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ENSAIO SOBRE A NATUREZA E A FUNÇÃO DO SACRIFÍCIO: Uma Leitura do Antigo e do Novo Testamento Jair Gomes de Santana* Resumo: Este artigo toma o conceito de Hubert e Mauss, sobre o sacrifício e sua função social. Analisa as concepções judaico-cristãs sobre o sacrifício, nos textos sagrados do Antigo e Novo Testamento. Aborda então o esquema do sacrifício, o sacrifício do deus e a unidade do sistema sacrificial. Palavras-chave: sacrifício, função social do sacrifício, sistema sacrificial Abstract: This article take the Hubert and Mauss´s concept about the sacrifice and your social function. Analyze the jewish-christian conceptions about the sacrifice at the sacred texts of the Ancient and New Testament. Broach then the sacrifice scheme, the god’s sacrifice and the unity of sacrificial system. Key-words: sacrifice, sacrifice social function, sacrificial system. O sacrifício está presente em todas as culturas humanas:das primeiras comunidades humanas até aos nossos dias . Mas o que é o sacrifício? Um objeto é considerado sacrifício quando ele é destruído no altar (seja animal ou vegetal).Em todo o sacrifício um objeto passa do domínio comum ao religioso, isto é, ele é consagrado.Assim: “O sacrifício é um ato religioso, que, pela consagração de uma vítima, modifica o estado moral da pessoa que o realizou ou de certos objetos pelos quais ela se interessa” (HERBERT ; MAUSS, p.151). Há consagrações que esgotam os seus efeitos no objeto consagrado, seja homem seja coisa; isso acontece na unção de um doente para que seja curado ou na consagração de alguém como rei ou sacerdote.No sacrifício a consagração vai além da coisa Kairós - Revista Acadêmica da Prainha Ano III/2, Jul/Dez 2006 367

7. Jair Gomes de Santana Corrigido

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  • ENSAIO SOBRE A NATUREZA E A FUNO DO SACRIFCIO:

    Uma Leitura do Antigo e do Novo Testamento

    Jair Gomes de Santana*

    Resumo: Este artigo toma o conceito de Hubert e Mauss, sobre o sacrifcio e sua funo social. Analisa as concepes judaico-crists sobre o sacrifcio, nos textos sagrados do Antigo e Novo Testamento. Aborda ento o esquema do sacrifcio, o sacrifcio do deus e a unidade do sistema sacrificial.

    Palavras-chave: sacrifcio, funo social do sacrifcio, sistema sacrificial

    Abstract: This article take the Hubert and Mausss concept about the sacrifice and your social function. Analyze the jewish-christian conceptions about the sacrifice at the sacred texts of the Ancient and New Testament. Broach then the sacrifice scheme, the gods sacrifice and the unity of sacrificial system.

    Key-words: sacrifice, sacrifice social function, sacrificial system.

    O sacrifcio est presente em todas as culturas humanas:das primeiras comunidades humanas at aos nossos dias . Mas o que o sacrifcio? Um objeto considerado sacrifcio quando ele destrudo no altar (seja animal ou vegetal).Em todo o sacrifcio um objeto passa do domnio comum ao religioso, isto , ele consagrado.Assim: O sacrifcio um ato religioso, que, pela consagrao de uma vtima, modifica o estado moral da pessoa que o realizou ou de certos objetos pelos quais ela se interessa (HERBERT ; MAUSS, p.151).

    H consagraes que esgotam os seus efeitos no objeto consagrado, seja homem seja coisa; isso acontece na uno de um doente para que seja curado ou na consagrao de algum como rei ou sacerdote.No sacrifcio a consagrao vai alm da coisa

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  • consagrada, por isso ele modifica o estado daquele que fez os gestos do sacrifcio, daquele que ofereceu a vtima, provocando uma transformao religiosa.

    No sacrifcio que se oferece quando da construo de uma casa, ela que afetada. Por que necessrio fazer esses sacrifcios?

    A habitao no um objeto, uma mquina para habitar para o homem antes da modernidade,: o Universo que o homem construiu para si imitando a criao exemplar dos deuses, a cosmogonia.Toda a construo e toda a inaugurao de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo comeo,a uma nova vida.(destaque nosso) (ELIADE, 1972, p. 53).

    Embora o homem moderno no faa sacrifcios para habitar uma nova casa, ele costuma reunir amigos e parentes para comemorar a aquisio da casa. Eliade v nessa prtica resqucios de antigos cultos de consagrao da casa.

    No sacrifcio a coisa consagrada serve de intermedirio entre o sacrificante e a divindade. Todo sacrifcio uma oblao, isto , uma oferenda a um deus. H vrios tipos de oblaes: quando o objeto consagrado um ex-voto, a consagrao pode destin-lo ao servio da divindade; quando o objeto consagrado so as primcias, ficam intactas e so destinadas aos sacerdotes; quando o objeto consagrado a vtima, ele degolado ou queimado, em sntese: destrudo.

    O ritual judaico nos mostra a complexidade dos ritos e da identidade de seus elementos. O Levtico (terceiro livro do Pentateuco, isto , os cinco livros atribudos a Moiss), reduz todos os sacrifcios a quatro formas fundamentais: ola, hattt, shelamim e minkh:

    a) Hattt (oferta pelo pecado) a finalidade deste sacrifcio era expiar o pecado por ignorncia,confisso de pecado, perdo de pecado e purificao de mcula. Cabe destacar que os elementos para o sacrifcio tinham uma segmentao social. Para o sumo sacerdote e para a congregao devia se ofertar um novilho. O prncipe deveria ofertar um bode. Pessoas do povo deveriam

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  • ofertar uma cabra ou um cordeiro. O pobre podia sacrificar uma rola ou um pombinho. As pessoas muito pobres ofereciam a dcima parte de uma efa de flor de farinha. (Levtico 4.1-5.13,6.24-30;8.14-17,16.3-22) . interessante que Mauss e Herbert afirmam que o Levtico d uma definio muito vaga sobre o sacrifcio. Os exemplos que acabamos de dar mostram-nos que o Levtico no to vago assim;

    b) Shelamim (oferta pacfica) um sacrifcio comunial, sacrifcio de aes de graas, de aliana, de voto; era acompanhado de uma refeio comunitria. Os elementos deste sacrifcio eram qualquer animal sem defeito do rebanho e uma diversidade de pes (Levtico 3; 7.11-34);

    c) Mink , a apresentao da vtima quando ela de natureza vegetal. O nico sacrifcio relacionado no Levtico onde os elementos so de natureza vegetal a oferta de manjares. E os elementos so: flor de farinha, azeite de oliva, incenso, bolos ou obreias (cozidos, assados e fritos), sal. So elementos proibidos neste sacrifcio fermento e mel. A finalidade deste sacrifcio era um ato voluntrio de adorao, reconhecimento da bondade e da providncia de Deus e dedicao a Deus (Levtico 2; 6.14-23);

    d) Ola (o envio da oferenda divindade) onde o sacrifcio era queimado por completo (holocausto) e indicava completa submisso divindade (Levtico1;6.8-13;8.18-21.16.24). Os elementos do holocausto eram: boi, cordeiro, ou ave do sexo masculino, tudo sem defeito. No caso do pobre poderia ser uma rola ou um pombinho:

    Quando mais de uma oferta era apresentada (como em Nmeros 7.16-17) o procedimento era normalmente o seguinte: 1) oferta pelo pecado; 2) holocausto; 3) oferta pacfica e oferta de manjares junto com uma libao (oferta de lquidos, em geral de vinho ou de azeite, derramados em sacrifcio de dedicao a Deus) (BBLIA de Estudo Vida, 1999, p. 156).

    Essa seqncia destaca parte da importncia espiritual do sistema sacrificial que ocorria em trs momentos ou fases. Na primeira fase, o pecado tinha de ser tratado (oferta pelo pecado ou oferta pela culpa). Na segunda fase, o adorador comprometia-se completamente com Deus (holocausto e oferta de manjares). Na

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  • terceira fase, estabelecia-se a comunho ou amizade entre o Senhor, o sacerdote e o adorador (oferta pacfica).

    1 O esquema do sacrifcio

    No caso dos judeus, a institucionalizao do sacerdcio mudou o modelo de liderana que estava em prtica desde a sada do Egito. Moiss era o lder que tinha acesso direto Divindade. Agora caber ao sacerdote cuidar do ofcio divino:

    Com isso se desloca Moiss do seu papel de intermedirio [...]. No sendo Moiss santificado como sacerdote, no tem acesso ao lugar da presena de Iahweh. Coisa que corresponde a Aro e seus descendentes (PIXLEY, 1987, p. 241).

    Moiss como ser humano era limitado, mas o sacerdcio como instituio ligada a famlias era um modelo para as prximas geraes.

    A primeira fase do sacrifcio d-lo divindade. Mas eles so profanos e preciso que eles mudem de estado, isto , sejam sacralizados. Essa mudana operada pelos ritos.

    O sacrificante deve ser preparado, passar por uma purificao para fazer o ofcio religioso:

    Ento fars chegar Aro e seus filhos porta da tenda da congregao e os lavars com gua; E tomars o azeite da uno, e o derramars sobre a sua cabea; assim o ungirs (Ex., 29.4;7).

    Suas roupas so especiais:

    Estes, pois, so os vestidos que faro: um peitoral, e um fode, e um manto, e uma tnica bordada, e uma mitra, e um cinto; faro, pois, vestidos santos a Aro, teu irmo, e a seus filhos, para me administrarem o ofcio sacerdotal (Ex., 28.4).

    A natureza real das insgnias de Aro sugere o perodo ps-exlico, quando, na ausncia de um rei, o sumo sacerdote se tornou uma figura semi-real (ALLEN, 1987, p. 518).

    Tudo o que o sacerdote realiza sagrado:

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  • Assim, Aro levar os nomes dos filhos de Israel no peitoral do juzo sobre o seu corao, quando entrar no santurio, para memria diante do Senhor continuamente (Ex., 28.29).

    No caso dos judeus, o sacerdote representa todo o povo enquanto est ministrando perante o Senhor.

    O sacrificador (o sacerdote), consagrado previamente, e tendo sido introduzido no mundo sagrado, conhece todos os rituais e todos os procedimentos necessrios para a adorao. Por isso intermedeia a relao entre o ser humano e seu Deus.

    Para que o sacrifcio ocorra, no basta que o sacrificante e o sacerdote sejam santificados. O lugar do sacrifcio tem que ser santo. No caso dos hebreus, todo sacrifcio era realizado em um s lugar, santificado pela presena de Jeov:

    E me faro um santurio, e habitarei no meio deles. Conforme a tudo o que eu te mostrar para modelo do tabernculo, e para modelo de todos os seus vasos, assim mesmo o fareis (Ex., 25.8,9).

    O sacrifcio precisa ter continuidade, no deve ser interrompido; deve seguir a ordem do ritual. Se as foras que esto em ao no forem dirigidas no sentido prescrito, podem se voltar contra o sacrificante e o sacerdote. preciso que o sacrificante e o sacerdote creiam no resultado automtico do sacrifcio para que possam se beneficiar de seus efeitos. O ato religioso deve ser feito interligado ao pensamento religioso, isto , atitude interna deve ser igual a atitude externa.

    Todo sacrifcio precisa de uma vtima. s vezes ela sagrada pelo seu prprio nascimento. Em geral so necessrios alguns ritos para coloc-la no estado religioso, isto pass-la do estado profano ao sagrado. A vtima no pode ter defeito, nem doena, nem enfermidade. Ela deve ter a idade, o sexo e a cor, de acordo com os efeitos que se pretenda produzir (de acordo com o que prescreve os ritos).

    Os ritos do assassnio da vtima (diante do altar ou lugar sagrado) so variveis. Mas os ritos devem ser seguidos risca:

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  • [...] que pelo assassnio, libertava-se uma fora ambgua, ou antes cega, temvel pelo prprio fato de ser uma fora era pois necessrio limit-la, dirigi-la e dom-la. Era para isso que serviam os ritos (HUBERT; MAUSS , p. 173).

    Pela destruio da vtima (imolao sobre o altar ou queimando-a), o ato essencial do sacrifcio estava realizado.

    Os ritos eram mais simples quando em lugar de um animal, ofereciam-se farinhas ou bolos. A oblao era lanada inteira ou em partes ao fogo.

    Havia tambm um cuidado extremo com os restos da vtima, que eram tratados com respeito religioso. Em relao carne que restava, faziam-se partilhas. O sacerdote tirava a sua parte que era divina:

    Mas quando os restos da vtima no eram totalmente atribudos nem aos deuses nem aos demnios, eram utilizados para comunicar aos sacrificantes ou aos objetos do sacrifcio as virtudes religiosas que a consagrao sacrifical havia neles suscitado (HUBERT; MAUSS, p. 178).

    Agora a vtima ou seus restos que vai passar ao sacrificante as novas qualidades que adquiriu por causa da consagrao, atravs: da asperso do sangue, aplicao da pele, unes de gordura, do contato dos resduos da cremao etc.

    Embora os rituais sejam diversos: ritos de atribuio aos deuses e os ritos de utilizao pelos homens:

    [...] uns e outros so feitos das mesmas prticas e implicam as mesmas manobras [...]. Encontramos em ambos os lados a asperso do sangue; a aplicao da pele, aqui sobre o altar ou sobre o dolo, l sobre o sacrificante ou os objetos do sacrifcio; a comunho alimentar, fictcia e mtica no que concerne aos deuses, real no que concerne aos homens (HUBERT ; MAUSS, p. 183).

    Ambos os rituais (ritos de atribuio aos deuses e os ritos de utilizao pelo homem), o objetivo fazer com que a fora religiosa, que as consagraes sucessivas fizeram acumular no

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  • objeto sacrificado (a vtima), se comunique com o domnio do religioso (as divindades) e com o profano (o sacrificante):

    Ambos os sistemas de ritos contribuem, cada qual em seu sentido, para estabelecer esta continuidade que nos parece ser, depois desta anlise, um dos caracteres mais notveis do sacrifcio. A vtima o intermedirio pelo qual se estabelece a corrente. Graas a ela, todas as correntes que se encontram no sacrifcio, a unem-se. Todas as foras que para a concorrem, confundem-se (HUBERT; MAUSS, p. 183).

    Terminado o sacrifcio, o grupo de pessoas e coisas que se formou pela sua circunstncia, perde a sua razo de ser, mas precisa ser desfeito lentamente e da mesma forma com que foi criado: ou seja, se os ritos o criaram, s os ritos podem desfaz-lo. Os seres envolvidos no ato do sacrifcio, vo abandonando a religiosidade sacrificial.

    O estado religioso do sacrificante descreve, portanto, uma curva simtrica correspondente a da vtima. Comea por elevar-se progressivamente na esfera do religioso, alcana assim um ponto culminante de onde em seguida torna a descer para o profano (HUBERT; MAUSS, p. 187).

    A finalidade do sacrifcio afetar o estado religioso do sacrificante, que antes do sacrifcio no tem nenhum carter sagrado. o sacrifcio que lhe concede esse carter. A entrada no mundo sagrado deve ser feita com precauo, pois no faz-lo com cuidado pode significar a morte. E aqui d-se um paradoxo: se o objetivo da busca da religiosidade adquirir vida (sal, salvao, sade), no seu trajeto o homem cruza com a morte:

    Uma campainha de ouro, e uma rom outra campainha de ouro, e outra rom, haver nas bordas do manto ao redor; E estar sobre Aro quando ministrar, para que se oua o seu sonido, quando entrar no santurio diante do Senhor e quando sair, para que no morra (Ex., 28.34,35).

    O sacrificante a origem e o fim do rito. O ato religioso comea e acaba com ele. Em todos os tipos de sacrifcio, ao final da cerimnia, a sorte do sacrificante melhorou. Ao comer a coisa

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  • sagrada (onde se julga que o deus reside), o sacrificante absorve-o e possudo por este.

    A virtude vivificante do sacrifcio no est voltada apenas para esse mundo, mas aponta para a vida futura.

    2 O sacrifcio da divindade

    no sacrifcio de uma pessoa divina que a noo do sacrifcio chega mais alta expresso. Encontramos na Histria das Religies deuses que desapareceram da Terra, porque foram assassinados pelo homem.

    Eliade afirma (2004, p.91): Assassinada in illo tempore, a divindade sobrevive nos ritos mediante os quais o assassnio periodicamente reatualizado.

    Em toda a pscoa a morte e a ressureio de Cristo so revividos dentro dos templos, nas procisses, em peas teatrais ou filmes.

    Para que um deus possa descer ao ponto de assumir o papel de vtima, necessrio que haja alguma afinidade entre a sua natureza e a da vtima. O Cristo o Deus que se fez carne e habitou entre os homens. Fez-se carne (nascendo de uma mulher escolhida especialmente para esse fim). Dessa forma, como afirma o texto sagrado: o pecado entrou no mundo por um homem (Ado) e deveria sair dele por um homem sem pecado (Jesus Cristo): Morte em Ado, Vida em Cristo). Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte, assim tambm a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram. " (Rm., 5.12 - verso NVI)

    Para que ele venha submeter-se destruio sacrificial preciso que tenha sua origem no prprio sacrifcio. Os cordeiros usados no sacrifcio aarnico prefiguravam o Messias, o Cordeiro que tira o pecado do mundo: No dia seguinte, Joo viu Jesus aproximando-se e disse: Vejam! o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! (Jo., 1.29).

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  • Para que este sacrificio se torne uma realidade, no basta que o deus haja sado da vtima: preciso que tenha a sua natureza divina no momento do sacrifcio. Segundo Mauss, morte do deus freqentemente um suicdio. Mas no caso do Messias, Ele no cometeu suicdio mas se entregou para morrer.

    O deus que se sacrifica, d-se sem retorno. O Cristo era a vtima (o Cordeiro), o sacerdote (porque tinha o conhecimento do sagrado suficiente para que a sua morte eliminasse completamente a necessidade de outros sacrifcios. Aqui no h intermedirio. Assim com a sua morte e ressureio, o Cristo instaurou uma nova Aliana, apresentando-se como O caminho para Deus.

    Mesmo que para as pessoas que esto fora do sistema religioso, o sacrifcio e todos os seus ritos, paream iluso. As noes religiosas, por que nelas se acredita, existem: objetivamente como fatos sociais; as coisas sagradas so coisas sociais.

    Para que o sacrifcio seja bem fundado:

    1) preciso que exista fora do sacrificante coisas que o faam sair de si mesmo e s quais ele deve aquilo que sacrifica;

    2) necessrio que estas coisas estejam perto dele para que possa entrar em contato com elas; encontrar a a fora e a segurana que tem necessidade e tirar de seu contato o beneficio que espera de seus ritos.

    3 A unidade do sistema sacrificial

    De todos os processos sacrificais, os mais gerais, os mais ricos em elementos que se podem alcanar so de sacralizao.

    Em todo o sacrifcio de dessacralizao, por mais puro que possa ser, encontramos sempre uma sacralizao da vtima. E em todo sacrifcio da sacralizao h sempre uma dessacralizao, pois se isso no ocorrer os restos da vtima no podem ser tocados.

    O sacrifcio depende dos cultos teriomrficos (que tm forma de animal), pois a alma do animal enviada a juntar-se no cu aos arqutipos dos animais e a manter a a perpetuidade da espcie.

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  • um sacrifcio de resgate, pois a vtima substitui o sacrificante consagrando-o e colocando sob o domnio da divindade.

    O sacrifcio pode desenvolver uma grande variedade de funes (expiao pelo pecado, aes de graa etc).

    A unidade do sacrifcio aparece sob a forma de um processo que consiste em estabelecer uma comunicao entre o mundo sagrado e o mundo profano, atravs de uma vtima (de uma coisa destruda durante a cerimnia).

    O sacrifcio d uma natureza religiosa a vtima.

    Uma vez consumado o sacrifcio, ele ganha uma certa autonomia, da sua energia se desprendem feitos que escapam a finalidade estrita que o sacrificante consigna ao rito: o rito pe em movimento o conjunto das coisas sagradas s quais se dirige.

    Para Mauss o sacrifcio uma ramificao especial do sistema de consagrao; nele ocorre a relao do profano com o sagrado, que fonte de vida e d as condies da existncia ao sacrificante.

    A aproximao do profano com o sagrado, necessita de intermedirios. O principal a vtima, mas o sacerdote uma figura importante por conhecer os ritos, isto , a tcnica que d segurana ao sacrificante em sua aproximao com o sagrado.

    Concluso

    No h sacrifcio onde no intervenha uma idia de resgate.

    Em todo sacrifcio h um ato de abnegao pois o sacrificante se priva e se d. O sacrifcio um ato til, uma obrigao: quem d recebe. Ou seja ao oferecer algo para a divindade, o religioso espera receber tambm alguma coisa dela: uma beno, a sade. E no nosso mundo ps-moderno essa relao vem tomando contornos de uma negociao com o sagrado. Pois o ser humano pensa o sagrado a partir das relaes que ele estabelece com o seu mundo. Em nosso mundo capitalista e globalizado, o ser humano vale por

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  • ser consumidor ou no. H cultos onde o sacrifcio se transforma na oferta (em dinheiro) que o homem religioso deixa no templo assim o indivduo vai ao culto no para adorar a Deus, mas vai em busca de uma soluo para o seu problema. Neste caso o fiel desaparece e em seu lugar surge o consumidor do sagrado. Mauss j afirmava que o sacrifcio tem alguma coisa de contratual. Mas no sc. XXI j existe a relao em que o sacrifcio se transforma em investimento no sagrado. Assim pessoas buscam supermercados da f, onde negociam o sagrado no querem uma relao profunda com a divindade, esperam que a divindade lhes d o que precisam sade, emprego, um carro novo etc. E os supermercados da f nem pregam mais a salvao e sim a libertao dos demnios, do mau-olhado, da misria etc.

    Para que o sagrado subsista necessrio que lhe d a sua parte (e dos profanos que isto vem).

    Qual a funo do sacrifcio? Para Mauss uma funo social porque o sacrifcio se refere as coisas sociais. Ele renova periodicamente a coletividade (representada pelo seu deus): pois reveste de uma autoridade social, seus votos, seus juramentos, seus matrimnios. E cercam de uma aura de santidade os campos que lavram, as casas que construram, as lojas, fbricas e outros meios de produo que o sacerdote sacraliza com a sua beno ou a gua benta.

    Atravs do sacrifcio restabelecem os equilbrios perturbados: pela expiao (resgatam-se da maldio social), o homem passa a viver em paz com os seus (relao horizontal) e com Deus (relao vertical).

    Referncias

    ALLEN, Clifton J. Comentrio bblico: Velho Testamento. Rio de Janeiro: Junta de Educao Religiosa e Publicaes, 1987. BBLIA de Estudo Vida. 2. impresso. So Paulo: Ed Vida, 1999. BIBLOS. Bblia nova verso internacional (NVI). So Paulo: Vida Nova, 2005.1 CD-ROM.Windows XP. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6.ed. So Paulo: Perspectiva, 2004.

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  • ______. O sagrado e o profano: a essncia das religies. Lisboa: Editora Livros do Brasil. 1972. HERBERT; MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. So Paulo: Perspectiva, 1981. PIXLEY, George V. O xodo. So Paulo: Paulinas, 1987.

    *Jair Gomes de Santana Licenciado em Histria pela UFPE, Especializao em Histria de Pernambuco, pela UFPE, Mestrando em Cincias da Religio, pela UNICAP.

    Endereo para contato: e-mail: [email protected], [email protected]

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    Jair Gomes de Santana*2 O sacrifcio da divindade3 A unidade do sistema sacrificialConclusoReferncias