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índice

Incluímos nesta edição da Crítica, além de uma secção sobre as sanções (textos escritos antes das

decisões europeias) e outra sobre o Brexit, que são dois dos temas de actualidade que têm dominado

a informação e o debate, diversos estudos inéditos e propostas (sobre os transportes na área metro-

politana da capital, por Carlos Gaivoto, sobre a ADSE, por Eugénio Rosa) e análises de conceitos (a

questão da definição e medida dos “serviços”, por Mário Bairrada).

Incluímos ainda três estudos. O primeiro é sobre a “Europa alemã”, talvez um dos temas mais difíceis

para os analistas, e certamente para quem quer compreender a evolução europeia dos dias de hoje –

e do nosso futuro. Viriato Soromenho Marques dedicou-se a esse estudo, que aqui publicamos.

Em segundo lugar, iniciamos a publicação de trabalhos sobre ecologia e economia com um texto

sobre a relação entre os dois saberes e, finalmente, publicamos uma análise detalhada por João Ca-

margo sobre os contratos, os objectivos, os contextos e a estratégia da exploração do petróleo em

Portugal.

Francisco Louçã

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índice

1. SançõeSA Pressão, Pedro Lains ..................................................................................................... 5

Os sancionalistas, Mariana Mortágua .............................................................................. 6

Fracasso da austeridade e camaleões políticos, Nuno Serra ...................................... 7

De onde vêm as sanções e como defender-nos delas?, José Soeiro ......................... 9

2.BrexitAs leituras eleitorais simplistas chegam para explicar o Brexit?, Nuno Serra ........ 12

Brexit: A imigração é tudo menos um assunto menor, João Ramos de Almeida ..... 14

A União Europeia é um projecto falhado, Francisco Louçã ........................................ 16

A democracia, o projecto europeu e o Brexit, Ricardo Cabral ................................... 17

Os despojos do Brexit, Pedro Adão e Silva .................................................................. 19

3. notaSInvestimento insuficiente e destruição da capacidade produtiva nacional: riscos de continuação se o Tratado Orçamental não for alterado, Eugénio Rosa .............. 21

Olhe-se para o gráfico, João Ramos de Almeida .......................................................... 25

A gestão privada da TAP, Ricardo Cabral ...................................................................... 27

4. conceitoSServiços e crítica económica, Mário Bairrada .............................................................. 29

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índice

5. ProPoStaS: Por que razão a ADSE deverá ser transformada num instituto público de gestão participada com controlo efetivo dos beneficiários e não numa Mútua, Eugénio Rosa ................................................................................. 34

Transportes: automóveis e transportes públicos na Área Metropolitana de Lisboa, Carlos Gaivoto ....................................................... 44

6. eStudoSApogeu e queda da “Europa alemã”, Viriato Soromenho Marques ........................... 59

Clima vs. Economia, Sinan Eden .................................................................................. 69

Portugal e o Petróleo: uma revisão do que está em jogo, João Camargo....................................................... 75

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a pressão

Pedro lainS

Qualquer pessoa com dois dedos de testa económica sabe que o que o Governo português está a fazer vai dar resultados positivos no défice. Controlar o défice público nunca foi um problema, excepto em situações de grave crise financeira internacional. É simples e claro. A austeridade é estúpida porque é mesmo assim. Chega, comprime a economia, reduz o défice externo e dificulta a correcção do défice público, mas, quando é retirada, descomprime a eco-nomia e, por essa via, etc., etc. Daí a pressão. Caso contrário, para quê fazê-la? Se tivessem a certeza de que as coisas irão dar mal resultado, ficariam calados. Essa pressão é clara. Não foi por acaso que Schauble falou depois de o FMI ter estado em Portugal e que o FMI esteve em Portugal na véspera de uma cimeira europeia em que Schauble iria falar. Que esta gente sem escrúpulos faça disto, ainda se percebe, pois eles são só isso. Que essa gente tenha colabo-radores internos solícitos, nas televisões e nos jornais, já se percebe menos. Entretanto, deve ser quase desesperante governar assim, sob indevidas pressões, de agentes externos, de co-laboradores internos, mas tem de ser. E deve ser muito difícil para as pessoas, que podem não perceber bem o que se está a passar, serem assustadas quotidianamente desta maneira. Que país é este? Ponham a mão na consciência. Muitos dos colaboradores internos porventura não saberão o que estão a fazer. Então, perguntem ao vizinho de baixo, ao homem do café, que eles talvez expliquem. Quando é que isto vai acabar? Quando é que Portugal vai dar a voz que deve dar nesta Europa todos os dias mais um bocado de pantanas. A conversa sobre as “mul-tas”, sobre outro “resgate”, sobre o “corte dos fundos estruturais” são, simplesmente, conversas de perseguição, de pressão, de gente que tem determinados intuitos políticos, de indevido controle político. Pense-se nisso. E não se colabore.

artigo PuBlicado originalmente em:

httP://PedrolainS.tyPePad.com/PedrolainS/2016/06/a-PreSS%c3%a3o.html

SANçõES

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01. as sanções

os sancionalistas

mariana mortágua

Os sancionalistas usam um pin da bandeira portuguesa na lapela. Quando um governante alemão mente em público para atiçar os especuladores contra Portugal, o sancionalista com-preende. Quando um eurocrata ataca a maioria parlamentar portuguesa para desviar as aten-ções da crise do Deutsche Bank, o sancionalista confirma as suas preocupações e diz, como Maria Luís Albuquerque: “Se eu fosse ministra, não havia sanções”. Quando um responsável eleito pelo povo se insurge contra a ingerência de Bruxelas em opções da democracia portu-guesa, o sancionalista franze as sobrancelhas e, como Passos Coelho, condena quem “usa tese do inimigo externo” contra os nossos protetores de Berlim.

Os sancionalistas adoram as palavras “credibilidade” e “compromisso”. Quando um organismo não eleito e sem existência prevista em qualquer tratado, o Eurogrupo, recusa dados oficiais e pretende ditar alterações de orientação económica de um Governo legítimo, o sancionalista explica que Portugal tem um problema de “credibilidade”. Quando um banqueiro do centro da Europa, depois de salvar mais um grande banco europeu, explica que “regras são regras” e “todos temos de cumprir os nossos compromissos”, o sancionalista sorri e recorda o tempo em que escrevia Orçamentos do Estado violando compromissos constitucionais e contratos sociais (e, ainda assim, sem cumprir as metas do défice).

Os sancionalistas dizem que não atiram as culpas para os outros. Mas não aceitam que as san-ções da Comissão Europeia às contas portuguesas entre 2013 e 2015 se baseiam nos anos da sua governação. Para sacudir a água do capote, aliam-se à estratégia europeia para denegrir o país e chantagear o atual Governo.

Os sancionalistas falam sempre em nome do interesse nacional. Só não percebem, ou fingem não perceber, que interesse nacional é um país poder escolher o seu Governo e as suas po-líticas, sem ter que ser sujeito a pressões, ameaças e humilhações. Aceitar a chantagem, par-ticipar nela, não é patriotismo, é colaboracionismo. Assim são os nossos sancionalistas. Mas sempre, é claro, de pin com a bandeira portuguesa na lapela.

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Fracasso da austeridade e camaleões políticos

nuno Serra

1. Março 2015: Em entrevista à revista económica japonesa Nikkei, Passos Coelho assegurava que Portugal iria ter um défice de 2,7% em 2015 (inferior aos 3,2% previstos pelo FMI). Meses mais tarde, em julho, o ex-primeiro Ministro reforça a ideia, considerando ser «uma questão fundamental ficar com um défice claramente abaixo dos 3 por cento» e assegurando que «todos os indicadores» apontam para esse resultado.

2. Abril 2016: Assunção Cristas desvaloriza a confirmação (Eurostat) de que Portugal termina 2015 com um défice de 4,4%, sublinhando que «o que é relevante é saber qual é a análise que a CE faz destes dados, quando se pronunciar em maio sobre a questão de sair ou não sair do procedi-mento por défice excessivo», sobretudo para saber «em que medida o efeito extraordinário Banif, (...) permite [a Portugal] estar com um défice de 3%».

3. Maio 2016: Nas projeções económicas de Primavera, a Comissão Europeia assinala que - excluindo o efeito da medida de resolução aplicada ao Banif em dezembro - o défice orçamen-tal de Portugal é de 3,2%, valor que serve de base para que Bruxelas decida se encerra ou não o procedimento por défice excessivo relativo 2015, de acordo com as regras europeias.

4. Maio 2016: Maria Luís Albuquerque escreve a Valdis Dombrovskis, vice-presidente da CE, reconhecendo que «Portugal não conseguiu terminar 2015 com um défice até 3%», devido à «re-solução do Banif» (um dos problemas varridos para debaixo do tapete, de modo a garantir a «saída limpa»). Sem isso, «o défice teria ficado nos 3%, permitindo a saída do procedimento por défice excessivo, e nenhumas sanções seriam consideradas».

5. Maio 2016: Pedro Passos Coelho corrobora a opinião da ex-ministra das Finanças, afirman-do não haver «nenhuma razão para agravar o tratamento da Comissão Europeia para com Portu-gal, dentro do procedimento por défice excessivo, na medida em que, fora o que foi contabilizado por causa do Banif, nós não tivemos um défice acima de 3% em termos nominais, que é isso que interessa.»

6. Junho 2016: Maria Luís Albuquerque tenta relativizar o valor do défice de 3,2%, argumen-tando que os 0,2% (acima dos 3%) dizem respeito a uma «questão distinta» (relacionada com a avaliação, «em termos de regras estatísticas», das medidas de natureza permanente ou tempo-rária). Ou seja, um critério «que não é aquele que releva para efeitos de procedimento de défices excessivos», assegura Maria Luís.

7. Junho 2016: Pedro Passos Coelho considera «incompreensível que haja sanções», acres-centando que «no dia em que for alvo de sanções, outros terão de ser [também], a começar pela

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01. as sanções

França». «Porque é que Portugal teria de ser penalizado e França [que fechou 2015 com défice de 3,6%] ficar fora disso? Seria incompreensível, seria uma vergonha. (...) Não precisamos de mendi-gar apoio para que livrem Portugal de sanções que não merece».

8. Junho 2016: Confrontado com as palavras de Passos Coelho, Valdis Dombrovskis explica a diferença entre Portugal e França. «Quanto à França, os técnicos da Comissão concluíram que houve uma tomada de medidas efetivas» para reduzir o défice. França «também falhou a meta nominal [de 2015], mas não houve falta de medidas efetivas. É por isso que foi suspenso o agrava-mento do procedimento por défices excessivos», explicou.

9. Junho 2016: Wolfgang Schäuble deixa no ar a ideia de que Portugal pode vir a pedir um segundo resgate, por estar «a cometer um erro grave, se não respeitar os compromissos assumi-dos». Klaus Regling, presidente do Mecanismo Europeu de Estabilidade, reforça a ideia, dizen-do estar «mais preocupado com a economia portuguesa do que com a saída do Reino Unido da União Europeia». A direita passa a ter um incentivo para transformar as sanções de 2015 numa espécie de «punição preventiva» para 2016.

10. Julho 2016: Perante a possibilidade de aplicação de sanções por défice excessivo, Maria Luís Albuquerque considera que o atual Governo «pode e deve evitar quaisquer sanções eco-nómicas e de suspensão dos fundos comunitários» e que «Bruxelas está preocupada com o atual Governo e com esta maioria», para acrescentar que «se ainda fosse ministra das Finanças, esta questão não se estaria a colocar».

11. Julho 2016: Pedro Passos Coelho adere também à nova «narrativa», na qual as san-ções se referem a 2016 e não a 2015: «não vale a pena o Governo vir com desculpas esfarra-padas sobre o passado porque aquilo que será importante para evitar sanções é a garantia de que em Portugal as nossas metas serão cumpridas este ano. (...) Se essa garantia existir eu não acredito que haja sanções. E isso depende, no essencial, do Governo e da maioria que o apoia». 12. Julho 2016: O Comissário europeu para a Economia Digital, o alemão Günther Oettinger, esclarece a questão do período temporal em causa: «ambos os países não conseguiram cumprir os compromissos em 2015 e a Comissão Europeia, para defender a sua credibilidade, deve aprovar sanções contra Espanha e Portugal».

13. Hoje: Pierre Moscovici, Comissário europeu dos Assuntos Económicos, anunciou que o colégio de comissários procedeu a uma primeira discussão sobre a «situação orçamental de Espanha e Portugal de 2013 a 2015», comprometendo-se a comunicar e explicar, «muito em breve, (...) todos os detalhes da decisão nessa fase, ou seja, quando as decisões forem tomadas». A tentativa de associar as sanções ao atual governo, às metas para 2016 ou à necessidade de adoção de medidas adicionais, cai definitivamente por terra.

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/07/fracasso-da-austeridade-e-camaleoes.html

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de onde vêm as sanções e como defender-nos delas?

joSé Soeiro

O debate sobre as sanções de que Portugal pode ser vítima é um dos mais importantes do atual período. Com o objetivo de castigar qualquer orientação minimamente divergente da lógica austeritária, a Comissão pondera aplicar sanções ao nosso país, invocando os maus re-sultados das políticas (impostas pela própria Comissão) aplicadas pelo anterior Governo. Tudo isto é estapafúrdio, mas é o que está em marcha. É esclarecedor sobre a natureza da União Europeia realmente existente: um arranjo institucional autoritário, que tem ódio à escolha de-mocrática e que utiliza o Tratado Orçamental para proibir as alternativas económicas ao em-pobrecimento da periferia europeia.

O aspeto interessante é que parece haver um consenso em Portugal contra as sanções. A ava-liar pelas diferentes declarações dos responsáveis políticos portugueses, está toda a gente contra, no governo, no parlamento e na presidência. Mas se é assim, ficam duas perguntas indispensáveis. A primeira é quem é que tornou possíveis as sanções. A segunda é sobre o que fazer se, por absurdo, a Comissão Europeia as impuser ao nosso país.

As sanções só são possíveis porque os diferentes Governos europeus, incluindo o português, e os deputados europeus, incluindo os portugueses, aprovaram as regras que as tornam pos-síveis. Essas regras chamam-se Tratado Orçamental e as respetivas regulamentações. Esse é o desastre europeu. Que Schaüble rosne contra o nosso país, como se fosse um imperador a pra-guejar contra os seus súbditos, e que se alie aos mercados financeiros para que se vinguem da atual solução parlamentar que temos, é uma demonstração luminosa do carácter colonial das relações que hoje se estabelecem dentro da União Europeia. Mas os Tratados e os seus regula-mentos não são uma decisão solitária do ministro alemão. Foram feitas em nosso nome, com o consentimento dos nossos governos e representantes europeus, e estabeleceram normas tão arbitrárias como as que definem que, mesmo que um país tenha um défice abaixo dos 3%, possa na mesma ser punido se a Comissão entender que a “trajetória” de política orçamental traçada não responde aos objetivos do “ajustamento”. Ou seja, a regra é não haver regra, a não ser a escolha política de quem deve ser punido e perseguido. Não por acaso, quando Juncker, o presidente da Comissão, foi perguntado sobre as sanções à França, respondeu imediatamen-te que, independentemente do défice francês, a França nunca teria sanções porque “a França é a França”.

Isto leva-nos à segunda pergunta. O que devemos fazer caso o autoritarismo e a arbitrariedade das instituições europeias se vire contra nós, porque Portugal “é apenas Portugal”, como se virou no passado contra outros países? Se há um consenso sobre a injustiça e a ilegitimidade das sanções, então convém começar a preparar a resposta à sua aplicação. É aqui que, regra

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01. as sanções

geral, se faz silêncio. Marcelo é contra as sanções. Se elas forem aplicadas, o que fará? Costa é contra as sanções. Se elas forem aplicadas, o que fará? E a oposição de Direita, que puxa o lus-tro ao pin como se falássemos da seleção, o que fará se as regras que aprovaram no Parlamen-to europeu e que aprovaram no Conselho Europeu enquanto eram governo, forem mesmo aplicadas? Ninguém sabe a resposta. Mas a única coisa que se tem ouvido é que não se pode falar nisso, porque “a União Europeia é a União Europeia”, e ai de quem a ponha em causa, fim de conversa.

Sucede que esta União Europeia está em desagregação. Desagregação económica e social, resultado das políticas de austeridade que foram blindadas pelas regras dos Tratados. Desa-gregação humanitária e moral pelo modo racista como as instituições europeias geriram a crise dos refugiados, reforçando as fronteiras, a repressão, o arame farpado e deportando os migrantes para a Turquia. Em desagregação tout court com a recente decisão do Reino Unido de abandonar a União Europeia.

Na verdade, as instituições europeias têm vindo a destruir a Europa e é duvidoso que seja hoje possível alguém defender os direitos humanos e a Europa como projeto de paz sem se demar-car da União enquanto projeto autoritário, que fecha fronteiras, tutela democracias e destrói as conquistas sociais.

A pergunta é incontornável: se as sanções são injustas, como impedi-las? Só me ocorre uma resposta: desvinculando-nos das regras que permitem que elas existam, isto é, do Tratado Or-çamental. O Tratado Orçamental é uma ofensa à Europa e é um assalto ao tão propalado “mo-delo social europeu”, que assentava num compromisso baseado na regulação do trabalho, em serviços públicos universais e num sistema de proteção social para garantir mínimos de digni-dade que têm sido aniquilados. Sermos contra as sanções e querermos manter-nos amarrados às suas regras é fazer da indignação contra elas um grito vazio ou um biombo populista para descartar responsabilidades, evitando uma escolha concreta e difícil e substituindo-a por um discurso patriótico vazio e de ocasião.

Daí a minha dificuldade em compreender alguns espantos sobre um referendo ao Tratado. Faria sentido tomar uma decisão tão importante como a desvinculação de um Tratado desta natureza sem um debate público forte e uma consulta democrática? Já sei que, nos dias que correm, nos querem encurralar na falsa dicotomia segundo a qual estaríamos condenados a escolher entre a União Europeia da senhora Merkel e a anti-União Europeia da senhora Le Pen e da extrema-direita. Pela minha parte, não caio nessa armadilha e seria grave que aqueles que defendem os direitos humanos e a democracia o fizessem. Hoje, é impossível defender o primado da soberania democrática e uma ideia generosa de Europa sem contrapor esses princípios à União Europeia que realmente existe. Se a esquerda se deixar cair naquela falsa dicotomia, condena-se a si própria à impotência.

Não, não estamos condenados a ter de escolher entre a escravatura europeia ou a xenofobia mais miserável. Não, não podemos ter como único projeto resmungar cá dentro para nos re-

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01. a

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baixarmos em Bruxelas. Há muita gente que quer viver de cabeça levantada. São portugueses e não só. Comecemos por erguer-nos nós contra a humilhação e a arbitrariedade que querem impor-nos e logo veremos que, ao nosso lado, e em muitos países, na Europa e fora dela, há muito quem queira também levantar-se connosco.

artigo PuBlicado originalmente em: http://expresso.sapo.pt/blogues/jose-soeiro/2016-07-01-de-onde-vem-as-sancoes-e-como-defender-nos-delas-

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02. brexit

as leituras eleitorais simplistas chegam para explicar o Brexit?

nuno Serra

1. Assim que foram conhecidos os resultados do referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia instalou-se uma narrativa que tratou de carregar nas tintas do nacionalismo, da xenofobia e do racismo (apresentados como as principais motivações do voto «Leave» e os grandes vencedores do referendo), sendo amplamente suavizado o significado político--económico dessa escolha (no que respeita à profunda desilusão, mal-estar e descrença no projeto europeu e na governação europeia).

2. Essa narrativa sobre as razões que conduziram à vitória do «Leave» parecia encontrar su-porte sociológico na análise dos resultados a partir de variáveis como a idade, o nível de instrução ou as diferenças entre voto urbano e voto rural. Nesses termos (como o João Ro-drigues já assinalou neste blogue), o Brexit foi interpretado como a escolha de um eleitora-do envelhecido, desinformado, nacionalista, racista e retrógrado, provindo o Bremain de um eleitorado jovem, esclarecido, cosmopolita, adepto do multiculturalismo e progressista. 3. Sucede, contudo, que um inquérito muito difundido nas redes sociais («How the United King-dom voted on Thursday... and why») desaconselha leituras eleitorais do referendo demasiado simplistas e lineares. Nessa análise, em vez de se tentar deduzir a motivação do voto a partir da sua distribuição segundo a idade, o contexto de vida ou o nível de escolaridade, colocou-se de modo muito direto a questão que verdadeiramente importa: «por que razão votou como votou?». E eis que a «narrativa xenófoba», nos termos em que foi formulada, perde aderência à realidade:

BRExit

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02. b

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4. De facto, para metade (49%) dos eleitores do «Leave», a principal razão para votar Bre-xit decorre da perda de soberania política no contexto da pertença à UE. Um argumen-to bastante mais relevante que o da imigração, associado a apenas um terço desses elei-tores (e não necessariamente relacionado com sentimentos xenófobos). Por seu turno, constata-se que a parcela mais relevante (43%) dos votantes no «Remain» não é pro-priamente entusiasta da UE. Apenas estima que os riscos e impactos decorrentes da saí-da são superiores aos da permanência. E que, para 31% dos apoiantes do «Remain», sair significa abdicar da situação de privilégio que o Reino Unido tem na UE, onde benefi-cia do acesso ao mercado único sem ter que submeter a Schengen nem às regras do Euro. 5. Quer isto dizer que a questão da imigração não é relevante? Não, não quer. Não só é relevante como é indissociável, para o melhor e para o pior, do próprio «proces-so europeu», nos moldes absolutamente trágicos em que o mesmo tem sido desenha-do e conduzido, como de resto o João Ramos de Almeida já aqui assinalou. O que não se pode é agitar a questão da imigração (e da sua vertente xenófoba) como sendo a expli-cação essencial do resultado do referendo e muito menos fazê-lo para afastar os olha-res e dissociar esse resultado do desastre europeu, no intuito de proteger e alimentar um otimismo cada vez mais infundado sobre a capacidade de a Europa se regenerar. 6. De facto, quando raspamos o «verniz sociológico» simplista (o tal das linearidades entre voto jovem e multiculturalismo ou entre voto grisalho e aversão aos imigrantes, por exemplo), surge uma teia de questões bastante mais complexa e que se presta pouco a leituras intui-tivas. Um idoso que vota a favor do «Leave» tanto o pode fazer por considerar que a Europa deixou de constituir um espaço de internacionalismo progressista e solidário, como o pode fazer por um simples nacionalismo saudosista e xenófobo. Tal como um jovem tanto pode ter votado «Remain» porque continua a acreditar no projeto europeu, como o fazer apenas por

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02. brexit

não conseguir conceber um enquadramento diferente para a sua vida quotidiana (apesar de reconhecer o fracasso europeu e os danos que o mesmo produz). Como lembrava há uns dias o João Rodrigues, nacionalismos há muitos (e internacionalismos também).

artigo PuBlicado originalmente em:

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/06/as-leituras-eleitorais-simplistas.html

a imigração é tudo menos um assunto menor

nuno Serra

Dê-se de barato que foi o tema da imigração que motivou o recente terramoto no Reino Unido e que se irá propagar pela União Europeia.

Não é por acaso que os povos migram. Cada caso é uma história, mas talvez se possa olhar para as grandes linhas. Na massa, a imigração é sempre a válvula de escape de um sistema desequilibrado. Seja pela guerra, seja pelas diferenças de condições económicas e sociais. Os números dos gráficos seguintes, juntamente com mais informação, podem ser encontrados no último boletim estatístico sobre os movimentos migratórios no Reino Unido, divulgado pelo organismo estatístico oficial britânico.

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02. b

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Portanto:

1) Não parece ter sido a imigração de fora da UE que está a inundar o Reino Unido. Essa parece estar em recuo desde 2005 e parece estar mais ou menos estabilizada desde 2013;

2) a que está a subir - desde 2012 - é precisamente a imigração que vem da União Europeia.

Olhemos, mais em pormenor:

Ora:

1) A emigração que está a subir é a que vem da Bulgária e Roménia;

2) mas sobretudo dos países de UE15 - Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Ale-manha, Grécia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Irlanda, Grécia, Suécia e Reino Unido (embora se exclua esse grupo). E este grupo U15 tem estado a crescer desde 2012. Em 2015, representavam quase 50% da imigração da UE.

Algum sugestão para esse facto?

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02. brexit

Sim, claro. É por “trabalho” que se está a verificar a subida de imigração. Mas a minha pergunta era mais qual a razão porque há mais pessoas da União Europeia a procurar trabalho no Reino Unido?

Pois, lá teremos de voltar a falar de todo o edifício da política seguida desde o rescaldo da crise económica de 2007/8 e que adoptou aquela teoria de que a austeridade iria provocar um mi-lagre económico na União Europeia.

De facto, o milagre já começou. Seguem-se os próximos dentro de momentos.

artigo PuBlicado originalmente em: http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/06/a-imigracao-e-tudo-menos-um-assunto.html

a união europeia é um projecto falhado

FranciSco louçã

Enganei-me na previsão sobre o resultado do referendo, pois admiti que a morte de Jo Cox tinha invertido as emoções que concluiriam uma campanha povoada de demagogia contra os imigrantes (dos dois lados, dos chefes do Brexit sugerindo a xenofobia e dos chefes do Remain negociando com Bruxelas a restrição dos direitos dos cidadãos europeus imigrados no Reino Unido).

Agora, contados os votos, só se pode concluir que, no argumento e na preparação para o futu-ro, o Reino Unido não sabe para onde vai – mas rejeita continuar numa União que não vai para lado nenhum. Falhou a aventura de Cameron, que foi apoiada a contragosto pelas autoridades europeias, mas a Escócia pode a partir de hoje escolher ser independente e a Irlanda pode es-colher unificar-se, pelo menos duas consequências merecidas. Na Europa, tudo mau: falharam os subterfúgios, falhou a interpretação dos tratados a la carte, falhou o medo dos grandes mas cresce o medo dos pequenos.

A UE não tinha mais nada para oferecer se não esse medo, foi a esse ponto que caiu. E os seus líderes sempre pensaram que bastaria. Não perceberam – será desta? – que perderam todos os referendos importantes até agora: sobre a Constituição Europeia, sobre tratados, agora sobre a própria pertença e logo na segunda maior economia da União. Quando aceitam consultar os povos, momento raro, et pour cause, arriscam-se a perder e isso diz tudo sobre o que tem vindo a ser a “construção europeia”.

O choque chegou hoje. Agora, liquidez para os mercados financeiros, negociação relâmpago

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02. b

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com o Reino Unido sobre as condições de saída, quais regras de tratados (que implicariam um processo até dois anos, com votos do parlamento europeu e acordo dos outros governos) e o discurso de sempre para quem está: aguenta, aguenta.

Terão os líderes europeus a tentação de correr em frente, nomear um ministro das finanças, es-quartejar os orçamentos nacionais, fazer do euro o santo e a senha da concentração de pode-res, normalizar as políticas neoliberais no mercado de trabalho e na segurança social? Hollan-de, um político da craveira de Cameron, acha que Paris vale bem a missa de uma proibição do direito de manifestação para impor essa visão sobre o emprego. E, se isto é Hollande, então Merkel decidirá o que quer pois quem manda, manda. E assim vai a liderança europeia na sua diversidade uniforme.

Lembra-se de quando os socialistas defendiam o pleno emprego? Esqueça. Os socialistas fran-ceses agora defendem o fim dos contratos de emprego, à FMI. Um socialista holandês dirige a fronda das sanções contra Portugal e Espanha, à Schauble. Um socialista alemão é o ajudante de Merkel, à Gabriel. E isso esclarece o que podemos vir a ter pela frente: depois da desorienta-ção, a corrida para garantir mais poder aqueles cujo poder está a destruir a Europa.

Para Portugal, mais um susto nas exportações, mas muito mais um susto político. Se e quando vierem as sanções, se a tanto atrevimento chegar a violência das instituições europeias agora imbuídas de um novo espírito de missão desesperada, só poderemos então concluir que a ab-soluta discricionariedade tomou conta da política europeia, que a falta de soberania se paga com a vulnerabilidade da democracia.

O sonho acabou. A União Europeia é um projecto falhado.

artigo PuBlicado originalmente em: http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/06/24/a-uniao-europeia-e-um-projecto-falhado/

a democracia, o Projecto europeu e o “Brexit”

ricardo caBral

“As democracias são raramente destruídas por um choque externo súbito ou por decisões impopulares. O processo é geralmente mais mundano e insidioso. O que acontece é que as sociedades são lentamente drenadas do que as torna democráticas, por um processo gradual de decadência interna e de crescente indiferença, até que de repente nos apercebemos que

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se tornaram em algo diferente, como as constituições republicanas de Atenas ou de Roma ou as cidades-estado italianas do Renascimento.”

Retirado da palestra “Os Limites da Lei”, por Lord Sumptiom, juiz do Supremo Tribunal do Reino Unido, proferida em Kuala Lumpur, a 20 de Novembro de 2013.

Ambrose Evans-Pritchard, colunista do The Telegraph que regularmente escreve sobre temas da (macro)economia da União Europeia e da Zona Euro, em artigo recente, fundamenta o seu sentido de voto no referendo do Brexit.

Defende a saída do Reino Unido da União Europeia sobretudo com base na falta de democra-cia e na falta de respeito pelo Estado de direito que caracteriza as  instituições da União Euro-peia: o referendo Brexit, afirma no título da sua coluna, é acerca da supremacia do parlamento (britânico) e “nada mais”.

Além dos argumentos sobre a falta de legitimidade democrática da União Europeia  invo-cando a citação acima de Lord Sumption, o colunista salienta, em particular, que: nunca nin-guém foi responsabilizado pelas falhas na arquitectura do euro, pela política económica que transformou uma recessão numa depressão e pelo elevado desemprego jovem que assola um “grande arco” da Europa, que nunca ninguém pensou seria de novo possível numa sociedade civilizada.

Critica ainda a forma – um quase coup d’etat – como as instituições de governo da União Europeia substituíram na Grécia e na Itália líderes políticos democraticamente eleitos por tec-nocratas, bem como as cartas secretas que o BCE escreveu a Espanha e a Itália em 2011, chan-tageando esses países e exigindo alterações à lei laboral e à política orçamental.

Afigura-se que a complexidade da governação da União Europeia se tem revelado “excessiva” para as instituições de governo da União Europeia que têm respondido de forma cada vez mais centralizadora, mais autoritária e menos fundamentada. Aparentam não ter a noção nem se interessar pelas consequências das suas decisões nas vidas de milhões dos seus concidadãos.

Por isso a União Europeia, como aponta Evans-Pritchard, está num processo de desintegração que já é dificilmente revertível. Mas é igualmente difícil conceber um regresso aos Estados--Nação exclusivamente preocupados com o interesse nacional e que se degladiam com regu-laridade. Afinal de contas, o passado não volta mais …

artigo PuBlicado originalmente em:

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/06/16/a-democracia-o-projecto-europeu-e-o-brexit/

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os despojos do Brexit

Pedro adão e Silva

1. O Brexit torna evidente uma patologia europeia aguda, cujos sintomas só não via quem não queria, ao mesmo tempo que agudiza as causas da doença.

Durante seis décadas, a construção europeia assentou em pressupostos lineares: a paz traria prosperidade e a prosperidade reforçaria a paz e as democracias liberais. A crise interrompeu este ciclo de otimismo e fez renascer velhos fantasmas: a xenofobia, os egoísmos de base nacional, o desemprego estrutural e a anemia económica. Estas tendências enraizaram-se e traduziram-se em clivagens sociais profundas, com uma natureza nova. Onde antes existia uma “guerra de classes”, ainda assim traduzível pelo sistema partidário, instaurou-se uma “guerra” de novos contornos, marcada pela globalização, entre os de cima e os de baixo. As elites que gerem o sistema e aprofundam a integração e um grupo crescente de excluídos dos benefícios económicos, culturais e sociais deste processo.

Enquanto estilhaçou as clivagens partidárias do Reino Unido do pós-guerra, o referendo britânico funcionou como uma prova dos nove desta tendência. Mas para onde quer que nos viremos na Europa percebemos que os fundamentos estão presentes: uma parte muito significativa da população europeia não acredita na União Europeia e o sistema partidário do pós-guerra não sabe o que fazer com essa descrença. Umas vezes ignora os sinais e é dizimado; noutras, cavalga a onda, cede ao populismo e viola o seu código genético demoliberal.

A consequência imediata do Brexit é, precisamente, abrir a possibilidade de fragmentação política da Europa. Passou a ser possível realizar referendos e um Estado-membro pode negociar a saída. Se, agora, para vacinar a Europa, a UE impuser condições draconianas ao Reino Unido, as consequências económicas e financeiras serão devastadoras; se a UE permitir uma saída suave, as consequências políticas serão trágicas – outros países perderão o receio.

Com a crise económica por resolver, com uma crise financeira prestes a regressar – até com maior intensidade – e com a crise dos refugiados, a Europa só tinha uma saída política: aprofundar a integração e desenhar uma “união mais perfeita”. Mas como a UE é formada por 28 democracias, onde a soberania popular impera, este caminho é, hoje, inviável. A combinação de desemprego estrutural, projeto europeu construído nas costas dos europeus e eleitorados envenenados por retórica populista não permite qualquer veleidade para-federalista.

Dificilmente será possível continuar a falar de uma Europa unida. O Reino Unido terá agora de gerir uma saída de contornos financeiros difíceis de antecipar e que pode fragmentar

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02. brexit

politicamente as ilhas, mas as consequências para uma Europa amarrada de forma ligeira a uma moeda única podem ser igualmente profundas. Se tudo continuar como nos últimos anos, chegará o momento em que teremos a Alemanha a repetir: “nós não somos a França”.

2. Menos escolarizados, mais idosos, com menos rendimentos e residentes em zonas que beneficiaram de fundos comunitários. Como tem sido notado, este é o perfil dos votantes do Brexit. Se o presente repetisse o passado, haveria uma forte probabilidade destes deserdados da globalização votarem à esquerda. Não é o que tem acontecido. É-nos dito que tal acontece porque há uma horda crescente de eleitores que, levados por líderes populistas e campanhas alicerçadas em mitos, estão apreensivos com o futuro e votam de forma errada. No fundo, uma justificação que atualiza o argumento da ‘falsa consciência’, adaptando-o às democracias hipermediatizadas. De novo, as massas alienadas não sabem o que querem ou, iludidas, votam contra os seus interesses de classe.

Um dos equívocos da esquerda nos últimos anos foi pensar que as clivagens políticas radicavam, exclusivamente, em fatores económicos. Mais cedo ou mais tarde, os eleitores, fustigados pela austeridade, votariam nas formações políticas da esquerda tradicional. Não tem sido assim: a mudança nos mapas eleitorais um pouco por toda a Europa (e, já agora, nos EUA) revela transformações na cultura política e nas clivagens sociais que vão para além das explicações materiais. É também isso que explica a desagregação dos partidos do centro e resultados como o do Brexit.

Hoje, vários países caminham para uma situação de orfandade política, em que os partidos hegemónicos se fragmentaram, as condições de governabilidade andam pelas ruas da amargura e as lideranças escasseiam. Uma parte dos eleitorados deixou de confiar nas elites e passou a ignorar os factos por estas propalados.

Faz sentido: desindustrialização, desemprego, e rupturas provocadas pela globalização alimentaram uma nostalgia de um período mitificado em que os cidadãos controlavam os seus destinos. Pelo caminho, a modernidade passou a ser, para muitos, uma ameaça. A erosão da confiança social e uma gestão oportunista da verdade feita pelas elites fizeram o resto. Teorias da conspiração reproduzidas nas redes sociais, corrupção, mentiras nas promessas eleitorais e nos governos (da Guerra do Iraque à política orçamental durante a crise) e sugestões xenófobas repetidas, de forma incessante, por líderes que se querem passar por respeitáveis, e que poucos contrariam, formaram o caldo cultural que nos trouxe até aqui.

Agora, estamos perante uma doença que encontra na desesperança uma alavanca eleitoral. Para mobilizar o voto, já não é necessário elaborar nenhuma promessa de mudança realista e uma parte do eleitorado vota como forma de recusar o que existe e para penalizar o abandono a que foi condenada. As promessas de mudança e de melhoria das condições de vida são, para muitos, apenas mais um exemplo de uma retórica política na qual, por razões fundadas, deixaram de acreditar. O que aconteceu no Reino Unido é apenas o início.

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inveStimento inSuFiciente e deStruição da caPacidade Produ-tiva nacional: riscos de continuação se o tratado orçamental não for alterado

eugénio roSa

O “Brexit” pôs mais uma vez a nu a mentalidade antidemocrática que domina aqueles (muitos deles não eleitos) que se arrogam em senhores da U.E., e que querem decidir o que é bom e o que é mau para os seus povos. Para estes senhores, o 1º ministro inglês, um homem dos seus, comportou-se como um louco ou um irresponsável quando se comprometeu, a contragosto, a realizar um referendo, ou seja, a ouvir o povo britânico sobre a permanência ou não na U.E.. Assim, vai a democracia nesta União Europeia.

Após o povo inglês ter votado maioritariamente pela saída, em pleno parlamento europeu, Junker procurou achincalhar os deputados ingleses e, numa atitude vergonhosa, colocou a sua mão à frente de uma camara para que esta não fotografasse um deputado do Reino Unido e, no mesmo parlamento, ele e os seus acólitos acusaram os que na Inglaterra defenderam a saída de serem antipatriotas. O Portugal News, referia em 1.7.2016 o seguinte: “Funcionários e eurodeputados britânicos queixam-se de estar ser alvo de provocações e intimidação no seu dia a dia em Bruxelas. Graffites, bocas e mal-estar serão consequência do Brexit”. Outra coisa não seria de esperar depois daquele comportamento vergonhoso de Junker e acólitos. Colocaram-se assim ao nível daqueles que na Inglaterra são acusados, como razão, de xenofobia, alimen-tando-a com os seus atos. Portugal, com centenas de milhares imigrantes no Reino Unido não pode deixar de se preocupar e de se opor a estes comportamentos que desacreditam a U.E. O silêncio que se verificou é cúmplice e é revelador de uma mentalidade submissa. E como isto já não fosse suficiente, a seguir, procurando manipular e enganar a opinião pública europeia, muitos media, mesmo em Portugal, alimentaram uma campanha de quem tinha votado pela

NOtAS

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saída eram os velhos, o passado, como estes já não contassem, pois os jovens, o futuro, que-riam continuar na U.E. E isto numa União Europeia, onde mais de 20% dos jovens estão no desemprego (em Portugal 32%), que destrói o seu futuro e dos mais velhos, já que não lhes dá qualquer esperança de terem segurança e um emprego digno

a deStruição da caPacidade Produtiva do PaíS no Período 2012-2015

A destruição da capacidade produtiva do nosso país é mais um exemplo desta Europa de inge-rência que não serve os povos, e que levou os ingleses a votarem maioritariamente pela saída. Não há crescimento económico e desenvolvimento sem investimento e, nomeadamente, sem investimento de qualidade, e este é insuficiente em Portugal com mostram dados do INE.

Quadro 1 – inveStimento PúBlico e inveStimento nacional - 2000/2015

Nos últimos anos, com o aumento da ingerência externa (CE, BCE, FMI, etc.) em Portugal, o investimento realizado no nosso país nem tem sido suficiente para compensar a depreciação do Capital Fixo (maquinas, edifícios, meios de transporte) devido à utilização e ao tempo como mostra o quadro 1. E o percurso tem sido sempre para pior.

Após a adoção do euro em 2002, verificou-se em Portugal uma quebra acentuada do investi-mento liquido (Formação Bruta de Capital Fixo menos Consumo de Capital Fixo) que, entre 2000 e 2007, passou de +16.311 milhões € para +11.203 milhões € (- 31,3%). E com a crise acentuou-

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-se a quebra pois, entre 2007 e 2011, o investimento liquido que era ainda positivo baixou de +11.203 milhões € para apenas +1.023 milhões € (- 90,9%). Com a ingerência da “troika” e com o governo PSD/CDS passa, pela 1ª vez, de um valor ainda positivo (+1.023 milhões em 2011) para um valor negativo (-3.880 milhões € em 2012) que se tem mantido. Em 4 anos (2012/2015) o saldo acumulado do investimento liquido negativo atingiu -15.905 milhões €, ou seja, neste período, o Consumo de Capital Fixo (a depreciação), foi superior a todo o investimento (FBCF) realizado em 15.905 milhões €. Por outras palavras, para ser retido na memória: no período 2012-2015, o investimento total (FBCF) realizado no país (104.503 milhões €) foi inferior ao Consumo de Capital Fixo (120.408 milhões €) em 15.905 milhões €, ou seja, nem foi suficiente para compensar o desgaste registado no Capital Fixo (máquinas, viaturas, edifícios, etc.) exis-tentes no país. A nível de investimento verificou-se em Portugal uma verdadeira autofagia.

Idêntica situação se observou com o investimento público. A partir de 2012, o Consumo de Capital Fixo Público nacional é muito superior ao novo investimento realizada em cada ano. No período 2012-2015, portanto com a ingerência da “troika” e com o governo PSD/CDS, o saldo liquido negativo de investimento publico acumulado atinge - 5.350,5 milhões €, já que o investimento público realizado nestes quatro anos soma apenas 15.241,5 milhões €, enquanto o consumo de capital fixo publico atinge 20.592 milhões €. Tal situação causou a degradação dos equipamentos públicos (escolas, hospitais, etc.).

E a previsão é que esta situação se mantenha em 2016, enquanto se mantiveram as impo-sições do Tratado Orçamental. A prová-lo está a queda do investimento em Portugal no 1º Trimestre de 2016 (-0,6% relativamente ao período homologo de 2015), assim como o cresci-mento económico anémico registado também no 1º Trimestre de 2016 (+0,9% quando no 1º Trimestre de 2015 tinha sido de +1,7%).

Esta quebra no investimento quer público quer a nível nacional tem consequências dramá-ticas no presente do país (por ex., na criação de emprego) e no futuro do país (redução da capacidade produtiva futura para crescer, ou seja, do seu produto potencial).

oS deSemPregadoS eStão a enFrentar diFiculdadeS creScenteS em encontrar traBalho PoiS aPeSar do deSemPrego oFicial diminuir o emPrego não aumenta

Uma das consequências imediatas desta quebra acentuada do investimento é a nível de cria-ção de emprego. Embora o desemprego oficial tenha diminuído o emprego não está a aumen-tar de uma forma consistente como revelam os gráficos seguintes (dados do INE)

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Quadro 1- a diminuição do deSemPrego oFicial no Período 2015/2016-ine

É visível a redução continuada do desemprego oficial, no entanto essa redução não é acompa-nhada por um aumento consistente do emprego como mostra o gráfico 2

gráFico 2 – a diminuição do emPrego em Portugal no Período 2015/2016-ine

Entre Abril e Maio de 2016, o desemprego oficial diminuiu entre 18,7 mil (dados ajustados da sazonalidade) e 12,7 mil (dados não ajustados), mas o emprego também diminuiu, e a redução foi maior, pois variou entre 26,7 mil (dados ajustados) e 19,7 mil (não ajustados).

Esta variação negativa do emprego verificada no último mês em que existem dados disponí-veis levanta algumas questões que merecem reflexão.

A primeira, prende-se com a redução do desemprego oficial, que pode ser mais administrativa do que real. Como se sabe, pela metodologia que o INE utiliza, todos os desempregados que

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não procuraram emprego no período em que foi feito o inquérito pelo INE, não são considera-dos no desemprego oficial divulgado pelo INE. A segunda questão importante que os últimos dados do INE mostram, é que pode haver eventualmente recuperação da economia, agora ainda anémica, sem crescimento consistente do emprego. E isto, a verificar-se, seria dramático para centenas de milhares de trabalhadores que se encontram atualmente sem trabalho. E é mais dramático num contexto em que o apoio aos desempregados está diminuir (a percenta-gem daqueles que têm direito ao subsídio de desemprego é cada vez menor), e em que a miséria entre desempregados está a aumentar, como os dados oficiais revelam.

Segundo as Estatísticas da Segurança Social, em Maio de 2015, o número de desempregados a receber subsídio era de 279.634 (45,1% do desemprego oficial) e, em Maio de 2016, esse total já tinha baixado para 232.840 (40,5% do desemprego oficial), ou seja, menos 46.794. E isto acontece num contexto, onde a pobreza atinge principalmente os desempregados. Segun-do o INE, entre 2011 e 2014, a população no limiar da pobreza, após todos os apoios sociais, aumentou de 17,9% para 19,5% em Portugal, mas os desempregados em idêntica situação aumentaram de 38,3% para 42% (entre os homens, subiu de 38,5% para 44,1%). O desempre-go sem apoio é uma das principais causas da pobreza em Portugal. E a redução administrativa do desemprego pode ocultar esta situação, e contribuir para que ela seja ignorada e, para centenas de milhares de trabalhadores desempregados que não estão nem considerados nos números oficiais de desemprego nem recebem subsidio de desemprego, pode significar que são empurrados definitivamente para o grupo dos “esquecidos e dos excluídos”, o que seria profundamente dramático. Esta União Europeia, tal como está, tem pouco a oferecer tanto aos mais velhos como aos mais novos, a não ser desemprego, insegurança, agravamento das desigualdades, crescimento anémico, imigração forçada, etc.. O Tratado Orçamental, ao não excluir do cálculo do défice orçamental para efeitos do Tratado o investimento público de qualidade, está a contribuir fortemente para esta situação.

Olhe-se para o gráfico... joão ramoS de almeida

Mais do que o desemprego registado pelo IEFP, os pedidos de emprego (na escala da esquerda) podem dar uma ideia da dimensão do desemprego. O desemprego registado pelos centros de emprego é um valor administrativo, expurgado de todos os actos administrativos decorren-tes da gestão do IEFP. Os pedidos de emprego representam aqueles que, mesmo não estando desempregados, desejam ter um emprego ou um emprego melhor do que aquele que têm.

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Desde o início de 2016 que estão em queda os novos desempregados (escala da direi-ta) - aqueles que se apresentam aos centros de emprego após uma situação de desem-prego. Uma evolução que se compagina com a descida dos pedidos de emprego. Aliás, é possível verificar que a evolução dos novos desempregados antecipa, de certa forma, a evolução dos pedidos de emprego. Assim, é possível antecipar - talvez - que, por ora, se verifique uma continuação da descida dos pedidos de emprego. Mas até quando? Memorize-se este gráfico. E veremos o que acontece depois, caso as instâncias comu-nitárias comecem a fazer perigar esta tendência, ao criar obstáculos, inventando san-ções pelo facto de uns países do Sul não cumprirem umas décimas de um Tratado Or-çamental. Um Tratado sem qualquer lógica económica que não a de fixar um qua-dro de poder, no quadro de uma moeda única desequilibrada que tende a dar vanta-gem “cambial” aos países do centro e uma desvantagem “cambial aos países do Sul. Entre a lógica do poder e a eficácia económica (com um objectivo de criar mais emprego), a opção das instâncias comunitárias vai ser clara.

artigo PuBlicado originalmente em:

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/07/olhe-se-para-o-grafico.html

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a gestão privada da taP…

ricardo caBral

Mais de 7 meses decorridos sobre a privatização da TAP afigura-se pertinente avaliar, com um módico de distância, se o resultado conseguido com a sua privatização satisfaz o interesse nacional. O consórcio vencedor – a Atlantic Gateway – é um parceiro sólido para a companhia de bandeira (e maior exportador) do país?

Se se considerar que:

– A companhia aérea brasileira Azul (que tem como presidente e um dos seus principais ac-cionistas David Neeleman, líder do consórcio vencedor da privatização da TAP) de menor di-mensão que a TAP, enfrenta sérios desafios económicos e financeiros e não tinha conseguido concretizar, nos últimos anos, o reforço de capital que desejava (já após a Gateway ter ganho a privatização da TAP, a Azul foi finalmente capaz de realizar dois aumentos de capital de 550 milhões de dólares, em Junho e Novembro de 2015, sendo que o último tinha como condição a injecção de parte desse capital na TAP);

– Existem dúvidas sobre se o consórcio cumpre a legislação europeia, uma vez que David Nee-leman não possui nacionalidade de um dos países da União Europeia; se a decisão final for negativa, poderá ser retirada à TAP a licença para operar no espaço europeu;

– A economia brasileira, principal mercado da Azul, está em crise;

– O consórcio vencedor não financiou uma injecção de capital significativa na TAP, nem apre-sentou as garantias financeiras necessárias para refinanciar a dívida da TAP junto da banca;

– O consórcio vencedor aparenta, assim, não ter uma exposição financeira suficientemente grande à TAP uma vez que, a acreditar na conferência de imprensa após a resolução do Con-selho de Ministros relativa a um anexo contratual que não é do conhecimento público, a dí-vida da TAP à banca é implicitamente garantida pelo Estado. Tal significa que os interesses do consórcio vencedor não estão suficientemente alinhados com o interesse da TAP: se a TAP for à falência, o consórcio vencedor da privatização pouco terá a perder porque injectou muito pouco capital na TAP (é até, em teoria, possível que já tenha retirado uma parte desse capital através de transacções com empresas relacionadas, tema que se aborda mais à frente).

Face a estes factos, afigura-se que a resposta à questão inicial só poderia ser uma: o consórcio vencedor do processo de privatização da TAP, escolhido pelo XIX Governo, não satisfaz. Foi um enorme risco a aventura de conceder a privatização de uma TAP descapitalizada a tal consór-cio, nessas condições.

Entretanto, as notícias que circulam sobre a TAP e sobre a Azul são preocupantes. Em parti-

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cular, um e-mail e uma petição da Associação Peço a Palavra e um pdf anónimo – que circula na internet -, identificam vários aspectos problemáticos na operação da TAP desde que foi privatizada.

As referidas notícias dão conta de transacções entre partes relacionadas (a TAP, a Azul e a HNA, estas últimas futuras accionistas da TAP)[1] o que constitui sempre um tema que deve chamar a atenção de credores, de accionistas e do conselho de administração da empresa porque tais operações, em teoria, embora não se tenha qualquer informação que seja o caso na TAP, podem ser utilizadas para aumentar artificialmente os custos de uma das companhias, dessa forma retirando fundos e descapitalizando-a. Não se compreende como foi possível que, no contrato de privatização da TAP, não tenham sido colocadas fortes restrições a transações en-tre partes relacionadas.

As notícias que circulam sugerem, nomeadamente, que:

– A Azul transfere para a TAP aviões novos e usados que, aparentemente, tinha em excesso e de que não necessita, à TAP ou à White, a qual posteriormente os freta à TAP, ficando a dúvida sobre se esses aviões são mesmo necessários à TAP e se as condições a que são cedidos são as melhores condições possíveis no mercado;

– A TAP encerra rotas e inicia novas rotas, possivelmente em função do excesso de capacidade da Azul, ou das necessidades da Azul (em relação a Nova York, JFK e a Campinas no Brasil), que é accionista indirecta da TAP através da Atlantic Gateway e possivelmente também em função da HNA ou suas subsidiárias (Aigle Azur);

– A TAP desiste da compra dos A350 (uma das razões apontadas para privatizar a companhia), numa negociação aparentemente (e incompreensivelmente) realizada pessoalmente por Da-vid Neeleman, segundo o próprio, sem que seja claro o que ocorreu às mais valias, estimadas em algumas centenas de milhões de euros, que decorriam das opções de compra (“slots”) da TAP e alterando de forma radical a estratégia de médio prazo da companhia. Como é possível que uma decisão desta natureza seja tomada sem a aprovação prévia da Assembleia Geral de Accionistas e do Governo? E como é possível que um accionista, que na perspectiva da lei europeia e nacional, não possui o controlo maioritário da empresa, conduza e determine o resultado dessa negociação? Neeleman assegura que as mais valias do negócio com os A350 ficaram todas na TAP. Será que a palavra de Neeleman basta ao Governo e ao País?

– A TAP aparentemente desiste de iniciar uma ligação directa de Lisboa para a China, na se-quência de declarações de Neeleman à imprensa nesse sentido[2], mas a futura nova accionis-ta da TAP, a chinesa HNA, que é também accionista do consórcio vencedor da privatização, a Atlantic Gateway, conseguiu o apoio do Governo, para iniciar ligações directas entre a China e Lisboa, no que poderá constituir também uma forma de transacção entre partes relacionadas.

Parece-me, por conseguinte, que os próximos doze meses serão críticos para a companhia…

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/06/29/a-gestao-privada-da-tap/

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04. C

On

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TOS

Serviços e crítica económica

mário Bairrada

oBjetivo

1. A inclusão da área designada genericamente por Serviços enquadra-se na natureza da revista, por ser um tema que reclama uma atitude crítica em relação aos conceitos e medidas utilizadas pela ciência económica.

Sem qualquer pretensão de carácter científico, este curto texto tem por objetivo:

criar nos leitores da revista interesse por uma área quase negligenciada no pensamento económico em Portugal e, eventualmente, dinamizar um “programa de investigação” que tenha por base os serviços como um dos eixos essenciais de crítica ao pensamento económico dominante

Este objetivo tem subjacente os seguintes aspetos essenciais:

• a bibliografia sobre serviços em Portugal é escassíssima e a mais recente publicação tem origem numa confederação patronal (Ribeiro, coord. e outros, 2012)

• a bibliografia citada é muito antiga no tempo, indiciando que os avanços teóricos nos domínios agora abordados não têm sido, tanto quanto sabemos, significativos;

• pensa-se ser o primeiro, de quatro textos sobre problemas “em volta dos serviços (medida e produtividade; emprego, comércio internacional são os projetados para o futuro);

CONCEitOS

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04. os riscos de nova crise financeira e recessão

• como “guia” socorremo-nos da frase de René Passet (Passet, 2000, p.25): “Toda a inter-pretação económica repousa necessariamente sobre uma conceção do mundo, do homem e da sociedade”. Poderíamos acrescentar o texto de Fernando Belo incluído no nº 4 da Revista.

PenSamento económico (eSBoço)

2. É através do conceito trabalho improdutivo que se traduz a primeira forma de incluir os serviços na História do Pensamento Económico. O livro de Jean-Claude Delaunay e Jean Gadrey (Delaunay e Gadrey, 1987) revisitam as correntes iniciais do pensamento económico no capítulo I – mercantilistas, fisiocratas e clássicos, com particular destaque para Adam Smith. A frase citada de René Passet ajuda a explicar que os serviços são inicialmente vistos numa perspetiva fiscal e mais tarde numa perspetiva de formação do capital e respetiva acumulação, sendo em geral considerados improdutivos (algumas nuances em Adam Smith). No capítulo II é dado particular destaque a Marx, procurando resolver uma das grandes polémicas estabelecidas dentro da corrente marxista (recorde-se que os países de leste, inspirados (?) em Marx elaboraram a CPM – Contabilidade do Produto Material, indiciando a designação que eram considerados improdutivos grande parte dos serviços).

De passagem verificamos que estará presente nos dias de hoje a preocupação fiscal na caracterização de uma parte dos trabalhadores. Não se dizendo explicitamente que os trabalhadores da administração pública são improdutivos, o termo deixou de ser utilizado em sentido económico e foi capturado ideologicamente, fica a evidência quando se afirma “a diminuição do emprego e dos salários da administração pública fazem diminuir a despesa do Estado em x%” ao invés de se afirmar que ““a diminuição do emprego e dos salários da administração pública fazem diminuir o Produto em y%”.

3. No séc. XX o crescimento dos serviços colocaram-nos no lado produtivo da economia com exceção da CPM como dissemos. No entanto, relembremos os debates no início da constituição da Contabilidade Nacional, década de 30, esclarecedores sobre o problema que ainda hoje subjaz: “os serviços são produtivos, mas como se mede a sua contribuição para o Produto?” A utilização dos modelos neoclássicos, desenvolvidos em referência à produção de bens, poderá ser uma boa hipótese explicativa.

A partir de Luis Rubalcaba: (Rubalcaba, 2007) poderemos sintetizar o modo como a economia captou o referido crescimento dos serviços:

• início da terminologia “setor terciário”, cujo crescimento é essencialmente explicado pela lei de Engel (maior procura com o crescimento do rendimento) e pela mais baixa produtividade (Fisher, Clark, Fourastié);

• utilização das “etapas Rostowianas” passando-se a considerar uma sociedade pós-in-

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dustrial – os serviços passavam de improdutivos a deificados;

(parêntesis para referir a importância da sociologia na caracterização do crescimento dos serviços. É com Daniel Bell que o termo “pós industrial se consolida);

• é a partir dos anos 80 que se consolida o estudo dos serviços como objeto autóno-mo, criticando a conceção pós industrial, passando-se a abordar a articulação bens-serviços. A utilização da análise input-output permite começar a interpretar o que se designou por terciarização da indústria e industrialização do terciário;

• com os anos 90 desenvolveu-se alguma especialização na análise do objeto, serviços, entretando autonomizado.

deFinição e claSSiFicação: conSeQuência

4. No início da definição de serviço, em contexto económico, recordamos a respetiva origem etimológica. Do latim “servitium” relaciona-se com “servus” Isto é, o termo serviço significa na origem uma relação de dependência (servo/amo) que se estenderá aos serviços militares, reais e governamentais (Rubalcaba, 2007, p.18).

O que nos interessa é a atividade de serviço (serviço como resultado de uma atividade).

É comum apresentar três características associadas a um serviço (atividade):

- não armazenável ou transportável;

- imaterial;

- co-produção (proximidade versus interação entre prestador e cliente ou utilizador)

Para além destas características serem passíveis de algumas “fugas” (evidente no caso da não transportabilidade quando pensamos nos serviços de informação; os serviços de educação e saúde não se esgotam, o seu resultado, no momento da respetiva produção; os serviços de reparação, restauração atuam sobre, ou modificam, realidades tangíveis; a co-produção não estará presente, por exemplo, em serviços de limpeza, transporte de bens), elas revelam a procura de distinguir um serviço de um bem e não a definição positiva de serviço.

A definição proposta por Peter Hill tornou-se a mais comumente utilizada, ainda que sem terem sido retiradas todas as consequências “um serviço é a transformação da condição de um indivíduo, ou de um bem pertencente a qualquer agente económico, resultante da atividade de outro agente económico, por procura ou concordância do primeiro agente”. Ou seja, estarão presentes (Gadrey, 1996, p.17) os seguintes aspetos essenciais:

• distinção entre serviço enquanto processo e enquanto resultado;

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04. os riscos de nova crise financeira e recessão

• evidenciação dos agentes económicos implicados numa relação de serviço, tendo por base uma realidade a transformar

O esquema proposto por Jean Gadrey (Gadrey, 1996, p.19) é o que propomos como a melhor contribuição para a definição de uma atividade de serviço:

5. Uma questão adicional prende-se com a classificação dos serviços. No imediato temos disponível a Classificação das Atividades Económicas (CAE) – comércio, transportes, serviços bancários, etc. No entanto, os autores dedicados a estas matérias têm procurado uma classificação que enfatize aspetos taxonómicos essenciais. No citado livro de Jean-Claude Delaunay e Jean Gadrey (Delaunay e Gadrey, 1987, cap. VI) apresentam quatro famílias de possíveis classificações:

• as classificações que utilizam como principal critério a natureza do suporte e resulta-do da atividade de serviço (material versus imaterial);

• as classificações que utilizam como principal critério a função do serviço (ex. serviços de distribuição; de produção; serviços sociais; serviços pessoais);

• as classificações que utilizam como principal critério o destinatário do serviço;

• as classificações que utilizam como principal critério aspetos de tipo histórico ou or-ganizacional.

Poderemos ainda reconhecer sub-classificações (ex. serviços às empresas repartidos entre serviços intensivos em conhecimento e não intensivos em conhecimento).

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Sem desenvolvermos, apresentamos como hipótese alternativa uma nomenclatura de serviços que privilegie uma lógica sistémica e os conceitos associados feed back, entropia, etc. Neste sentido propomos os serviços:

• de inovação;

• de integração;

• de regulação;

• de socialização

6. A partir da definição de atividade de serviço e da proposta de classificação poderemos extrair a seguinte ideia que funciona como matéria de reflexão crítica:

numa economia em que cerca de 70% da produção está concentrada em atividades de serviço, não considerando questões de medida, ficam hipotecados, ou no mínimo atenuados, os eventuais efeitos que derivam da “supply-side theory”. Isto é, os conceitos produtividade e competitividade, pilares centrais deste edifício teórico e do discurso político atual, são objetivamente questionados pela presença largamente maioritária de atividades de serviço. De modo mais enfático, o processo produtivo das atividades de serviço não tem analogia com as condições de produção de bens e, como tal, o referido edifício teórico funciona “como se…”. Acresce, questão fundamental, que numa atividade de serviço o resultado (aspeto qualitativo) predomina, em grande parte das situações, sobre a quantidade.

reFerênciaS

Delaunay, Jean-Claude e Gadrey, Jean (1987), Les Enjeux de la Société de Service, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques

Gadrey, Jean (1996), L´économie des services, La Découverte, Collection Repères, 2ª edição (1ª edição, 1992)

Passet, René (2000), L´illusion néo-libérale, Fayard

Ribeiro, José Félix (coord.) e outros (2012), O Sector dos Serviços e a Competitividade da Economia, Confederação do Comércio e Serviços de Portugal

Rubalcaba, Luis (2007) the New Service Economy – Challenges and Policy implications for Europe, Edward, ElgarPublishing Limited

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05. propostas

Por que razão a adSe deverá ser transformada num instituto público de

gestão participada com controlo efetivo dos beneficiários e não numa mútua

eugénio roSa

A ADSE abrange atualmente mais de 1,2 milhões de portugueses, e o seu numero não tem diminuído como mostram os dados dos dois quadros seguintes retirados do Plano de Atividades da ADSE para 2016

Quadro 1 – numero de BeneFiciárioS da adSe – 2013-2015

Fonte: relatório de atividade da adSe - 2014

PROPOStAS

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Apesar da lei atual permitir a saída livre dos trabalhadores e aposentados que descontam para a ADSE, mesmo assim a esmagadora maioria mantém-se na ADSE. E isto porque considera um seu direito e um benefício importante. Aqueles que defendem que se faça um referendo para saber se os trabalhadores e aposentados querem a continuação da ADSE, certamente a manutenção maciça dos trabalhadores na ADSE quando é a livre a saída, é a prova que eles querem a continuação da ADSE, e é o melhor referendo que se pode fazer.

Em 2012, renunciaram à ADSE 200 titulares (os que pagam quota); em 2013, foram 319; em 2104, ano do aumento brutal do desconto, as renúncias de titulares subiram para 1614; e, em 2015, baixaram apenas para 664 titulares. Muitos dos que renunciaram à ADSE, já meteram requerimento ao ministro da Saúde para se inscreverem de novo, não tendo obtido autorização pois, por lei, a saída é livre, mas reinscrição não é permitida.

a adSe não é um Seguro de Saúde PoiS, contrariamente aoS SeguroS PrivadoS, a adSe aSSenta na Solidariedade interProFiSSional e intergeracional

Diferentemente de um seguro de saúde, a contribuição para a ADSE é proporcional ao rendimento de cada beneficiário titular(trabalhador ou aposentado): quando maior é o rendimento maior é a contribuição da ADSE. O quadro 2, mostra isso.

Quadro 2 – rePartição doS BeneFiciárioS titulareS Por eScalõeS de valor da contriBuição

Fonte : relatório de atividadeS da adSe - 2014

Portanto, 54.829 contribuem com uma quotização mensal entre 0€ e 20€, a maioria dos beneficiários contribuem com entre 20€ e 40€, e existiam 59.492 beneficiários que contribuíam mensalmente com mais de 100€. Segundo o Relatório de Auditoria do Tribunal de Contas a quotização mensal varia “entre 0,37€ e 553,56€, com uma média de 57,64€, o que faz da ADSE um sistema solidário e inclusivo” (pág. 24). E os direitos de todos são iguais. Portanto, a ADSE não tem nada a haver com o seguro de saúde privado.

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Mas não é apenas por esta razão. Observem-se os dados dos quadros 3 e 4.

Quadro 3 – cuSto médio Por BeneFiciário de acordo com eScalão etário

regime convencionado –relatório de atividadeS de 2014

No regime convencionado, o custo médio por beneficiário com idade superior a 80 anos – 624,45€ em 2014 – é 3,3 vezes superior aos custo médio com um beneficiário com idade entre os 20 e 30 anos (189,02€). E não é por esta razão que o beneficiário com mais de 80 anos tem de pagar ou mais ou é expulso da ADSE como acontece nos seguros privados.

Idêntica situação se verifica em relação ao regime livre como mostram os dados do quadro 4

Quadro 4 – cuSto médio Por BeneFiciário de acordo com eScalão etário

regime livre –relatório de atividadeS da adSe de 2014

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No regime livre, em que o beneficiário pode escolher o prestador de saúde, paga adiantadamente o que este pede, e depois é reembolsado apenas numa parcela previamente fixada pela ADSE, também o custo médio com os beneficiários de idade superior a 80 anos (616,81€) é muito superior ao custo médio que a ADSE suporta com os beneficiários de idade inferior a 20 anos (apenas 156,5€, ou seja, menos 3,9 vezes). E também não é por esta razão que os beneficiários com mais de 80 anos têm de pagar uma contribuição mais elevada, ou são expulsos da ADSE.

É também por todas estas razões que a ADSE se diferencia dos seguros de saúde privados. Contrariamente ao que sucede neste, a ADSE assenta na solidariedade interprofissional e na solidariedade intergeracional, portanto características que a diferencia dos seguros de saúde

a adSe é um direito doS traBalhadoreS da Função PúBlica, Por eSSa raZão o Seu ÂmBito é aPenaS oS traBalhadoreS da Função PúBlica ativoS e aPoSentadoS

A própria Comissão nomeada pelo Governo (Despacho n.º 3177-A/2016 do ministro da Saúde) reconhece no seu relatório (Versão Preliminar) que divulgou para debate público, que a ADSE enquadra-se no estatuto laboral dos trabalhadores da Função Pública, portanto é um direito dos trabalhadores da Função Pública (pág. 3 e 20 do documento divulgado pela comissão- ver nosso estudo de 5.6.2016). Daqui decorrem várias consequências/princípios que não podem ser ignorados.

A 1ª consequência é que o âmbito da ADSE é apenas e somente os trabalhadores da Função Pública. Por isso não tem qualquer justificação nem razão aqueles que exigem o seu alargamento a outros setores, ou mesmo à toda a população como fez Assunção Cristas do CDS. Ninguém exige que o complemento de reforma que a PORTUCEL/Soporcel atribui aos seus trabalhadores, ou que qualquer banco pague aos seus trabalhadores, seja alargado a toda a população. Exigir isso seria absurdo.

Para além disso, e contrariamente ao que muitos afirmam, incluindo o próprio Tribunal de Contas, a sustentabilidade da ADSE não depende apenas do seu alargamento a outros setores. O seu alargamento levaria mesmo à destruição da ADSE tal como existe atualmente. E isto por várias razões. A primeira razão, é porque a ADSE não é um seguro de saúde. Os seus titulares – trabalhadores e aposentados da Função Pública – pagam, não um valor fixo como sucede em qualquer seguro de saúde, mas sim uma quota proporcional ao vencimento recebem (na ADSE a quota paga pelos seus titulares varia entre 0,37€ e 553,36€ segundo o Tribunal de Contas), portanto a ADSE baseia-se na solidariedade interprofissional. Depois, à medida que idade aumenta e os custos de saúde crescem (segundo a ADSE, em 2014, a despesa com saúde por beneficiário com idade entre os 20 e os 30 anos foi de 165,43€, enquanto a de um beneficiário com mais de 80 anos atingiu 616,81€, ou seja, 3,7 vezes mais) e apesar disso, a quotização não

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aumenta nem o beneficiário é expulso como acontece com os seguros de saúde, portanto a ADSE também se baseia na solidariedade intergeracional. A segunda razão, que é esquecida por quem defende o alargamento, é que a sustentabilidade da ADSE também resulta do facto da remuneração média mensal na Administração Pública ser muito superior à do setor privado (em Out.2015, era de 1.618,5€, no setor privado é pouco superior a metade). E isto porque 354.599 trabalhadores da Administração Pública (48,7% do total), terem o ensino superior (Licenciatura, Mestrado, Doutoramento), portanto são mais qualificados e por isso têm direito a uma remuneração mais elevada, enquanto a nível do país a percentagem de trabalhadores com o ensino superior é inferior aos 20% (nos 20% estão incluídos os trabalhadores da Função Pública, o que significa que sem estes a percentagem no setor privado é menor). Portanto, a abertura da ADSE à restante população com remunerações mais baixas como alguns defendem, levaria inevitavelmente à sua destruição tal como é atualmente. A terceira razão, é que o seu alargamento a toda a população, como a direita defende, determinaria a sua rápida transformação, por um lado, num grande seguro de saúde muito semelhante aos já existentes de gestão privada e, por outro, num instrumento de corrosão e destruição do SNS pois o que está na mente dos defensores é o fortalecimento do setor privado da saúde para concorrer com o SNS, e assim transformar este no SNS dos pobres.

A 2ª consequência resulta do facto da ADSE ser um direito dos trabalhadores da Função Pública e enquadrar-se no seu Estatuto laboral, por isso o Estado nunca se poderá desresponsabilizar do seu funcionamento.

A 3ª consequência, é a seguinte: Como consta do Relatório de Auditoria 3/2016 do Tribunal de Contas (pág. 41), sendo a ADSE financiada apenas pelos descontos dos trabalhadores e aposentados da Função Pública, o dinheiro da ADSE não pode ser apropriado pelo Estado, nem desviado para outros fins; tem de ser utilizado em exclusivo beneficio de quem desconta, o que não acontece atualmente; para além disso, quem financia a ADSE têm o direito de participar na gestão e na fiscalização da ADSE, o que também não acontece neste momento.Portanto, qualquer “solução” para a ADSE tem que respeitar estes três princípios que decorrem do facto da ADSE se enquadrar no Estatuto laboral dos trabalhadores da Função Pública e ser um direito deles.

a adSe atrai o aPetite doS gruPoS PrivadoS de Saúde

O quadro 5, com dados do Plano de Atividades da ADSE para 2016, mostra de uma forma sintética e clara por que razão a ADSE atrai os apetites de grandes grupos privados.

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Quadro 5- receitaS e deSPeSaS da adSe no Período 2010-2016

Os dados do quadro, divulgados pela ADSE, permitem tirar algumas conclusões importantes e também ficar a saber por que razão os grandes grupos privados de saúde assim como capital financeiro (seguros de saúde) estão tão interessados na ADSE. No período 2010-2016, a ADSE movimentou 4.016,16 milhões €, o que é muito dinheiro. Neste período a despesa da ADSE com o “regime convencionado”, despesa essa faturada principalmente pelos grandes grupos privados de saúde, atinge 2.013,7 milhões € e com o “regime livre”, também receita de privados, soma 933,8 milhões €. Durante este período, os “descontos “ dos trabalhadores e dos aposentados para a ADSE atingem 2.621,3 milhões €.

enQuanto a adSe For uma direção geral, oS traBalhadoreS e oS aPoSentadoS da Função PúBlica não terão QualQuer controlo do dinheiro Que deScontam

Como mostram também os dados do quadro 4, a partir de 2014 (inclusive) o valor dos descontos feitos nas remunerações dos trabalhadores e nas pensões dos aposentados foi sempre superior à despesa total da ADSE. Este facto tem determinado elevados saldos positivos, o que mostra que as contribuições dos trabalhadores e aposentados são excessivas. Segundo o Plano de Atividades da ADSE para 2016, a ADSE acumulou, no período 2014-2016, 469,24 milhões € de saldos positivos. Este dinheiro não está na ADSE mas sim nos cofres do Estado, sendo utilizado pelo governo como ele quer, portanto uma parte dele já “voou”. E isto porque a ADSE é uma direção geral sem autonomia financeira, faz parte da administração direta do Estado, por isso o governo tem poder para utilizar os seus dinheiros como quiser e de acordo com as suas necessidades (a ADSE nem pode utilizar os seus saldos para pagar compromissos sem despacho do governo conforme consta na pág. 6 do Relatório do Tribunal de Contas, os quais não são incorporados nas suas contas como refere o Tribunal de Contas na pág. 5 do seu Relatório). É tudo isto e muito mais o que se tem verificado na ADSE como provou a auditoria feita pelo Tribunal de Contas. Por ex., o governo tem utilizado os saldos da ADSE para financiar

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o Serviço Regional de Saúde da Madeira, e para financiar os governos regionais da Madeira e dos Açores segundo o Tribunal de Contas. Os dados da própria ADSE constantes do quadro 1 confirmam isso. Assim, em 2015, a ADSE pagou aos hospitais públicos da Madeira 29,8 milhões € e, em 2016, prevê-se que pague pelo menos 6,4 milhões €.O diretor geral da ADSE afirma que esse pagamento foi feito com saldos atrasados, mas não prova, até porque há uma diferença grande entre o saldo acumulado atual que devia estar na ADSE e o que está como se conclui rapidamente do quadro 1 construído com dados da própria ADSE. A ADSE continua a pagar os medicamentos na Madeira que deviam ser pagos pelos Serviços Regionais de Saúde como acontece com o SNS no Continente assim com paga também um conjunto de despesas que não deviam ser suportadas pela ADSE como consta da pág. 11 do Relatório de Auditoria 3/2016 do Tribunal de Contas. Para além disso, o governo da República (do país) tem permitido que os governos regionais se apropriem dos descontos feitos nas remunerações e nas pensões dos trabalhadores e aposentados da Madeira e dos Açores. Segundo o Tribunal de Contas os governos regionais já se apropriaram de 24,8 milhões € de descontos, o que determina que as despesas com saúde dos trabalhadores e aposentados das regiões da Madeira e dos Açores estejam a ser apenas pagas com os descontos dos trabalhadores e aposentados do Continente. Mas há muito mais no Relatório de auditoria do Tribunal de Contas. É uma gestão desastrosa e irresponsável, de que é exemplo dividas à ADSE que nem eram registadas na contabilidade (portanto, não sendo registadas eram perdidas), a contabilidade da ADSE não cumpre o principio de especialização do exercício, etc., segundo o Tribunal de Contas, que lesa os trabalhadores e aposentados, pois são prejuízos que estão ser pagos com o seu dinheiro, já que eles são atualmente os únicos financiadores da ADSE, mas que eles não têm qualquer controlo.

Em 2016, a ADSE prevê gastar com o “regime convencionado” e com o “regime livre” 488,1 milhões €, ou seja, mais 8,3% do que em 2015, portanto, uma subida muito superior ao aumento dos salários dos trabalhadores e das pensões dos aposentados da Função Pública. Esta despesa da ADSE vai financiar fundamentalmente grandes grupos privados da saúde. Segundo dados da ADSE, em 2015, 20 grandes grupos privados da saúde receberam da ADSE 225,7 milhões €, o que correspondeu a 70,4% da despesa do “regime convencionado” desse ano. Só o grupo Luz Saúde, controlado por um grupo chinês, faturou 75 milhões €; o grupo Jose Mello Saúde 32,6 milhões €, o grupo Lusíadas Saúde 26 milhões €, e o grupo Trofa da Saúde 23,5 milhões €. A ADSE tem sido uma “mina” para os grandes grupos privados da saúde. E a pergunta que naturalmente se coloca é esta: Como é que são feitos os contratos/convenções que a ADSE tem com estes grandes grupos privados de saúde? Como são estabelecidos os preços que a ADSE tem de pagar? Serão da mesma forma como são fixados nos contratos programas assinados entre os Hospitais Públicos e o Estado? Que controlo existe para que os prestadores privados interessados em faturar o máximo não “impinjam” exames desnecessários ou próteses em que o critério de escolha seja o preço mais elevado? Os trabalhadores e os aposentados da Função Pública que pagam a ADSE com os seus descontos nada sabem, porque não lhes prestam contas. Nem o conselho consultivo da ADSE previsto na lei em que participam representantes sindicais funciona (já não se reúne há muitos anos e não

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é dada qualquer justificação). E isto continuará a acontecer enquanto a ADSE for uma direção geral, porque nada na lei obriga uma direção geral a prestar contas aos beneficiários, mesmo que sejam estes os únicos financiadores. Entre 2015 e 2016, segundo o Plano de Atividades da ADSE (ver quadro), os custos com a Administração aumentam de 7,8 milhões € para 12,7 milhões €, ou seja, em 62,8%. Porquê? Ninguém sabe. Mas esta despesa é paga também com os descontos dos trabalhadores e aposentados.

Assim, quem defende a manutenção da ADSE como direção geral está, objetivamente, a defender este tipo gestão, paga com dinheiro dos trabalhadores e aposentados, em que eles não têm qualquer controlo. É isso que tem de ter presente. Enquanto a ADSE for uma direção geral os trabalhadores e aposentados não terão qualquer controlo sobre a forma como são geridos os seus dinheiros. É por isso que defendemos que a ADSE não se deve manter como direção geral

a tranSFormação da adSe numa mutua, como algunS deFendem, Permitiria Que a adSe FoSSe Facilmente caPturada Por um gruPo de intereSSeS Privado

A transformação da ADSE numa mútua permitiria que um grupo, financiado pelos grupos privados de saúde, se apoderasse facilmente do controlo da ADSE (a capturasse), utilizando-a depois em seu proveito. É por esta razão que temos defendido que a ADSE não se deve ser transformada numa associação mutualista. O que aconteceu no Montepio onde um grupo se apoderou da suas administração, e aproveitando o poder que resulta desse controlo se eternizar e passa a administração aos amigos, levando a cabo um gestão megalómana e desastrosa que já delapidou mais de 754 milhões € de poupanças dos associados, causando grandes dificuldades à sobrevivência do Montepio e que, para além de destruir valor destruiu também um património de confiança construído ao longo de mais de 150 anos, é um exemplo a ter sempre presente, e a não permitir que se repita na ADSE.

O modelo mais adequado para a ADSE é, a nosso ver, o de um Instituto Público de gestão participada, com total controlo dos representantes dos trabalhadores e aposentados, mas também com participação do Estado para o responsabilizar e evitar que a ADSE seja capturada pelos grupos privados da saúde ou por qualquer outro grupo de interesses. Isto para dar segurança aos beneficiários e porque, segundo a própria comissão nomeada pelo governo, “o Estado não se poderá retirar completamente do acompanhamento e monitorização da ADSE” (pág. 3 da Versão Preliminar), já que a ADSE faz parte do Estatuto laboral dos trabalhadores da Função Pública. Mas terá de ser um Instituto Público com características muito diferentes dos existentes, que enfermam de muitos males graves, de que é exemplo o INAC, agora ANAC (os vencimentos dos administradores subiram escandalosamente) o que exige inovação legislativa permitida pela própria Lei quadro dos Institutos Públicos.

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a adSe deve Ser um inStituto PúBlico de geStão ParticiPada, muito diFerente doS exiStenteS, o Que exige inovação legiSlativa

O artº 47 da Lei 3/2004 (Lei quadro), dispõe sobre os Institutos de gestão participada o seguinte: “Nos institutos públicos em que, por determinação constitucional ou legislativa, deva haver participação de terceiros na sua gestão, a respectiva organização pode contemplar as especificidades necessárias para esse efeito, nomeadamente no que respeita à composição do órgão directivo”; portanto, a própria lei admite que por determinação legislativa se possa contemplar especificidades para garantir a participação dos beneficiários titulares (trabalhadores e aposentados) que são os únicos financiadores. O próprio Tribunal de Contas na pág. 13 do seu Relatório de Auditoria defende “ a participação dos quotizados da ADSE na sua governação, ao nível de decisões estratégicas e do controlo financeiro (ex.; aprovação dos planos e relatórios de atividades e de documentos de prestação de contas) assegurando, também, o direito de veto sobre todas as decisões que possam afetar a sustentabilidade no curto, medio e longo prazo, e sobre a aplicação dos excedentes”.

Os órgãos de um Instituto Público sem ser de gestão participada são: um conselho diretivo (artº 3) constituído por três membros; um conselho consultivo sem poderes efetivos de fiscalização (é um mero órgão de consulta, de apoio ao conselho diretivo segundo o artº 29º), e um fiscal único que é o órgão de fiscalização (artº. 26º). É evidente que esta estrutura orgânica não serve porque os trabalhadores e aposentados da Função Pública continuariam a não ter qualquer controlo efetivo sobre a ADSE e sobre a aplicação dos seus dinheiros. A acontecer isso, poderia até ser mais grave que uma direção geral, pois o Instituto Público como tem autonomia financeira, o que não sucede com uma direção geral, o conselho diretivo do Instituto poderia ter uma gestão que não acautelasse o dinheiro e os interesses dos beneficiários, podendo ser presa de interesses estranhos aos trabalhadores e aposentados da Função Pública. É por estas razões que consideramos que a solução é um Instituto Público de gestão participada com controlo dos trabalhadores e aposentados, e para atingir os objetivos defendidos pelo próprio Tribunal de Contas, devia possuir os seguintes órgãos de gestão e fiscalização com os seguintes poderes:

1. Um conselho diretivo, constituído por três membros nomeados pelo governo. A escolha podia ser um dos seguintes dois modelos, ou outro que fosse escolhido pelos beneficiários: (a) O modelo que vigorou nas Caixas de Previdência depois do 25 Abril enquanto existiram: o presidente era indicado pelo governo, um vogal pela CGTP e outro pela UGT, mas agora propostos pelos sindicatos da Função Pública; (b) No caso dos sindicatos e das associações de aposentados não estarem interessados em indicar pessoas para o conselho diretivo, a escolha seria feita pelo governo, mas o governo só os podia nomear se não tivessem a oposição do conselho de fiscalização dos representantes dos sindicatos e das associações dos aposentados da Função Pública. É evidente que tanto num caso como em outro

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seria exigido um perfil adequado que ficaria definido nos Estatutos.

2. Um conselho de supervisão constituído por representantes das associações sindicais da Função Pública e das associações de aposentados com poderes efetivos de fiscalização os quais incluiriam nomeadamente os seguintes: (a) Aprovar objetivos estratégicos: (b) Aprovar o Plano de Atividades e o Orçamento e o Relatório e contas anuais do Instituto com base em pareceres elaborados pela comissão de auditoria, que depois seriam homologados pela ministério da tutela; (c) Fiscalizar as atividades do conselho diretivo, o que pressupõe o acesso total à informação necessária para o poder fazer; (c) Pronunciar-se sobre as convenções e contratos com base em pareceres da comissão de auditoria; (d) Garantir a sustentabilidade financeira do Instituto aprovando medidas adequadas com base em pareceres e recomendações do conselho diretivo e da comissão de auditoria medidas essas que, para ser implementadas, teriam de ser homologadas pelos Ministérios da tutela; (e) Receber comunicações e reclamações dos beneficiários e trabalhadores da ADSE dando seguimento e resolvendo.

3. Uma comissão de auditoria constituída por três membros nomeados pelos Ministérios da tutela, após aprovação do conselho de fiscalização, sendo um médico que presidiria, um ROC e outro perito em contratos e convenções na área da saúde, incluindo contratos programa, os quais seriam responsáveis pelo controlo da legalidade, da regularidade e da boa gestão financeira e patrimonial do instituto, elaborando pareceres e recomendações sobre os atos de gestão do conselho diretivo (convenções, contratos, orçamentos, contas, etc.), sobre a sustentabilidade financeira do Instituto e propondo as medidas adequadas, sobre normas a implementar para controlar consumos excessivos ou desnecessários, sobre a correção e veracidade da contabilidade, sobre o processo de prestação e divulgação das contas, etc., pareceres e recomendações essas a enviar ao conselho diretivo, à comissão de fiscalização e ao ministério da tutela, os quais após aprovação pelo conselho de supervisão e homologação pelos ministérios da tutela seriam de aplicação obrigatória para conselho diretivo.

Eis uma proposta dos órgãos de gestão e de fiscalização do Instituto Público de gestão participada que garante, a nosso ver, o controlo efetivo dos trabalhadores e aposentados da Função Pública, a ser melhorada ou mesmo alterada com base no debate dos interessados (é fundamentalmente um contributo para promover e facilitar o debate e a reflexão).

Para finalizar um episódio que carateriza bem a impunidade e o arbítrio que impera atualmente na ADSE. No dia 29.6.2016, numa audição parlamentar o diretor geral da ADSE foi confrontada por uma deputada com a pergunta: Por que razão o conselho consultivo da ADSE, onde estão

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os representantes dos sindicatos, já não se reúne há vários anos? E a resposta insólita do diretor geral foi a seguinte: “porque não se constituiu”. E isto apesar de constar do artº 5 do Decreto-Regulamentar 44/2012 e do Decreto-Lei 152/2015, de ele ser o presidente deste conselho, portanto responsável pela sua convocação, e do conselho constar do próprio organigrama que está disponível no “site” da ADSE.

O diretor geral arroga-se em não cumprir a lei, julga-se acima da lei, e sente-se impune. Será que o ministro da Saúde está de acordo com isto?

depender menos do automóvel e deslocar em transporte Público com tarifa social

única contra a lógica neo-liberal.

carloS gaivoto

Prólogo

A dispersão urbana tem provocado um sobrecusto social (directo e indirecto) com peso significativo na Dívida e na pressão do Défice, além das deseconomias que imprime nos rendimentos das pessoas, famílias e empresas. Esta dispersão urbana afecta todos os serviços públicos e provoca sobrecustos nos Orçamentos Municipais e do Estado e uma forma de a contrariar, será através da diminuição do uso do modo automóvel no sistema de deslocações desta Área Metropolitana e aumentar o uso e benefício do TC, melhorando a eficiência energética e ambiental. A TL é colocada no centro da resposta do TP a esta situação.

Ora, um posicionamento estratégico por parte dos operadores de Transporte Público na AM de Lisboa é poder assumir no quadro da geografia de deslocações e do sistema tarifário existente na AML, a tarifa única social. Por exemplo, com a gestão da rede TC na cidade de Lisboa, a TL deverá saber conduzir um diálogo permanente com a AML que se prepara para ser a Autoridade Organizadora do Transporte Urbano (AOTU) da AML e onde se inclui a CML. Esse posicionamento estratégico da TL com o sistema tarifário, depois da síntese dos efeitos da dispersão urbana, propõe a simplificação e integração tarifária e modal do TC da AML referindo o cenário de exploração com a tarifa única, partindo dos exemplos de Madrid (intermodal) e de Paris (multimodal), evoluir da gestão do sistema intermodal assente em coroas geográficas para o sistema multimodal de Paris baseado na “Tarifa Única”.

Os dois exemplos estão referidos porque da análise que se fez às posições assumidas antes

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pela AMTL e pela JML, depois de verificadas as posições dos vereadores da AML (2,8 milhões de hab.), assumia-se o sistema de coroas e sectores geográficos. Entretanto, acontece que a Tarifa Social Única (“Flat Fare”) foi implementada na Região de Paris com uma população de 11,5 milhões de hab. em 1 de Setembro de 2015, eliminando os obstáculos de acessibilidade em preço, reforçando mesmo a função Social da Tarifa Única – para toda a Região (passe Navigo = 70€) e para estudantes (Imagine R = 35€), além de ser de preço mais baixo para famílias com rendimento.

Esta evolução para a prática de tarifa única está a ser apoiada financeiramente noutras cidades europeias e áreas metropolitanas e em que esta estratégia de integração e simplificação tarifária beneficia as relações contratuais com todos: em primeiro lugar, com o utente e em segundo lugar, com os outros actores, como a respectiva AOTU na celebração de contratos ou regulação. Daí, ter-se incluído no texto, três primeiros sub-temas, outras três primeiras propostas, com incidência na postura da TL, nomeadamente na sua reorganização e articulação com os outros actores intervenientes no sector. O texto evidencia ainda a necessidade do princípio da compensação tarifária dever estar contemplado na compensação financeira (D-R) e incluir nesta compensação, as elasticidades da procura/preço e de forma a regular as relações contratuais entre a AOTU e o Operador Interno. De facto, também se inclui esta dimensão de Operador Interno (mais eficiente com a aderência da CP suburbanos) porque fica referida a necessidade de haver também uma estratégia de TP na AML que reforce a política de acessibilidade que permita duma rápida transferência modal para o TC, ou seja, incluir o debate dum plano de Investimento Público na interoperabilidade das redes ferroviárias, ampliar a rede multimodal e normalizar as condições de utilização da bilhética e informação.

a área metroPolitana de liSBoa e a tranSição ecológica

Colocar o Transporte Público no centro da política de acessibilidade e mobilidade sustentável, consentânea com o objectivo de se efectuar uma transição ecológica da AML de acordo com as recomendações do Livro Verde e a COP21, está a demorar e exige haver algum avanço de curto prazo coerente com essa política. A definição do tarifário pode ser esse primeiro avanço.

Dum modo geral, essa transição passa pelo aumento da repartição modal do TC e a diminuição o uso excessivo do TI, ou seja, aumentar a conveniência do TP passa pela melhoria dos serviços de oferta das redes e serviços da TL, CP suburbanos e dos restantes operadores, considerando o TC como um instrumento estratégico para resolver duas questões essenciais àquela transição:

- a primeira, através do plano de melhoria dos serviços de oferta, aumentar a eficiência ambiental e energética, aumentando a rendibilidade social do TC e também, do rendimento disponível das pessoas e empresas;

- a segunda, ao aumentar a cobertura territorial e temporal do TC como uma alternativa efectiva ao automóvel, consegue-se uma diminuição dos custos escondidos da dispersão urbana, ao diminuir o peso das externalidades negativas na Dívida e na pressão do Défice orçamental, ou seja, melhora-se a economia urbana.

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tranSição ecológica e a diSPerSão urBana

Com esta estratégia de transição ecológica aplicada aos vários municípios, os respectivos orçamentos municipais e do Estado terão a médio prazo uma redução substancial dos custos escondidos das externalidades negativas causadas pela forma e estrutura do território designado por “urban sprawl” - ver  http://static.newclimateeconomy.report/wp-content/uploads/2015/03/publ ic-policies-encourage-sprawl-nce-report.pdf .

De facto, a elevada dispersão urbana da Área Metropolitana de Lisboa provoca, além duma geografia de deslocações desequilibrada pelo uso excessivo do TI em desfavor do TC, um peso elevado dos orçamentos municipais e do Estado - ver http://thecostofsprawl.com/report/SP_Suburban Sprawl_Oct2013_opt.pdf.

Por essa razão, o contexto de crise financeira acentua a necessidade duma reprogramação das redes e serviços de TC, de reforço dos serviços de oferta do TC através de política multimodal e de interoperabilidade, maximizando as ligações directas, de modo a haver uma maior acessibilidade e equidade na mobilidade urbana e um maior equilíbrio da Conta Pública do Sistema de Deslocações, neste caso, da AML.

A rede do TC só ganhará mais procura se permitir essa maior acessibilidade e mobilidade de forma competitiva com o automóvel. Mas, para que isso aconteça, também, exige-se uma política pública coordenada entre operadores e autoridade de transportes, como é o caso de muitas metrópoles europeias – ver http://www.emta.com/ e a primeira área de actuação é no sistema tarifário, como foi o caso da Alemanha – ver http://www.sutp.org/files/contents/ documents/resources/B_Technical-Documents/GIZ_SUTP_TD4_Transport-Allian ces_EN.pdf.

tranSição ecológica e oS ServiçoS de tranSPorte colectivo – a autoridade organiZadora do tranSPorte urBano e (aotu) e o tariFário – o caSo madrid

No caso de Madrid, a entrada em funcionamento da CRTM em 1985 – ver http://www.madrid.org/wleg/servlet/ Servidor?opcion=VerHtml&nmnorma=508 &cdestado=P e a integração tarifária em 1987 permitiram inverter a tendência de queda permanente da procura em TC – ver Gráfico, aumentando significativamente a centralidade do TC na recuperação de políticas públicas de mobilidade mais sustentável, as quais foram fortemente apoiadas pelo alargamento e a integração das redes e serviços dos operadores públicos.

Esta integração tarifária, realizada em 1987, foi das primeiras tarefas concluídas com a integração administrativa e a integração modal, permitindo obter mais tarde as condições financeiras para o alargamento de redes e serviços, os quais tiveram um forte incremento nos anos subsequentes, aliás, confirmado pelo congresso da UITP em 2003.

A questão tarifária é, portanto, um tema incontornável na dinâmica que se pretende atingir com a colocação da centralidade do Transporte Colectivo actuando na coerência da

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integração social e territorial e permitindo ao TP ser o veículo prioritário nas políticas públicas de acessibilidade e mobilidade sustentável para maior equilíbrio dos orçamentos municipais e do Estado provocadas pela dispersão urbana.

tranSição ecológica e oS ServiçoS de tranSPorte colectivo – a autoridade organiZadora do tranSPorte urBano e (aotu) e o tariFário – o caSo PariS.

Vejamos como ocorre a integração tarifária no caso de Paris, onde existe uma AOTU com uma gestão orçamental de cerca de 10 mil milhões de €/ano e com contratos de OSP com os dois Operadores Internos (RATP e SNCF, cujos orçamentos anuais são respectivamente cerca de 5 mil milhões de €/ano e de 35 mil milhões de €/ano) e o grupo OPTILE que actua nos cinco “Départements” que delimitam a Região de Paris.

Nesta Região, a população de 11,5 milhões dispõe dum único passe multimodal (Navigo). Com efeito, a partir de 1 de Setembro de 2015, este passe deixou de ser atribuído em sistema de coroas para passar a ter o único valor de 70€/mês, a designada tarifa única ou “flat fare”.

É um passe que pode ser comprado para a semana, mês e ano e para as pessoas que trabalham nesta região, elas poderão recorrer-se do VT (Versement Transport) obtendo 50% de apoio da entidade empregadora, desde que esta tenha 9 ou mais trabalhadores.

O objectivo desta simplificação e integração é trazer mais população para o TP e usar uma das redes de TC com mais investimento nos últimos anos – prevê-se que no período de 2009 a 2020 os investimentos sejam da ordem dos 16 mil milhões de €1. Esta decisão foi tomada pela AOTU de Paris, o STIF, com o apoio do Governo e Parlamento – ver http://www.gouvernement.fr/partage/2568-pass-navigo-a-tarif-unique.

1 — todos estes investimentos foram resultado do debate público, realizado em 2007, designado por “Grenelle Environnement”, com orientação política para a construção de redes de tP em cerca de 33 cidades e dinamização da indústria e investigação aplicada aos transportes, em particular, ao tP urbano, reforçando a articulação entre as 260 AOtU associadas no GARt e o PREDit (Programme de Recherche et innovation dans les transports terrestres – ver http://www.predit.prd.fr).

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Embora votada por maioria, esta decisão não deixa de ser tão mais importante, conquanto ela também tem impacto no sistema de financiamento das redes de TP da região, uma vez que ele depende dum conjunto de fontes, a começar pelas empresas, depois pelos utentes, pelo Estado e pelos empregadores. A clarificação imposta pela regulação existente neste país consagra a contratualização das OSP mas, devolvendo ao Operador Interno RATP uma função estratégica nesta transição ecológica da Região e da Cidade de Paris.

Esta tendência de simplificação e integração tarifária para se concretizar uma política de reforço do TP na política pública de Transição Ecológica das cidades e regiões está disseminada pela Europa, basta recordar outros países como a Itália (ex: Milão), a Holanda com passe válido para todo o país e a Suiça (“one ticket”; VÖV) que juntamente com a Alemanha (Verkhersverbünd, VDV) promovem uma política de “Transport Alliance” entre cidades/regiões.

No entanto, apesar desta tendência de simplificação e integração ser sublinhada nas grandes metrópoles, ela tem diferenças ainda significativas em relação à tendência quer ao nível dos preços praticados e da aplicabilidade em sistema baseado na zonagem, nas coroas, nas distâncias e em sectores.

Muitas destas situações podem ser explicadas pelos diferentes critérios económicos e financeiros de cada país (uns mais liberais, outros mais reguladores, etc.), em particular, no financiamento das redes de Transporte Público apesar do forte e contínuo financiamento ao Transporte Individual (rede rodoviária, estacionamento, combustível, etc.). Mas, a questão central é saber de que modo se pode colocar o Transporte Colectivo no centro da recuperação económica, sabendo hoje que o peso das externalidades tem como efeito principal uma das causas principais do aumento da Dívida e do Défice Orçamental.

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Ora, o enquadramento teórico desta problemática do tarifário é que ela tem evoluído para uma melhor compreensão da análise custo-benefício das redes e serviços e hoje, ao ser incluída nessa avaliação global das externalidades negativas (“hidden costs”) causadas pelo TI, com forte incidência nos Orçamentos Municipais e do Estado, terá forte impacto na resposta à dispersão urbana. Neste contexto, o tarifário adquire uma importância fundamental para o uso do TC em relação ao TI 2, sabendo que o efeito das elasticidades cruzadas na função utilidade do custo generalizado do sistema de transportes, requer um diagnóstico e uma avaliação com base em instrumentos que a AML não dispõe, como sejam os IGM, o PDU e a Conta Pública do Sistema de Deslocações.

Com efeito, a decisão de investimento público no reforço do TP tem sido tomada em função dos cenários desenvolvidos nos SUMP (Sustainable Urban Mobility Plan) ou nos PDU (Plan Déplacements Urbain, no caso francês) isto é, os cenários de desenvolvimento sustentável de reforço do TP na Governança Urbana têm sido avaliados e decididos após os resultados da Conta Pública do Sistema de Deslocações demonstrarem que os custos sociais directos e indirectos do sistema que apoia o transporte individual ser mais elevado que o do transporte colectivo.

tranSição ecológica e oS ServiçoS de tranSPorte colectivo – a autoridade organiZadora do tranSPorte urBano e (aotu) e o tariFário – o caSo liSBoa.

Na melhor compreensão acerca da problemática do sistema tarifário na AML e em Lisboa, o acompanhamento do processo no último inquérito aos passes, realizado em 2007, conclui-se que persiste a falta de definição da política pública que conduza rapidamente à integração

2 — No “Black Book” (tRL 593 “the Demand for Public transport: a practical guide”, 2004) encontra-se explicada a importância do impacto da variação da tarifa nos modelos de custo generalizado de escolha modal dos modos, a partir do conhecimento das elasticidades da procura / preço em função da rede. Estes modelos de escolha discreta são considerados pelas autoridades de transporte e operadores quando se trata de celebrar contratos ou planear rede e serviços. Em Portugal, a ausência de iGMs e do conhecimento destas funções, tem contribuído para uma situação anacrónica aos objectivos de integração tarifária, integração modal e integração administrativa de requalificação do território e de reforço do TC, tarefas que são da competência duma autoridade organizadora do transporte urbano em complemento às tarefas de agências de urbanismo (entidades públicas a criar).

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tarifária e modal, objectivo que se busca há mais de 35 anos3.

A descrição das características funcionais do sistema actual é a seguinte: “O Sistema Tarifário é muito complexo, pouco claro e de difícil perceção para o público, o que em nada contribui para melhorar a acessibilidade ao transporte público. A simplificação tarifária que já foi tentada várias vezes ao longo dos anos, com eliminação de alguns títulos e criação de outros, apresenta vários constrangimentos:

i. Ausência de uma Autoridade conhecedora da realidade e que tenha poder para decidir;

ii. Ausência de estudos de mobilidade/inquéritos à utilização de transporte atualizados;

iii. Número exagerado de títulos agravado pela existência de  diversos perfis distintos com descontos diferenciados por perfil. Atualmente, para além do perfil normal, tem-se: Social+ A e Social+ B, 4_18 A e 4_18 B, sub_23 A e sub_23 B; 3ª idade; reformado/pensionista e criança - só na Carris circulam cerca de 605 títulos válidos;

iv. Negociação difícil com operadores privados (muito ciosos dos seus dados de procura), o que torna difícil a realização de estudos, por exemplo, da função “Custo de Produção”;

v. Sistema de repartição de receitas complexo e desequilibrado. …os Operadores Privados pressionam fazer a denúncia dos passes intermodais (L1…L123…) onde detêm uma quota mais baixa e cujas quotas de repartição provêm de inquéritos à utilização. Ora, esta aferição está demasiado dissociada da realidade atual para todos os Operadores. Por isso, os Operadores Privados pretendem que todos os títulos sejam criados à semelhança dos atuais combinados, onde detêm quotas próximas das suas assinaturas de linha que em nada reflete o serviço prestado em rede dos operadores Carris e Metro.

Além destes, a Carris tem ainda os seguintes constrangimentos que se revelam preocupantes:a) sistema de validação aberto, ou seja, sem validação de saída, o que dificulta o

cálculo da mobilidade dos nossos clientes;b) taxa de fraude elevada, sobretudo ao nível dos passageiros de passe

considerando que a aquisição do título é condição suficiente para poderem viaja e realizam as suas viagens sem qualquer validação;

c) sistema de bilhética embarcado obsoleto e em risco de perda de dados.

A TT/SL apresenta o mesmo tipo de problemas relativamente ao sistema de bilhética”

3 — ausência de contratos de OSP que obrigasse definir NS de oferta em rede e não em linhas. A repartição é função da procura conhecida com recurso às validações e à utilização de cada operador (percurso médio). Contudo, a legislação recente sobre esta matéria é omissa e carece de clarificação em muitos aspetos, nomeadamente no método de cálculo. A repartição de receitas dos títulos tem sido sempre um obstáculo à simplificação, algo que urge resolver com a Autoridade Organizadora do Transporte Urbano da AML.

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Perante esta síntese funcional e operacional do sistema, a anterior AMTL desenvolveu estudos com especial incidência na configuração do tarifário praticado e na expansão do sistema de passe intermodal a toda a AML.

a ex - amtl e oS eStudoS tariFárioS

Uma primeira evidência é que o actual sistema tarifário é um obstáculo à integração da população da AML pois, deixa de fora perto de 900 mil habitantes e se o sistema fosse abrangente à região de LVT, então a população ultrapassaria mesmo um milhão de habitantes. A segunda evidência é a incoerência da intermodalidade da rede de TC com a proliferação de títulos e níveis tarifários.

As condições actuais de funcionamento da rede TC são baseadas na complementaridade de modos mas, havendo a urgência de que o planeamento e a contratualização destas redes e serviços de melhorar o nível de serviço da oferta (diminuição do nº de transbordos e melhorar os tempos de deslocação), o sistema tarifário e a exploração terão que rever a integração modal e tarifária de forma a recuperar para muito mais do dobro a procura das suas redes e serviços.

É neste sentido que o PROTAML propõe um planeamento das redes e serviços cujo modelo é baseado na multimodalidade nas coroas actuais, ou seja, onde há maior concentração de população (até 20km à volta de Lisboa) e onde a geografia das ligações serve não só a pendularidade das deslocações obrigatórias mas, também, as realizadas por serviços, compras e saúde - componentes da vida urbana local. Promover a interoperabilidade, por exemplo, da rede ferroviária e maximizar as ligações directas tem a ver com o objectivo de haver maior transferência do TI para o TC, diminuindo o nº de transbordo e os tempos.

Na coroa até aos 40 km, a intermodalidade poderá prevalecer com excepção dos casos de maior densidade humana líquida (DHL) correspondentes àquele modo de vida, o que deixa em aberto o plano de oferta promover também aí, a multimodalidade e diminuir a política do transbordo (a intermodalidade).

Ora, nos estudos apresentados pela ex-AMTL (dissolvida através da lei 52/2015), a política tarifária foi orientada pelo anterior Governo por critérios financeiros: aumentar as receitas comerciais directas (aumentos médios da tarifa em Jan. de 2011 de +3,5% e em Agosto de +16,09% com a alteração diferenciada das tarifas de bordo por rede em Fev. de 2012 de +5% e com a descida das bonificações sociais ficou em +46%), muito acima da inflação e descer os custos operacionais, mesmo sabendo que destes, os custos fixos não descem e só os custos variáveis é que ficaram sujeitos a uma descida muito à custa da diminuição do serviço de oferta - ainda hoje com efeitos muito negativos na perda de procura global.4 (todos os gráficos e tabelas seguintes são retirados do site da extinta AMTL).

4 — Estes aumentos de tarifário e diminuição dos custos operacionais foram inscritos no PETI3+ com a explícita política financeira de serem as receitas dos utentes ainda mais a cobrir as despesas de exploração ao mesmo tempo que se diminuía a oferta, numa lógica de apresentação de resultados operacionais positivos, criando as condições para a privatização dos serviços da rede de tC, do Metropolitano de Lisboa, da Carris e da CP suburbanos, além da TT e Soflusa. Esta política tarifária teve como contrapartida, contribuir para uma quebra global da procura em tC (o que torna mais difícil a sua recuperação) num contexto de crise em que era prioritário retirar pessoas do uso do automóvel.

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Os gráficos abaixo dão conta disso quando apresentam uma taxa de cobertura de R/D da AML com uma média de cerca de 78% enquanto em várias cidades europeias essa média não vai além dos 47%. Por outro lado, se comparar-se a variação da tarifa em Paris, Berlim, Londres e Madrid entre 2000 e 2012, o caso de Lisboa é significativamente o mais grave – ver página 6 e a página 9.

Com efeito, a evolução das tarifas desde 2002 (em particular, no período de austeridade 2010-2012) consegue ultrapassar a inflação (preços correntes), inscrevendo-se no sentido contrário ao das políticas de oferta doutras redes europeias, onde houve um reforço de oferta de serviços de TC e tarifas atractivas de modo a aumentar as transferências modais do TI para o TC e reduzir as externalidades negativas – ver Quadro de comparação com redes europeias.

Esta política tarifária do TC feita em Lisboa, quando comparada com outras cidades e metrópoles europeias, só tem correspondência com a cidade de Londres (onde a liberalização e a desregulação obrigam a outros mecanismos do uso racional do espaço urbano através de “congestion charge” sobre a circulação e estacionamento do transporte individual…) e cujos efeitos não têm diminuído o peso das externalidades negativas e da segregação territorial e social.

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De resto, quando comparada com as políticas tarifárias das restantes cidades europeias (ver “Price Purchase Power”), o preço da tarifa do TC nestas cidades corresponde a um efectivo aumento da rendibilidade disponível das famílias e das pessoas, para além de evidenciar políticas coerentes de integração social e territorial, como é o exemplo de Paris, com a tarifa social única.

Nos restantes estudos realizados pela ex – AMTL4, houve particular incidência de estudos acerca do sistema tarifário baseado na expansão das coroas geográficas admitindo em simultâneo que a integração efectuar-se-á pelo sistema de passe intermodal. Uma das primeiras propostas apresentadas pela ex – AMTL foi a de 8 coroas e 7 sectores (Set.2012), ao que foi contraposto por uma proposta dos vereadores da AML com seis sectores e sete coroas (Junho 2013) e posteriormente da JML (Set.2014) reduzida para 5 Coroas com Lisboa e seis sectores e que levou a ex- AMTL a ponderar um cenário com um alargamento da Coroa L (cidade de Lisboa até aos limites da exploração das redes de CCFL e Metro servindo cerca de 855 mil residentes, podendo ser alargada a uma coroa N com cerca de 1,1 milhão de hab. em 174km2 e na Margem Sul uma primeira coroa servindo directamente cerca de 510 mil hab. em 238 km2) - ver Figuras.

Do lado da avaliação do impacto destas propostas, entre outros estudos, merece aquele que refere um impacto na ordem de + 0,16% na receita dos operadores, tendo em consideração o sistema das coroas e sectores e os cerca de 375 mil utilizadores das redes de TC com os 17,8 milhões de euros de receita (2014).5 Num outro estudo acerca da simplificação do sistema tarifário6 são apontados os preços de equilíbrio por coroas.

Dentro da análise dos cenários de exploração com sistema tarifário não houve nenhum cenário com a tarifa social única para toda a AML.

4— estudos com vários sistemas baseados num zonamento alveolar, sectores e distâncias. todos estes estudos foram realizados por consultores exteriores à ex-AMtL uma vez que não existem entidades públicas com competências para analisar e avaliar as problemáticas integradas de acessibilidade, mobilidade, energia e território como são os casos de agências de urbanismo em colaboração com as comunidades urbanas de Bordéus (A’Urba) e de Strasbourg (ADEUS).5 — “Reformulação e Expansão do Sistema tarifário da AML”, Relatório Final, Mobilidade Suave, 2013. 6 — “Simplificação do Sistema Tarifário da AML”, Relatório Final, TIS.pt, 11 de Fevereiro de 2013.

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o PrincíPio da integração tariFário na tranSição ecológica da aml e na comPenSação Financeira.

Para se verificar a importância do sistema tarifário nesta geografia de deslocações da AML, recorreu-se à metodologia usada em França nos contratos de serviço público entre a autoridade de transporte e operador para o cálculo da integração do princípio da compensação tarifária na compensação financeira, além de se ter em consideração que têm na tarifa social única e na simplificação tarifária os principais eixos de promoção do transporte público e de resposta ao “étalement urbain” (dispersão urbana). No caso da Alemanha, a comparação entre a tarifa do TP e os gastos em TI permite evidenciar a estratégia de transição ecológica – ver Quadro.

Dum modo geral, a compensação tarifária é feita tendo em consideração que a evolução da compensação financeira não satisfaz a evolução da diferença entre as despesas e as receitas teóricas ou de equilíbrio da exploração das redes e serviços. O índice de actualização aplicado

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à diferença entre D-R ao ano anterior, pressupõe que as receitas evoluem como o índice económico (INE) das várias rubricas de despesa (salários, combustíveis, veículos...), o que não se verifica, uma vez que a AOTU ao decidir a política tarifária, faz evoluir as tarifas de forma diferente ao das despesas.

Esta compensação tarifária que se verifica nos contratos de serviço público de transporte, é assumida de forma clara mas, é raro incluir elasticidades de procura/preço da tarifa, com excepção em certos contratos de compensação financeira, em que a remuneração do operador (= diferença entre as despesas e as receitas comerciais) depende directamente das tarifas que por sua vez não variam como os custos de exploração. Daí, haver a necessidade de atribuir elasticidades que internalizem essa diferença, sobretudo nos casos em que há objectivos de receitas e de procura partilhados entre autoridade e operador e em que há sempre desvios e, portanto, com incidência no ajustamento do cálculo da remuneração do operador 7.

a Formação na área de economia de tranSPorteS e a QueStão tariFária do tP na tranSição ecológica da cidade de liSBoa e na aml

Ao nível do operador interna de Lisboa, a TL adquire importância pelo facto de ter acontecido a “junção” de operadores públicos como a Carris, a Transtejo/Soflusa e Metropolitano de Lisboa, com conhecimento em economia de transporte o que pressupunha que se começasse a criar condições de gestão integrada do conhecimento nas áreas de economia e engenharia de transportes. No ano e meio de existência, tão aconteceu e este atraso pode ainda ser revertido se for lançada a condição de Operador Interno, o que obrigaria a internalizar estas áreas na perspectiva de se evoluir para uma estratégia de planeamento integrado, tal como se efectuou na RATP ou na STIB, de transição ecológica da cidade.

Ora, a gestão do conhecimento e dos recursos humanos são factores incontornáveis na elaboração da criação de condições para que haja essa elaboração de estudos anteriormente referidos e lançar-se a dinâmica de Planeamento Estratégico, como outros operadores europeus a usam (RATP; STIB, etc.) e que consolida as relações institucionais entre os vários actores: autoridade, utentes, universidades, operadores, câmaras municipais e câmaras de comércio e indústria.

O modelo de planeamento estratégico é dinâmico e deslizante (Horizonte 10 anos), articulado com as competências e iniciativas doutros actores, como a AML que tem a responsabilidade de elaboração do Plano Deslocações Urbanas e da Conta Pública do Sistema de Deslocações.

Tais prerrogativas da AML podem ainda ser mais completadas com o alargamento destes instrumentos à celebração de contratos de serviço público entre o Operador Interno e a

7 — No caso francês, qualquer que seja o tipo de contrato considerado, os valores de elasticidade observados são da ordem de grande-za de 0,7 a 0,8 (ex: No Havre, a compensação é fixa independentemente do nº de viagens realizadas e as estimadas e em que apesar do operador assumir o risco comercial, se houver um desvio superior a 7,5% em relação às viagens de referência, as partes terão de se reunir mas, em que a AOtU tem de limitar o nível de retribuição). O volume de viagens de referência em que as elasticidades =0,7 e =0,8; Kn = quilometragem anual do ano n; tn = à tarifa média n do ano de referência (1996) e F96 o número de viagens realizadas em 1996, fazem parte desta convenção entre a autoridade do Havre e o operador que utiliza a seguinte expressão

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05. propostas

Autoridade de Transportes como, aliás, acabará por ocorrer também entre a Autoridade de Transportes e outros Operadores da AML. Mas, o facto de poder-se desenhar a figura de Operador Interno, isso exige que as funções e responsabilidades deste Operador Interno se concentrem em matérias de economia e de engenharia de transporte público.

É nesse sentido que o princípio da integração da compensação tarifária na compensação financeira é fundamental e a integração e simplificação tarifária não se concretizará sem um aprofundamento do conhecimento destas matérias que englobam as condições de celebração de contrato de obrigações de serviço público.

concluSão

A solução da tarifa única corresponde ao desenvolvimento de políticas integradas de acessibilidade e mobilidade que combatem a dependência do automóvel. As práticas do tarifário social único estão a ser assumidas em França como uma aposta muito forte neste programa de diminuir os efeitos da dispersão urbana, de transferência modal do Transporte Individual para o Transporte Colectivo e de recuperação do rendimento disponível das pessoas e das empresas. Os benefícios desta transferência- ver artigo anterior da Crítica nº7 – têm impacto na redução da dívida e dos défices orçamentais dos municípios. O período de transição é longo para uns (H2020; H2030) e mais longo para outros (H2050) dependendo do caminho já iniciado nus casos e atrasado noutros. O compromisso de diminuição de emissões e de se fazer a transição ecológica das cidades e regiões dependerá do maior compromisso entre decisores, operadores e utentes.

No caso desta perspectiva ser avançada em áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, à semelhança do “Navigo” (tarifa única) da Região de Paris, isso obriga a consolidar estratégia e programa operacional do transporte urbano e identificar outros compromissos além daqueles, como avançar com as leis de financiamento de transição ecológica, ou de financiamento do transporte urbano, ou da realização sistemática de Inquéritos Globais da Mobilidade e articulação do Plano Deslocações Urbanas e a respectiva Conta Pública do Sistema de Deslocações de modo a criar condições de avaliação sobre prioridade de investimento e de exploração de redes e serviços de TC – numa perspectiva de Organização Institucional de Transporte Urbano alargado a todo o país.

A possível e desejável introdução da metodologia do Planeamento Estratégico no Operador Interno, à semelhança do que foi feito desde 1973 na RATP, mais compatível com os objectivos e as competências dum Operador Público com a dimensão e escala de intervenção e tarefas no actual contexto de saber fazer ou saber contribuir para a transição ecológica da cidade de Lisboa. Com a criação da AML e o previsível período de eleições autárquicas no próximo ano de 2017, o contexto de crise financeira e a orientação da Tutela acerca das questões ambientais, ordenamento do território e TP urbano abre a perspectiva de haver uma reorganização dos principais actores que intervêm no sector do TP urbano e com provável incidência do que advém da política de reforma administrativa que se pré-ficgura.

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05. P

rO

POST

AS

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apogeu e queda da ‘europa alemã’

viriato Soromenho marQueS

O texto que se oferece ao leitor nesta edição da Crítica, reproduz integralmente o décimo capítulo da minha

obra, Portugal na Queda da Europa (Temas e Debates/Círculos de Leitores, 2014, pp. 257-275). Apesar de ter

sido escrito há mais de dois anos, considero que as páginas que se seguem ajudam a compreender os ele-

mentos de (ir) racionalidade no comportamento da Alemanha numa crise europeia, perante a qual Berlim

assumiu, pelo menos desde final de 2009, o papel de indiscutível gestor hegemónico.

Neste texto analisa-se o modo como o programa da “Alemanha Europeia”, que foi a bússola estratégica da

Alemanha Federal no tempo da guerra-fria, se transmutou no regresso à “normalidade”, com Gerhard Schrö-

der, e depois numa afirmação de poderio unilateral na condução da crise, erradamente denominada como

“crise das dívidas soberanas”.

A “Europa alemã” (socorro-me de um termo inventado pelo sociólogo alemão, Ulrich Beck, em 2012), está

hoje em plena derrocada. Primeiro, com a hostilidade de muitos países, e não apenas os quatro de Visegrado,

face à oscilante política de refugiados da chanceler Merkel, hesitando entre uma hospitalidade voluntarista

e uma negociação de total capitulação pragmática com Ancara. Depois, com a fraqueza disfarçada de força,

na desastrada resposta ao brexit, abrindo hostilidades contra Lisboa e Madrid. Na altura em que seria pre-

ciso mudar de rumo, Berlim reitera a sua postura de “hegemonia defensiva” (conceito que se esclarece nas

páginas seguintes), acelerando o processo de entropia e de desagregação não apenas da Zona euro, mas

também da União Europeia no seu conjunto.

Em 1914 e 1939, respectivamente, a monarquia constitucional de Guilherme II, e a ditadura nacional-mili-

tarista de Hitler, lançaram a Europa e o planeta em duas guerras mundiais. O imperador e o ditador foram

vítimas da desmesura, do seu excesso de ambição. Em 2016, uma sofisticada democracia germânica, arris-

ca-se a lançar a Europa no caos, e a economia mundial na desordem, pela sua insistência numa estratégia,

completamente irrealista, de manter tudo como está na união monetária, usando as regras do Tratado Or-

çamental como no passado o II e o III impérios usaram o instrumento militar. Mais do que em 2014, hoje só

um improvável milagre poderá impedir a Europa de mergulhar num destrutivo, abismo político, económico,

EStUDOS

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e social, de incertas proporções. Portugal, se essa possibilidade história se vier a concretizar, passará por

um período de vulnerabilidade político-económica e sofrimento social que talvez só tenha paralelo com o

período das invasões francesas, mas sobreviverá como comunidade política nacional. Não posso dizer que

o mesmo aconteça com a Alemanha. A sombra de Cartago mostra-nos que há erros na história que não se

cometem quatro vezes.

9 de Julho de 2016

Viriato Soromenho-Marques

A Alemanha chegou atrasada à história europeia. A sua demorada construção do Estado (com-pletada em 1871, e apenas comparável com a Itália), implicou que quando Berlim se sentou à mesa do poder europeu já lá encontrou comensais muito mais antigos, com interesses bem definidos e rotinas pré-estabelecidas. Como Eça de Queirós, Andrade Corvo e Nietzsche previ-ram, a entrada de um novo país, com a massa e o poderio emergentes de Berlim, iriam trazer ao mundo uma convulsão como ele nunca conhecera antes. Não é por acaso que, hoje, quan-do se pensa no impacto mundial da ascensão da China no século XXI, se pensa na Alemanha do século XIX…De facto, a chamada Segunda Guerra dos Trinta Anos (1914-1945) é, em gran-de medida, uma guerra que foi motivada pela tentativa da Alemanha encontrar e consolidar o seu corpo político próprio num «sistema internacional europeu», e mundial, já muito cris-talizado. Não admira que, depois da terrível derrota de 1945, o futuro da “questão alemã” se tenha fundido com a questão central de como construir um corpo político europeu que não lançasse a Europa e o mundo de novo no abismo. Esse foi o esforço declarado por Spinelli em 1941, ainda durante a guerra, ou por Churchill, no seu discurso na Universidade de Zurique, em 1946. Essa foi a longa tarefa iniciada por Jean Monnet, Robert Schuman, e os outros pais fundadores ao longo das décadas que se seguiram ao conflito.

1. duaS metamorFoSeS.

Ao contrário de 1918, em 1945 a Alemanha estava devastada. O falhanço da conspiração mi-litar contra Hitler, em 20 de Julho de 1944, levaria a guerra até ao coração da Alemanha e aumentaria exponencialmente o número de mortes, sobretudo entre os civis. Testemunhos li-terários como o Outono Alemão, do jornalista sueco Stig Dagerman, ou filmes como Alemanha, Ano Zero, de Roberto Rossellini, revelam melhor do que qualquer ensaio histórico o estado de devastação a que a desmesura nazi havia conduzido a Alemanha. A divisão do país, e os 12 milhões de refugiados das zonas de ocupação soviética, empurrados pelo avanço dos exérci-tos de Jukov, transformaram durante muito anos o que restava do III Reich num território de desastre humanitário.

É preciso, na economia do nosso ensaio, perceber que entre 1945 e 2014, a história alemã se divide, claramente, em duas partes. Até 1990, e depois de 1990. São duas épocas, duas meta-

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morfoses claras da Alemanha do segundo pós-guerra, marcadas, simbolicamente, pelas duas capitais: Bona e Berlim. A reunificação alemã, isto é a completa e expedita integração da RDA na RFA, marcou o início da fase em que nos encontramos, e de que a actual crise europeia é o ponto mais dramático.

Entre 1945 e 1990, a Alemanha com capital em Bona estava limitada estrategicamente. Viveu sob tutela. Tanto a sua Constituição federal como a sua nova ordem monetária, incluindo a disciplina e independência típicas do Bundesbank foram-lhes, em larga medida, ditadas pelas autoridades aliadas, sobretudo pelos EUA. Toda a sua política externa e a sua integração em organismos internacionais, desde as Nações Unidas à NATO, passando pelas organizações da construção europeia, como a CECA, em 1951, passavam pelo crivo externo. A parceria franco--germânica, receitada como imperativo por Winston Churchill, foi levada a cabo numa clara atitude de subalternização de Bona perante Paris. A divisão da Alemanha facilitou as coisas. Importa não esquecer que o primeiro chanceler da RFA, Konrad Adenauer, era um renano, que tinha estado, embora com alguma discrição, nos movimentos que entre 1919 e 1924 procu-raram criar maior autonomia política (para alguns, o objectivo seria a independência pura e simples) para as regiões mais ocidentais da Alemanha. Muitos alemães estavam descontentes com a hegemonia prussiana no II Reich, que havia conduzido à I Guerra Mundial, e contribuído para o desastre de 1945. A perda dos territórios da linha Oder-Neise para a Polónia, e a criação da RDA, significavam o fim efectivo da Prússia como factor aglutinador, mas também como o grande perturbador da Alemanha e da Europa. Nada indica que Adenauer lamentasse forte-mente esse facto.1

A divisão da Alemanha também se efectuou no plano das mentalidades. Na RFA houve um pro-cesso de “desnazificação”, promovido tanto por pressão das autoridades de ocupação, como também pela exigência ética de exorcizar a “questão da culpa alemã” (die Frage der deutschen Schuld) pelo Holocausto, e restantes crimes do regime hitleriano. Na RDA, sob o regime de ocupação soviético nada de semelhante foi realizado. As várias gerações do pós-guerra foram educadas em regimes completamente distintos no que toca ao passado do expansionismo e do imperialismo germânicos. A Ocidente, com a memória da culpa e o sentimento de respon-sabilidade pela cumplicidade popular com um regime torcionário. A Leste, numa espécie de suave inocência, os nazis eram considerados como uma força invasora que tinha corrompido e oprimido também o povo alemão.2

Três elementos culturais relevantes para o lugar e o papel da Alemanha na Europa foram ama-durecidos no tempo de Bona. O primeiro é a tónica numa “Alemanha Europeia”, a constante reafirmação pelos líderes democratas-cristãos, sociais-democratas, liberais ou verdes/ecolo-gistas, de uma fidelidade germânica à construção de um projecto comum europeu. A confis-são de que Bona jamais colocaria o seu interesse estratégico em rota de colisão com o do resto da Europa, que, na altura da guerra-fria era apenas a Europa ocidental. O segundo elemento reside numa ruptura profunda com o militarismo, comprovada não só pela exiguidade dos orçamentos militares, como também pelo facto de o conceito prevalecente no interior das forças armadas alemãs (Bundeswehr) ser claramente o da subordinação do poder militar ao

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poder civil. Mesmo as questões de abusos e crimes cometidos dentro das casernas são objecto de um tratamento de natureza política (saindo fora da esfera exclusivamente castrense), por parte do parlamento federal (Bundestag), no âmbito de uma comissão para tal competente. Finalmente, no plano cultural mais profundo, a sociedade alemã-ocidental desenvolveu uma atitude consistentemente pacifista, que levou mesmo à criação de um forte movimento cívico nos anos 80, em plena crise dos euromísseis.3 A hostilidade ao belicismo, aliou-se à consciência ecológica e ambiental, que é das mais elevadas na Europa e no mundo. Nenhum outro país re-vela uma hostilidade tão enraizada ao fenómeno do nuclear, seja na vertente militar (que con-tinua totalmente interdita ao Estado alemão), seja na vertente civil. Em 2011, Angela Merkel, depois do acidente nuclear de Fukushima, no Japão, foi obrigada a reconfirmar a decisão do anterior governo de coligação (entre o SPD e os Verdes) de abandonar o nuclear no prazo de pouco mais de uma década. Estes factores são elementos importantes, embora susceptíveis de erosão e mudança, que não só protegem a Alemanha de si própria, como servem de indi-cadores de alerta e transgressão para o resto da Europa. Com a condição de esta ser capaz de manter alguma vigilância crítica em relação ao estado de coisas no universo germânico.

2. a reuniFicação alemã e aS tentaçõeS do leSte.

Não tinham ainda passado 24 horas sobre a queda do muro de Berlim, em 9 de Novembro de 1989, quando o ex-chanceler Willy Brandt se dirigiu à multidão apinhada na pequena praça em frente do edifício da câmara municipal, de Berlim ocidental, em Schöneberg. Brandt tinha falado desse mesmo lugar, em 1963, tendo a seu lado o jovem presidente dos EUA, John F. Kennedy, que aí pronunciou o seu célebre discurso “Ich bin ein Berliner”, contra a divisão da cidade e a política soviética. Com perfeita consciência de que se estava a viver um daqueles raros momentos “histórico-universais”, mencionados por Hegel, Brandt mediu bem as pala-vras. Falou num registo onde a emoção jamais perturbou a racionalidade. No final, sintetizou o essencial da sua mensagem: a Alemanha que se iria erguer com o fim da guerra-fria, e com a reunificação (que ficou como possibilidade em aberto, desde a primeira pedra tombada do Muro), teria de ter a sabedoria necessária para conciliar os “interesses alemães” (deutsche Inte-ressen) com “o nosso dever em relação à Europa” (unserer Pflicht gegenüber Europa).4

Depois de 1989, a Alemanha de Bona passou à metamorfose seguinte, transformando-se na Alemanha de Berlim. Um país que, depois de décadas de tutela imposta pelos vencedores da II Guerra Mundial, passava a gozar de uma enorme e crescente autonomia estratégica. Por essa altura, em Maio de 1990, publiquei uma reflexão que, relida à luz dos acontecimentos de hoje, se mostrou bastante acertada. Por isso a partilho, apesar da sua extensão, com o leitor:

“Uma arriscada viragem prioritária para Leste, na sequência de uma profunda metamorfose nos alinhamentos partidários da nova Alemanha só pode ser seriamente pensada na sequên-cia da queda em ruptura e fragmentação da URSS. Nesta eventualidade, potencialmente ca-tastrófica, poderiam surgir muitos ingredientes conducentes ao ressurgimento já não de um domínio (Herrschaft), mas de uma “hegemonia” (Vorherrschaft) germânica, sobre o centro-leste

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europeu, catapultada pelo desvio do seu imenso poderio económico-financeiro (e a prazo também militar) relativamente aos anteriores objectivos de consolidação dos Doze (…) Mas, a verdade é que, pela primeira vez, desde 1945, é aos alemães que cabe, de novo, o quinhão principal na decisão sobre o tipo de Europa em que todos iremos viver.”5

Apesar das promessas de Kohl a Gorbachev de que teria um bom comportamento em relação aos países da Europa central e de leste, que haviam integrado o Pacto de Varsóvia, a verdade é que a massa crítica do poder efectivo, neste caso económico, bem como das tradições es-tratégicas, tem uma voz própria que nenhuma promessa de um político de turno pode deter. A URSS caiu, sem levar o mundo a uma guerra internacional, ou civil (como previam alguns alistas norte-americanos que pensavam não ser possível os Estados da Federação soviética saírem sem luta, à semelhança do ocorrido com a guerra civil nos EUA, entre 1861 e 1865). As portas ficaram escancaradas para a Alemanha poder reinventar-se na Europa e no mundo.

No húmus estratégico alemão, como país do meio, existe uma inegável tentação para projec-tar a sua influência no centro e leste europeu. Desde os profetas do século XIX que falavam num “impulso para leste” (Drang nach Osten), de que a invasão da URSS por três milhões de soldados alemães e seus aliados, em 22 de Junho de 1941, constituiu a manifestação mais contundentemente brutal, até aos vários projectos de uma “Europa do Meio” (Mitteleuropa), de clara liderança alemã. A combinação entre a reunificação e a implosão soviética criava condi-ções quase irrecusáveis para que Berlim voltasse a olhar para o Leste. Sem atendermos a este contexto não estaremos em condições de interpretar o sentido da insistência francesa na UEM. Paris tinha razão quando antecipou as enormes forças de atracção do leste europeu sobre a Alemanha. Mitterrand tentou amarrar o colosso germânico através de uma união monetária, dando carta-branca aos alemães para ditarem as regras do jogo do seu funcionamento. A in-tenção de Mitterrand era compreensível, todavia o meio de comprometer Berlim com a Euro-pa ocidental não poderia ter sido mais desajeitado e contraproducente.

Hoje, a influência alemã projecta-se de encontro às próprias fronteiras da Rússia, usando, ou não, a União Europeia como veículo. A chanceler Angela Merkel não escuta os conselhos do ancião Helmut Schmidt que aconselha a Alemanha a liderar, mas sem perder a subtileza: “é uma verdadeira forma de arte ser líder, sem o parecer”.6 Infelizmente, os conselhos de Schmi-dt não têm surtido efeito. Na crise ucraniana, a chefe de governo alemã não se tem inibido de mostrar o seu poderio de forma ostensiva. Em Novembro de 2013, num jantar oficial em Vilnius, Merkel cortou, insultuosamente, a palavra ao malogrado presidente Yanukovych, com o assentimento medíocre dos comensais do resto da UE. Depois recebeu o pugilista Viktor Klitschko, o “herói” oposicionista, que Der Spiegel confessa estar a ser “treinado” por Berlim para ser o “seu estadista” em Kiev7. Só a reocupação da Crimeia pelas tropas russos, com o apoio es-magador da maioria russófona, parece ter devolvido algum sentido dos limites a Berlim. Mas a tentação do leste ficou visível, logo após a reunificação, quando Berlim, unilateralmente, reco-nheceu a independência da Croácia e da Eslovénia, em 23 de Dezembro de 1991. Berlim agiu em total isolamento, contra os seus onze aliados europeus (na altura, era a Europa dos Doze). Contra os EUA, que pretendiam suavizar a fragmentação da Jugoslávia, de modo a evitar o ba-

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nho de sangue que veio a suceder. Assim como, contra o pedido de prudência dos principais responsáveis das Nações Unidas. A atitude voluntarista alemã, que depois recuaria para uma posição de segunda linha, ajudou a incendiar a guerra civil. Não a provocou, mas contribuiu para que o preço em vidas humanas fosse muito maior.

Contudo, onde a marca alemã é hoje clara no centro e leste europeu é na economia. Os an-tigos países dessa zona, conhecidos como PECO (Países da Europa Central e Oriental) consti-tuem mesmo um verdadeiro Hinterland das grandes indústrias germânicas, com mais de 100 milhões de consumidores. Como vimos, noutro capítulo, o alargamento a leste foi uma oca-sião propícia para o investimento e a deslocalização do capital germânico. Não foram só os investimentos que antes iam para a periferia ibérica ou para a Grécia, que foram “desviados” para leste. Como salienta Guillaume Duval, no seu esclarecedor e documentado ensaio sobre a economia alemã, em 2005, os investimentos de Berlim nos PECO ultrapassavam até os inves-timentos realizados em França.8

3. a aPoSta em duaS FrenteS e oS cuStoS da reuniFicação alemã.

Em 1990 a Alemanha tinha tomado uma decisão que iria colocar à prova as suas reais forças. Aceitava o desafio francês de uma UEM, que se destinava essencialmente aos países da Europa central que cumprissem os critérios de convergência (havendo, ao tempo, dúvidas quanto às reais possibilidades de participação da Itália, Grécia, Espanha e Portugal, estando o Reino Uni-do e a Dinamarca à partida excluídos por opção própria). E, ao mesmo tempo, lançava-se na aventura da reunificação alemã, que trazia consigo enormes oportunidades no longo prazo. A curto e médio prazo a dupla aposta expressava-se, contudo, através de custos extraordinários.

A reunificação traduziu-se no aumento em 25% da população alemã, com um muito menor crescimento do PIB, de 8%. A nova Alemanha tinha de assumir uma ex-RDA com um aparelho industrial anquilosado, com baixa produtividade e altamente poluente. O esforço financeiro foi imenso, embora muitas vezes a imprensa alemã se esqueça de mencionar as generosas subvenções dos fundos comunitários que ajudaram, por exemplo, empresas como a Opel a instalarem fábricas de topo no leste (em Eisenach, na Turíngia), ou à criação de um moderno pólo de microelectrónica na região de Dresden.

Em linha gerais, o esforço de reunificação pode ser traduzido através dos seguintes indicado-res:

• Mais de 1 500 mil milhões (ou 1,5 biliões) de euros, transferidos do ocidente para o leste da Alemanha. O equivalente a uma quota anual de 3% do PIB, ao longo de vinte anos.

• O aumento da carga fiscal, através da introdução de um imposto de solidariedade (o Solidaritätzuschlag, ou, numa abreviatura quase carinhosa, Soli), que incide sobre o ren-dimento das pessoas e das empresas.

• O aumento substancial da dívida pública, que subiu de 36% do PIB (em 1991) para

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60,2% (em 2000), face às crescentes necessidades de recurso ao crédito para suportar as fortes taxas de investimento (que passou de 18% do PIB, nos anos 80, para 23% do PIB, na década de 90).

• Um aumento acentuado do desemprego, com o encerramento de muitas unidades in-dustriais obsoletas no leste: de 2,1 milhões de desempregados em 1991 para 3,8 mi-lhões, em 1997.

• Aumento da taxa de inflação para 5,1% em 1992, o que originou uma resposta brutal do Bundesbank, fazendo subir as suas taxas de juro a curto prazo de 4,3% para 9,5%, sem qualquer espécie de consulta aos outros bancos centrais da União Europeia. Esta foi, aliás, a causa da grande recessão de 1993. O que mostra como também aqui a reunifica-ção alemã foi, de facto, paga por todos os europeus.

• Nos anos 90, a própria balança comercial foi ligeiramente desfavorável à Alema-nha, tendo 1994 sido o ano mais negativo, com um défice de 1,4% do PIB.

• Outro impacto duradouro da reunificação foi o do aumento da litigância no in-terior do sistema federal alemão. Antes de 1990, uma das grandes vantagens do federalismo alemão residia na relativa homogeneidade dos estados federados do ponto de vista económico. Isso implicava baixas transferências das regiões mais ricas para as pobres. Ora, dada a divergência mais acentuada entre os 5 novos Länder do leste e os do ocidente, as transferências têm aumentado ao longo dos anos (com resultados muito positivos para a notável convergência que em duas décadas foi conseguida), mas com protestos dos estados contribuintes líquidos. A Baviera apresentou mesmo uma queixa, em 2012, junto do Tribunal Constitu-cional de Karlsruhe pelo que considera serem contribuições excessivas para o Te-souro federal.9

4. aS doloroSaS reFormaS de gerhard Schröder.

Uma penosa e paradoxal ironia da história recente foi, sem dúvida, a representada pelo gover-no de coligação entre SPD e Verdes, que se estendeu entre 1998 e 2005. Hoje é difícil perceber a que família política Schröder pertencia, pois os grandes elogios são provenientes da direita mais conservadora. Nem a presença de Joschka Fischer, dos Verdes, na condição de vice-chan-celer e ministro dos negócios estrangeiros, contribuiu para amenizar o rumo. No ano 2000, Fischer bateu-se, tanto através de um livro, como em numerosas intervenções públicas, pelo federalismo europeu e por um novo contrato social que defendesse o ambiente e os direitos sociais. Ele escreveu com frontal clareza que o futuro, na Europa e na Alemanha, se iria decidir entre dois modelos de modernização rivais: ou a “modernização neoliberal” (die neoliberale Modernisierung), ou a “modernização social e ecológica” (die sozialökologische Modernisierung). Fischer afirmou-se como intrépido defensor desta segunda via. 10 Contudo, Schröder, que estava muito mais próximo de Tony Blair do que do seu vice-chanceler, escolheu no sentido

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contrário. Realizou um novo contrato social sim, mas de natureza neoliberal, que satisfez essencialmente o patronato. Diminuiu os direitos e o rendimento do trabalho, aumentou a desigualdade social, e desenvolveu a indústria exportadora alemã numa lógica estritamente nacional, sem grandes preocupações pelas conse-quências sistémicas para a zona euro das suas escolhas.

A imprensa económica anglo-saxónica tratava a Alemanha como “o homem doente da Europa” (the sick man in Europe). A receita de Schröder, que é bem conhecida dos portugueses, foi clara; reduzir a despesa pública, comprimir a procura interna, reduzir os custos do trabalho, apostar no alargamento dos mercados de expor-tação da indústria alemã.

De modo sintético, poderemos destacar os seguintes aspectos:

• Entre 1997 e o ano 2000, a despesa pública contraiu-se de 48,4% para 45,1% do PIB.

• A procura interna, que em 1997 representava um terço do PIB, caiu para 25% em 2005.

• Nas contas correntes, passou-se de um défice de 0,8% do PIB, em 1998, para um excedente de 6,5% do PIB, em 2006, correspondendo a 150 mil milhões de euros.

• As Leis Hartz (de I a IV), inseridas num programa neoliberal designado como Agenda 2010, visaram faz-er “reformas estruturais” e “flexibilizar o mercado de trabalho (num país que ainda não tem sequer um ordenado mínimo). Foram criados milhões de empregos temporários e mal remunerados (os Minijobs).

• Na segurança social, foi adoptado o Plano Riester, que privatizou parcialmente o sistema de reformas. Com o crash financeiro de 2008, muitos dos planos de reforma viram os seus rendimentos baixar drasti-camente, existindo hoje um sério problema de idosos com baixos rendimentos, essencialmente devido a esta causa.

• O grande sucesso registou-se nas exportações. Não só a percentagem das mesmas no PIB cresceu sig-nificativamente, como, devido ao bom momento das economias emergentes fora da Europa, a Ale-manha começou a exportar mais acentuadamente para o mercado mundial. Essa política foi continu-ada por Angela Merkel. Os resultados são impressionantes. Em 1995, as exportações valiam 23,7% do PIB (contra 23, 1% das importações). Em 2012, as importações já valiam 51,9% do PIB (contra 47,4% das importações). As exportações para fora da UE passaram de 8,5% do PIB, e 1995, para 27%, em 2012.

• Os custos sociais do “sucesso” das reformas de Schröder foram, todavia, imensos. Em 2006, pela pri-meira desde que há registos seguros, a Alemanha ultrapassava a França em matéria de desigualdade social: Na Alemanha, os 10% mais ricos tinham um rendimento 7,1 vezes superior aos 10% mais pobres, em 2006. Contra uma relação de apenas 5,3 vezes mais em 1997. Em França, o caminho era o inverso: a desigualdade tinha passado de 7,7 para 6,1 vezes, entre 1997 e 2006.11

5. o SigniFicado da “hegemonia deFenSiva”.

A Alemanha transformou-se no país economicamente mais poderoso da Europa, do Atlântico à Ucrânia, mas

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a maioria da população não sentiu melhorar a sua qualidade de vida significativamente. Bem pelo contrário. Depois de anos de austeridade, de reformas favoráveis apenas ao capital, de contribuições especiais de solidariedade para a RDA, eis que rebenta a grande crise financeira de 2008, que se abate com força sobre o sistema financeiro e toda a economia alemã. O estado federal é obrigado a aumentar a dívida pública para injectar dinheiro nos bancos, cujo com-portamento irresponsável tinha colocado o equivalente a 20% do PIB alemão em produtos tóxicos norte-americanos e nas bolhas imobiliárias na Irlanda, na Espanha e na Grécia.12 A con-tracção das importações dos tradicionais clientes da Alemanha, incluindo a China, leva a uma queda de 5,3% do PIB alemão em 2009. Contudo, os empregos são mantidos, devido à cultura de co-gestão (Mitbestimmung) que ainda hoje reina no sector produtivo alemão, e ao genero-so apoio do governo federal. No final de 2009, Merkel está confrontada com uma população cansada de fazer sacrifícios, sacudida pelas constantes exigências que desde a reunificação os governos sucessivamente lhes colocavam: pela reintegração da ex-RDA, pela entrada no euro, pelo desempenho das exportações, pela irresponsabilidade dos seus banqueiros. O governo está também pressionado pelos seus banqueiros que começam a antecipar perdas, caso a Gré-cia vá a falência. Não parece que o governo de Berlim tivesse demorado muito tempo a pensar no interesse dos seus outros parceiros quando decide impor a mudança do keynesianismo para uma política europeia generalizada de austeridade. O atraso na aprovação do plano de resgate à Grécia, visou satisfazer o cepticismo dos eleitores alemães cansados de exigências. Pelo contrário, a aprovação final desses planos de austeridade, para além de ser uma condição para evitar a ruptura da própria zona euro, visou satisfazer também os bancos alemães (e de outros países), que foram os primeiros a recuperar os seus empréstimos no processo de reci-clagem de credores que teve lugar em todos os países intervencionados.

A resposta alemã à crise foi de um egoísmo de vistas curtas, que agravou a situação geral da zona euro, e, em particular dos países que se viram obrigados a pedir ajudas de emergência. Berlim não apresenta nenhuma saída estratégica para uma situação que, ao contrário do que dizem os responsáveis políticos tenderá a agravar-se, quando a rigidez da UEM começar a atin-gir o coração da economia francesa, ou voltar a reacender-se em Itália ou em Espanha. O go-verno alemão tem ocultado a verdade aos seus cidadãos. E essa verdade é que, a sua actuação egoísta acabou por se revelar vantajosa. A Alemanha tem ganho com a crise a vários títulos: a) a baixa do valor do euro em relação ao dólar (passou de 1,6 para 1,3) tem ajudado a aumentar as exportações germânicas, para fora da zona euro; b) o efeito de “sala de pânico”, isto é a fuga de poupanças dos países em dificuldades para a banca alemã tem contribuído para recapita-lizar os bancos germânicos, sem recurso aos mercados; c) o mesmo efeito de medo, tem feito cair os juros pagos pelas obrigações da dívida pública alemã para valores negativos, o que significa que entre 2008 e 2012, a crise já trouxe uma poupança de 70 mil milhões de euros em juros não pagos pelo Tesouro alemão; d) embora na Alemanha o cidadão comum pense que só a Alemanha contribui para o fundo de resgate unificado, o MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade), a verdade é que o contributo alemão é apenas de 27% (que permitem um considerável retorno anual para os cofres alemães); e) por último, dado que existe uma dura-doura fragmentação financeira no acesso ao crédito dentro da zona euro, isso significa, tanto para os consumidores privados como para as empresas alemãs, uma considerável vantagem

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competitiva (uma empresa alemã paga 2,3% de juros por um empréstimo a um ano, contra os 3,1% de uma empresa italiana, e os 5,8% de um empresa grega).13

O governo alemão abraçou uma mitologia que serve os seus interesses egoístas no imedia-to, em vez do rigor e da objectividade que permitiriam pensar os interesses estratégicos da Alemanha no longo prazo, e no quadro da União Europeia. A mitologia consiste em elogiar a austeridade, negando os efeitos corrosivos e destrutivos que está a causar em toda a Eu-ropa, particularmente nos países sob resgate. Mitologia também quando alimenta o medo dos seus cidadãos, em relação à necessidade de encontrar instrumentos de mutualização da dívida, mas também à urgência de uma estratégia de desenvolvimento sustentável comum, que possa corrigir os erros genéticos da UEM, e apontar numa direcção efectivamente federal. Mitologia ainda quando mantém os seus cidadãos ignorantes em relação à tempestade que rebentará quando a crise atingir os países centrais, e em particular a França. Talvez a mitologia seja uma forma de auto-ilusão. Talvez Merkel e Schäuble acreditem nas suas próprias fábulas.

A hegemonia alemã é assim, uma hegemonia defensiva. Que gere as expectativas dos seus cidadãos, como se a Alemanha não tivesse responsabilidades para com os seus parceiros da zona euro. Mais, como se esses parceiros fossem meros hóspedes, numa zona euro cada vez mais parecida com uma zona alargada do marco alemão. Não tenhamos ilusões. Com a sua dimensão e peso, a Alemanha seria sempre olhada com suspeita. Se tomasse a iniciativa da reforma, seria criticado por aqueles que temem a iniciativa alemã, só por vir da Alemanha. Mas, nesta fase, o que é imperdoável é a Alemanha bloquear aquilo que deve ser feito. Com sabedoria, a Alemanha poderia conhecer nesta crise a sua melhor hora. Um período de “hege-monia benigna”, como o grande país que lideraria a Europa para um novo quadro institucional e constitucional, de natureza vincadamente federal. Em vez disso, a Alemanha agarrou-se ao que sobra da ortodoxia da UEM, como se isso fosse a sua inamovível trincheira. Merkel falhou o código de conduta declarado por Brandt para a futura conduta alemã, depois da queda do Muro. Está a separar os interesses da Alemanha, do seu dever para com a Europa como um todo solidário. O tempo chegará em que até a própria Alemanha será forçada a sair da trin-cheira dos seus interesses exclusivos, escondidos atrás das regras insustentáveis da UEM. Mas, nessa altura poderá ser tarde demais para salvar a União Europeia. E quem sabe, tarde demais também para preservar os interesses permanentes da própria Alemanha.

NOtAS DE RODAPÉ

1— Michel tournier, um grande conhecedor da cultura alemã, e conselheiro de François Mitterrand vai mesmo ao ponto de considerar Konrad Adenauer como um dos três “líderes catastróficos” da Alemanha, ao lado de Guilherme II e de Adolfo Hitler: Le Bonheur en Allemagne?, Paris, Gallimard, 2004, p. 23.

2 — Sobre Angela Merkel, confidenciou o antigo chanceler Helmut Schmidt: “Ela cresceu na RDA. Ela era a favor da liberdade mas não a favor da Europa. Só depois de 1990 é que ela percebeu que a liberdade e a Europa se encontravam amalgamadas”. Entrevista ao jornalista Larry Elliot, the Guardian, 22 de Dezembro de 2013.

3 — Viriato Soromenho-Marques, Europa: O Risco do Futuro, Lisboa, Edições D. Quixote, 1985, pp.57-59.

4 —Willy Brandt” Ansprache des SPD-Ehrenvorsitzenden Willy Brandt vor dem Schöneberger Rathaus in Berlin am 10.

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November 1989”. Fonte URL: http://www.hdg.de/lemo/html/dokumente/DieDeutscheEinheit_redeBrandt1989/ (acedido em 25 de Março de 2014).

5 — Viriato Soromenho-Marques, “O Regresso às Grandes Decisões”, Diário de Lisboa, 25 de Maio de 1990, p.12.

6 — “it is an enormous piece of art to be a leader but not to appear a leader”, Helmut Schmidt, entrevista ao jornalista Larry Elliot, the Guardian, 22 de Dezembro de 2013.

7 — Viriato Soromenho-Marques, “A Política Externa da «Europa Alemã»”, Diário de Notícias, 17 de Março de 2014, p. 25.

8 — Guillaume Duval, Made in Germany. Le Modèle Allemand. Au-Delà des Mythes, Paris, Seuil, 2013, p. 196.

9 — Guillaume Duval, op. cit., pp. 122-137.

10 — Joschka Fischer, Für einen neuen Gesellschaftsvertrag. Eine politische Antwort auf die globale Revolution, Munique, Knaur, 2000, p.269.

11 — Guillaume Duval,, op. cit., pp. 161-3 e 199.

12 — Martin Wolf, “Germany’s Eurozone Crisis Nightmare”, Financial Times, 09 03 2010.

13 — Guillaume Duval, op. cit., p. 213.

clima vs. economia

Sinan eden | tradução: tania de carvalho vaZ

No final da Cimeira do Clima COP-21, enquanto funcionários governamentais, a grande mídia e ONG’s ambientalistas celebravam vitoriosamente o acordo de Paris, dezenas de milhares de pessoas protestaram nas ruas da cidade apesar do estado de emergência. O acordo foi anunciado durante a manifestação em frente à torre Eiffel, e a primeira reação dos activistas foi: “É pior do que pensámos!”

No lado positivo, o acordo de Paris reconheceu o bastante claro e urgente consenso dentro da comunidade científica e anotou o objectivo de limitar o aquecimento global abaixo de 2°C comparado aos níveis pre-industriais (e para visar abaixo de 1.5°C).

O acordo de Paris foi tão claro ao explicar o que precisa de ser feito quanto vago ao descrever como isso iria acontecer efectivamente. O acordo não só não implica compromissos vinculativos de redução de emissões como também legitimiza os compromissos voluntários dos países que iriam fixar-nos numa rota de aquecimento acima dos 3°C. Com esta ambiguidade política a acção climática tornou-se uma batalha de números – como acontece com qualquer outra

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questão no contexto do discurso neoliberal. Por um lado temos redução de emissões, projectos lunáticos de geoengenharia, comércio de carbono e técnicas de “emissão negativa” como captação e armazenamento de carbono, sendo que todos eles reduzem política climática a contabilidade do clima. Por outro lado, foram publicados vários relatórios a afirmar que é possível uma ecologização da economia vigente de combustível fóssil sem interferir com as relações de propriedade inerentes e a forma de produção. Estes relatórios são baseados numa dissociação (“decoupling”) entre crescimento económico e emissões de gases com efeito de estufa. Ambas estas partes tendem a ver nos relatórios números em vez da realidade, e enfatizam certos números em detrimento de outros para salientar que está tudo bem e que não precisamos mudar as relações sociais existentes. Por outras palavras, vamos apostar um pouco mais nos investimentos em energia “verde” e em novas tecnologias, et voilá!, podemos também não mudar o clima nem o sistema, e viver felizes para sempre.

No entanto, será esta dissociação entre crescimento económico e emissões real? Os que confiam no sistema socioeconómico actual - vamos chamá-los de “as pessoas da Mão Invisível” - defendem que os mecanismos de mercado são compatíveis com uma política climática sólida. O que eles fazem, na verdade, é mostrar-nos uma mão enquanto roubam-nos a carteira com a outra, para iludirem-nos escondendo coisas na manga e depois para darem-nos um murro na cara enquanto assistimos ao espectáculo. Este artigo é sobre esta batalha de números e a agenda ideológica que serve para esconder.

o Que é Que a mão inviSível tem Para nóS?

A Agência Internacional de Energia (AIE) publicou os dados de emissões relativos ao ano passado, anunciou que as emissões de CO2 relacionadas com a energia mantiveram-se estáveis por dois anos consecutivos, e que uma vez que houve um crescimento do PIB no mesmo período, que existe uma dissociação entre emissões e PIB.

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Muitos jornais fizeram fila para as celebrações, enquanto o Instituto de Recursos Mundiais (World Resources Institute - WRI) elevou a aposta com uma análise (incluindo UE e EUA) onde debatia que a dissociação teve lugar em 21 países desde o início do século. A British Petroleum (BP) também confirmou estas observações. Por exemplo, no caso dos EUA, o WRI publicou este grafico.

Até agora, tivemos um rápido vislumbre sobre os argumentos de dissociação. Agora vamos ver os dados um pouco mais de perto.

o Que é Que a mão inviSível não tem Para nóS?

Antes de tudo, o relatório do WRI analisa o período de 2000-2014 como objecto de estudo. Ao incluir plenamente a crise económica global, os cortes de emissões causados pela crise são vistos como se fossem causados por investimentos em energias renováveis.

Em segundo lugar, por esta mesma escolha de datas, todas as indústrias poluidoras (carvão, cimento, construção etc.) ao emigrar dos países do norte para os países do sul devido ao Protocolo de Quioto são registados como cortes de emissões nos países do norte. Mais especificamente, o crescimento do PIB vai para países imperialistas, as emissões vão para países em desenvolvimento. Que bela dissociação! Escusado será dizer, emissões com efeito de estufa em China e em Índia duplicaram no mesmo período, mas como não fazem parte do estudo de caso, a nossa Mão Invisível mantém-se.

Existe no entanto outro ponto importante. Os artigos referentes ao relatório da Agência Internacional de Energia (AIE) enfatizam a decisão da China, a qual é responsável por mais de um quarto dos gases com efeito de estufa emitidos a nível mundial, de parar com os investimentos em carvão. Muito bem. Mas existirá uma dissociação entre o PIB e as emissões em China? Se sim então porque Xi Jinping declarou uma redução do crescimento económico como o “novo normal” do país num discurso onde defendeu uma transição de indústrias de elevado consumo energético para serviços de alta qualidade inovadores?

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Na verdade, a taxa de crescimento económico atingiu o seu pico em China em 2007 e de 2010 para a frente começou a diminuir. Somado a isto o crescente descontentamento da população contra a poluição atmosférica, e agora estamos prontos a contar tudo isto como vitórias do mundo desenvolvido e a defender a nossa hipótese de dissociação.

Finalmente, o que estes artigos visam? Vá e leia um, verá: a mensagem transmitida é a de que podemos travar as alterações climáticas sem mudar o sistema. Mas porque é que nenhum deles coloca a comparação entre o que é preciso acontecer para manter o aquecimento global abaixo dos 2°C e o que está a acontecer na vida real? Para sermos justos, os países responsáveis pelas emissões globais estão mais ou menos a par e passo com as promessas de Paris. Estas promessas vão prender-nos a um aquecimento de 3°C. Os requisitos físicos necessários para um planeta habitável são deixar pelo menos 80% de todas as reservas conhecidas de combustíveis fósseis no solo. Mesmo que consideremos apenas o petróleo, isto traduz-se num valor de 1.1 biliões de dólares em activos encalhados daqui a uma década. Tal “dissociação” que represente falência para as maiores empresas do mundo e uma quase total paralisação do sistema financeiro global, é também conhecida como: revolução.

o Que é Que a outra mão inviSível tem Para nóS?

Se pensou que o único problema era que as reduções de emissões eram “insuficientes”, então tem estado a subestimar contabilistas e economistas burgueses. Na verdade não existe tal coisa como reduções das emissões mundiais e jamais algum relatório afirmou tal. Então agora, vejamos o que acontece a outros sectores e outros gases enquanto as emissões de dióxido de carbono relacionadas com a energia diminuem. Temos dois convidados surpresa.

No nosso primeiro exemplo veremos as emissões dos EUA. Adicionemos-lhe o fracking e veremos o que acontece. Fracking ou fracturação hidraulica, um dispendioso método não convencional originalmente introduzido nos anos 50, tornou-se recentemente economicamente viável na América do Norte assim que os preços do petróleo atingiram os 100$/barril. Nos EUA, estamos a falar de um total de 2 milhões de furos de petróleo e de gás, e que abrangem 43% e 67% do total da produção de petróleo e gás, respectivamente.

Defensores do fracking afirmam que o gás natural produz menos dióxido de carbono de carvão e petróleo sendo assim uma mais limpa fonte energética. E pela perspectiva da indústria de combustíveis fósseis, esta mudança é o factor chave na dissociação de emissões e PIB.

No entanto há um pequenino problema: Existem fugas nestes furos altamente complexos. Felizmente para as pessoas da dissociação, o gás que escapa é metano. Como o metano não é dioxido de carbono, não aparece nos cálculos. Contudo, o metano é um gás de efeito de estufa e quando comparado num prazo de 10-20 (o período que nos resta para evitar alterações climáticas irreversíveis), é 86-105 vezes mais forte que dióxido de carbono!

Cálculos mostram que mesmo que as fugas mantivessem um nível de 3%, o impacto climático do fracking seria pior que o do carvão. Para além disso, estudos mostram que as fugas são de entre 3.6-7.9 pontos percentuais. Por exemplo, um estudo de 2013 usou imagens de satélite

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para descobrir que as fugas em Utah ultrapassam os 9 por cento.

Agora vamos reconsiderar as emissões dos EU.

As emissões não diminuem, não param, elas estão, na verdade, a aumentar! E para somar a crise económica, a nossa única esperança de “decoupling” será de que as emissões continuem a aumentar mesmo que a economia não esteja a crescer - bem, as pessoas da Mão Invisível não gostariam desse tipo de interpretação, pois não?

Isto é como são as coisas nos EUA. Voltemos agora a nossa atenção para a UE de forma a abrangermos os países mencionados no relatório do WRI.

Como deve saber, o protocolo de Quioto excluía o ocupação do solo, alteração do solo e florestação (LULUCF) dos requisitos para redução de emissões. Desta forma, se mandar abaixo uma floresta e destruir um reservatório de carbono não terá qualquer efeito na suas quotas de emissão. E foi disto que a UE ganhou consciência: Gasolina e petróleo foram substituídos por biocombustíveis. Todos os anos entram no mercado Europeu milhões de novos automóveis a biodiesel e já alcançaram uma quota de 30% em vários países.

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Agora focalizemos. De acordo com o argumento de dissociação estes carros têm impacto zero no clima. Porque não causam emissões de dióxido de carbono relacionadas com a energia. O que eles fazem é abater algumas das florestas tropicais mais importantes do mundo substituindo-as por gigantes plantações de palmeiras, soja, colza e girassol. Se perguntar a lobistas da indústria de automóveis, não há emissões: corta uma planta, põe outra planta, nova planta também captura carbono de modo que o resultado líqido é nulo. No entanto um estudo feito pelos Transport & Environment mostra que o impacto total dos biocombustíveis é pior que o do petróleo.

Se compararmos apenas emissões directas, sim, uma transição para biocombustíveis representa uma redução média de 50%. Mas se incluir alterações por uso de solos e outros impactos, os biocombustíveis causam 80% de emissões a mais. Em alguns casos as emissões de biocombustíveis são o triplo das de óleos diesel.

Qual é o seu palpite? O WRI terá visto as emissões directas, ou implementou uma abordagem mais completa ao efeito estufa

Não se consegue enganar sequer um miúdo desta forma, mas coloque números e gráficos e junte-lhes algumas boas referências e as pessoas levam-no a sério. Mas temos de ser claros no seguinte: Se anda a passar uma cereja de mão em mão e a dizer-me “Veja, agora tenho menos cerejas!” então anda a brincar com a gravidade das alterações climáticas. Mas se, enquanto alterna de mãos, apanha duas cerejas mais e depois vem e diz aos activistas “Vejam o copo meio cheio, aqui há um decréscimo!”, depois não pode esperar que o levemos a sério. E isto é exactamente o que os relatórios de dissociação estão a fazer.

Este breve sumário explica assim o que está por trás da análise de casos do WRI para a dissociação de dados dos EUA e da UE. Ora, o melhor cenário possível para os dados globais é uma “fraca dissociação”, isto é, uma dissociação entre intensidade energética e PIB.

Que negócioS teríamoS com a mão inviSível?

O pior é ver activistas honestos a reproduzir esta propaganda. De acordo com estas pessoas: “Os grafismos tornam a nossa mão mais forte. Capitalistas pensam duas vezes antes de investir em combustíveis fósseis.” A nossa resposta a estes amigos que vivem no país das maravilhas do capitalismo é que estes grafismos são criados pelas próprias empresas dos crimes climáticos. Não é a nossa propaganda, é a deles. A nossa opção é a de acreditar nela ou não, e é tudo.

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Companhias como a Shell e a BP publicam relatórios semelhantes e estão bem cientes de para onde caminhamos. É exactamente por isso que o tentam encobrir dizendo “Olhem para aqui, olhem, vêem? Não há problema, as emissões estão a diminuir, a economia está a crescer. Não precisa de confrontar o capitalismo!”

Por outro lado: Sabemos que há pelo menos 21 biliões de dólares em paraísos fiscais. Sabemos que o único maior emissor, o Exército Americano, tem-se mantido isento dos cálculos de emissões. Sabemos que a ExxonMobil, uma empresa com uma receita anual de 350 mil milhões de dólares, sabia das alterações climáticas à 40 anos atrás e gastou milhares de milhões de dólares para financiar negacionismo.

Activistas de justiça climática têm de voltar à realidade, imediatamente. Soluções dentro do capitalismo não são umas ideias abstractas, elas são hipóteses testadas e refutadas durante décadas. Temos que extrair os ensinamentos certos das negociações climáticas feitas ao longo de 21 anos, porque se não o fazemos agora poderemos não ter mais nenhuma chance de o fazer: Temos muito, muito, muito pouco tempo para parar as alterações climáticas.

Existe uma alternativa. Nós podemos visar uma dissociação ideológica entre economia e bem-estar. Ou seja, rejeitando o argumento de que o crescimento económico e o lucro empresarial também é bom para nós. Ou seja, defendendo um planeta habitável e justo directamente. Por outras palavras, rompendo com o discurso neoliberal, recusando corporações e os ultra-ricos e focando em soluções reais. Hoje “Muda o sistema não o clima” é mais válido e urgente que nunca.

Portugal e o Petróleo: uma revisão do que está em jogo

joão camargo

Nos últimos meses a polémica à volta da questão da exploração de petróleo e gás em Portugal tem-se tornado cada vez maior e mais participada. O principal foco tem sido o Algarve, onde o modelo de desenvolvimento tornou, melhor ou pior (e pior muitas vezes), a região num receptor de turismo de massas conciliado com turismo de natureza. A contradição entre uma economia mineral extrativista e uma economia de serviços e de serviços de ecossistemas foi motor para uma grande contestação, de foco difuso e presente em quase todas as cidades – Lagos, Tavira, Loulé, Aljezur, Vila do Bispo, etc. – que tem como corolário a posição colectiva da AMAL, representando todos os municípios do Algarve, contra a exploração de petróleo e gás, em terra e no mar, por métodos convencionais ou não-convencionais.

Com as alterações climáticas, o perfil energético de todo o mundo está em cheque. Embora

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não tenha sido concretamente essa a conclusão da Cimeira do Clima COP-21, e do insuficiente Acordo do Paris, a verdade é que o modelo fóssil de desenvolvimento tem sofrido importantes reveses, devido à inequívoca relação de causa efeito entre a queima de combustíveis fósseis e o aumento da temperatura. Portugal, enquanto signatário do Acordo de Paris, assinado este mesmo ano, e de acordo com a sua Estratégia Nacional para as Alterações Climáticas e o seu Programa Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas, tem de cortar as suas emissões de gases com efeito de estufa em 50% até 2030. Ora, neste quadro, a concessão de 11 áreas espa-lhadas por todo o litoral português (Algarve, Mar do Alentejo, Mar do Peniche, até à Figueira da Foz) e 5 áreas no interior (Aljezur, Tavira, Batalha, Pombal e a aparentemente abandonada concessão do Barreiro) reveste-se de contornos ridículos. Mesmo que as concessões fossem do interesse público (e claramente não são), social e ambientalmente razoáveis (ainda são menos), privam o país de recursos e infraestruturas para um percurso inadiável no sentido de abandonar rapidamente os combustíveis fósseis e apostar noutro modelo energético, de diferente produção e distribuição, e de emissões de gases com efeito de estufa nulas ou des-prezíveis.

 

AS COnCESSÕES – 1ª PArTE

 As primeiras concessões a atrair particular atenção foram as entregues ao empresário portu-guês Sousa Cintra e à sua recém-formada empresa, a Portfuel. A opacidade do processo da entrega de 3000 km quadrados no Algarve por um período de 40 anos para a exploração de combustíveis fósseis, uma concessão atravessando 14 dos 16 concelhos algarvios recebeu a oposição dos municípios, empresários, associações ambientalistas e movimentos sociais lo-cais. A empresa Portfuel não tinha funcionários e conhecimento técnico para fazer exploração de hidrocarbonetos, e apesar disso já tinha um furo mandado fazer por outra empresa de Sousa Cintra, em Aljezur, para prospecção de petróleo, que entretanto foi embargado pela Agência Portuguesa do Ambiente. O facto da concessão ter sido entregue a 10 dias das elei-ções legislativas pelo então Ministro do Ambiente Jorge Moreira da Silva atraiu apenas mais suspeitas e polémica.

A concessão no Algarve à Portfuel foi atribuída 10 dias antes das eleições legislativas mas cinco dias depois foram atribuídas à Australis Oil & Gas Portugal duas concessões em terra, com uma área de 3780 km quadrados, na zona centro-oeste do país: as concessões Batalha e Pombal. O contrato foi assinado entre a Entidade Nacional dos Mercados de Combustíveis e a Australis Oil & Gas Unipessoal Lda., empresa com capital social de 5000 euros constituída em Março de 2015, repetindo-se um padrão de constituição de empresas hadoc para ganhar concessões gigantes por valores irrisórios. Estas foram no entanto apenas as últimas concessões a ser en-tregues. Os padrões para os contratos começaram a ser estabelecidos em 2007:

Em Fevereiro desse ano o então ministro da Economia, Manuel Pinho, atribuiu três concessões no mar do Alentejo à Partex, à GALP e à Hardman Resources. Em Maio do mesmo ano atribuiu mais quatro concessões frente a Peniche à Petrobras e à Partex. Em 2015 a concessão de Peni-

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che acabaria nas mãos de um consórcio de quatro empresas: Repsol, GALP, Kosmos e Partex, enquanto a concessão alentejana saltaria de mão em mão até chegar à posse da ENI e da GALP. Álvaro Santos Pereira e Jorge Moreira da Silva seriam os outros dois ministros a entregar concessões, ao abrigo do Decreto-Lei nº 109/94, de Cavaco Silva e Ferreira do Amaral. Todas as concessões partilham características comuns – serem áreas muito grandes, não terem sido sujeitas a avaliação de impacte ambiental ou consulta pública, terem um regulador incapaz de avaliá-las, violarem várias directivas europeias (nomeadamente da Directiva Habitats, a Direc-tiva Aves, a Directiva da Qualidade das Massas de Água e outras), assumirem expressamente ou por omissão a técnica de fractura hidráulica na terra e no mar, violarem compromissos de emissões de gases com efeito de estufa e colocarem em perigo todas as actividades econó-micas previamente praticadas nas áreas das concessões: quer seja a agricultura e o turismo em terra, quer seja a pesca, a aquacultura, o turismo, o surf e todas as actividades no mar. Para contrapor a estes argumentos de peso, tem-se levantado uma importante mistificação: “Se se descobrir petróleo ou gás em Portugal ficamos ricos”. É preciso perguntar como.

 

vamoS Ficar todoS ricoS?

Os contratos de exploração de petróleo em Portugal são feitos para atrair investimento estran-geiro, isto é, para dar pouco dinheiro ao Estado e dar muito dinheiro aos privados, fornecen-do-lhes condições para explorar com o menor custo possível. Em termos de compensações incondicionais, isto é, a “renda” que as empresas privadas vão pagar ao país pela possibilidade de sondar e explorar combustíveis fósseis, andarão pelos 575 mil euros por mês durante os próximos 55 a 60 anos, para uma área marítima de 33 mil quilómetros quadrados, equivalente a um terço do território continental, ou a Bélgica. Em terra, a área será de 4826 quilómetros quadrados (se excluir-mos a concessão da Oracle Energy no Barreiro), o equivalente a todo o Algarve, que renderão ao Estado uma renda anual média de 42,5 mil euros por mês durante os próximos 50 anos. E porque este números nem sempre são fáceis de percepcionar, pensemos em salários: António Mexia, pre-sidente da EDP, viu recentemente o seu salário passar de 600 mil para 800 mil euros mensais, o que significa que o mesmo podia alugar uma área de mar equivalente a um terço de Portugal, e ainda lhe sobravam 200 mil euros para as despesas correntes. Ou Manuel Luís Goucha, que ganhava 45 mil euros por mês em 2012, tinha perfeitas condições para pagar a renda por uma área terrestre igual à do Algarve, sobrando-lhe ainda alguns milhares.

Estes são valores médios para a exploração ao longo de toda a concessão, desde a fase de son-dagem à fase de exploração. Se não chegarem à fase de exploração e ficarem pelas sondagens, as rendas seriam muitíssimo mais baixas, muito menos de metade dos valores acima descritos.

Se começasse a exploração, muito antes do Estado poder ver dinheiro, seriam primeiro re-cuperados os custos de pesquisa e desenvolvimento, assim como os custos operacionais de produção. Isto significa que o Estado forneceria a estas empresas não apenas o monopólio (todo o petróleo e gás será propriedade da concessionária, excepto em caso de guerra) mas uma actividade basicamente sem risco para os privados, já que o investimento feito na pes-

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quisa, nas sondagens e mesmo na operação de produção, isto é, trabalhadores, maquinaria, combustíveis, etc., será todo entregue aos privados antes dos mesmos pagarem um só euro ao Estado como contrapartida da exploração. Depois de amortizados todos os investimentos da concessionária, quanto chegaria ao Estado português?

No caso da exploração terrestre, até aos primeiros 5 milhões de barris de gás, o Estado rece-beria 3% do valor da produção, a partir dos 5 milhões, receberia 6% e a partir dos 10 milhões receberia 8%. Ponto final. No caso do petróleo, se a extracção fosse de menos de 300.000 toneladas de petróleo ficaria isenta de qualquer contribuição. Entre as 300.000 e as 500.000 toneladas, a contribuição seria de 6%, e a partir das 500.000 toneladas, seria de 9%.

No mar, as contribuições seriam ainda mais pequenas: 2% até aos primeiros 5 milhões de bar-ris, 5% entre os 5 e os 10 milhões e 7% a partir dos 10 milhões. Quando falamos de petróleo no mar, até às 500.000 toneladas extraídas haveria isenção de qualquer contribuição, e a partir das 500.000 toneladas, a contribuição seria de 10%.

O contrato com a REPSOL e a PARTEX no mar do Algarve mais perto da costa renderia teorica-mente mais ao Estado, com contrapartidas no gás de 6% até aos primeiros 5 milhões de barris, 8% entre os 5 e os 10 milhões e 12% a partir dos 10 milhões. Por outro lado, o contrato no mar do Algarve mais afastado da costa bate no fundo: 10 cêntimos por barril para a concessão Lagostim e 25 cêntimos por barril para a concessão Lagosta. A 18 de Maio de 2016 o preço do barril no mercado era de 49,20€, o que significa que as percentagens de contrapartidas são de 0,2% e 0,5%. Se o preço do petróleo subir, as percentagens descerão ainda mais.

Estes valores estão muito abaixo da média dos países que têm concessões para exploração de hidrocarbonetos, mesmo que haja naturalmente outros países e governos que seguem uma similar lógica de destruição do bem público a preço de saldo e à revelia das leis e da população, invocando conceitos como a “atracção de investimento estrangeiro” ou o “interesse nacional”.

Uma vez mais, o Estado não teria qualquer direito de compra preferencial, nem de preço pre-ferencial, sobre o que fosse extraído, ou seja, se quisesse comprar o “seu” petróleo, ou “o seu” gás natural, teria que pagar o preço de mercado. Nada garante que o que se extraísse ficaria em Portugal. O Concessionário “pode dispôr livremente do petróleo por si produzido”, 100% do que descobrir, o que significa que não haveria qualquer relação com uma baixa de preços dos combustíveis. Finalmente, não foram salvaguardadas quaisquer contrapartidas para as re-giões afectadas: Algarve, Alentejo Litoral, zona Oeste Litoral, Batalha e Pombal. Os lucros são para as concessionárias. Os magérrimos impostos e contrapartidas para o Estado. As regiões mais afectadas ficariam com os riscos ambientais que seriam uma ameaça à sua economia, à sua saúde e ao ambiente global.

PorQuê agora?

O grande ímpeto dado à concessão de explorações de petróleo em Portugal foi feito no ante-

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rior governo. Existem concessões desde 1973, mas é a partir da tomada de posse do anterior governo que tudo acelera: além de adendas, mudanças de propriedade e condições contra-tuais das sete anteriores concessões, foram entregues oito novas concessões.

Mas se em períodos anteriores de prospecção e sondagem a situação era diferente, porquê há agora tanta atenção sobre o petróleo? Entre 1973 e 2012 foram efectuadas em Portugal 100 sondagens, 2 sísmicas 2D e 6 sísmicas 3D e em nenhuma se decidiu avançar para a exploração de gás ou petróleo. É no período da liberalização da economia, na era da troika, do escanca-ramento da economia, dos recursos naturais e da procura do investimento externo que se aceleram estes processos.

Supostamente a Europa tem de se tornar energeticamente independente da Rússia de Putin e do império da Gazprom, que alimenta principalmente o centro da Europa. Para isso, nada como animar a fantasia de que Portugal é uma potencial Arábia Saudita dos pequeninos, como se isso fosse possível após 40 anos de prospecções inconclusivas. Portugal tem gás e petróleo, como todos os países do mundo o têm. Tudo depende do dinheiro que esteja disponível para ser gasto, mesmo que seja mais caro extrair o petróleo do que o valor do petróleo extraído, e da disponibilidade para arruinar os recursos naturais e os interesses das populações.  A Mo-have Oil & Gas Company foi a empresa que mais perto esteve de começar exploração de gás e petróleo em Portugal, tendo falhado três vezes. Esta empresa de fundos de capitais de risco abandonou as concessões em Pombal e na Batalha, e faliu. Durante mais de 40 anos a pro-cura de petróleo rendeu zero. Hoje rende especulação, mas que não haja engano: há quem tenha disponibilidade para destruir solos e mares, mesmo com baixas possibilidades reais de comercializar petróleo. Há quem tenha disponibilidade para começar explorações altamente destrutivas, incluindo a fracturação hidráulica (fracking), prevista em todos os contratos (ex-pressamente ou por omissão, em terra e no mar) - pela simples possibilidade das concessões poderem servir de contrapartida para contrair empréstimos financeiros e explorar em outros locais, onde existam reservas de gás e petróleo comercialmente muito mais relevantes. Se nos últimos 40 anos, num ambiente muito mais favorável à exploração, com preços muito mais altos e menor consciência ambiental não se avançou, o avanço agora é ainda mais estranho.

O actual governo infelizmente não mostra convição neste processo. Pretende cancelar as con-cessões de Sousa Cintra mas fá-las depender de interpretações dúbias por parte da Procura-doria-Geral da República. Pior: jamais toca no assunto das concessões em terra da Australis e menos ainda nas explorações offshore. O planeta afasta-se crescentemente da exploração de combustíveis fósseis, com campanhas à escala global de desinvestimento nas energias fósseis sujas e investimento em energias renováveis. O governo é um pálido fantasma, procurando quanto muito tirar dividendos políticos com os possíveis crimes do anterior Ministro do Am-biente. A relutância em questionar os contratos assinados é muito insuficiente para um gover-no que pretende um novo ciclo político. Especialmente porque os contratos são claramente prejudiciais ao Estado e às populações locais por todo o país.

É ainda dito por técnicos e decisores políticos que o que está neste momento concessionado não é a exploração de combustíveis fósseis, mas sim a sondagem e prospecção. Não é verdade.

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Há um contrato único de sondagem e exploração, que deriva do Decreto-Lei nº 109/94, cujo objectivo principal foi deixar de haver 4 licenças, passando a haver só uma, desde a sondagem até à exploração. Existe ainda, segundo essa lei, uma licença de avaliação prévia e facultativa de curta duração – não foi aplicada em nenhum destes casos. Porque o objectivo não é sondar, é explorar.

Aliás, se um dos objectivos principais fosse obter informação acerca dos recursos do subso-lo, porque é que têm contratos de concessão, porque é que não têm licenças de avaliação e porque é que todos os contratos têm cláusula de confidencialidade, vedando ao público a informação? Se o conhecimento do subsolo é tão importante, porque é que não se conhecem os resultados das sondagens feitas nos últimos 40 anos?

 

AS COnCESSÕES – 2ª PArTE

Se bem que os contratos são, como foi explicado, bastante prejudiciais para o país e para o Estado, importa além disso olhar para as empresas sombrias que adquiriram as concessões. O método de atrair “investidores” e “empreendedores” foi o usual: embaratecer para desbaratar. Num encontro em Setembro de 2015 na Fundação Calouste Gulbenkian Ian Lusted, um dos di-rectores da Australis, foi peremptório: “A Australis reconhece que está aqui a convite do gover-no português”, e em entrevista à Business News, na Austrália, revelou mais detalhes: “Falámos com os portugueses e ficámos com as concessões, com a vantagem de que todos os dados já estão recolhidos sem nunca terem sido testados.(...) É uma entrada barata, com muito pouco investimento, que pode ser muito rentável com uma pequena subida no preço do petróleo.”.

A Australis Oil & Gas Unipessoal foi criada só para assinar o contrato, e tem como base a Austra-lis Oil & Gas Ltd, resultante da compra em 2014 da australiana Aurora Oil & Gas pela canadiana Baytex Energy. A aquisição teve como principal motivação a expansão da canadiana para a capacidade de extracção não convencional de combustíveis fósseis, nomeadamente gás e pe-tróleo de xisto através do método de fracking e fracking horizontal. É da Aurora Oil & Gas que vêm os técnicos da Australis, especialistas na extracção de gás e petróleo de xisto que têm como principal operação Eagle Ford, no Texas. Se a preocupação com a viabilidade económica da operação da Portfuel no Algarve existe, é preciso destacar que a Baytex, empresa-mãe da Australis, tem uma dívida superior a 1,9 mil milhões de euros e perdeu mais de 90% do seu valor só em 2015. Já valeu 5 mil milhões de euros e agora não passa dos 550 milhões, estando a sua sobrevivência em questão.

A Kosmos Energy, empresa americana, obteve duas concessões offshore em Peniche, por “Ne-gociação Directa”.A Kosmos tem ampla experiência  em mares negras e poluição difusa com petróleo. A empresa, sediada em Dallas, tem explorações offshore no Suriname, no Gana, no Senegal, na Mauritânia, no Sahara Ocidental e em Marrocos. Em Dezembro de 2014, ignorou uma resolução das Nações Unidas e iniciou exploração de petróleo na costa do Sahara Ociden-tal, território ocupado por Marrocos. Assinou um contrato com o governo marroquino e come-çou a explorar os combustíveis fósseis, violando a lei internacional que proibia a extracção no

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Sahara Ocidental. Mas é do Gana que nos vem a informação mais interessante: a Kosmos foi a estrela no documentário de 2013 “Big Men: Power, Money, Greed and Oil” (Homens Importan-tes: Poder, Dinheiro, Cobiça e Petróleo). A história é simples: a concessão de petróleo offshore no Gana foi conseguida pela Kosmos Energy através de um processo marcado pela corrupção de funcionários públicos, governantes e pela exploração financeira sem olhar a quaisquer li-mites ou consequências. Além de processos dúbios, de derrames que ficaram  por limpar e de multas por pagar, a Kosmos negociou um acordo de mais de 10 milhões de dólares para encerrar uma acção por fraude financeira acerca das reservas potenciais das suas concessões.

No Mar do Alentejo e do Algarve, destacam-se a Partex, a GALP, a Repsol e a ENI. Um mês antes das eleições legislativas foram assinadas as concessões: a 4 de Setembro.

A espanhola Repsol derrama petróleo. Muito. E em muito sítios. Em terra e no mar. A recente vitória da população das Ilhas Canárias, onde foi bloqueada a tentativa da Repsol e do governo de Madrid de começar a exploração de combustíveis fósseis no mar do arquipélago, aumen-tou o escrutínio e revelou crimes da Repsol: na Argentina antes da Repsol ter sido expulsa pelo governo, em Tarragona, no Mediterrâneo, onde teve pelo menos 16 derrames, no Alaska, onde a empresa tentava avançar à procura da expansão para o Ártico. A própria Repsol declarou 7111 derrames, entre 2007 e 2011, isto é 3,9 derrames de petróleo por dia, em média.

A ENI é uma empresa italiana de capitais públicos e privados, que se posicionava na Norue-ga para a exploração de combustíveis fósseis num pólo em degelo, quando conseguiu fazer um importante derrame numa zona conhecida pelos seus elevados padrões de segurança. Com mais de 60 anos de actividade, esteve na vanguarda de muitos processos de abertura, concessão e exploração de gás e petróleo pelo mundo, estando presente em 83 países. Talvez o Delta do Níger, na Nigéria, seja o exemplo acabado de como a experiência é relevante: em 2014 a ENI reportou 349 derrames de petróleo só nesta concessão. Em 2013 tinham sido 500. Estas contas no entanto  não batem certo com as contagens  oficiais, mas a empresa revela importante informação em relação às suas operações na Nigéria, Algéria, Angola, República do Congo, Egipto e Líbia: a quantidade de roubos e vandalismo ocorrentes nas concessões e nos oleodutos é a imagem de marca da exploração contra a vontade das populações pobres, destruindo os ecossistemas, a pesca, a agricultura e as condições de habitabilidade. Há uns meses atrás morreram mais três pessoas num oleoduto da ENI na Nigéria. No ano passado em Julho morreram outros treze. A história de violência começa muito atrás, e acompanha a cor-rupção usada por empresas como a ENI, para adquirir as concessões e manter a extração do petróleo sem contrapartidas para as populações. A maldição do petróleo na Nigéria faz-se da actividade de empresas como esta, com a exploração sem regras, com a violência e a injustiça como orientação, protegidas por milícias e mercenários. A ENI e as suas subsidiárias são ainda acusadas de usar métodos deste tipo na Argélia e no Cazaquistão. Na Líbia em guerra civil, a ENI começou a explorer petróleo e fá-lo até hoje.

A GALP Energia, no que diz respeito a extracção de petróleo, basicamente obtém contratos que outras operadoras executam. Tem 7 plataformas petrolíferas hoje em funcionamento pelo mundo, mas já declarou querer ter 16 até 2020. Algumas seguramente quererá instalar em

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Portugal. Apesar desta pulsão para aumentar exploração de petróleo, a GALP diz estar empe-nhada no combate às alterações climáticas: um dos seus portavozes disse recentemente que para a GALP investir em energias renováveis tem de continuar a investir em combustíveis fós-seis, para poder ter capital para investir em renováveis. A questão será: então que faz a GALP com o seu lucro de 639 milhões de euros em 2015? Não é capital que possa ser investido em renováveis? E se este capital nem sequer é taxado em Portugal, já que a sede fiscal da GALP é na Holanda, onde as holdings não pagam impostos sobre os dividendos das empresas subsi-diárias, temos de esperar ainda mais capital obtido da exploração de petróleo, mas que não vá parar aos bolsos dos accionistas sem ser sequer taxado, para investir em renováveis e parar de investir em mais petróleo?

A Partex, que é seguramente um dos nomes menos conhecidos em Portugal. Talvez porque é pouco associado à sua casa mãe, a Fundação Calouste Gulbenkian. Apesar de quase só ser conhecida pela sua filantropia e mecenato, a Gulbenkian obteve, em 2012, só através da venda de gás e petróleo pela Partex, receitas no valor de 1470 milhões de euros. No meio do escân-dalo dos Panamá Papers o presidente da Gulbenkian e também presidente da Partex Oil & Gas, Artur Santos Silva, defendeu publicamente o fim das offshores. A questão é que a Partex Oil and Gas Corporation tem sede fiscal nas Ilhas Caimão. Quererá a Gulbenkian começar a pagar impostos? E as subsidiárias da Partex que exploram petróleo em Oman, no Cazaquistão, no Brasil, na Argélia e em Angola, que têm sedes fiscais no Panamá, nas Ilhas Caimão e no Lie-chtenstein? O mecenato da Fundação Gulbenkian obtém-se também pelo facto da Corpora-ção Partex, holding do grupo, não ser taxada sobre os seus lucros ou outros ganhos. Offshores para receber dinheiro de concessões offshore, como aquelas que a Gulbenkian quer começar no Algarve, poderão melhorar a política cultural, mas o ambiente, a economia e o país, segu-ramente que não.

É dito que não há nada a temer porque há um regulador para garantir que tudo correrá segun-do as regras e as leis. Este regulador, a Entidade Nacional para os Mercados de Combustíveis, é o mesmo que foi criado para garantir que não existe um cartel entre as petrolíferas para concertar os preços do gasóleo e da gasolina e cujo falhanço é visto todos os dias em todas as auto-estradas do país, quando vemos antes das bombas de gasolina que os preços são sem-pre, por divina providência, iguais. É também o regulador que não vê problemas quando os preços da gasolina e do gasóleo sobem na sequência do preço do petróleo atingir máximos históricos, ou quando os preços os preços da gasolina e do gasóleo sobem na sequência do preço do petróleo bater no fundo. É o regulador cujo controlo flexível sobre os monopólios da GALP, da REPSOL, da AGIP (ENI), da Total, vai agora ser replicado na “regulação” de um novo monopólio que o Estado inventou. É um regulador que não tem peritos na área do petróleo, um regulador que não tem meios para regular nada numa área em que Portugal não tem peri-tos. Só nos podemos rir quando nos garantem as melhores práticas num furo a 1070 m de pro-fundidade frente a Aljezur, com uma Direcção-Geral dos Recursos Marítimos e uma Entidade Nacional reguladora que não tem o material, o pessoal ou o know-how para sequer ir ao mar, quanto mais fiscalizar furos a 1 kilómetro de profundidade! Além disso, esta Entidade Nacional tem uma posição mais do que ambígua: por um lado deveria regular a exploração de petróleo

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e por outro anda pelo país em tournée a promover as concessões.

Sabe-se por todo o mundo o que são as empresas petrolíferas e a selvajaria associada quer aos processos de concessão, quer aos processos de exploração. As concessões tinham como objectivo apenas continuar a entregar bens comuns, como são o ambiente e os ecossistemas, para tentar obter trocos para abater nos défices públicos, que depois são sancionados por es-tarem 0,2% acima dos acordos. Os contratos ridículos são a continuação da entrega da riqueza a empresas privadas, como acontece nas mais de 100 parcerias publico-privadas e concessões que Portugal tem e que explicam as suas auto-estradas e aeroportos vazios as suas mais de 300 barragens e as que ainda se querem construir “porque há um contrato”.

ePílogo

Mas voltemos ao principal: Portugal não pode explorar gás ou petróleo porque Julho de 2016 foi o Julho mais quente desde que há registos de temperatura. Porque os últimos nove meses foram todos os mais quentes desde que há registos: o Julho mais quente, o Junho mais quente, o Maio, o Abril, o Março, o Fevereiro, o Janeiro, o Dezembro, o Novembro. Não pode explorar combustíveis fósseis porque 2015 foi o ano mais quente desde que há registos. E porque antes de 2015, 2014 fora o ano mais quente até então. E porque dos dez anos mais quentes de que há registo, nove foram desde 2000, e o décimo foi 1998. Porque é a combustão de combustí-veis fósseis que provoca esse aquecimento. Porque para conseguirmos manter o aumento da temperatura global abaixo dos 2ºC, temos de manter 80% das reservas conhecidas de com-bustíveis fósseis debaixo do solo, e não procurar novas reservas. Portugal tem um potencial solar enorme, de 2200 a 3000 horas de sol anuais, e tem uma produção solar insignificante. Portugal não pode explorar gás ou petróleo porque isso impede o desenvolvimento das ener-gias renováveis. Explorar petróleo não significa qualquer entrada de riqueza no país, já que os contratos são ridículos para o Estado e, além disso, as empresas são especialistas a fugir aos impostos (legal e ilegalmente), a indústria petrolífera cria muito poucos empregos e destruirá milhares de postos de trabalho já existentes no turismo, na pesca e na agricultura. O país não pode continuar a facilitar a vida a patos bravos e a empresas com as mãos sujas de sangue e de petróleo, mesmo que alguém tenha tido um dia a infeliz ideia de assinar dez contratos estúpidos, fosse por estupidez, fosse por corrupção. O país e as populações não podem ficar reféns de uma decisão tomada à luz de uma lei anacrónica, mesmo que haja cobertura legal para isso. Alguns dos maiores crimes do mundo foram feitos sob a cobertura da legalidade: a escravatura, o apartheid, perseguições políticas, guerras. Não é desculpa para nada.

O processo de contestação ao petróleo fora do Algarve começa a dar os seus primeiros passos. A transformação da contestação numa campanha de índole nacional mudará certamente as hipóteses de travar este processo grotesco.