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Revista de Ciências Humanas, Viçosa, v. 14, n. 2, p. 392-409, jul./dez. 2014 392 Ação política intelectual como modelo de participação negra: o movimento da Négritude (1930-1960) Intellectual political action as model of black participation: The movement of Négritude (1930-1960) Raissa Brescia dos Reis 1 Palavras-chave: História Intelectual Africana. Négritude. Pan-africanismo. Keywords: African Intellectual History. Négritude. Pan-Africanism. 1. INTRODUÇÃO No ano de 1947, foi publicado o primeiro número da revista Présence Africaine. No texto de inauguração da publicação, assinado por Alioune Diop, intelectual senegalês que esteve à frente da empreitada, lê-se que seu 1 Doutoranda do PPGHIS, do Departamento de História da FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] RESUMO: Este trabalho é uma análise do movimento da Négritude e das redes de sociabilidade intelectual que se esta- beleceram em seu entorno, em Paris no pós-guerra. Senghor e Césaire seriam as duas grandes figuras mobilizadoras do projeto intelectual negritudiano, fundado nos conceitos de conciliação e comunhão, que seriam inerentes à “alma negra”. Nesse campo intelectual, funda-se a revista Présence Africaine, em 1947, que se pretende veículo e, no limite, performance do modelo do projeto político e intelectual identificado como Négritude, sem escapar, porém, às fissuras inerentes a um projeto de tal magnitude. ABSTRACT: This paper is an analysis of the Négritude movement and the intellectual sociability, which were es- tablished around it, in Paris, during the post-war period. Senghor and Césaire would be the two mobilizing figures of negritudian intellectual project, foun- ded on the concepts of reconciliation and communion that are supposed to be inherent to the “black soul”. In this intellectual field emerges the journal Présence Africaine in 1947, which is intended to be a vehicle and, ultimately, a performance of the political project identified as Négritude, without escape, however, to the fissures that are inherent in a project of this extent.

A Acao Politica Intelectual Como Participação Negra o Movimento Da Negritude

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ação política dos negros

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  • Revista de Cincias Humanas, Viosa, v. 14, n. 2, p. 392-409, jul./dez. 2014392

    Ao poltica intelectual como modelo de participao negra: o movimento da

    Ngritude (1930-1960)Intellectual political action as model of black participation:

    The movement of Ngritude (1930-1960)

    Raissa Brescia dos Reis1

    Palavras-chave: Histria Intelectual Africana. Ngritude. Pan-africanismo.Keywords: African Intellectual History. Ngritude. Pan-Africanism.

    1. INTRODUONo ano de 1947, foi publicado o primeiro nmero da revista Prsence Africaine. No texto de inaugurao da publicao, assinado por Alioune Diop, intelectual senegals que esteve frente da empreitada, l-se que seu

    1 Doutoranda do PPGHIS, do Departamento de Histria da FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

    RESUMO: Este trabalho uma anlise do movimento da Ngritude e das redes de sociabilidade intelectual que se esta-beleceram em seu entorno, em Paris no ps-guerra. Senghor e Csaire seriam as duas grandes figuras mobilizadoras do projeto intelectual negritudiano, fundado nos conceitos de conciliao e comunho, que seriam inerentes alma negra. Nesse campo intelectual, funda-se a revista Prsence Africaine, em 1947, que se pretende veculo e, no limite, performance do modelo do projeto poltico e intelectual identificado como Ngritude, sem escapar, porm, s fissuras inerentes a um projeto de tal magnitude.

    ABSTRACT: This paper is an analysis of the Ngritude movement and the intellectual sociability, which were es-tablished around it, in Paris, during the post-war period. Senghor and Csaire would be the two mobilizing figures of negritudian intellectual project, foun-ded on the concepts of reconciliation and communion that are supposed to be inherent to the black soul. In this intellectual field emerges the journal Prsence Africaine in 1947, which is intended to be a vehicle and, ultimately, a performance of the political project identified as Ngritude, without escape, however, to the fissures that are inherent in a project of this extent.

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    principal objetivo era se abrir colaborao de todos os homens de boa vontade (brancos, amarelos ou negros), suscetveis de nos ajudar a definir a originalidade africana e de acelerar sua insero no mundo moderno. (DIOP, 1947, p. 19)2 Mais do que a tarefa de dar a ver o que seria uma especificidade negro-africana, aqui identificada como originalidade, tratava-se de garantir a entrada no mundo moderno. A ideia, reforada ao longo do texto, era de que o estabelecimento de um papel para a coleti-vidade africana garantiria sua participao no que o autor descreve como o edifcio do universalismo, at ento inconcluso, com uma bela fachada, mas sem um bom acabamento final.

    Pensada como um contraponto e, ao mesmo tempo, como complementaridade do mundo europeu, a frica descrita no artigo de Alioune Diop, intitulado Niam ngoura ou les raisons dtre de Prsence Africaine3 , como um campo frtil ao desenvolvimento artstico, oposta a uma Europa fundada em seus princpios racionais e sua moral rgida, asctica e individualista. Diante do que seria a potencialidade para a fun-dao de um universalismo completo e de um humanismo aberto ver-dadeira amplitude das possibilidades humanas, o autor se pergunta: A moral, mesmo a mais alta, no se ressente, na Europa, de certa tonalidade esttica? (Prsence, 1947, p. 21)4 A bandeira pela concretizao de uma promissora entrada na Modernidade pelos povos at ento excludos era um ideal cultural e poltico que se unia s propostas de autonomizao gradual dos territrios franceses na frica, parcialmente conquistada com a constituio francesa de 1946. Posteriormente, em fins da dcada de 1950, seria parte da luta pela independncia total de alguns pases africanos, como o prprio Senegal. Para a Prsence Africaine, como destacava Alioune Diop, os principais atores desse programa, responsveis por fazer vir tona a originalidade africana em sua positividade e promover seu encontro com a raison mouvante europeia, eram os homens de cultura negros.

    Como a escolha pela criao de uma revista, que se tornaria em 1949 tambm uma editora, destinada publicao de trabalhos literrios e acadmicos, bem como da crtica especializada, sugere, tratava-se de um

    2 Traduo minha. (...) souvrir la collaboration de tous les hommes de bonne volont (blancs, jaunes ou noirs), susceptibles de nous aider dfinir loriginalit africaine et de hter son insertion dans le monde moderne.

    3 Niam ngoura a abreviao do provrbio tucolor Niam ngoura vana niam mpaya, lite-ralmente algo como Mange pour que tu vives, ce nest pas mange pour que tu engraisses e, em portugus, aproximadamente, Come para que tu vivas no significa come para que tu engordes. Um provrbio que ecoa a filosofia engajada da revista que, construda no ps-Segunda Guerra Mundial e sob o projeto do Ngritude, baseia-se na ideia de que a arte africana necessariamente funcional, coletiva e engajada, completamente incompatvel com o ideal da arte pela arte, como escreve L. S. Senghor.

    4 La morale la plus haute ne se ressent-elle pas, en Europe, dune certaine tonalit esthtique? Traduo minha.

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    projeto voltado e encabeado por intelectuais.5 Nas palavras de Alioune Diop, ao explicitar a poltica editorial de sua revista como um compromisso tico: E a literatura se torna ela mesma uma instituio to til quanto o Parlamento. (DIOP, 1947, p. 23)6. No entanto, a adoo do modelo da ao poltico-intelectual como ponto de partida do programa representa-do pela revista e por aqueles que, em seu entorno, se estabeleceram no ps-guerra no era a nica escolha possvel. Figuras centrais do Ngritude como Lopold Sdar Senghor e Aim Csaire e mesmo Alioune Diop tinham oficiais com as instituies polticas da Repblica francesa7 e, no entanto, era a partir do lugar de fala do intelectual que optavam por se representar.

    A legitimidade desses homens no cenrio francs estava dire-tamente ligada a esta posio de saber. Mas a adeso a um tal lugar de fala precisou ser manejada para caber no discurso negritudiano de criao positivada do que seria a essncia do homem negro, sua alma, que, tal como pensada, essencializada e homogeneizante, procurava distanci-lo do

    5 Como aponta Julien Hage, a composio do comit que subscreve o nmero de fundao da Prsence Africaine pe em tela o cenrio no qual o rgo se inscrevia e com o qual dialogava: O apoio e o interesse crescente dos intelectuais franceses eram reconhecveis pela composio do comit de patronagem que preside em 1947 o lanamento do primeiro nmero da revista Prsence Africaine: em torno de Alioune Diop, destacam-se os nomes de Georges Balandier, Albert Camus, Andr Gide, Michel Leiris, Thodore Monod, ento diretor do Instituto francs do alm-mar, e ainda aqueles do dominicano e antigo resistente Jean-Pierre Maydieu, de Emmanuel Mounier que havia publicado em 1947, depois de uma viagem a campo, Lveil de lAfrique noire -, do etnlogo Paul Rivet, diretor do museu do Homem, ao lado de Senghor, Csaire ou Hazoum, e do americano Richard Wright, assim como o conjunto da direo da Revue internationale de Pierre Naville. [Le soutien et lintrt croissant des intellectuels franais se retrouvent dans la composition du comit de patronage qui prside en 1947 au lancement du premier numro de la revue Prsence Africaine: autour dAlioune Diop, on y relve les noms de Georges Balandier, Albert Ca-mus, Andr Gide, Michel Leiris, Thodore Monod, alors directeur de lInstitut franais de loutre-mer, ceux aussi du dominicain et ancien rsistant Jean-Pierre Maydieu, dEmmanuel Mounier qui avait publi en 1947, aprs un voyage sur place, Lveil de lAfrique noire , de lethnologue Paul Rivet, directeur du muse de lHomme, aux cts de Senghor, Csaire ou Hazoum, et de lamricain Richard Wright, ainsi que lensemble de la direction de la Revue internationale de Pierre Naville.] (HAGE, 2009, p. 93, traduo minha)

    6 Et la littrature devient elle-mme une institution aussi utile que le Parlement. Traduo minha.

    7 Aim Csaire volta a Paris, aps a Segunda Guerra Mundial, como deputado eleito pela Martinica em 1945. Senghor foi deputado eleito pelo Senegal em 1945 e reeleito em 1951 e 1956. No ps-Guerra, a imagem desses dois poetas ser muitas vezes tida como modelo de uma intelectualidade a ser instituda, um mito sobre o qual se fundar o Ngritude, in-clusive para o prprio diretor da Prsence Africaine. Alioune Diop chega Frana cerca de dez anos aps os dois poetas e bebe diretamente em seus textos que circulavam no meio universitrio colonial em Paris e em seu modelo de atuao e engajamento. Na dcada de 1940, ser membro da administrao da frica Ocidental Francesa (AOF), sediada em Dakar, chegando a chefe do gabinete do Governador Geral, e atuar como snateur eleito pelo Senegal na IV Repblica francesa, entre 1946 e 1948, quando perde a reeleio para Mamadou Dia e passa a se dedicar exclusivamente revista.

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    que seriam os modos de saber ocidentais e, por excelncia, intelectuais. Afinal, eram estes filhos das elites coloniais, formados em instituies de ensino ocidentais e residentes na metrpole os mais indicados para repre-sentar as populaes de suas colnias de origem ou mesmo a coletividade negra requerida pelo Ngritude?

    2. FUNDAO DE UM MODELO DE AO POLTICA NEGRA BASEADA NO ARGUMENTO DA ESPECIFICIDADE.A questo central a ser superada para dar conta do conflito era a compati-bilidade ou no de uma identidade negro-africana que era ento criada e de um lugar de fala intelectual nos moldes franceses. Como nos informa ainda Alioune Diop, o lugar do intelectual engajado vinha para resolver uma situao desconfortvel para o estudante africano em estadia na metrpole.8

    Nem brancos, nem amarelos, nem negros, incapazes de re-tornar inteiramente a nossas tradies de origem ou de nos assimilar Europa, ns tnhamos o sentimento de constituir uma raa nova, mentalmente mestia, mas que no se fazia conhecer em sua originalidade e quase no havia tomado conscincia desta.Desenraizados? Ns o ramos precisamente na medida em que no havamos pensado ainda nossa posio no mundo e nos abandonvamos entre duas sociedades, sem significao reco-nhecida em uma ou em outra, estrangeiros em uma e em outra.Um tal estado no pode ser tolerado sem que se esteja radi-calmente livre da preocupao tica. E por nos recusarmos a renunciar ao pensamento que nos acreditamos teis a esta revista. (DIOP, 1947, p. 20)9

    8 Alioune Diop era um dos membros de uma nova gerao de estudantes que chegou em Paris no fim da dcada de 1930 ( Sdar Senghor chegara em 1927 e Csaire em 1931). Aps a desmobilizao das tropas francesas na Segunda Guerra Mundial, nas quais havia se alistado, o senegals ir fundar em Paris, um pequeno grupo de reflexo o crculo do pai Diop que se reunia regularmente no Foyer des tudiants coloniaux. [() un petit groupe de rflexion le cercle du pre Diop qui se runit rgulirement au Foyer des tudiants coloniaux.] [Traduo minha] (BLANCHARD, 2012, p. 145, traduo minha) a este grupo de estudantes coloniais em debate que o autor se referia no trecho transcrito.

    9 Ni blancs, ni jaunes, ni noirs, incapables de revenir entirement nos traditions dorigine ou de nous assimiler lEurope, nous avions le sentiment de constituer une race nouvelle, mentalement mtisse, mais qui ne stait pas fait connatre dans son originalit et navait gure pris conscience de celle-ci.

    Des dracins? Nous en tions dans la mesure prcisment o nous navions pas encore pens notre position dans le monde et nous abandonnions entre deux socits, sans signification reconnue dans lune ou dans lautre, trangers lune comme lautre.

    Un tel tat ne peut tre tolr que si lon sest radicalement dbarrass du souci thique. Cest parce que nous refusons de renoncer la pense que nous croyons lutilit de cette revue. Traduo minha.

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    Essas questes e demandas punham em jogo a prpria possibilida-de de homens de cultura falarem por e para os africanos e suas bandeiras e posies polticas, o que se tornaria uma demanda central para esses atores no ps-guerra, quando alguns dos antigos estudantes coloniais assumem o papel de representantes dos interesses das jovens naes africanas. As linhas centrais do problema estavam em construo j na dcada de 1930 quando, como um estudante colonial em Paris, Lopold Sdar Senghor passa a fre-quentar a comunidade de estudantes, artistas e escritores antilhanos da qual se tornaria um dos nicos membros africanos e ponto de inflexo entre a identidade antilhana e a do velho continente. As questes que se colocavam ento eram amplas e a preocupao estava em demarcar uma especificidade negra positivada que garantisse em seu interior espao de identificao e ferramentas de articulao para os jovens estudantes de humanidades e artistas na metrpole. A dificuldade era como conciliar a identidade negra tal qual ela era pensada por esse grupo e a entrada e adeso ao mundo das letras europeias, que no deixava de ser tambm um ideal para esses estudantes.

    Como se v, estava em dvida a autoidentificao de uma elite colonial criada nos quadros da educao superior francesa, que se realizava em ideais e valores representados como ocidentais ou ocidentalizados e, ao mesmo tempo, permanecia marcada pelo estigma da assimilao cultural. Ainda no estavam colocadas as bandeiras da independncia, ou mesmo de autonomia poltica nesse meio estudantil. Mas as construes identitrias feitas na dcada de 1930 seriam largamente apropriadas posteriormente e seus escritores erigidos como exemplos de engajamento, inclusive pela historiografia que se ocuparia do movimento da Ngritude.10 E estariam intimamente ligadas s articulaes dos antigos estudantes no ps-Segunda Guerra Mundial, dando legitimidade a seu papel de liderana ou mesmo representantes dos interesses de populaes africanas distantes do cenrio europeu. Portanto, sero o ponto de partida desta anlise.

    nessa conjuntura da dcada de 1930 que o argumento da ne-gritude11 entra em cena. Construda pelos jovens Aim Csaire e Lopold

    10 Para muitos autores, como Lilyan Kesteloot, a literatura negro-africana francfona tem como marco fundamental os primeiros escritos deste grupo na dcada de 1930. Segundo a autora belga, e tambm para os historiadores franceses Bernard Mouralis e Jacques Chevrier, o movimento da Ngritude inaugura a autenticidade em literatura negro-africana devido sua ligao com uma esttica da rebelio e sua necessria fala engajada. Ler mais em KESTELOOT, Lilyan. Les crivains noirs de langue franaise: naissance dune littrature. Bruxelles: Universit Libre de Bruxelles; Institut de Sociologie, 1963.

    11 O uso de Ngritude e negritude proposital neste trabalho. A inteno marcar a di-ferena entre o nome do movimento, substantivo prprio, escrito em francs, pensado como o conjunto de diferentes perspectivas cuja unidade proclamada pelas classificaes historiogrficas citadas, e os elementos que so ditados pelos pensadores em questo como constituintes de um carter especfico do homem, da cultura e da civilizao negros, substantivo comum, escrito em portugus e em letras minsculas.

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    Sdar Senghor, imersos em uma comunidade de estudantes negros que se reunia em debates e saraus na casa das jovens rms Nardal, a ideia de que o sentido completo da originalidade negra alcanado somente em seu encontro com a matriz cultural branco-europeia vai ser a base da unidade de um grupo que procurava dar sentido sua estadia na metrpole:

    , com efeito, durante esses anos estudantis que Lopold Sdar Senghor vai conhecer alguns desses estudantes num encontro que ser decisivo para ele. (...) No centro desse pequeno crculo de intelectuais, se encontrava o salo de Paulette Nardal. Essa ltima, professora de ingls, reunia em sua casa em Clamart, junto com suas irms Jane e Andre, intelectuais antilhanos e negros americanos. (SIRINELLI, 1988, p. 82)12

    So essas sociabilidades, conjugadas com incurses no mundo das vanguardas europeias e em seu primitivismo inovador, afirmado por uma elite artstica, que favorecero o surgimento de um sentimento de identificao racial e valorizao cultural, bem como a elaborao de elementos a serem enfatizados e assumidos como contribuies africanas, tudo isso mobilizado para o forjar de negritudes lidas como autnticas. E em textos do perodo, publicados em jornais nanicos produzidos pelos estudantes antilhanos e africanos em Paris, que se apoiaro mais tarde os defensores do modelo de ao poltica intelectual, apontando-o como central emancipao dos chamados povos de cor.

    Em meio a este ambiente de sociabilidade intelectual, viria tona na capital francesa um dos jornais considerado por muitos ponto de partida do Ngritude, o Ltudiant Noir, em seu primeiro e nico nmero, de 1935. O pequeno exemplar de apenas oito pginas aparece na historiografia que funda uma narrativa autorizada do movimento como o primeiro momento em que possvel ver os frutos do encontro entre Lopold Sdar Senghor, Aim Csaire e Lon-Gontrn Damas.13 Apartado de crticas diretas ao co-

    12 Cest, en effet, durant ces annes estudiantines que Lopold Sdar Senghor va faire la connaissance de certains de ces tudiants, et cette rencontre sera pour lui dcisive. (...) Au centre de ce petit cercle dintellectuels se tient le salon de Paulette Nardal. Cette dernire, professeur danglais, runissait dans sa maison de Clamart, avec ses soeurs Jane et Andre, intelectuels antillais et noirs amricains. Traduo minha.

    13 O jornal Ltudiant Noir um caso a parte na historiografia especializada. Citado pela prin-cipal autora sobre o tema, Lilyan Kesteloot, em seu Les crivains noirs de langue franaise: naissance dune litterature, de 1963, de forma indireta (isso apesar de escrever cerca de 100 pginas sobre o peridico), a partir de correspondncia trocada com os antilhanos Aim Csaire e Lon Damas e com o senegals Lopold Sdar Senghor, permaneceu envolvido em constantes polmicas que chegaram a culminar na afirmao de que h uma dificuldade de conhecer seus preceitos, pois os primeiros exemplares da revista foram perdidos e Leon Damas, que possua toda a coleo dos escritos, perdeu tudo em um incndio h poucos

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    lonialismo e mesmo elite colonial, a publicao fundamenta a forma de ao dos movimentos negros no entre-guerras como uma responsabilidade de escritores e artistas, uma atividade intelectual por excelncia.

    No artigo intitulado LHumanisme et nous: Ren Maran, assinado por L. S. Senghor, apontava-se o que mais tarde seriam as bases de uma negri-tude. Dedicando-se a analisar em que medida a escrita do martinicano Ren Maran14 representava a comunidade negra, o senegals estabelecia que o caminho para o conhecimento de si e, como decorrncia, para uma literatura cada vez mais condizente com sua condio de negro era o humanismo negro, responsvel no por fazer morrer o velho homem em ns, mas por ressuscit-lo. (Ltudiant, 1935, p. 4)15. Claramente sintonizado com as propostas de Csaire, que inclusive citado, definia esse humanismo negro como um movimento cultural que tem o homem negro como objetivo, a razo ocidental e a alma ngre como instrumentos de busca; pois h necessidade de razo e intuio. (Ltudiant, 1935, p. 4) 16 Aqui, a contradio colocada pelo escritor jamaicano radicado nos Estados Unidos, Claude McKay, em seu Banjo, de 1929, - e repetidas vezes citada pelos jornais nanicos do mundo negro francfono parisiense, - no campo de uma luta interna do negro entre uma origem africana e uma existncia civilizada, era transformada em conciliao e condio de emergncia, atravs de autoconhecimento, de uma escrita negra original. Seguindo este caminho, Senghor descreveu a ascenso de Maran em direo a uma arte cada vez mais negra cujo auge culminaria na obra Le livre de la Brousse (1934), com a qual o antilhano chegou ao termo do humanismo negro. A facilidade do tom e a forte simplicidade da expresso contribuem para salientar a verdade dos caracteres nos quais a nitidez do desenho no impede a nuance. (Ltudiant, 1935, p. 4)17

    Descrevendo Maran, o senegals deixa entrever a dicotomia funda-

    anos atrs. (DURO, 2011, p. 115) No entanto, um exemplar deste jornal se encontra nos Archives Nationales dOutre-mer, em Aix-en-Provence, na Frana, disponvel consulta e diretamente deste nmero, apontado pelo prprio arquivo e por vrios autores como nico produzido sobre o ttulo, que so retiradas as citaes e informaes divulgadas neste trabalho. Ler mais em: AKO, Edward O. Ltudiant Noir and the myth of the genesis of the Negritude Movement. Research in African Literatures. Vol. 15, No. 3 (AUTUMN, 1984, p. 341-353)

    14 Martinicano, administrador colonial de Oubangui-Chari, hoje na Repblica Centro-Africana, e escritor de Batouala: vritable roman ngre (1921), no qual promove uma denncia violncia e s exaes da administrao francesa em solo africano sem, porm, negar a ne-cessidade da atuao europeia na regio, como promotora de progresso tcnico e humano.

    15 () non pour faire mourir le vieil homme en nous, mais pour le ressusciter. Traduo minha.

    16 (...) un mouvement culturel qui a lhomme noir comme but, la raison occidentale et lme ngre comme instruments de recherches; car il y faut raison et intuition. Traduo minha.

    17 (...) est arriv au terme de lhumanisme noir. Laisance du ton, la simplicit forte de lexpression contribuent faire ressortir la vrit des caractres dont la nettet du dessin nexclut pas la nuance. Traduo minha.

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    dora presente em grande parte de sua obra. Nas palavras de Senghor, razo versus intuio no apenas a base de um humanismo negro, - fundado na fuso, que s seria possvel ao intelectual negro, entre um saber e uma tcnica europeus e a profundidade esttica e sensorial negra, - mas da transformao das noes dicotmicas que estavam no discurso ocidental racialista, fosse ele feito por homens identificados como negros ou por indivduos hostis a uma raa negra inferiorizada. Afinal, atravs deste discurso conciliatrio, que toma elementos de elaboraes hierarquizantes da dicotomia entre uma raa branca superior e grupos humanos inferiores, mas tambm de teorias construdas pelo pan-africanismo americano a partir de percepes da entra-da do homem negro na modernidade de forma falha, pela metade, sempre marcado e pensado a partir da cor de sua pele e confuso entre pertencer a uma sociedade ocidental ou fazer jus a uma herana racial negativada em seu interior, Senghor coloca no mesmo patamar o que seriam lados comple-mentares de uma equao humanista simplificada. Traando uma argumen-tao que fundava uma viso homogeneizante e dicotmica entre aqueles que seriam os dois polos culturais fundadores do verdadeiro humanismo, o autor dava os primeiros passos de uma obra que seria indentificada por geraes posteriores como essencialista e pouco interessante para as lutas a serem travadas pelos africanos na prtica. Porm, para a cena com a qual dialogava na dcada de 1930, o autor postulava a importante garantia de que o intelectual negro, capaz de, como Maran, mobilizar estes dois lados, no estava confrontado por um two-ness18 destrutivo, fragmentrio, mas por uma peculiaridade que lhe dava a capacidade de fazer uma arte original, negra, africana e, ao mesmo tempo, universal, humana, completa, total.

    O homem semelhante obra. O pouco que ns sabemos de sua vida interior to rica e to complexa drama, duelo entre Razo e Imaginao, Esprito e Alma, Branco e Negro, para falar como A. Csaire. Mas Maran conseguiu conciliar esses dois as-pectos, pois no h antinomia entre eles. (Ltudiant, 1935, p. 4)19

    18 Este conceito vem aqui representar a tradio de pensamento da dualidade do homem negro em sua participao em uma Modernidade forjada apesar dele. O two-ness enunciado pelo pensador pan-africanista estadunidense W. E. B. Du Bois. A ideia, publicada originalmente em The souls of black folk (1903), de que uma dupla conscincia (two-ness) permearia o homem negro nascido nos Estados Unidos, fragmentando-o e impossibilitando sua percepo de si mesmo como sujeito: (...) essa sensao de estar sempre a olhar para si mesmo atravs dos olhos dos outros, de medir a nossa alma pela bitola de um mundo que nos observa com desprezo trocista. Sente-se sempre essa dualidade um Americano, um Negro; duas almas, dois pensamentos, dois anseios irreconciliveis; dois ideais em contenda num corpo escuro que s no se desfaz devido sua fora tenaz. (DU BOIS, 2011, p. 51, grifo meu)

    19 Lhomme est semblable loeuvre. Le peu que nous savons de sa vie intrieure si riche et si complexe a t drame, duel entre Raison et Imagination, Esprit et Ame, Blanc et Noir, pour parler comme A. Csaire. Pourtant, Maran est arriv les concilier, car il ny a pas l antinomie. Traduo minha.

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    Tratava-se do atestado da possibilidade de o intelectual negro acessar sua essncia atvica e, portanto, responder de forma autorizada por toda uma coletividade e, ao mesmo tempo, a garantia de sua pertena nada dicotmica a um mundo ocidental e ao uso da razo e do poder de fala autorizado do intelectual. Alm de fundar a dicotomia antes dilacerante lida em W. E. B. Du Bois ou mesmo em McKay em um confortvel encontro de iguais, Senghor inscreve o intelectual negro em um lugar privilegiado desse novo humanismo, que mais tarde seria identificado e reconhecido por figuras como Sartre e reatualizado pela Prsence Africaine em uma leitura do papel combativo do intelectual negro no interior de sua comunidade e como seu representante. Junto com Csaire, Senghor dava a ver os termos do que depois seria nomeado como Ngritude20.

    O engajamento que se funda no discurso na dcada de 1930 no grupo negro francfono em Paris marca uma autonomizao do tema do combate ao racismo e da busca do estabelecimento de um lugar para o negro na modernidade em relao a formas mais tradicionais de manifesta-o na esfera pblica. Trata-se, ao mesmo tempo, de um momento em que se demonstra uma preocupao em afirmar e estabelecer a importncia de atores estritamente intelectuais na luta de fundao e valorizao de uma cultura negra. Na dcada de 1920, as posies eram tomadas em nome de mobilizaes partidrias, de filiaes ou discursos polticos especficos, como o comunismo ou o republicanismo. Na dcada de 1930, a filiao se torna cada vez mais explicitamente transnacional e pan-africanista21, voltada diretamente para a discusso e a tomada de posio diante da questo do negro, sem que ela fosse um meio ou uma necessidade para se ascender a uma Revoluo do proletariado ou a uma Repblica mais justa e condi-zente com os ideais de 1789. No entanto, essas modificaes continuam se inserindo no campo da interveno poltica, mas, agora, ligando-se ao repertrio construdo pelo e em torno do intelectual. Escolhas condizen-tes com o clima antimigrao na sociedade civil francesa posterior crise econmica de 1929 e o acirramento da censura voltada aos elementos coloniais na metrpole.

    O contedo apresentado como negro nessas novas empreitadas

    20 O termo ngritude escrito pela primeira vez por Aim Csaire em seu Cahier dun retour au pays natal, de 1939.

    21 No se est aqui afirmando que o grupo em Paris era parte do movimento Pan-africano conforme ele se organizara desde 1900, com quadros vindos principalmente da Amrica. O que se aponta aqui uma afiliao a uma leitura que era feita deste movimento pelos estudantes coloniais. As maiores repercusses diretas deste movimento organizado no con-tinente africano se daro no ps-guerra, a partir do Congresso de Manchester, em 1945. E a mobilizao poltica e cultural em seu entorno ocorrer com mais relevncia no mundo anglfono. O Ngritude ter ento um papel semelhante e at concorrente de articulador e organizador no campo intelectual e poltico francfono.

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    que se diziam apenas veculos de propagao de noes dadas, mas estavam forjando conceitos de cultura e expresso negras por excelncia, est nas pginas dessa revista e nos interesses que mobilizavam os encontros e as redes que a fundaram: trata-se da certeza do compartilhamento de um fundo cultural ligado manifestao artstica e sensual, que ento transformado em forma de luta poltica pelo repertrio de interveno pblica intelectual. Essa noo, que ser chamada ngritude por muitos, pode ser mais bem trabalhada atravs do texto Ce que lhomme noir apporte, tambm de Lopold Senghor, publicado em 1939, que finca os alicerces do programa intelectual, que mais tarde se forjar como estrutura de organizao da intelectualidade negra francfona.

    No artigo em questo, o poeta senegals explora a construo de um esquema que visava a esclarecer as leis gerais que regiam as especifi-cidades das relaes do homem negro com o mundo e, decorrentes delas, as estruturas humanas e sociais forjadas pelas tipologias e pelos sentidos criados em torno da definio de homem e mundo e a linguagem e as relaes entre estes. Essa especificidade encarada como uma cultura que nasceu da aco recproca da raa, da tradio e do meio; que, emi-grada para a Amrica, permaneceu intacta no seu estilo, se no nos seus elementos ergolgicos. (SENGHOR, 2011, p. 74)

    Ao iniciar sua descrio do que seria o contributo do homem negro ao Ocidente, Senghor busca na autoridade do relato do etnlogo Lo Frobenius, avalizado pelo discurso cientfico, a confirmao da exis-tncia de uma civilizao que teria forjado uma cultura una e unitria em solo africano. Pautando-se pela descrio feita pelo pensador alemo de uma grande sociedade sudanesa (nesse caso, o termo se refere frica Ocidental Francesa, o dito Sudo Francs), antiga civilizao que teria florescido e decado antes da chegada europeia, Senghor justifica a crena numa cultura negra:

    Sei que h, houve, uma cultura negra, cuja rea compreendia os pases do Sudo, da Guin e do Congo, no sentido clssico das palavras. Ouamos o etnlogo alemo: O Sudo possui, assim, tambm ele, uma civilizao autctone e ardente. um facto que a explorao encontrou, na frica Equatorial, antigas civilizaes vigorosas e viosas em todos os lugares onde a preponderncia rabe, o sangue hamita ou a civiliza-o europeia no roubaram aos falenos negros a poeira das suas asas, outrora to belas. Por toda parte! (...) A civilizao desapareceu, esquecida; a cultura no se extinguiu. (SEN-GHOR, 2011, p. 73-74)

    Essa cultura, que se manteria mesmo aps a derrocada da civili-zao negra, conforme descrita por Frobenius, o objeto central do artigo de 1939, que pretende dizer da peculiaridade e da possibilidade de um

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    contributo negro humanidade. Tratava-se de um estudo da alma negra, da sua concepo de mundo, da qual derivavam, no texto, a vida religiosa e social e as artes, que existiriam em funo de uma e de outra e, portanto, seriam sempre coletivas e funcionais em uma comunidade negra.

    Como tal, o prprio texto fundado no lugar privilegiado do intelectual negro que, conforme apresentado por Senghor em Ltudiant Noir, capaz de congregar o mtodo do saber europeu com a sensibi-lidade negra. Logo nas primeiras pginas, o autor deixa claro que desse lugar que vm suas credenciais para descrever uma alma negra que at ento nunca fora acessada: Quer se compreender a sua alma? Criemos uma sensibilidade como a sua. (SENGHOR, 2011, p. 75) Essa sensibilidade capaz de abolir os intermedirios entre o homem e o mundo, essencial-mente conciliadora, porm independente, constitua a especificidade em que o senegals se reconhecia e identificava o prprio intelectual negro. Essa dimenso da alma negra seria, para o senegals, a responsvel por fazer crer que o Negro era facilmente assimilado, cooptado, quando na verdade ele era mais tocado pelo som das palavras e a beleza da retrica do que convencido por seu contedo. Da o desalento sbito [do colo-nizador latino] perante uma qualquer revelao irracional e tipicamente negra (...). (SENGHOR, 2011, p. 75) Decretando claramente os termos em que se daria a peculiaridade das estruturas cognitivas do homem negro em sua obra, Senghor se baseia em uma antiga dicotomia que aparece aqui revalorizada: A emoo negra, como a razo helena (SENGHOR, 2011, p. 75) diz o senegals.

    Por mais nociva que esta noo possa parecer aos ouvidos con-temporneos e aos daqueles que procurariam posteriormente afirmar o direito de autodeterminao dos povos da frica no ps-guerra, ela no foi escrita fora de um contexto e de uma argumentao, como muitas vezes aparece citada pelos crticos do escritor senegals. O conceito de sensi-bilidade que Senghor procura afirmar como a caracterstica principal do Negro, da alma negra, d forma ao que o autor chama de animismo, e que seria a origem de um novo humanismo: Por ora, direi que o Negro no pode imaginar que o objecto seja, na sua essncia, diferente dele. Empresta-lhe uma sensibilidade, uma vontade, uma alma de homem, mas de homem negro. (SENGHOR, 2011, p. 76)

    Uma sensibilidade que se inscreveria no profundo movimento de transcendncia do homem no mundo, a partir do qual se daria o pro-cesso cognitivo do homem negro, sem a mediao ou deturpao de uma razo instrumentalista como a europeia, sem literatura entre o sujeito e o objecto, sem imaginao no sentido corrente da palavra, sem sujeito nem objecto. Esse movimento de compreenso do mundo sem mediadores, sem representaes e, dessa forma, sem falseamentos, seria o verdadeiro humanismo.

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    Mais do que uma simples crtica ao processo de assimilao como muitas vezes se aponta em estudos sobre o Ngritude, essa declarao tem como consequncia imediata a negao de qualquer possibilidade de assimilao do Negro. Isso se daria uma vez que, segundo as palavras de Senghor, ele que assimila e, neste movimento, se apropria do mundo de acordo e a partir de sua alma, e no o contrrio. O que, portanto, chan-celava um lugar de equivalncia para o autor e todos os homens negros, capazes de assimilar sem serem assimilados por aqueles que acreditavam faz-lo, capazes de manter una a alma negra. Poder-se-ia dizer eterna? (SENGHOR, 2011, p. 74). Alm disso, o argumento guia ainda para uma concluso mais universalista e transnacionalista, bem aos moldes desses primeiros anos de Ngritude, de que o contributo do homem negro a prpria salvao do mundo Ocidental na medida em que o que o mundo moderno esqueceu e uma das causas da crise actual da civilizao que o desabrochar da pessoa exige uma orientao para alm do indivi-dualismo(...) (SENGHOR, 2011, p. 85).

    As potencialidades da construo de uma cultura negra e sua essencializao por um discurso que a tornou a certeza da possibilidade da entrada tambm dos intelectuais no cenrio das articulaes negras francfonas do entre-guerras estavam na resoluo conciliadora da dvida recorrente acerca do alcance da assimilao e de suas repercusses reais na relao com uma me frica. A ideia da existncia de uma unidade negra dada pela transformao da percepo cotidiana da precariedade da estadia colonial em Paris e de suas vivncias e trajetos experimentados em comunidade em ndice de compartilhamento de uma raiz, de uma raa, de uma terra me, est no centro da articulao do petit monde ngre parisien no entre-guerras.

    Para o projeto negritudiano, esses intelectuais podiam utilizar-se de formas de expresso e da lngua francesas sem abdicar de sua identidade de negros e sem se tornarem simples imitadores. A originalidade que viria de seus antepassados, ouvida no jazz, e lida nos poemas de Senghor e Csaire, permaneceria mesmo que inconscientemente. A soluo para o problema do two-ness estava em assumir que ele nunca fora um proble-ma, mas a prpria condio de fundao de uma intelectualidade negra. Para o Ngritude, nesses primeiros anos, era, pois, capacidade especfica e diferencial do homem negro e, portanto, do homem de cultura negro, assimilar sem ser assimilado, conciliar mundos e culturas aparentemente incompatveis.

    3. AO POLTICA INTELECTUAL NO PS-GUERRA E O PROJETO NEGRITUDIANO. O conceito de intelectual, para alguns, traz inerente um sentido de ao poltica. Decerto esta carga semntica esteve presente no momento em

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    que o termo foi investido de poder poltico e autoridade no final do XIX na Frana. Nas ltimas dcadas do oitocentos, o affaire Dreyfus22 inaugu-ra o modelo de interveno do intelectual por meio da petio e do uso pblico de sua posio de saber e poder como legitimadora de opinio e posio polticas e crticas. (CHARLE, 1990) O homem de letras, ou ho-mem de cultura, o matre a penser, detentor de um lugar privilegiado na sociedade da qual advm, mediador cultural, ocupante de uma categoria sem pertencimento de classe, deveria fazer valer sua influncia tambm no campo das disputas polticas e sociais. Trata-se de um modelo de ao poltica especfica e inerente aos contornos que toma o poltico na Modernidade, marcado pelo afastamento entre Estado e sociedade e pela fundao de uma sociedade civil. O intelectual surge como um mediador que, investido de autoridade por uma posio de especializao univer-sitria ou ligada celebrizao pelo trabalho artstico ou literrio, alaria lugar privilegiado diante do Estado, podendo se fazer ouvir e, para alguns, tendo nessa atividade um compromisso tico de no se calar diante das injustias perpetradas a sua volta.23

    por meio da apropriao deste conceito de intelectual e de seu fundo de ao poltica que se torna possvel promover a conciliao entre

    22 Affaire Dreyfus como ficou conhecido o incidente no qual o capito francs Alfred Dreyfus, judeu e de origem alsaciana, expulso do exrcito e preso em nome de sua pretensa traio Repblica francesa e aproximao a planos de espionagem alemes na dcada de 1890. Diante da transformao de Dreyfus em bode expiatrio do escndalo e da deflagrao de inmeras manifestaes antissemitas na imprensa e nas ruas, um grupo de cidados franceses inaugura uma nova forma de interveno pblica. Por meio de uma petio, assinada coletivimente e legitimada pela atuao de seus autores, sujeitos liderados por mile Zola se colocam na linha de frente da defesa do oficial e daquelas que seriam a verdade e a justia, denunciando as razes antissemitas e antigermanistas que teriam guiado as aes do governo francs e de seus apoiadores. Este caso marca o surgimento do intelectual moderno, inclusive do neologismo, relacionando-o atuao pblica engajada e em oposio s exaes do poder central. Segundo Christophe Charle, o termo intelectual era usado de forma pejorativa pelos savants conservadores que se opuseram iniciativa e ao formato em que esta foi realizada pelos dreyfusards, que traziam tona uma nova forma de formao social. Esse divrcio entre as antigas representaes, ainda dominantes, e a nova situao criada pela expanso do campo intelectual d conta da busca de um novo termo englobante que pode ser ao mesmo tempo um ideal profissional (portanto uma marca distintiva) e um ponto de encontro social, comportando, pois, uma dimenso coletiva. [Ce divorce entre les anciennes reprsentations, encore dominantes, et la situation nouvelle cre par lexpansion du champ intellectuel rend compte de la recherche dun nouveau terme englobant qui puisse tre la fois un idal professionnel (donc une marque distinctive) et un point de ralliement social, comportant donc une dimension collective.] [Traduo minha] (CHARLE, 1990, p. 55, traduo minha)

    23 Em 1947, em seu Que a literatura?, Jean-Paul Sartre fazia uma ode ao escrito que pro-move uma mudana no mundo que conta na medida em que o d a ver em suas injustias e dota seu leitor da responsabilidade de lidar com ele, seja para conserv-lo ou mud-lo. E decretava: [o escritor engajado] Sabe que as palavras, como diz Brice-Parain, so pistolas carregadas. Quando fala, ele atira. (SARTRE, 2004, p. 21)

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    uma identidade negra pensada como esforo de comunho e o mundo das letras europeu. No limite, a apropriao deste conceito e a prerro-gativa da interveno pblica que embasam o projeto do movimento da Ngritude que se institucionaliza no mundo ps-guerra. O ponto de partida era a conciliao entre uma identidade negro-africana construda como autntica e a razo e a literatura definidas como ocidentais. Em 1956, no Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, realizado sob a organizao da Prsence Africaine, Senghor prope a verso acabada do seu argumento, prescrevendo uma arte negra que seria necessariamente arte engajada. Apresentando-se como uma constatao quase natural, o discurso propunha um modelo de interveno e reivindicao poltica do intelectual como promotor da libertao das culturas africanas sob jugo colonial, bandeira que ganharia fora e outras formas no final da dcada de 1950.

    Na apresentao intitulada Lesprit de la civilisation ou les lois de la culture ngro-africaine, o senegals prope ao intelectual negro, para quem falava por ocasio do evento, a investigao do que chama de une physiopsychologie du Ngre (SENGHOR, 1956, p. 54). O texto uma convocao aos escritores e artistas negros a participar da libertao cultural dos povos de cor, apontada como condio necessria para sua libertao poltica: Mas este renascimento ser a obra no tanto dos polticos como dos escritores e artistas ngres. A experincia provou que a liberdade cultural a condio essencial da liberdade poltica. (Congrs, 1956, p. 51)24

    Partindo novamente das formas pelas quais se dariam a percepo e o conhecimento do mundo natural e social tipicamente negros, Senghor delineia as cosmologias e cosmogonias das sociedades negro-africanas, bem como sua cultura e, decorrente dela, sua organizao poltica. No interior deste esquema, a arte apresentada como centro articulador da comunidade, responsvel pela manuteno de sua unidade e por fazer ouvidas as reivindicaes e posies de seus participantes. Na definio do poeta, toda arte negro-africana coletiva, funcional e engajada: (...) o arteso-poeta est situado e engaja, junto com ele, sua etnia, sua histria, sua geografia. (...) Porque engajado, o arteso-poeta no se preocupa em fazer obra para a eternidade. (SENGHOR, 1956, p. 56-57)25.

    A figura do arteso-poeta encarna na comunicao o papel

    24 Mais cette renaissance sera moins le fait des politiques que des crivains et artistes ngres. Lexprience la prouv, la libration culturelle est la condition sine qua non de la libration politique. Traduo minha.

    25 (...) lartisan-pote est situ et il engage, avec lui, son ethnie, son histoire, sa gographie. (...) Parce quengag, lartisan-pote ne se soucie pas de faire oeuvre pour lternit. Tra-duo minha.

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    de estruturador do tecido social e poltico: trabalha engajado e engajando seus pares nas questes concernentes sua comunidade local e, de forma ampla, raa negra. Ao apontar a presena concreta desta figura como parte do que seria a estrutura organizacional das sociedades negras, Sen-ghor construa no apenas um modelo, mas uma tradio para a figura nascente do intelectual negro. Dava legitimidade e lugar de fala autorizado para esta figura nascente. Repetia a mesma estratgia discursiva de seus escritos da dcada de 1930: ligar as elaboraes mais tarde conhecidas como negritude ao que seria um passado original e forjador de uma essncia do homem negro. Seus argumentos nascem investidos do poder de cons-tataes evidentes de uma antiguidade formadora. Assim, a participao poltica, na condio de agenda do homem de cultura, deveria apenas seguir as antigas caractersticas da arte negro-africana, engajando-se pelas bandeiras centrais das comunidades dos povos de cor, como a luta por independncias e o antirracismo, e engajando consigo os seus iguais, como fazia antes a figura do arteso-poeta.

    Mobilizados em torno de questes de interesse mais ou menos coletivo escolhidas em nome de uma solidariedade pretensamente racial, os pensadores reunidos no Congresso de 1956, em Paris, na Sorbonne, viram quando o poeta senegals assumiu o modelo de interveno poltico--intelectual, no auge na sociedade francesa do ps-guerra, como aquele a ser adotado pelo homem de cultura negro, conforme vocabulrio do evento. Ao adentrar a discusso das funes e modos de atuao para a arte e o artista na Modernidade, detida at ento por figuras centrais do mundo intelectual europeu, Senghor procura se apoderar do argumento da originalidade ao postular que as sociedades negro-africanas eram naturalmente dispostas a tal organizao: dizer que, na frica negra, a arte pela arte no existe; toda arte social. O griot que canta o nobre na guerra o faz mais forte e participa de sua vitria. (SENGHOR, 1956, p. 57)26 De tal forma, coroava o argumento de uma especificidade racial, retirando dele o ponto de partida para autorizar e fundamentar o projeto intelectual negritudiano, encabeado no ps-guerra pela revista e editora Prsence Africaine, de Alioune Diop.

    A Prsence Africaine, como uma espcie de performance e campo de aplicao do projeto negritudiano, atua na dcada de 1950 sob a gide da noo de uma raa negra, una e solidria. Sua imagem forte, estvel e constante surgiria como um contraponto ao cenrio fluido e disperso do entre-guerras, marca de uma nova era para a intelectualidade negra francfona. Ao contrrio das pequenas empreitadas estudantis dos anos de 1930 ou, antes ainda, dos peridicos ligados ao movimento comunista

    26 Cest dire quen Afrique noire, lart pour lart nexiste pas; tout art est social. Le griot qui chante le noble la guerre le fait plus fort et participe la victoire. Traduo minha.

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    negro da dcada de 1920, suscetveis s flutuaes das relaes de seus fundadores com o Partido Comunista Francs, a revista inaugura uma fase para os peridicos negros francfonos representada pela continuidade de suas publicaes e passa a congregar, classificar e selecionar o que seria a intelectualidade negra francfona.

    Diante do projeto de uma intelectualidade negra fundamentado em uma unidade racial e no que seriam suas caractersticas essenciais, muitas vozes dissonantes se levantariam. Mesmo no momento de debate acerca das proposies de Lopold Sdar Senghor, muitos delegados re-gistrados no Congresso de 1956 fariam crticas diretas noo de cultura negro-africana e mesmo de arte africana explicitadas pelo autor senegals. O pressuposto de uma unidade negra fundamental e a completa omisso de outras formas de identificao criadas e presentes em populaes afri-canas e americanas, nomeadas pelo senegals unicamente como negras, incomodariam representantes antilhanos e estadunidenses. As fissuras no interior do movimento da Ngritude ou em seu entorno no eram novidades e apenas se acirrariam diante da vitria do modelo nacional sobre o modelo federativo de independncia dos terrotrios africanos colonizados. Apesar disso, como provam os lugares ocupados por vrios dos intelectuais aqui apontados e outros que, por motivos de espao, no puderam ser traba-lhados, o modelo de autoridade poltica ligada legitimidade do lugar de saber intelectual e, de alguma forma, ocidental central no momento da independncia dos pases africanos, marcado pelo ano de 1960.

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    Recebido em: 20/06/2014Aceiot em: 20/07/2014