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  • O mito da lngua fcil na aprendizagem de espanhol por falantes brasileiros aspecto lexical 101

    Vol. 02 N. 01 v jan/jun 2004

    Terumi Koto Villalba

    O mito da lngua fcil naaprendizagem de espanhol por falantesbrasileiros aspecto lexical

    RESUMO Fazendo um recorte drstico no conhecimento lexical,hoje entendido como um conjunto de informaes semnticas,morfolgicas, sintticas e formais (ortografia e pronncia), uso oaspecto semntico como instrumento de descrio do conhecimentode espanhol que o falante adulto brasileiro desenvolve ao longo deum continuum limitado pelo perodo escolar para tratar do mito delngua fcil construdo com base na proximidade entre as duas lnguasimplicadas. Nesse sentido, constata-se que o desempenho do alunobrasileiro no to satisfatrio na produo escrita, pois o progressose d de forma mais lenta do que se poderia prever, apontando para ouso da transferncia como mecanismo de apoio que, a partir de umdeterminado momento, passaria a funcionar como elementobloqueador.

    Palavras-chave: aprendizagem de vocabulrio, apoio na lnguamaterna, mito de lngua fcil.

    Introduo

    Ao lamentar que no estudo de Canale e Swain,de 1980 (in Meara, 1996), sobre a competncia co-municativa, haja s duas referncias superficiais aolxico, Meara (1996) lembra que, quando o interes-se pela competncia lingstica tinha sido substitu-da pela competncia comunicativa, poucos avanoshaviam ocorrido na rea de estudos semnticos. As-sim, o ensino de vocabulrio, que permanecera igualao praticado nas ltimas trs ou quatro dcadas, con-tinuava sendo tratado como um assunto perifricoou como um sub-item do ensino gramatical, visoconsagrada pelo estruturalismo e confirmada pela pri-meira verso da metodologia comunicativa.

    No s os tericos relegavam o conhecimentolexical a um papel secundrio na competncia lings-tica ou comunicativa, mas os prprios professores pa-reciam ignorar a sua relevncia, apesar do clamor dosalunos, apontando para a necessidade de um trata-

    mento mais cuidadoso de vocabulrio. Coady (1997)refere-se a esse impasse, afirmando que teria se for-mado um crculo vicioso de atitudes: de um lado, osalunos sentiam que as palavras eram muito impor-tantes e que era importante aprend-las; de outro, osprofessores sentiam que as palavras eram fceis de seaprender (grifo do autor) e que as tarefas centradas novocabulrio eram de pouco mrito.

    Estes eram inclusive encorajados pelos estu-dos tericos de que, em termos de compreenso leito-ra, mais importante do que entender cada palavra erausar adequadamente as estratgias de leitura. No en-tanto, no deixavam de reconhecer que as reas pro-dutivas da lngua mais difceis eram as que se referi-am produo oral e escrita, habilidades que no eramprivilegiadas em sala de aula at a difuso do enfoquecomunicativo que, paradoxalmente, relegou o ensinodo lxico ao segundo plano.

    Levando em conta essa conjuno de fatores,torna-se fcil compreender que tanto os docentes

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    RESUMEN Al hacer un recorte drstico en el conocimiento lexical,entendido hoy como un conjunto de informaciones semnticas,morfolgicas, sintcticas y formales (ortografa y pronunciacin),hago uso del aspecto semntico como instrumento de descripcin delconocimiento de espaol que desarrolla el hablante adulto brasileoa lo largo de un continuum limitado por el curso escolar para tratardel mito de lengua fcil construido con base en la proximidad entrelas dos lenguas implicadas. En ese sentido, se constata que eldesempeo del alumno brasileo no es tan satisfactorio en laproduccin escrita, pues el progreso se da de forma ms lenta de loque se podra prever, lo que apunta hacia el uso de transferenciacomo mecanismo de apoyo que, a partir de un determinado momento,pasara a funcionar como elemento bloqueador.

    Palabras-clave: aprendizaje de vocabulario, apoyo en la lenguamaterna, mito de lengua fcil.

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    como os lingistas aceitassem implicitamente quese aprendia o vocabulrio de L2 de forma natural apartir de leituras de textos. Desse modo, entende-sepor que os professores no viam a necessidade deexplorar o vocabulrio, a no ser como uma lista depalavras consideradas difceis (Oxford e Scarcella,1994).

    Aplicando essa situao ao caso do ensino/aprendizagem de espanhol para falantes brasileiros, possvel observar dois aspectos: de um lado, con-firma-se totalmente a negligncia pelo lxico, sobre-tudo pela crena generalizada de que se trata de duaslnguas muito prximas, cuja semelhana facilitariaa comunicao oral e escrita tanto em contexto in-formal como em institucional; de outro, a experin-cia docente aponta para a dificuldade dos alunos deatingir um nvel satisfatrio nessa lngua estrangei-ra, apesar da semelhana, o que permite inclusiverevisar a hiptese da similaridade como fator deaprendizagem ou, pelo menos, permite restringi-lacondicionando-a ao grau de proximidade interlin-gstica, percebida pelo aprendiz e definio deaspectos em que se d essa facilidade.

    Dada essa situao peculiar de que em sala deaula se constata a dificuldade de atingir um nvelsatisfatrio em lngua espanhola, quando conscienteou inconscientemente se considera o grau ntimo defamiliaridade entre o vocabulrio da lngua materna eda lngua espanhola, proponho-me a averiguar o n-vel de conhecimento lexical em espanhol do universi-trio brasileiro do Curso de Letras Espanhol. Con-siderando a amplido do tema, fiz um drstico recortee limito-me a abordar um dos aspectos mais significa-tivos, que o da produo escrita, tida, do ponto devista metodolgico, como uma forma particularmen-te interessante para medir o conhecimento lingsticoem LE (Laufer, 1998), pois nela se manifestariam, deforma suficientemente clara, as restries e insufici-ncias no que se refere a esse tipo de informao, oque permitiria fazer a primeira avaliao do tipo deconhecimento lexical em espanhol que o aluno brasi-leiro possui.

    Os dados

    Aqui, o conhecimento lexical, que compos-to de vrios tipos de conhecimento (formal, sintti-co, morfolgico, semntico), ser reduzido ao aspectosemntico da palavra. Apoiando-me no conceitorico de palavra postulada por Fernndez (1997), queentende como tal aquela que possui sentido prprio,

    excetuo, neste estudo, os diticos, os conetivos, ospronomes, as interjeies e as preposies. Excetu-am-se tambm os nomes prprios pela simples razode que individualizam.

    Para obter os dados, foram testados sessentaalunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sule da Universidade Federal do Paran, divididos emtrs grupos, de acordo com seu perodo no Curso deLetras: bsico, intermedirio e avanado, aos quaisfoi solicitado que produzissem um texto narrativo combase numa gravura (anexo). Nela apresenta-se a se-guinte situao, distribuda em quatro partes: (a) des-crio do problema: o marido est furioso com a mu-lher, porque esta se dedica leitura de jornais e revis-tas, deixando suja a cozinha; (b) tomada de deciso: omarido decide ir ao supermercado e comprar produ-tos de limpeza para mandar a mulher fazer a limpeza;(c) reao da mulher: a mulher obedece e se empenhatanto na tarefa que a frigideira fica brilhante, na qualela se v refletida e descobre que est descuidada efeia; (d) concluso: para o desespero do marido, amulher agora s se dedica a sua prpria beleza.

    Prev-se que, para cada parte, seja usado umdeterminado tipo de vocabulrio para nomear e qua-lificar objetos e expressar aes, revelando diferen-tes graus de conhecimento lexical, o qual ser exa-minado de acordo com uma noo flexvel de Anli-se de Erros (Villalba, 2002), que permite no s con-siderar os erros produzidos, mas tambm as formasque, embora corretas, sugerem falta de alternativas(sinnimos) e/ou insuficincias (evita-se a palavraespecfica por meio de parfrase).

    Para dar conta do significado e da abrangnciados dados, torna-se necessrio categorizar as formasincorretas de acordo com a sua provvel origem.Nesse sentido, possvel estabelecer duas categoriasde erros: os que provavelmente se originam da influ-ncia da L1 sobre a L2 e aqueles derivados da tenta-tiva de criar formas novas com base nas caractersti-cas do lxico espanhol. Os primeiros serocategorizados como apoio prioritrio na L1, en-quanto os outros pertenceriam ao grupo denomina-do apoio prioritrio nas caractersticas da L2.

    Embora Swan (1997) critique esse tipo de cate-gorizao, argumentando que difcil definir as fron-teiras da influncia da lngua materna, trata-se de umcritrio funcional: num exame cuidadoso nota-se que,de um lado, a incorreo parece estar intimamenterelacionada com a forma como o conhecimento da L1influi na aquisio da L2 (Ringbom, 1992), e, de ou-tro, com a conscincia que o aluno brasileiro tem de

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    que, apesar das semelhanas, trata-se de uma outralngua (Villalba, 2002), o que poderia propiciar o usode mecanismos de aproximao L2, baseando-se nascaractersticas dessa lngua estrangeira.

    Descrio e anlide dos dados

    Apoio prioritrio na L1Nesta categoria, podem ser verificadas trs va-

    riveis que se caracterizam pelo aproveitamento dosentido em portugus e se realizam de diferentes for-mas: (a) o uso da expresso em portugus, (b) aespanholizao de expresses portuguesas medianteanexao de afixos, e (c) o emprego semanticamenteincorreto da expresso espanhola devido ao falsocognato.

    Descontextualizada e considerada apenas doponto de vista quantitativo, a primeira varivel, queagrupa itens como panela (produzida por quatroparticipantes do grupo bsico), poderia ser conside-rada insignificante. No entanto, quando este e ou-tros exemplos so re-enfocados qualitativamente noprocesso de aquisio de espanhol, indicam as ma-nifestaes iniciais nessa LE. previsvel que so-fram mudanas ao longo de um perodo artificial-mente demarcado ou que reapaream na terceira eta-pa, como indicam alguns dados isolados do grupoavanado.

    Assim, alm da presena de panela (s ve-zes, panella), a ocorrncia no grupo bsico de es-malte, sala de estar e relapsa pode servir comoponto inicial de um continuum, cuja evoluo se ve-rificaria na produo dos participantes dos gruposps-bsico. Nesse sentido, os dados elicitados, re-flexo e pia(grupo intermedirio) e esfregando,casal, desespero, refletida e concretizado(grupo avanado), sugerem que o apoio direto na ln-gua materna permanece nos grupos posteriores aobsico, o que apontaria para a necessidade de refinara hiptese de transferncia por ingenuidade entre osaprendizes novatos, de Ringbom, e de prever um tra-tamento particular do continuum quando esto en-volvidas duas lnguas muito prximas.

    A segunda varivel revela progresso enquantocapacidade de criar itens novos, baseados em portugu-s, mediante o aproveitamento de algumas caractersti-cas prprias do espanhol, os quais servem de ilustraoda peculiaridade da interlngua, quando esto em jogoduas lnguas da mesma famlia. A espanholizao sed basicamente por meio de afixao (uso de prefixosou sufixos) e de adaptao ortogrfica.

    No primeiro caso, alguns exemplos comofrigidera (grupo bsico) e fritadera (grupo bsi-co), em vez de sartn; arrumacin (grupo bsicoe intermedirio), em vez de ordenacin; desarru-mada (grupo intermedirio), por desordenada, ehesitacin (grupo avanado), por vacilacin, in-dicam que o acrscimo de afixos espanhis prova-velmente foi realizado de forma consciente sobre ositens em portugus e que se trata de uma estratgiaacionada pela necessidade de dar conta da expres-so. Tambm possvel considerar que o paralelismo,com palavras que acabam em era, como papeleraou lechera, em cin, como accin ou compo-sicin, e em ada, como cucharada, tenha funda-mentado a criao desses itens.

    No que diz respeito adaptao ortogrfica,parece haver uma tendncia a marcar graficamente adiferena entre as duas lnguas. Desse modo, ao ladode panela, mencionada acima, ocorrem formas comopanella, em que a presena do ll no suficientepara assegurar a comunicao (cf. com olla, cazo);faze, para designar incorretamente a face (cf. comcara): loza, referente loua, quando a palavraadequada em espanhol seria vajilla.

    Convm assinalar que, paralelamente a essesprocedimentos que incidem sobre a palavra em si,ocorre tambm a transferncia de mecanismos deconstruo de sintagmas, realizada de duas formas:em alguns casos, traduz-se uma parte, substantivoou preposio, para se obter expresses como lojade peridicos (grupo avanado), tentando dar con-ta de quiosco de prensa, ou con berros (grupobsico) por a gritos. Em outros, so usadas pala-vras existentes no lxico espanhol, ou formasespanholizadas, como em saln de belleza (grupobsico), em vez de peluquera; afaceres de la casa(grupo bsico), em vez de labores/tareas de casa.Da combinao inadequada, pode resultar no s al-gumas expresses desconhecidas em espanhol, mastambm outras que induzem a equvocos, como ocaso de materiales de limpieza, (grupo intermedi-rio e avanado), em vez de productos de limpieza.Aquela significa instrumentos o mquinas para re-alizar um servicio o ejercer una profesin, e nodetergentes, como mostra a gravura.

    Quanto terceira varivel, os dados indicamque, quando se trata de produo, a dicotomia cognato/falso cognato parece acompanhar o universitrio bra-sileiro durante uma boa parte do processo de aquisi-o de espanhol como lngua estrangeira. No teste, oitem mais conflitivo e que ilustra de forma clara a

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    superposio indiscriminada de formas semelhantesfoi aburrido (grupos bsico, intermedirio e avan-ado), em que possvel que o significado de abor-recido, em portugus, como correspondente a cha-teado ou at mesmo zangado, tenha sido direta-mente transferido ao espanhol, fazendo-se caso omis-so do significado em espanhol entediado. Outroexemplo significativo o tringulo formado por re-fletido (portugus), produzido pelos trs grupos,reflejado (espanhol) e reflexionado (espanhol),cuja similaridade formal parece obstaculizar a assi-milao tanto do significado de cada um dos termoscomo a correspondncia interligustica. Aqui, a ocor-rncia de erros seria explicada pelo fato de que, se-gundo o dicionrio Aurlio, refletir pode se referira reproduzir a imagem de e a reflexionar, medi-tar, noes que em espanhol so expressas, respecti-vamente, pelos verbos reflejar e reflexionar.

    Apoio prioritrio nas caractersticas da L2Os dados indicam que nem sempre os erros de

    significado se devem exclusivamente influncia dalngua materna. Em termos de produtividade, aproxi-mar-se do lxico da L2, levando em considerao assuas caractersticas, pode ser uma tentativa estrategi-camente interessante, mas cujos resultados nem sem-pre so satisfatrios, que apontam para dois tipos deincorreo de origens diferentes, quais sejam, ou seri-am erros derivados de um conhecimento inadequadoda dimenso formal da palavra ou resultantes de in-formaes semnticas parcialmente assimiladas.

    No primeiro grupo, podem ser encontradosdois casos distintos: de um lado, exemploselucidativos como rabones ou cijn (grupo bsi-co), expresses inexistentes em espanhol, criadas parase referirem a jabn (sabo) e silln (sof), emque a confuso ortogrfica possivelmente est rela-cionada com problemas de ordem fonolgica; de ou-tro, termos como jamn, cochina, ola (grupobsico), usadas para designarem jabn, cocina eolla sugerem que, alm da questo fonolgica, queno ser tratada aqui, existe uma lacuna entre o as-pecto formal (fontica e ortogrfica) e a semntica,j que essas palavras correspondem, respectivamen-te, a presunto, porca e onda, invalidando anarrativa que gira em torno de sabo, cozinha epanela.

    As sinformas (Laufer, 1997), ou pares de pala-vras que induzem confuso, devido semelhanana pronncia (ing. price/prize) ou na morfologia (ing.economic/economical), indicam que o aluno apren-

    deu uma das palavras do par, cuja representao ain-da no estaria totalmente fixada na mente - e da aconfuso - ou que pode ter aprendido as duas unida-des do par, mas sem ter tido condies para anexar osignificado correto a cada uma delas.

    Esse tipo de erro contribui para destacar o as-pecto anedtico da interlngua do aprendiz brasilei-ro de espanhol, por interferir em maior ou menorgrau no processo de comunicao, e pode ser obser-vado inclusive nos grupos mais adiantados, como emvacas (intermedirio), em vez de vajillas;huella (intermedirio), em vez de olla; despea-do (intermedirio), em vez de despeinado; suya(avanado), em vez de sucia. Nestes exemplos, osignificado de vacas (vazias), huella (vestgio),despeado (jogado penhasco abaixo) e suya (sua;pronome possessivo) est distante daquilo que sepretendia expressar, respectivamente, loua, pa-nela, despenteado e suja.

    Com relao ao segundo grupo, ou seja, o gru-po dos erros resultantes de especificaes semnti-cas parcialmente assimiladas, os dados indicam queos problemas se concentram nas unidades lexicaisque pertencem ao mesmo campo semntico. Itenscomo silln (sof), nada, peluca e matrimo-nio (casal) foram inadequadamente substitudos porsilla (bsico, intermedirio e avanado), nadie(intermedirio), peluquera (intermedirio) e bo-das (avanado), que no atendem de modo estritos exigncias da histria, pois significam cadeira,ningum, cabelereira e casamento.

    Limitaes semnticas

    Entendo por limitaes semnticas as formascorretas, semanticamente apropriadas, mas que, emtermos de produo escrita, na qual o vocabulrio a priori mais cuidadosamente selecionado do quena oral, podem ser consideradas insuficientes quan-to a alternativas de expresso (p.ex., uso de sinon-mia) e quanto ao aproveitamento das relaes inter-nas entre as unidades lexicais do mesmo campo se-mntico. Do ponto de vista estratgico, a esquivacomo forma de evitar certo tipo de vocabulrio umrecurso que no redunda em erro, mas em sub-repre-sentao de certos traos lexicais (Laufer e Eliasson,1993).

    Para tratar com um mnimo de rigor esta ques-to, os textos dos participantes dos trs grupos foramre-analisados com base nas expresses semanticamen-te corretas e foram comparados com os dos falantes

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    hispnicos para sustentar a avaliao. Nessa aborda-gem, foram examinados os trs elementos em torno dosquais gira a histria, quais sejam, a casa (ou a cozinha)suja, a atitude do homem e a reao da mulher, o quepermitiu detectar duas tendncias no manejo do voca-bulrio aparentemente contraditrias, mas que podemser entendidas como o verso e o reverso de uma mesmamoeda: de um lado, o emprego de termos de sentidogenrico, como cosas, e de outro, a capacidade deusar termos de sentido especfico, como vasos oucuchillos, ambos realizados de tal forma que pem adescoberto as restries desse tipo de conhecimento.

    No primeiro caso, as marcas de generaliza-o so visveis na referncia s diversas aes dospersonagens, no s quanto seleo de determina-dos itens como tambm ao modo de suprir estrategi-camente as necessidades comunicativas.

    No que se refere seleo lexical, alguns exem-plos repetidos por vrios participantes sugerem ou odesconhecimento de uma parte das especificaes se-mnticas que compem a unidade lexical ou a dificul-dade de acess-las automaticamente numa situaode produo livre. Em ambos os casos, mas principal-mente no ltimo, possvel que o bloqueio se deva superposio de informaes em L1 e em L2. Assim,por exemplo, a preferncia por pareja (grupos bsi-co, intermedirio e avanado), formalmente mais pr-ximo do portugus par, para se referir ao marido e esposa, em detrimento de matrimonio, que expres-sa a noo exclusiva de casal humano, pode revelarum conhecimento parcial de seu uso, se for levado emconsiderao que em espanhol pareja engloba deforma ampla qualquer conjunto de dos personas,animales o cosas (Gutierrez, 1996).

    No mesmo grupo de limitao lexical, podeser includo o item arreglar/arreglarse, cujo senti-do equivale, aparentemente sem restries, ao por-tugus arrumar/ arrumar-se, o que permitiria aconstruo de frases como:

    01. si desea que la casa est arreglada, tendr que arreglar asu mujer primero y ayudarle a arreglar la casa tambin (gru-po intermedirio);02. quiero que ella (la casa) est limpia, la cocina arreglada(grupo avanado).

    No entanto, em termos de uso, a suposta equi-valncia entre as duas lnguas rompida, pois o fa-lante hispnico tende a evitar o seu empregoindiscriminado e o substitui por sinnimos de senti-do mais especfico de acordo com o complementoque o acompanha, como ordenar (organizar), aci-

    calarse (arrumar-se) e reparar (consertar), prin-cipalmente se existe a possibilidade de ambigida-de. No caso particular de arreglar la cocina, se re-vela a distncia entre o falante espanhol e o apren-diz brasileiro, j que este no d mostras de saberque no espanhol peninsular, cocina pode se referirao espao fsico da casa e ao fogo, conhecimentoque lhe permitiria fazer a devida distino entre con-sertar o fogo e arrumar a cozinha.

    O uso generalizado de limpiar (grupos bsi-co, intermedirio e avanado) tambm pode ser expli-cado pela sua abrangncia significativa e pela proximi-dade interlingstica. Embora no seja incorreto nemd origem ambigidade, a preferncia pelo termo emdetrimento de outros de sentido mais especfico, comofregar, implicitamente combinada com platos, suge-re mais uma vez que os sinnimos so desconheci-dos ou no esto disponveis para produo.

    Deve-se assinalar, no entanto, que foram cons-tatadas algumas ocorrncias isoladas de fregar en-tre os nveis mais adiantados, o que, do ponto de vistado processo de aquisio lingstica, pode serindicativo de ampliao e enriquecimento de vocabu-lrio, processo que deveria culminar na aquisio defrotar que, por possuir o matiz com maior cuidadoe esforo, seria apropriada para se referir ao ilus-trada na histria e daria conta do significado que al-guns participantes tentaram expressar com:

    03. Limpia tan bien que consigue mirarse en las hollas (interme-dirio)04. de tanto fregarla se puso como un espejo (avanado)

    Neste tipo de insuficincia lexical, o caso maissignificativo, que se tornou clssico por caracterizara produo do falante brasileiro (Goes de Andrade,2000), o emprego generalizado de quedar/que-darse, como em y se qued muy asustada ou emse qued aburrido, ambos exemplos do grupo b-sico. Levando em considerao a tendncia do fa-lante hispnico a privilegiar, nesta situao, a ex-presso centrada no verbo principal (cf. se asust,se aburri) e a do brasileiro a usar perfraseconstruda com ficar + particpio, parece bastanteprovvel a ocorrncia de transferncia.

    Em alguns casos, no entanto, o verbo ficarno acompanha outro verbo em particpio passado,mas um adjetivo, como em para se quedar ms bo-nita ou quedarse muy nervioso, ambos do bsico,o que apontaria para o desconhecimento dos matizesdo quedar/ quedarse, que exigem outros verbos, os

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    chamados verbos de cambio pela gramtica espa-nhola, capazes de refletir os diferentes tipos de trans-formaes previstas no sentido de ponerse,hacerse e volverse, de acordo com seu carter detransitoriedade e involuntariedade e com o foco noresultado (Milani, 1999). A especificao dessasmudanas, que, conforme a autora, podem ser reuni-das em trs grupos (mudana acidental, mudana es-sencial e mudana que enfatiza o resultado), parecepassar despercebida pelos alunos brasileiros.

    Algumas vezes, a limitao lexical parece terprovocado outros procedimentos de expresso, entre osquais se destacam a parfrase e a comparao, cuja va-lidade pode ser determinada de acordo com o objetivocomunicativo atingido. Em alguns exemplos, seja deparfrase, como em comprar lo que necesitaba paralimpiar toda casa (intermedirio), seja de compara-o, como em el pelo como los de una bruja (avana-do), a inteno comunicativa no parece afetada, mas,em outros, o sentido s recuperado contextualmente,como em acero limpio ou em una das cosas dealuminio (grupo bsico), correspondente a sartn(frigideira), em que inclusive se torna necessrio o apoiovisual na ilustrao da histria. O fato de parafrasearindicaria o desconhecimento da palavra especfica, oque, por sua vez, assinalaria as limitaes lexicais doaluno (Arnaud e Savignon, 1997).

    Por outro lado, parece contraditrio que o ou-tro aspecto da limitao lexical se revele precisamen-te no emprego de termos de sentido especfico, feitode modo linear e acumulativo, sem estabelecer as de-vidas relaes paradigmticas. Nesse sentido, ao ladoda nica meno adequada de cubiertos (grupo b-sico), correspondente a talheres, e alguma tentativade uso de vajilla (intermedirio) para loua, emgeral verifica-se a enumerao recorrente de objetoscomo tazas (xcaras), vasos (copos), platos (pra-tos). Enquanto o falante hispnico mostra-se capaz deusar expresses que englobam e sintetizam os diver-sos tipos de um mesmo objeto ou os diversos aspectosde um mesmo fenmeno, o aprendiz brasileiro tendea caracterizar com detalhes tanto o contexto (o ambi-ente e os personagens) como as aes e os objetos,referindo-se s partes ou componentes.

    Para expressar a sujeira da casa, mais especi-ficamente da cozinha, o falante de espanhol se valede descries valorativas, que renem e destacamtanto o aspecto fsico do lugar como a impresso cau-sada, do tipo est de pena, en condiciones tandeplorables, lamentable estado, la casa es un caosde desorden y suciedad, montaa de restos org-

    nicos y grasa pegajosa, sem se deter na nomeaoindividual de objetos que comporiam esse ambientesujo ou desorganizado.

    A mesma tendncia pode ser observada nadescrio do homem e da mulher, em que as expres-ses no s se referem ao seu aspecto exterior, mastambm avaliam seus sentimentos e resgatam umaparte de seu carter. As referncias mais significati-vas ao personagem masculino so molesto, comaspecto derrotado y amargado, intransigencia,malhumorado y con cara de pocos amigos, paraponerse de malas, como si la sangre le hirviera,enquanto que a mulher tratada como la pobre,bastante descuidada, su decadente estado estti-co, su belleza y acicalamiento, el aspecto es bas-tante desaliado.

    No caso do aluno brasileiro, mesmo quandoso usadas oraes completas para se referir sujei-ra e/ou desordem da cozinha ou da casa, a sua cons-truo se faz mediante uma enumerao linear departicularidades com o emprego de vocabulrio docotidiano. Diferentemente do falante hispnico, quese manifesta assinalando, por exemplo, que a cozi-nha est llena de cacharros sucios, em que a noode cacharros (utenslios) evita a nomeao de cadaum deles, o aluno brasileiro especifica os objetos:ollas, platos y cubiertos por todo el lado (bsico),platos, hollas y copas (intermedirio), los platos,los vasos, las ollas, las tazas, los cubiertos y etc ya seacumulaban (avanado).

    De um modo geral, as referncias aos perso-nagens seguem um padro semelhante: enquanto ofalante hispnico descreve e avalia a sua aparnciacomo um todo, usando expresses como bastantedescuidada, o aluno brasileiro tende a fixar os deta-lhes que definem o aspecto externo: su pelo estabamuy feo y para arriba (bsico), piel sin cuidados(intermedirio), la piel llena de granos (avanado).

    Diante desses exemplos, importante ressal-tar que o conhecimento do vocabulrio de sentidoespecfico, que se manifesta na nomeao de objetosindividuais ou na descrio de alguns aspectos dosfenmenos e aes, sugere a forma como os falantesbrasileiros organizam o lxico em lngua espanhola,apoiando-se na lngua materna para dar conta dasnecessidades mais imediatas, sem perceber os mati-zes significativos que distinguem os itens dessa ln-gua estrangeira. Combinando esta tendncia com ade usar termos de sentido genrico, obtm-se outroindcio de diferena em relao aos falantes hispni-cos que, no s por dominarem um conjunto maior

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    de vocbulos mas por conhecerem as suas relaes,evitariam a enumerao de objetos e extrapolariama narrao baseada na descrio dos elementos.

    Concluso

    Atrs do mito de lngua fcil, calcado na pro-ximidade entre o portugus e o espanhol, existemproblemas: quando se trata de conhecimento lexicalpodem ser constatados erros e limitaes. Os errosso decorrentes do apoio na lngua materna e da for-ma de aproximao nova lngua, baseando-se nascaractersticas dessa lngua para construir novos itenslexicais; as limitaes se referem pobreza de voca-bulrio em termos de sinonmia, bem como ao des-conhecimento das relaes paradigmticas que per-mitem selecionar adequadamente palavras de senti-do especfico ou genrico, de acordo com as exign-cias de uma produo escrita.

    Os problemas apontam para a questo de aqui-sio, de como se d o processo de apropriao denovos termos em espanhol por falantes brasileiros.Nesse sentido, falta de um estudo mais amplo e pro-fundo que especifique a real relao entre duas ln-guas da mesma famlia, vinculado ao grau desse pa-rentesco e proximidade, possvel considerar que ouso estratgico da lngua materna se concretiza nouso de transferncia, mecanismo que, de certa forma,deve interferir tambm na construo de regras. Emambos os casos, o sentido positivo da estratgia co-municativa, que garante um mnimo decomunicabilidade, parece afetar tambm o ritmo dedesenvolvimento lexical em espanhol, j que os mes-mos tipos de erros e limitaes ocorrem nos trs gru-pos. Embora no grupo avanado surjam timidamentealguns indcios de mudana, trata-se de um progressomais gradual do que se esperaria da aprendizagem deuma lngua tida como fcil.

    Atrs do mito de lngua fcil existe uma rea-lidade complexa e delicada que, do ponto de vistalingstico, merece uma descrio que identifique ascaractersticas de cada lxico, levando em conside-rao no s o aspecto semntico mas tambm omorfolgico, o sinttico e o formal (ortografia efonologia) que compem o conhecimento lexical. Doponto de vista de lingstica aplicada, faz-se neces-srio uma abordagem vertical dessa descrio queanalise o processo de aprendizagem de espanhol porfalantes brasileiros para possibilitar um tratamentocientfico da questo lexical em sala de aula, mati-zando, assim, a falcia desse mito.

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    Recebido em mar/2004Aceito em maio/2004

    Terumi Koto VillalbaUFPR

  • Terumi Koto Villalba108

    Calidoscpio

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    Anexo: