimentos potico-visuais, como o concretismo, mas hoje, com a consolidao de

    uma PO.EX (poesia experimental), por exemplo, inegvel a manuteno/

    ressignificao dos traos da lrica moderna na contemporaneidade.

    Ademais, essa aproximao se torna possvel porque a ideia de contemporneo

    tambm enseja o ressurgimento de tendncias passadas, pressupe certo dilogo com o

    passado. Para Giorgio Agamben (2009), o esprito contemporneo bem representado

    pela moda porque pode citar e, desse modo, reatualizar qualquer momento do

    passado [...], colocar em relao aquilo que inexoravelmente dividiu, rechamar, re-

    evocar e revitalizar aquilo que tinha at mesmo declarado morto (AGAMBEN, 2009,

    p.68-69). Assim, a noo de contemporneo como ruptura ou esquecimento de

    tendncias de outrora no se encaixa produo potico-visual, sobretudo, da

    escritora e artista visual portuguesa, Isabel de S [Esmoriz, 1951], cujos livros de artista

    convidam leitores e observadores a revisitarem a natureza da lrica da belle poque.

    Antes de aventar os pontos em que lrica moderna e arte contempornea se

    encontram na obra de Isabel de S, convm discutir a postura da escritora frente ao

    mercado editorial, porque nela reside o primeiro indcio de uma ligao com a figura do

    poeta moderno. Para tanto, necessrio recuperar alguns dados de sua bio-bibliografia:

    em 1979, ela publicou o primeiro livro potico intitulado Esquizo Frenia; em 1984,

    lanou o quinto livro, denominado Autismo e, em 1988, o nono livro chamado Escrevo

    para Desistir, todos publicados pela mesma editora portuguesa &Etc.

    As trs obras foram destacadas, pois os ttulos despertaram a hiptese

    posteriormente, confirmada com a anlise do perfil da editora e dos livros de artista de

    Isabel de que sua potica se movimenta em direo a reatualizar a noo de artista

    como ente isolado, um tipo de desdobramento da tenso dissonante. A esquizofrenia e

    o autismo so graves distrbios comportamentais cujos sintomas acabam alijando o

    indivduo da sociedade, levando-o a certo encarceramento ou afastamento: a

    esquizofrenia por provocar uma fratura na realidade, fazendo com que o doente tenha

    vises e alucinaes a partir da realidade distorcida, enquanto o autismo, por afetar a

    linguagem e o aspecto da sociabilidade conduz solido. J o nome do terceiro livro

  • citado sugere uma desistncia (de publicao?). Apesar de fazer uma observao rasa e

    sumria, tendo apenas como dados a empiria do ttulo, essa leitura faz sentido quando se

    considera o perfil editorial da &Etc.

    A &Etc era uma editora de pequeno porte, dedicada publicao de livros de

    autores que nem sempre interessavam ao grande pblico; no era, portanto, uma editora

    com perfil comercial, para a massa. Surgida em janeiro de 1973, no obteve grande

    reconhecimento at a falncia, em 2011. Em toda a trajetria (38 anos), conseguiu a

    marca de 340 ttulos publicados, coisa pouca, menos de 9 ttulos-mdia por ano

    (&ETC, 2015), como consta no prprio blog, j desativado. Dois anos aps a falncia,

    organizou um evento com slogan provocativo, sintomtico da linha editorial, mas

    tambm do destino de algumas obras e autores, assim divulgado: &ETC uma editora

    no subterrneo. Embora o slogan conserve obviamente o tom elegaco da falncia da

    editora, ele resume a trajetria anti-mercadolgica da &Etc, que brotou sem sair do

    subterrneo, nunca viu a luz, permaneceu na obscuridade.

    Se na tenso dissonante, como lembra Hugo Friedrich ao citar Baudelaire,

    existia certa glria em no ser compreendido e em investir num tempo interior para

    fugir de uma sociedade industrial, nesse desdobramento, o charme est em no ser

    encontrado, em fazer parte de um circuito editorial to alternativo que o autor no chega

    s mos dos leitores, nem rastreado pela crtica literria afastando-se com isso de

    uma possibilidade de recepo. As primeiras cenas de alheamento do artista comearam

    com a atitude autista de Rousseau na qual a vontade de investigar a si mesmo se

    sobrepe interao com o mundo, levando-o a romper com a sociedade (FRIEDRICH,

    1978). Conforme mostra Graham Hough (1989), esse alheamento se prolonga para alm

    do sculo XVIII, sendo que

    [...] na gerao ps-romntica [...] se evidenciou pela primeira vez esse

    distanciamento da poesia em relao a seu papel pblico. [...] O arqutipo da

    poesia deixa de se situar no teatro e na narrativa heroica, passando para a

    lrica. Assim, a poesia encontra sua mais plena expresso no na forma

    grandiosa, mas na forma refinadamente restrita, no na encenao pblica,

    mas na comunicao ntima, e talvez em nenhuma comunicao. Entre

    diversas definies da lrica, a de T. S. Eliot bastante conhecida: a lrica na

    voz do poeta falando consigo mesmo, ou com ningum. uma meditao

    interior, ou uma voz no ar, independente de qualquer possvel locutor ou

    ouvinte. Nos ltimos cem anos, tem sido essa concepo que se encontra no

    cerne de nossa sensibilidade acerca da lrica. (HOUGH, 1989, p. 254-255,

    grifo nosso).

    Dessa forma, enquanto a lrica moderna apresentava um alheamento como

    desejo de fuga da sociedade industrial que reproduziu tantos livros, romances e outros

  • escritos a ponto de levar ao desgaste da palavra escrita: A carne triste, sim, e eu li

    todos os livros/ Fugir! Fugir! Sinto que os pssaros so livres (MALLARM, 2015), a

    lrica contempornea se apropria dessa vontade de fugir, no mais da sociedade, e sim

    da necessidade de informao e da reprodutibilidade ou da mquina de produzir

    nmero, best-sellers ou literatura para entretenimento, buscando circuitos alternativos

    para se amparar. E a produo de livros de artista demonstra seguir essa mesma rota de

    contramo.

    O livro de artista trata-se de uma hyperforma3, composio artstica que

    mescla diversos recursos e cdigos de linguagem, tais como palavra, pinturas e

    desenhos, msica, cintica, que se presta a transformar um conceito em material

    esttico, sem ofertar, geralmente, uma narrativa rgida. Por essa razo, predominam o

    fragmento, a colagem, a citao, o verso, a frase, no lugar do texto estabelecido e

    formalmente estruturado. Segundo Fabris e Costa (2015), o livro de artista pode ser

    conceituado em duas vertentes, uma mais abrangente, em que a interao entre texto e

    ilustrao maior e sistemtica, semelhante ao que ocorre nos livros ilustrados; e outra,

    de carter minimalista-conceitual, em que o livro se torna o nico veculo de divulgao

    das obras do artista. Sob qualquer perspectiva ou vertente, a base do livro de artista

    conserva a noo de objeto manufaturado, ou melhor, de artesanato, produto que no se

    reproduz na mesma velocidade e com o mesmo padro do industrializado.

    Alm de pretender ser objeto raro, de poucas tiragens, fugindo dos grandes

    nmeros de vendas, o livro de artista busca se distanciar das linguagens que sustentam a

    necessidade de informao do mundo contemporneo. Isso no significa, no mbito

    verbal, a valorizao do rebuscamento ou do aprimoramento lexical, em prol de um

    pblico seleto. Pelo contrrio, significa questionar a linguagem utilizada pela indstria

    da informao emergente no sc. XIX e consolidada hoje pela obrigao de se

    consumir notcias rapidamente por diversas conexes , simplria e cotidiana. Se

    opondo ao uso consumido e consumado da palavra, os livros fazem uso do fragmento

    no lugar da ordem, tal qual Dionsio, para libertar a linguagem, por conseguinte, o

    indivduo, do desgaste e da situao de opresso, perpetrados pelo mercado. Em Isabel

    de S, esse conflito entre linguagem e universo de consumo retratado no livro de

    artista, intitulado Imagens. Palavras ([2013] 2014a).

    Assim como os demais livros de artista de Isabel, este se constitui, na realidade,

    um tipo de arquivo udio-visual, em que o folhear se transformou em vdeo. A obra se

    3 Tomo de emprstimo o termo utilizado por Perloff (2012) para definir formas artsticas produzidas pela

    mescla de linguagens que resultam em objetos hbridos.

  • constitui, assim, de uma mescla de ilustraes da artista plstica Graa Martins, de

    recortes de revistas, de fragmentos poticos de autores diversos e de uma cano,

    embalando a exibio do vdeo-livro. Em Imagens. Palavras (2014a), o desejo de

    libertar a palavra do mundo factual surge transfigurado num embate entre os recortes

    das revistas de massa e excertos de textos poticos de natureza metafsica, como se os

    recortes representassem a vida material e a escrita o lado transcendental. Dessa forma, a

    palavra, ainda que fragmentada, se insinua como recurso de salvao do mundo

    materialista-consumista. Isso fica claro no processo de cromatizao do livro, uma vez

    que o texto potico aparece, majoritariamente, escrito em tinta preta numa folha branca,

    enquanto as gravuras aparecem sobre um fundo de cores vibrantes e quentes (Figura 1),

    como vermelho-sangue, ou com pinceladas dispersas de cores variadas, o que cria certo

    desconforto visual. Esse jogo entre o quente e o frio faz com que o leitor, por reflexo

    involuntrio, no consiga se fixar tanto tempo na folha destinada aos recortes e sinta a

    sensao de alvio ao se deparar com o espao branco e frio do texto.

    Alm de a linguagem verbal ser o ponto de oposio que irrompe com

    redobrado brilho contra o visual massivo, a msica notavelmente oriental tambm

    conduz ao estado de transcendncia, dando suporte elevao da palavra. A escolha da

    msica como elemento metafsico e renovador das linguagens, escrita e visual, remonta

    ao contexto da lrica moderna, pois, como aponta Olga Kempinska (2011), a poesia e

    pintura, nas figuras de Mallarm e Czanne, buscaram na msica uma fonte inspiradora,

    j que esta se configurava quele tempo como arte mais afastada da imitao e da

    narratividade e mais sugestiva. Mallarm, de fato, demonstra acreditar que a msica

    ajudaria a superar a crise da linguagem quando, no prefcio ao poema Un coup de

    ds, deixa claro que rejeitar a estrutura logocntrica e compreensvel do relato [rcit]

    em detrimento de uma estrutura de linguagem que poderia perturbar o leitor ingnuo, na

    qual [...] este emprego desnudo do pensamento com contraes, prolongamentos,

    fugas, ou at seu desenho, resulta, para quem quer ler em voz alta, uma partitura

    (MALLARM apud TELES, 2002, p. 71).

    Embora, a presena da msica na lrica moderna e contempornea atue

    sobremaneira para transformar a linguagem, livrando-a do compromisso com a

    objetividade do mundo, no se pode desprezar que tambm um indcio de uma

    transformao no modo de produzir o texto potico, ou a arte, em geral. Afinal, como

    lembra Nietzsche (2007), a msica segue os ditames da arte no figurada [unbildlichen],

    regida por Dionsio, deus do caco. O poeta, ao buscar aproximao com a msica, o

  • sada, gritando Evo!, dando abertura para que se instaure a aparente desordem no

    objeto esttico: surgem a embriaguez ou o ilgico a fragmentao que incomoda o

    leitor ingnuo e, principalmente, o desagrado figurao, isto , a contrariedade do

    padro retinal que satisfaz a viso e cognio. Essa mudana na concepo do labor

    artstico pode ser vista j em Paul Verlaine, no destronamento metafrico do artista que

    destitudo do pedestal de mrmore, loureado por Apolo, rola fragmentado, ao acaso, at

    se reintegrar natureza:

    O vento da outra noite o derrubou! O mrmore

    brisa matinal rola, esparso. E contrista

    olhar-se o pedestal, onde o nome do artista

    se l dificilmente entre as sombras de uma rvore

    (VERLAINE, 1958, p.79).

    O artista, tanto na belle poque, quanto no presente, pode ser encarado como um

    gnio no original, arlequim embriagado, que aposta no jogo, na magia e no

    automatismo nas artes da malandragem para criar. Na viso de Friedrich, a obra

    desse artista no gnio seria um composto de categorias negativas,

    Ou seja, [de] desorientao, dissoluo do que corrente, ordem sacrificada,

    incoerncia, fragmentao, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia

    despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal,

    deslocamento, modo de ver astigmtico, estranhamento. (FRIEDRICH, 1978,

    p.22).

    O produto desse impulso artstico acaba sendo no uma forma pura, genuna,

    mas um composto de apropriaes, em que a escolha dos fragmentos para compor o

    todo se sobrepe ao ato da criao. Essa noo da arte como no criao, que de certa

    forma se constitui uma constante no livro de artista, ganha feio com Tzara (Receita

    para fazer um poema Dadasta) e se consolida como conceito em Duchamp, quando

    este se posiciona quanto ao caso Richard Mutt, afirmando que a importncia deveria

    recair sobre a criao de um novo pensamento para a fonte [o urinol invertido], no se

    Mutt a havia criado (PERLOFF, 2012). De igual forma deve se portar o leitor que se

    depara com um livro de artista. Ele deve dar relevncia ao conjunto, ao princpio da

    transcriao4, considerando o novo sentido atribudo ao fragmento e fratura na obra.

    4 O termo transcriao foi cunhado por Haroldo de Campos e utilizado por Perloff (2013) para definir

    o processo de construo artstica que se apropria de outras obras para constituir um objeto diferente

    daqueles que serviram de fonte inspiradora. Para aclarar o significado do termo, a autora menciona a obra

    Panaroma do Finnegans Wake como exemplo dessa proposta de reescrita.

  • O livro Palavras. Imagens: rvore ([2013] 2014b), de Isabel de S, dialoga com

    as noes modernas de artista como dionisaco e como gnio no original ao

    estrutur-las no aspecto simblico-temtico e no recurso de construo dos textos

    lricos. O tom combativo contra a cultura de massa j no sentido, uma vez que esto

    ausentes os recortes de revistas do mundo da moda, o que faz com que texto e imagem

    se aproximem e se confundam, criando um modo de ver astigmtico, isto , estilizado

    e sugestivo.

    Na figura 2, se observa que o texto acompanha as linhas verticais e sinuosas das

    ilustraes, alterando o modo de ler. Embora essa disposio da escrita no exija tanto

    do leitor, quanto em Un coup de ds, consiste numa tentativa de subverter a ordem do

    rcit, por conseguinte, do legvel, quando interfere no padro ocidental de leitura,

    mudando a disposio horizontal da leitura para o eixo vertical, a fim de que a palavra e

    o leitor sigam o rumo da figura-chave do livro, a rvore. Com isso, texto e figura

    descolam-se do universo rotineiro onde so vistos e adentram no espao da fratura

    transcendental da potica visual.

    Na realidade, tal desejo de fratura est mais ligado ao projeto carnavalesco de

    destruio do que proposta conceitual de dessacralizao da arte por meio da

    distoro. Essa impresso produzida pela presena notvel da figura do Arlequim

    outrora destacado por Verlaine nas Festas Galantes que ora aparece

    antropomorficamente, ora se v a sugesto de sua forma, para zombar das linguagens

    verbal e visual. Com a roupa tipicamente composta de retalhos, ele destrona as

    representaes visuais, como ocorre na figura 3, onde antes que o leitor enxergue um

    borro de cunho expressivo, ele antecipa s uma mancha. O mesmo ocorre na figura

    4, na qual o arlequim ao lado parece questionar a prpria estilizao do livro de artista,

    quando se pergunta, com estranhamento, sobre a possibilidade de existirem rvores

    pretas. A presena do Arlequim louco em seu trajar e com o olhar sarcstico, como

    diria Verlaine, s faz ruir qualquer resqucio de genialidade do artista.

    Por outro lado, o princpio destruidor, presente na personagem jocosa, parece

    desejar o caos para, em seguida, instaurar certa ordem, na medida em que, o Arlequim

    desproporcionalmente desenhado, no s guarda a ideia de verticalidade da rvore,

    como se transforma numa. Essa transformao, ocorrida no livro Quando por fim

    ([2013] 2014c), d pistas para se compreender em que medida a arte contempornea se

    aproxima da lrica moderna, uma vez que reapresenta tema caro filosofia moderna: a

    reconciliao do homem com a natureza.

  • Por reconciliao com a natureza, entenda-se a recuperao do sentido de

    unidade, que se perde, tanto na belle poque, em virtude do incio da acelerao do

    ritmo de vida, quanto na contemporaneidade, por conta da emergncia de serem

    assumidos diversos papis na sociedade. Sheppard (1989) reconhece que, alm da

    interferncia da velocidade industrial na vida do homem, na belle poque, a crise da

    linguagem foi crucial para o sentimento de perda de um princpio de unidade e do

    desligamento entre presente e passado. Por isso, a poesia e a pintura se constituem

    oportunidade para a reintegrao da unidade do homem. Em Baudelaire esse reencontro

    s possvel fora da cidade, afastado de tudo que nela habita, em um templo de vivas

    pilastras (rvores), onde se obtm a sensao de unidade, j em Verlaine, ocorre quando

    a sombra de uma rvore acolhe os estilhaos de um artista, enquanto, em Williams isso

    fica mais explcito: - pela metfora reconciliar/ as pessoas e as pedras (WILLIAMS

    apud HAMBURGER, 2007, p.49).

    Mas em Isabel de S, para reconstituir a ligao com a natureza no preciso

    fugir para uma floresta de smbolos, h dois caminhos: o primeiro a morte; o segundo,

    o conhecimento de si. A morte conduz ao Uno-primordial, visto que a decomposio do

    corpo humano se traduz alimento e energia vital para o solo, as plantas e micro-

    organismos. Essa constatao representada pela figura 5 que retrata o ciclo orgnico

    da vida ao fazer os homens de vala comum, na obscuridade do subsolo, ressurgirem na

    forma de rvores, metonmia da natureza. J o conhecimento de si pode conduzir ao

    estado de integrao se o sujeito se assumir parte integrante dela, reconhecendo que

    obra de arte da natureza, ao mesmo tempo, fruto e semente, como ilustra a figura 6.

    Sustentando essa leitura, Nietzsche, em 1872, de certa forma alinhado com os poetas da

    belle poque, afirmava que:

    Assim como agora os animais falam e a terra d leite e mel, do interior do

    homem tambm soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele

    prprio caminha agora extasiado e enlevado, como vira em sonho os deus

    caminharem. O homem no mais artista, tornou-se obra de arte: a fora

    artstica de toda a natureza, para a deliciosa satisfao do Uno-primordial

    [...]. (NIETZSCHE, 2007, p. 28).

    Esse projeto de fazer erigir o Uno-primordial parece se consolidar no livro de

    artista mais atual, denominado O Fruto (2014d). O Fruto5 destaca-se dos demais livros

    por apelar mais para o aspecto grfico, de modo que constam apenas dois textos

    5 Devido ao limite de pginas no foi possvel destacar no espao do texto imagens do livro O Fruto

    (2014). O leitor interessado em conferir a construo esttica do livro pode acess-lo por meio do link

    citado nas referncias deste trabalho.

  • escritos; por convocar mais uma pea para integrar a obra uma pedra pintada de azul

    e ainda por conservar um carter narrativo, como se, depois de o leitor ter percorrido

    pelas outras obras, ter passado pela experincia do Quando por fim (metfora da morte),

    enfim, ele alcanou o estado do Uno, lugar ednico.

    Aps esse percurso entre os livros de artista da escritora Isabel de S, fica a

    sensao de que a arte contempornea se aproxima da lrica moderna numa posio de

    retaguarda. Ser da retaguarda significa que, com base nas ideias de Perloff (2013), o

    contemporneo no pretende romper com o passado, nem trat-lo com a nostalgia de

    quem pretende reanimar formas tradicionais. Ou seja, o contemporneo incorpora o

    passado, equilibrando-o com sua diferena. Isso que implica reconhecer que o livro de

    artista recupera e traz tona elementos da modernidade, mas se afirma contemporneo

    na medida que os atualiza e aponta para projetos futuros da poesia uma poesia menos

    verbal e mais sensorial.

    Embora se situem em espaos distintos, no desejo de inovar a linguagem que

    se lrica moderna e contempornea encontram. Se a recusa narrao e a crise da

    linguagem verbal persistem ainda na contemporaneidade no graas vontade de

    encaixar o passado no presente, mas por uma demanda surgida no passado que se

    intensificou no presente. Afinal, aquela modernidade que fez a linguagem verbal ruir e

    ser contestada se constituiu apenas um estopim de uma revoluo nas artes que

    aconteceria pouco depois e que pretende satisfazer as novas demandas de um pblico

    com sede de ver, sentir, ouvir, ler e interagir por outras vias com a poesia.

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  • Figura 1 Ilustrao do confronto entre texto e imagem em Isabel de S (2014a)

    Figura 2 Ilustrao do texto sinuoso em Isabel de S (2014b)

  • Figura 3 Representao do Arlequim e do destronamento da genialidade do artista em

    Isabel de S (2014b)

    Figura 4 Representao do Arlequim e do destronamento da genialidade do artista em

    Isabel de S (2014b)

  • Figura 5 Representao da ideia de reintegrao do homem natureza por meio do

    ciclo vital (S, 2014c)

    Figura 6 Ilustrao da conscincia de fazer parte da natureza (S, 2014c).