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A `frica no ordenamento internacional do sØculo XXI: uma interpretaçªo brasileira José Flávio Sombra Saraiva * Resumo. No artigo, se propıem novos conceitos acerca do lugar da `frica na ordem internacional que se desenha no início do sØculo XXI. O avanço gradual dos processos de democratizaçªo dos Estados nacionais, a performance econômica satisfatória associados ao crescimento econômico generalizado no continente, bem como certa elevaçªo de confiança política das elites, vŒm contribuindo para o forta- lecimento da capacidade decisória dos governantes no seio das opçıes disponíveis no sistema internacional que se desenha. O caso de Moçambique Ø utilizado para justificar o argumento central do artigo. Palavras-chave: `frica. Ordem Internacional. Moçambique. O objetivo do presente artigo Ø o de suscitar novos conceitos acerca do lugar da `frica na ordem internacional que se desenha no início do sØculo XXI. 1 Merecerªo destaque as atuais formas de inserçªo internacional dos seus Estados nacionais, criadas de dentro para fora das soberanias africanas, bem como o envolvimento crescente de antigos e novos atores globais que participam, de forma interessada e crescente, na gestaçªo do futuro daquele continente. 2 A hipótese aqui examinada Ø a de que o continente africano assiste a uma transiçªo positiva para um novo patamar de inserçªo Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 75-106, jul. 2008 * Universidade de Brasília.

A África No Ordenamento Internacional Do Séc. XXI

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A África No Ordenamento Internacional Do Séc. XXI

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  • A `frica no ordenamentointernacional do sculo XXI: uma

    interpretao brasileira Jos Flvio Sombra Saraiva*

    Resumo. No artigo, se propem novos conceitos acerca do lugar da `frica naordem internacional que se desenha no incio do sculo XXI. O avano gradual dosprocessos de democratizao dos Estados nacionais, a performance econmicasatisfatria associados ao crescimento econmico generalizado no continente, bemcomo certa elevao de confiana poltica das elites, vm contribuindo para o forta-lecimento da capacidade decisria dos governantes no seio das opes disponveisno sistema internacional que se desenha. O caso de Moambique utilizado parajustificar o argumento central do artigo.Palavras-chave: ` frica. Ordem Internacional. Moambique.

    O objetivo do presente artigo o de suscitar novos conceitosacerca do lugar da `frica na ordem internacional que se desenhano incio do sculo XXI.1 Merecero destaque as atuais formas deinsero internacional dos seus Estados nacionais, criadas de dentropara fora das soberanias africanas, bem como o envolvimento crescentede antigos e novos atores globais que participam, de forma interessadae crescente, na gestao do futuro daquele continente.2

    A hiptese aqui examinada a de que o continente africanoassiste a uma transio positiva para um novo patamar de insero

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    * Universidade de Braslia.

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    internacional no incio do novo sculo. Trs conceitos centrais ali-mentam o exame dessa hiptese: a) o avano gradual dos processosde democratizao dos regimes polticos e a conteno dos conflitosarmados; b) o crescimento econmico associado a perfor-mancesmacroeconmicas satisfatrias e aliceradas na responsabilidade fis-cal e na preocupao social; e c) a elevao da auto-confiana daselites por meio de novas formas de renascimentos culturais e polticos.

    Os argumentos centrais esto organizados em torno de quatrounidades. Na primeira, apresentam-se argumentos que comprovam aelevao do status na `frica no mundo e o paradoxo da baixa apreci-ao, no Brasil, do novo lugar da `frica na sociedade internacional.Em segundo lugar, abordam-se alguns dos desafios das cinco dca-das da formao dos Estados independentes da `frica. Em tercei-ro lugar, trata-se de algumas vises depreciativas e positivas dispon-veis na literatura universal acerca do papel da `frica no sistemainternacional contemporneo, bem como os movimentos estratgi-cos de grandes Estados globais no corao do continente nos diasatuais. Em quarto, avalia-se, no contexto dos pases de lngua portu-guesa na `frica, a elevao gradual de status de Moambique, casoemblemtico da elevao da autonomia decisria na ordem interna-cional em construo no incio do sculo XXI. guisa de concluso,avaliam-se iniciativas de soberania poltica na `frica que no sotributrias de criaes polticas e econmicas de fora para dentro.

    A ` frica na ordem internacional do incio do sculo XXI:conceitos enviesados e necessidade de construo denovos parmetros de anlise

    A ordem internacional que se desenha no sculo XXI faz domosaico africano uma necessidade umbilical da sua configurao. Huma fronteira mundial cuja linha demarcatria est no tringulo afri-cano de mais de trinta milhes de quilmetros quadrados.

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    A `frica subsaariana, ou `frica Negra, considerada a regiomais pobre do mundo, cresce entre 5 e 6%, ao ano desde 2003.3 Adap-taes macroeconmicas globalizao moveram as economias detodo o continente para equilbrios na rea da gesto dos negciosdos Estados. Alvissareiras so as inflaes mdias, contidas nafaixa de 6%, desde 2003, e as exportaes que avanam, em 2006e 2007, na proporo de 43 a 45% do PIB. Reformas econmicasliberalizantes e reduo de vulnerabilidades externas geradas porsaldos exportadores e crescente atrao de investimentos exter-nos diretos so fatos, entre outros, celebrados como de sinalizaode sustentabilidade econmica pelos africanos que ainda surpreen-dem os elaboradores dos relatrios das agncias internacionaiscomo o Fundo Monetrio Internacional e o Banco Mundial.4

    H razes para otimismo em todas as regies da `frica. Oambiente anima a confiana dos mercados. Na mdia da `fricanegra, os investimentos internos equivalem a 19,4% do PIB,percentual muito prximo do Brasil, embora considerado baixopara a sustentabilidade do crescimento econmico. O vetor daelevao do crescimento interno visvel desde 2002 e tende acrescer nos prximos anos, mesmo ante a crise financeira que sedesenha no contexto do capitalismo norte-americano. A ` frica vemsendo escolhida como parte das prioridades para novas reas e paracarteiras de emprstimos do Banco Mundial.

    H preocupaes, no entanto, no campo social, que variamde pas a pas, por meio de polticas de construo de metas dereduo da pobreza. H tambm a ateno dos setores financeirosem alguns pases africanos com a eventualidade de um novo ciclode endividamento interno advindo principalmente das polticasfinanceiras engendradas pela poltica chinesa na `frica, que teminteresse estratgico no continente para compra de petrleo,commodities agrcolas e explorao de recursos minerais.

    Mas h, sobretudo, o sentimento de que, nos ltimos sete anos,justamente, os primeiros do novo sculo, a `frica vem superandoo drama histrico das guerras intestinas e internacionais.5 O nmero

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    de pases africanos com conflitos armados internos caiu de 13 para5 nos ltimos seis anos, apesar da dramaticidade do caso do Darfur.6

    Os conflitos foram a mais importante causa imediata da pobrezano continente. A reduo dramtica dos mesmos faz pensar queos recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhes queimados nosconflitos entre 1990 e 2005, podem, agora, ser dirigidos s polticasde reduo da pobreza e da misria.7

    H, ao mesmo tempo, uma onda democratizante dos regimespolticos em vrias partes da `frica. Mesmo os critrios duvidososda construo de variveis para a taxonomia de democracia nomundo, propostos pela Freedom House, demonstram esse avanoinconteste. Um processo tardio, mas relevante, de consolidao deinstituies e de governos na `frica, com bases menos autocrticase com algum apelo s noes da democracia, fato relevante paraa elevao da confiana internacional.8

    No Brasil, a reflexo acerca dos desafios africanos modestae tardia. A interpretao dominante acerca do futuro do continente plasmada por olhares enviesados que se repetem com regulari-dade gritante. Meios de comunicao insistem em apresentar uma`frica indolente e ditatorial, em que o Brasil quase nada tem afazer.9 Empresrios e empresas nacionais, mesmo acumulando ganhoscomerciais no momento, ainda duvidam das possibilidades do agirem terreno africano de forma mais duradoura, a impulsionar alogstica que a `frica requer e que o Brasil pode bem aproveitar.10

    As escolas continuam afnicas de histrias da `frica.11 As trag-dias e os genocdios ganham a cor espetacular das telas televisivas,enquanto as experincias de estabilizao e de crescimento econ-mico, assim como as iniciativas polticas de reduo da pobreza edas doenas endmicas na `frica so silenciadas.

    Quando aparece a `frica no Brasil, chega enviesada e emba-lada por caleidoscpio de discursos intermedirios que apenasenvergam a vara para a percepo da `frica envolta nas questesde discriminao racial e dos preconceitos domsticos brasileiros.

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    O prisma que vincula a reduo da reflexo da `frica contempo-rnea dimenso da afro-brasilidade interessante, pois permitecomunicar as `fricas que existem dentro do Brasil com a disporae os africanos do outro lado do Atlntico Sul, porm nguloincompleto ao esforo de entendimento dos grandes desafios dainsero africana na ordem internacional do sculo XXI.

    O insuficiente acompanhamento dos debates africanos contem-porneos no Brasil conjuga-se ausncia de significativos centrosestratgicos voltados para o acompanhamento da nova corrida para a`frica. Da a preocupao legtima de setores responsveis no governoe na sociedade: h ainda um reumatismo crnico como foraimpeditiva do avanar o pas na velocidade dos demais corredoresna direo do continente africano. Sem conhecimento estratgico,no h ttica que permita avanar de forma duradoura e consistenteum programa de ao do Brasil na `frica nas prximas dcadas.

    Em sntese, a percepo da inteligncia africana acerca doseu prprio futuro matria oculta, gua turva no seio do conheci-mento brasileiro hegemnico disseminado em universidades, empre-sas, agncias de governo e meios de comunicao, seno mesmonas veias da ao pragmtica do Brasil para a `frica. A baixa apre-ciao da `frica por parte da mdia e de agentes sociais e econ-micos brasileiros, no entanto, no corresponde ao e apreciaodo Executivo, mais elevadas. Essa uma rea correta do governoLula, que evoluiu nessa matria em relao s dificuldades do go-verno Cardoso.12

    Cinco dcadas de independncia africana e desafios dosEstados novos: renascena e nova partilha internacional

    A `frica caminha mais clere e autoconfiante nos dias quenos cercam do que o que se colhe nas manchetes dos jornais. Cami-nhar o continente, ao longo dos prximos anos, nas trilhas docinqentenrio da sua liberdade poltica. So Estados novos, ainda

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    infantes, quando comparados com as velhas democracias europiasou com os Estados latino-americanos de 200 anos. Em todo caso, oano de 2007 trouxe valor simblico: o meio sculo da independnciada Costa do Ouro (Gana de hoje), a primeira da `frica Negra, lideradapor NKrumah em 1957. O ano de 2008 inaugura uma seqncia deatos e de reflexes acerca do lugar da `frica no mundo, fora e dentrodo continente. As mensagens so de algum otimismo cauteloso.

    Iniciativas polticas e culturais convocam a comunidade inter-nacional para o compartilhar do renascimento africano, embora nomais aquele das nascentes independncias em fins dos anos 1950e incio da dcada de 1960, povoada por rancores anticoloniais,romantismos revolucionrios e jarges de libertadores ingnuos. Nem o renascimento ps-apartheid apenas, alardeado pelo governo dePretria, embora seu prprio renascimento nacional esteja na mol-dura mais ampla do que aqui chama-se de renascimento africano.Tambm no se est falando do renascimento poltico dos anos1960 e 1970, que j ficou para trs nos debates recorrentes daselites africanas entre as idias de Senghor e de Cabral.13

    A `frica no quer remoer o passado a cata de culpados. Quercaminhar para frente. O renascimento do incio do sculo XXI mais altrusta, evidencia uma outra forma de renascer, mais eficazque a anterior, mais pragmtica, a fazer referncia a outras formasobliteradas de africanidade pelos discursos polticos engendradospelas ideologias da Guerra Fria e do nacionalismo terico e polticoda primeira gerao das independncias. H um outro renascimento,novos consensos, com outras referncias culturais, polticas e sociais,com resultantes a serem alcanadas no mundo que vem a.

    cones da profundidade de campo histrico da `frica (parautilizar as imagens de Abdel Malek14 e C. A. Diop) vm sendotrazidos para a discusso do futuro do continente. este, a ttulode exemplo, o caso de Tombuctu, cidade antiqssima nas margensdo Nger, que se revitaliza nos dias de hoje no como memria doclassicismo africano, mas como lugar do presente da cultura afri-cana e da imaginao de um devir poltico soberano e altrusta do

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    continente.15 A outra o renascimento que bebe da historiografiade Heinrich Barth, revista na obra recente de Mamadou Diawarq,Paulo Fernando de Moraes Farias e Gerd Spittler.16 Ou mesmo darecuperao das obras de Ibn Haldun ou, alguns sculos depois,de Edward Blyden.

    Animados por um conjunto de atividades acadmicas, pol-ticas e culturais, os africanos relembram, em vrias partes do conti-nente, o soleil des indpendances, mas em especial passam em revistaos descaminhos de vrias experincias de importao de modelos,como as reformas estruturais conduzidas pela genialidade liberal,os planos de reestruturao conduzidos pelos economistas doOcidente ou mesmo a cpia em papel carbono do socialismo reale do modelo do partido nico de matriz stalinista. Passaro emrevista os 53 Estados nacionais da `frica, de forma crtica, nosprximos anos, a evoluo mais recente das cinco dcadas de auto-nomia jurdica, ainda que na poltica apenas de forma relativa,pois necessitam preparar suas casas para uma insero mais alta-neira na ordem internacional do sculo XXI.17

    O renascimento africano coloca aquele continente na berlindada cena internacional contempornea. Afinal, est-se a falar de quaseum quarto da superfcie do planeta (22,5% das terras do globo),com 30 milhes de quilmetros quadrados, com 10% da populaodo mundo, mas que dever dobrar at 2050.18

    Senhora de recursos minerais globais, a `frica fonte de cobiapor ter cerca de 66% do diamante do mundo, 58% do ouro, 45%do cobalto, 17% do mangans, 15% da bauxita, 15% do zinco e de 10a 15% do petrleo. So aproximadamente 30 os recursos mine-rais do mundo que a `frica guarda em seu subsolo. Mas s participade 2% do comrcio mundial e possui apenas 1% da produo indus-trial global. H, portanto, um enorme desafio de elevao desses itens.

    Em outras palavras: cultura, poder e economia comeam acaminhar juntos e de forma mais organizada para os africanos queesto na `frica do sculo XXI, mais do que para aqueles outros que,em nome de uma `frica onde jamais pisaram ou estudaram, querem

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    guardar, fora da `frica, nos seus pases, uma `frica imaginria oupolitizada por razes de demandas internas e sociais de ascensosocial. A `frica no se interessa tanto por isso. Os africanos no que-rem que seu continente do sculo XXI seja lido como fonte daimaginao poltica dos outros, mesmo de seus descendentes nasAmricas, apenas como um lugar sagrado do passado, de dvidas his-tricas espalhadas por todo o mundo e do dilogo global dos afro-descendentes informado da noo da dispora. Embora tais te-mas sejam relevantes, no so as prioridades do momento vividopelas sociedades africanas no novo sculo.

    Em meados da primeira dcada do novo sculo, as amarrasda velha colonizao cedem lugar s iniciativas das lideranas africanas.H uma percepo que se generaliza de crescente responsabilidadedas elites domsticas com o encaminhar do futuro. O discurso davitimizao da histria continental substitudo por raciocniosmais pragmticos. A idia do aproveitamento de oportunidadesinditas abertas pela quadra histrica da primeira dcada do sculoXXI permeia o novo discurso interno da inteligncia africana.

    Por outro lado, seria inocncia intelectual e irresponsabilidadepoltica imaginar que o destino africano pertence, de forma exclu-siva, esfera da autonomia decisria de seus lderes nacionais. Hum novo mapa africano, no aquele desenhado pelos colonizadoresde antes, mas no menos inquietante perante a fora incontestvelde seus desenhistas. Desfilam em Abuja, Adis Abeba. Lagos, Luanda,Cartum, Pretria, Cairo ou Maputo autoridades chinesas, norte-americanas, brasileiras, agentes de empresas multinacionais e deorganizaes no-governamentais.

    Atores internacionais de toda ordem, cada vez menos as orga-nizaes no-governamentais humanitrias dos pases ricos e cadavez mais atores econmicos e estratgicos globais, querem dividir,com os africanos, balanos e projees que j se preparam, no seiodos institutos africanos e mundiais, acerca da ltima fronteiraterritorial da internacionalizao econmica do capitalismo.19

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    H, portanto, uma relao biunvoca, mas tambm dialtica,entre o interno e o externo. Se por um lado desejvel que a `fricasupere o drama histrico do colonialismo e do atraso (lugar dodiscurso do renascimento africano das primeiras dcadas dasindependncias), h, por outro, a preocupao de que novosarranjos entre as elites locais e internacionais no tragam a auto-nomia decisria nem o desenvolvimento sustentvel ao continente(lcus do discurso do novo renascimento africano).20 do nigerianoClaude Ake, em seu ensaio Democracy and Development in `frica aseguinte preocupao: The problem in not so much that developmenthas failed, as that it was never really on the agenda in the first place.21

    H o temor, por trs da internacionalizao crescente docontinente africano, de que o carter exgeno do Estado africanops-colonial, como gosta de definir Carlos Lopes,22 o socilogoonusiano nascido na `frica de lngua portuguesa - se perpetue comnovas mscaras. A preocupao legtima do ilustre africano vai aoponto focal: como diminuir a distncia mental e real, produzidapelos prprios governantes de grande parte dos Estados africanosmodernos, entre os abismos sociais e polticos que separam ricos depobres, elite de povo, na `frica das prximas dcadas do sculo XXI?

    Notam-se, desde j, at mesmo reaes de agentes econ-micos, polticos e intelectuais africanos contra a lgica de suareinternacionalizao, sob o manto de uma nova partilha africana,um novo Congresso de Berlim em curso, mantendo as formas dedominao e de estratificao social e de concentrao de poderdos Estados ps-coloniais na `frica. Esse sobressalto veio tonarecentemente, por meio de vrias vozes importantes da intelignciaafricana como o filsofo senegals Yoro Fall. Tambm chamou aateno Ali Mazrui, um dos mais prestigiados politlogos africanoscontemporneos, que a `frica est em busca de sua prpria Dou-trina Monroe, da `frica para os africanos.23

    Para Mazrui, at os conflitos armados internos ou que envol-vem relaes internacionais na `frica no podem ser resolvidos porsolues puramente exgenas, necessitam de solues domsticas e

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    dirigidas por novo consenso entre povo e elites locais. Provocaabertamente o velho mestre da arte poltica africana: The pursuitof Africas peace by African themselves, however, is not just anextension of international peacekeeping, but rather is a process ofPax Africana.24

    A ` frica entre teleologia, deontologia e escatologia. Asada para um lugar alvissareiro no seio da ordeminternacional do sculo XXI

    A `frica uma das regies do mundo que, historicamente,mais esteve prxima s tentaes de interpretaes apaixonadasacerca das relaes entre passado e futuro. Escrutinada sob aspticas da teleologia, da deontologia e da escatologia, s vezessimultaneamente, a `frica segue sendo um lugar para o teste darazo crtica contra o monumento de preconceitos que foi erigidopela fraca cincia e pela opinio desinformada.

    O nvel teleolgico de anlise, ao animar a avaliao das aespor meio de suas conseqncias, condenou o agir da `frica a umeterno desterro e o passado africano mera preparao da obracivilizatria inconclusa do Ocidente. A conseqncia dessa lgicano seio da historiografia e da sociologia nacionalista africana foibvia: todos os males de hoje adviriam, ento, de um pecado ori-ginal, o do colonialismo e suas conseqncias. esse o raciocnioque amarra a reconstruo do passado a um presente infrtil, plas-mado por afro-pessimismo que vigorou at pouco e que aindapersegue mentes cultas e especializadas nos assuntos africanos emvrios centros de estudos estratgicos no mundo, mesmo no Brasilde poucos estudos.

    O nvel deontolgico, ao julgar aes conforme regras for-mais em funo da distino entre o bem e o mal, encapsulou a`frica no plano do mal, reduzindo-a incapacidade histrica daselites e do povo de constituir l sociedades burguesas civilizadas e

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    integradas aos fluxos da economia poltica global. H uma velhamarcha hegeliana, amplamente cantada pela literatura especializada,que empurrou a `frica para o campo dos povos sem histria, deum passado inenarrvel, o qual Farias recentemente reviu.25 Amaldio da `frica, para os cticos, seria a impossibilidade de narraro passado e, portanto, construir o futuro, reduzindo-a eterna infn-cia. At o Dr. Watson, prmio Nobel de medicina do incio dos anos1960 com o tema do DNA, em pleno incio sculo XXI, na terceirasemana do ms de outubro de 2007, acaba de pronunciar, para depoisdesdizer, que Africans are not so intelligent such as Westerns.26

    A sucesso de ilogicidades, de ausncia de razo crtica, her-deiras elas do discurso hegeliano, empurrou bastante a cincia e aopinio pblica, nas ltimas dcadas, ao discurso da inviabilidadeda `frica. o plano escatolgico, plasmado por imagens, por autorese por meios da corrente afro-pessimista dos anos 1990. Teses vmsendo utilizadas nessas bases esquemticas e em vrias partes domundo, na lgica da marginalidade africana e de sua desimportnciapara o quadro geral da ao externa dos Estados e das relaes inter-nacionais do sculo XXI.

    Ledo engano. A `frica jamais foi marginal, nem no passadonem no presente. O conceito da marginalidade africana insus-tentvel, terica e empiricamente. No so apenas os africanosque se insurgem contra essa escatologia, mas a massa de literaturaatualizada acerca dos desafios africanos no xadrez da polticainternacional. Jean-Franois Bayart, como tambm depois IanTaylor e Paul Williams, no importantssimo livro intitulado Africain Iternational Politics: Extermal Involvment on the Continent,27 quem abre acrtica escatologia anti-africana nos temas da poltica internacionalpara o incio do sculo XXI: More than ever, the discourse onAfricas marginality is a nonsense discourse.28

    O mundo est atento `frica como sempre estiveram asgrandes potncias e as ex-metrpoles. O peso da `frica na GuerraFria no se circunscreveu a ser margem do sistema internacional.So os dois autores anteriores que lembram:

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    Africa has never existed apart from world politics but hasbeen unavoidably entangled in the ebb and flow of eventsand changing configurations of power. [] In practice,Africa cannot enjoy a relationship with world politics becauseAfrica is in no sense extraneous to the world. The continenthas in fact been dialectically linked, both shaping and beingshaped by international processes and structures.29

    O mundo est, portanto, acompanhando com a mxima aten-o a reinsero africana na poltica internacional. Records e outlooksvm sendo lanados com profecias otimistas acerca das escolhaspolticas e do novo perfil de desenvolvimento social que a `fricarequer. V-se essa tendncia desde as avaliaes produzidas pelosRoyal African Society, do Reino Unido.30

    O mais recente desses documentos o interessantssimo tra-balho, com fins estratgicos, organizado pelos colegas professoresSamantha Power (da Universidade de Harvard) e Anthony Lake (daGeorgetown University), em fins de 2006, ladeando o ex-secretrio deEstado assistente para ` frica dos Estados Unidos, Chester Crocker.Lanado em 2007, pelo afamado Council of Foreign Relations, dosEstados Unidos, nota-se perfeitamente a retomada da prioridadeafricana na poltica externa norte-americana.31

    More than Humanitarianism, o ttulo da estratgia norte-ameri-cana fala por si, ao lanar as bases conceituais para a ao dosnorte-americanos para a ` frica nas prximas dcadas. Pragmatismomais do que humanitarismo, disputa por recursos minerais, amplia-o da diversificao no campo da energia, cooperao com osgovernos democrticos e ocupao de espaos na luta contra oterrorismo so as linhas gerais de trabalho para os prximos 20anos dos Estados Unidos na `frica. Querem disputar a partilhacom as ex-metrpoles, particularmente Inglaterra e Frana, massobretudo querem enfrentar a potncia do drago oriental.

    Nenhuma polaridade estatal foi to hbil na elaborao estra-tgica para a `frica quanto a China do primeiro ministro Li Peng,j nos fins da dcada de 1980 e no incio dos anos 1990. O marco

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    o dia 4 de junho de 1989, o drama da Praa da Paz Celestial e oisolamento imposto pelo Ocidente ao regime poltico de Pequim.Comeava a conexo `frica-China, que tem todas as condiesde ser a mais duradoura sobre todos os demais intentos de qualquerunidade estatal, mesmo dos Estados Unidos, de estabelecer basesde cooperao ativa como o renascimento africano.

    A estratgia chinesa explcita: a) exportao para a `fricado modelo chins de tratamento dos temas da agenda internacional,apresentando-se como uma representante natural dos pases emdesenvolvimento; b) exportao de bens industriais e armas e impor-tao de produtos primrios; c) explorao de todas as fontes pos-sveis e necessrias de recursos minerais, estratgicos e de energiaque garanta a sustentabilidade do crescimento econmico chins.O mtodo ttico para a consecuo dos objetivos mltiplo: variados investimentos, dos emprstimos e das doaes cooperaotcnica e tecnolgica, alm de exerccio de cooptao poltica daselites africanas. O ambiente poltico da cooperao abraa o econ-mico como parte da grande engenharia estratgica que foi elaborada,empiricamente, na base do isolamento poltico do regime chins,depois do evento de 4 de junho de 1989 e da solidariedade conferidapela grande maioria dos governos na `frica, depois de serem corte-jados com recursos chineses.

    Foi o primeiro-ministro Li Peng quem coordenou toda a ope-rao de aproximao com uma das poucas regies do mundo queno se moveram contra o massacre de jovens na China: os governosafricanos. Para exemplificar, a China oferecia, em 1988, apenas US$ 60milhes de ajuda direta a 30 pases da `frica, mas em 1990, depois doapoio dos governos africanos ao regime de Pequim, receberam taispases a soma de US$ 374 milhes, para chegar aos volumesbilionrios dos chineses hoje na `frica. Embora predominante-mente econmica, a presena chinesa na `frica origina-se da polticae seguir tendo uma forte conotao poltica e estratgica. Vejam-seas palavras de Li Peng, em 12 de maro de 1990, na chegada a Pequimde imensa delegao de chefes de Estados africanos:

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    A nova ordem poltica internacional significa que todos ospases so iguais e devem respeitar os outros com relao asuas diferenas no sistema poltico e na ideologia. Eles (ospases capitalistas do centro e as democracias ocidentais)no podem interferir nos assuntos domsticos dos pasesem desenvolvimento, especialmente avanar poder polticoem nome de direitos humanos, liberdade e democracia.32

    Livros lanados recentemente do conta da preocupao dagrande parceira comercial e poltica da `frica na Europa, que aFrana, alm de ser a maior investidora individual no conjunto daeconomia africana.33 H preocupaes tanto na rea comercial quantona rea da cooperao direta da China com regimes polticos na`frica que desrespeitam o captulo dos direitos humanos. DanielaKroslak estudou essa matria de forma mais detalhada, com nfaseao tema do envolvimento militar da Frana naquele continente.34

    O fato objetivo que, desde 1990, renovando-se em 2000com a criao do Frum de Cooperao `frica-China, no qual 80ministros de Estado africanos foram levados de Pequim rea indus-trial de Guandong em avio, para verem o colosso do crescimentoindustrial chins, passando pela segunda edio, em novembro de2006, do Frum de Cooperao, alm da terceira visita do presidenteHu Jintao `frica, em fevereiro de 2007, a China desembarcou na`frica de forma estrutural. difcil andar em qualquer rua comercialde qualquer pas africano que no esteja inundada por produtoschineses. No h capital na `frica sem uma obra pblica imponentefeita com recursos chineses. No h infra-estrutura importantede aeroportos e estradas que no tenha uma mo chinesa.

    Como poca do desenvolvimentismo, fase na qual o Brasilpraticava uma diplomacia cooperativa e no-confrontacionista, aChina dos ltimos anos buscou a `frica sem truculncia, violnciaou presuno de superioridade, traos da diplomacia europia enorte-americana. O Brasil mesmo est tentando voltar, na novaquadra histrica do incio do sculo XXI, como demonstram asprioridades da diplomacia de Amorim.35

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    Em sntese, h uma `frica em crescente internacionalizaoe nada marginal. Ela est no centro de uma concorrncia fortssimade interesses e interessados de todas as partes do globo. Se osinvestimentos externos diretos crescem de forma consistente,oriundos tanto das grandes empresas financeiras e produtivas, tambm verdade que esses investimentos esto dirigidos por certalgica de ocupao territorial e estratgica da `frica por grandespotncias, instituies multilaterais e influentes grupos econmicosglobais ancorados em bases estatais. Nesse aspecto, o futuro estra-tgico do continente africano est sendo traado de fora para dentro.

    O experimento de modernizao, democratizao einsero internacional na ` frica de lngua oficialportuguesa: o caso de Moambique

    Os pases de lngua portuguesa na `frica so casos interes-santes para se notar o quanto o argumento central deste artigo secomprova no campo experimental. Angola cresce seu PIB anualem torno de quase 20%, um dos maiores do mundo. Cabo Verdeassiste sua internacionalizao crescente, mesmo nas condiesdifceis do arquiplago. So Tom e Prncipe normaliza sua vidapoltica e abre as portas para os investimentos na sua plataformapetrolfera. A Guin Bissau, apesar dos problemas por que passouna ltima dcada da histria, assiste a um sopro de esperana denormalizao poltica.

    Moambique, no entanto, o caso modelar de insero inter-nacional altaneira na ordem internacional do incio do sculo XXI. parte da `frica que grandes potncias, instituies multilateraise influentes grupos econmicos globais vm revelando por meiode seus laboratrios estratgicos.

    O pas foi vistoriado de forma alvissareira nos relatrios deagncias internacionais como o Fundo Monetrio Internacional eo Banco Mundial, em fins de 2006.36 Apontam tais documentos

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    potencialidades econmicas nicas na quadra histrica atual docontinente africano. Rejubilam-se investidores externos e nacionaispelo bom desempenho poltico e pelo equilbrio macroeconmicodaquela nao africana. As razes para o otimismo derivam de fatoscomo a democratizao em ritmo mais forte do que muitos dosEstados africanos, reformas econmicas liberalizantes que criaramconfiana nos mercados, crescimento do PIB na ordem de 7% nosltimos anos, inflao domada, diminuio da vulnerabilidade ex-terna, reservas internacionais consideradas satisfatrias para uma eco-nomia modesta e acesso a financiamentos internacionais.

    Mesmo quando no h comrcio bilateral expressivo,Moambique inclui-se crescentemente em priplos recentes devrios chefes de Estado, interessados em projeo internacionalna `frica. A visita a Maputo, entre os dias 7 e 8 de fevereiro de2007, por cerca de 24 horas, do presidente chins Hu Jintao, fenmeno epidrmico da corrida j no mais to secreta em favorde uma nova partilha africana, na qual Moambique est includa.37

    Mas o que h com Moambique, pobre economia africana,to desigual na distribuio da renda e to modesta estrategica-mente, que a faz atrair tanta ateno? Que buscam os grandesnaquele Estado de lngua portuguesa, incrustado na poro ndicada `frica, de costas para o Atlntico, diferentemente de todos osdemais pases que compem, naquele continente e nas Amricas,o legado complexo da expanso ultramar portuguesa?

    Moambique no apenas um lugar da lusofonia do outrolado da `frica ou um dos Estados de recente independncia formal,em processo tardio de consolidao de instituies e da democracia.Moambique tampouco apenas um pas dependente economica-mente e desdenhado pelas elites de Pretria, embora saiba-se quemuitos sul-africanos ainda consideram o vizinho apenas sua dcimaprovncia.38

    A intuio que motiva esse pressuposto a de que Moambiquetorna-se gradualmente mais uma das novas brechas abertas na `frica,

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    sob o aplauso consciente ou o silncio distrado das suas prpriaslideranas, por agentes ativos da transnacionalizao econmica daltima dcada, mas tambm por novas potncias asiticas, emconsrcio ou no com a `frica do Sul, em busca de entradas prefe-renciais ou complementares no continente.

    Ponta de concha que se inicia na China, mas que se estendepor todo o Oceano ndico e chega ndia, Moambique poderiaestar se voltando aos poucos a uma de suas antigas circunscries,em mbito geopoltico, econmico e mesmo cultural. Mas a histriano se repete, seja em Moambique ou em qualquer outro lugar,pois h fatores novos e causalidades contemporneas que confe-rem tonalidade prpria fotografia 3x4 que apreende, ainda quesob forma reduzida, um novo Moambique. A marcha da emer-gncia contempornea sino-indiana implica, necessariamente,redefinio de interesses econmicos e estratgicos na parte austral-ndica da `frica, o que no havia acontecido na ocupao coloniale tampouco no decalque feito por governos da `frica dos comu-nismos sovitico e chins nos idos da independncia.

    Os vetores de poder agora so outros, bastante mais poderosose pragmticos. Envolto na seduo crescente da China, e tambmda ndia, vido por recursos minerais, estratgicos, energticos, mastambm de portos, de produtos agrcolas e mesmo de ocupaoterritorial via deslocamento de populaes e, at mesmo, pelo tu-rismo, Moambique est na berlinda.

    Maputo uma das portas com entrada facilitada na geografiamoambicana ao corredor turstico, como falou o presidente daChina em sua recente visita ao pas. Moambique se insere, portanto,na ocupao de uma das ltimas fronteiras do capitalismo mundial:o continente africano. Essa partilha no requerer um novo Con-gresso de Berlim. O mundo ps-Guerra Fria mais sutil, mas nomenos pragmtico. Os chineses no vieram apenas para o controlede recursos energticos, minerais e estratgicos na `frica. Vieramampliar poder de barganha no cenrio internacional.39

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    Ancorada no ciclo virtuoso da economia global dos dias dehoje, na ampliao da liquidez internacional, na acumulao polticapositiva da dcada passada ps-1992 (que ps fim guerra civilde dezesseis anos e garantiu certa normalidade poltica), na transiosem traumas do governo de Joaquim Chissano (com seus dezoitoanos no poder) para Armando Guebuza em 2004 e na aproximaogradual China, Moambique redimensiona seu lugar no mundo.Mesmo sua tradicional parceria com a `frica do Sul, apesar de nohaver contradio intrnseca entre Moambique sul-africanizadae Moambique asiatizada, est sofrendo ligeiras revises. Nessesentido, a geografia moambicana articula a franja do Atlntico Sulao ndico, constituindo-se ponto altamente favorvel sua integraoao sistema mundial.

    Nessa perspectiva, pode mesmo haver complementaridade eampliao da rede de interesse e de cooperao bilateral `frica doSul-China envolvendo entrepostos e entrelopos. A ndia talvezpossa vir a ocupar lugar nessa relao bilateral. Moambique seriaum bom entreposto. Os agentes das empresas pblicas e privadas dotringulo ` frica do Sul-ndia-China movem-se como novos entrelopos.Ante o redesenho estratgico da `frica no seu conjunto, a `fricaAustral no seria uma exceo.

    Elites econmicas e polticas moambicanas no iriam assistir,de binculos, a novos arranjos da entente Angola-`frica do Sul semajustar os graus dos seus interesses na regio. Foram busca doseu lugar e da afirmao de seus interesses. Esto gradualmentepavimentando seu prprio caminho. E a Copa do Mundo de Futebolde 2010 na `frica do Sul prov imaginao lacaniana das elitesde Maputo a idia de um renascimento moambicano nos novostempos da `frica.

    O balano da evoluo democrtica em Moambique satisfatrio. No variou em relao grande maioria dos pasesafricanos na sua dimenso pluritnica, na preservao do Estadoterritorial herdado da colonizao, bem como na baixa densidadede participao da sociedade civil nas decises e no acompanha-

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    mento das polticas encaminhadas pelo aparelho de Estado. Defracas a inconclusas ou deformadas, de todas as maneiras j forammetaforizadas as dbeis democracias africanas. Mas o joio podeser separado do trigo como hoje reconhecem as prprias agnciasinternacionais.

    A tnue democracia moambicana diferente no que serefere capacidade de chegar a uma estabilidade relativamenteengenhosa. Soube adaptar a vida poltica nacional aos processosde internacionalizao econmica que passaram a operar nocontinente na ltima dcada e no incio do novo sculo, sem perdade tempo. Moambique buscou demonstrar ao mundo externo que uma democracia moderna em formao e que combate os excessosgerados pela corrupo e pelo patrimonialismo.40

    A favor das elites moambicanas - mas naturalmente esti-muladas pela induo do governo de Pretria - est o fato de quelograram reconstruir o Estado, sem fragmentaes fratricidas, sempresso das diferenas tnicas, sem separatismos regionais ebanindo sublevaes. O espraiar de uma certa idia de Estadovem facilitando contatos internacionais e inibindo desestabilizaesinternas, o que j muito para o histrico da formao do Estadono continente africano. esse Estado moambicano que vempermitindo o crescimento econmico continuado, o incrementodos investimentos estrangeiros e das exportaes, alm de certaconstncia nos nveis de ajuda internacional.41 Ganhou o statusde democracia eleitoral e de pas parcialmente livre nas clas-sificaes da Freedom House de 2005.42

    A transio da economia socialista para a verso aberta doprocesso econmico moambicano vem merecendo estudos.43

    Poder-se-ia dizer que foi um processo inexorvel diante da crisedas bases socialistas de produo e da improdutiva importao deum modelo econmico sem lastro na `frica. Ademais, as elitespolticas moambicanas j haviam realizado certa mudanaprogramtica no seio da Guerra Fria em favor da economia demercado. Ainda se pode argumentar que o fim da guerra civil de

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    dezesseis anos, em 1992, relevante. Para outros, o ponto de partidaessencial o 1994, gerado pela ` frica do Sul e o incio da era Mandela.Creditam, tais analistas, a reconstruo econmica moambicana deciso estratgica de seu vizinho, a `frica do Sul ps-apartheid, deinvestir e fazer de Moambique sua dcima provncia.

    Esses fatores no so excludentes, inclusive a reao esperadaante a democratizao na `frica do Sul de Mandela e a expansodo capitalismo sul-africano para suas bordas territoriais. A `fricado Sul certamente resolveu fazer o seu showcase moambicano paraapresentar ao resto do continente. Apresentar-se s democraciasrecentes na `frica como agente modernizador animou a economiasul-africana e o regime poltico renovado dirigido por Mandela eMbeki. Mas o que se notou, na prtica, foi certa viso estratgicae de oportunidades que, no Estado moambicano, foi mais endgenaque exgena.

    Isso no quer dizer que o desdobramento dessa abertura notenha decorrido do ambiente internacional de disputas acirradaspor mercados e por reas de investimento, animado pelas formasde internacionalizao econmica postas em marcha nos anos1990. O fato que o processo decisrio que levou adequaoaos novos capitais e investimentos, superando as agruras de umEstado sem poupana que acumulava dvidas, foi gestado no interiordo Estado moambicano, o qual, em alguma medida, gerencia suasconseqncias.

    Mas h uma emergncia de estratgia moambicana prpria.Ao lado de seus vizinhos da `frica Oriental, Moambique queavana sobre os demais. O Investimento Externo Direto (IED ouFDI) acumulado de 1995 a 2004 se aproxima de US$ 2,5 bilhes,bastante superior aos seus vizinhos, superando Qunia e Uganda.

    Embora, em termos absolutos, os indicadores sociais sejambastante lamentveis em Moambique, ainda hoje estando entreos mais baixos do mundo, h melhorias na rede escolar, que foirecuperada nos ltimos anos. A mortalidade infantil, problematpico do desamparo social em pases africanos, teve queda expres-

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    siva, como demonstram os dados do prprio Banco Mundial. E omesmo se pode falar do Relatrio do PNUD de 2005, ao registrarmelhorias nos nveis de desenvolvimento humano (IDH).44

    Essas avaliaes, contudo, no inibem a articulao doEstado moambicano com os novos agentes econmicos interna-cionais e com os investimentos diversos, de fontes mltiplas. Oraciocnio que alimentou o processo decisrio claro: se a pobrezae a AIDS demandam programas especficos de financiamento, elesforam criados de alguma maneira, com ou sem a cooperao inter-nacional. Mas se os investimentos produtivos na economia emexpanso podem ser feitos, devem ser feitos com os capitais deonde puderem vir. Vises pragmticas dominaram essa dimensodo processo decisrio do pas.

    Moambique passou a ser apresentado, em alguns fruns econ-micos, como espcie de tigre africano, por lembrar o caso da `sia nasdcadas de 1980 e 1990. Em 1998, foi considerada a economia quemais crescia na `frica. O pas ultrapassou, nos ltimos anos, todas asmetas estabelecidas pelas instituies financeiras internacionais. Chamaa ateno, todavia, o padro das relaes econmicas externasmoambicanas. Segue o modelo da relao colonial, de exportador deprodutos primrios e importador de bens com alto valor agregado.Esse um ponto de preocupao para setores sociais e polticosdo pas, embora nem sempre de sua elite governante.

    Esse ambiente de euforia econmica, no entanto, se refleteem outra caracterstica curiosa dos investimentos externos emMoambique: a sua origem. O grfico I situa o perfeito equilbrioentre os investimentos oriundos das economias centrais do capi-talismo e as contribuies realizadas pelas economias do Sul,sobre a qual certamente a `frica do Sul tem grande peso. Esseaspecto, associado ao controle da inflao medida como meta dasinstituies financeiras internacionais j em 1997 (em torno de5%) e o crescimento das exportaes equilibraram o balano depagamentos. Tambm houve reduo em relao ao montante dadvida, que est se estabilizando em torno de 20% do PIB em

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    2006. A vulnerabilidade externa daquela modesta, mas vibranteeconomia africana, vem se reduzindo proporcionalmente a cada ano.45

    Grfico I DISTRIBUIO DA ORIGEM DOS INVESTI-MENTOS POR PAS NO CONTINENTE AFRICANO:

    SITUAO COMPARADA DE MOAMBIQUE

    Fonte: United Nations Industrial Development Organization (UNIDO), AfricaForeign Investor Survey 2005. Viena: UNIDO, 2006 (p. 21). (com modificaes eadaptaes do autor do artigo)

    Sem margem de dvida, a situao moambicana segue adas economias mais dinmicas da `frica. A diversificao de par-ceiros internacionais, na raiz da modernizao econmica, faz deMoambique caso no qual investidores do Sul e do Norte pratica-mente dividem, meio a meio, o espao africano. Ao se avaliaremos mais importantes investidores externos em Moambique, tam-bm elucidativo o movimento global empreendido pelo pas e pelos

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    capitais produtivos e financeiros internacionais. H uma preferncia,por manter certa capacidade operativa do Estado, de joint-venturesde empresas moambicanas pblicas com sul-africanas e europias,alm das chinesas que esto aportando a Maputo e que ainda nopuderam ser mensuradas inteiramente pelos dados relativos aos tem-pos mais recentes.

    Registre-se o fato de que Moambique est tambm subme-tido ao fenmeno da reverse dependence, no qual as instituies inter-nacionais necessitam mostrar resultados em um pas africano paramostrar ao mundo. Com pouco para barganhar, Moambique temo trunfo de que tais agncias, investidores e doadores necessitamde certa eficincia e eficcia nas polticas por eles sugeridas. Resul-tado diverso tornaria difcil a sobrevivncia desses doadores e inves-tidores em seus prprios pases.

    No Frum de Cooperao ` frica-China, ocorrido em novembrode 2006, em Beijing, o presidente Hu Jintao ressaltou que pretendeestreitar os laos com Moambique via incremento do comrciobilateral, particularmente nas reas j envolvidas. As vendas atuaismais importantes de Moambique para a China so de materiaisprimrios como o gengibre e a madeira, para a indstria chinesa.Cresce, de forma exponencial, o estmulo s empresas chinesaspara que invistam em Moambique.

    A visita do lder chins a Moambique, no incio de 2007, prova da nfase chinesa na poro oriental da `frica. O presidenteHu Jintao ressaltou que os setores de agricultura e de construode infra-estrutura ganharam prioridade nas relaes entre os doispases. Em Beijing, como em Maputo, menos de dois meses depoisdo Frum em Beijing, o mandatrio chins atribuiu a Moambiqueo status de destino turstico aprovado, uma forma de acordobilateral no qual cidados chineses so liberados a visitar outrospases sem a necessidade de visto de sada, embora a viagem tenhaque ser realizada por agncia credenciada pelo governo.

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    guisa de concluso: a ` frica para os africanos

    Mas no se traa o futuro da `frica apenas de fora para dentro.Os africanos esto reivindicando e construindo autonomiadecisria. Buscam solues nacionais para seus desafios na reasocial e da cidadania. O controle do Estado e sua orientao parao crescimento econmico e o desenvolvimento sustentvel so aboa novidade no continente.

    Tornaram-se os lderes africanos refratrios noo de fimdo Estado e de governana global vendidas para a `frica comosoluo mgica nos tempos de encantamento liberal generalizado,embora em menor grau do que se passou na Amrica Latina nosanos 1990.46 Querem falar de transio de modelo para uma formamais logstica de construo do desenvolvimento, com democraciae mais incluso social. Passaram a operar em novas bases conceituaisno ps-Guerra Fria e ante a crise geral do internacionalismo liberal.

    O encerramento do grande ciclo dos conflitos abertos emilitarizados internos exemplo dessa vontade poltica nova derenascer e de orientar as energias para projetos mais produtivos.Engajaram-se nos programas voltados para as metas do milnio equerem modificar os indicadores sociais previstos para seremalcanados em 2015. Mas o querem fazer a partir de suas realidadese possibilidades, em parceria horizontal e no mais vertical comos velhos e novos parceiros da `frica.

    Administrar, de dentro para fora, as ambies internacionaisgeradas pela nova partilha africana posta em marcha pelos planosestratgicos chineses e norte-americanos, mas tambm em algumamedida do Brasil tambm, exigir dos africanos uma noo dedomesticao, pela via do fortalecimento do Estado democrticoe da responsabilidade fiscal e macroeconmica mais ampla, dastendncias malvolas que caminham juntas com a ambio polticados Estados fortes que se organizaram para a nova corrida para a`frica.

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    H, nesse sentido, um ambiente mais positivo. A mais impor-tante iniciativa nesse sentido, emblemtica da autoconfiana quese espraia no seio da inteligncia poltica do continente, foi o lana-mento da Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano(NEPAD), em 2001. Ao reivindicarem a capacidade de construodo seu futuro, as lideranas africanas esto atraindo para si aresponsabilidade de superao do grau marginal de insero aoqual o continente foi submetido na dcada de 1990. Buscar umlugar mais altivo, menos subsidirio na globalizao assimtricaatual, o argumento central do contorno do desenho estratgicoque a NEPAD significa.

    A NEPAD no foi feita de fora para dentro da `frica. Nem onrico como o Plano de Lagos de 1980 ou limitado como oPrograma Africano de Recuperao Econmica de 1986. A NEPADtem carter indito, abrangente, social e cidado, como o PlanoMarshall foi para a reedificao da Europa depois da guerra. A met-fora til, pois NEPAD significa African leadership and African ownership.

    O texto de lanamento fala por si, ao situar a plataformaconceitual no qual a NEPAD poder florescer:

    A `frica ps-colonial herdou Estados fracos e economiasdisfuncionais que foram agravados ainda por uma lideranafraca, pela corrupo e m-governana em muitos pases.Esses dois fatores, conjugados s divises causadas pelaGuerra Fria, minaram o desenvolvimento de governosresponsveis em todo o continente.47

    O reconhecimento de que o Estado tem um papel central nodesempenho do crescimento, no desenvolvimento sustentvel ena implantao de programas de reduo de pobreza, anotadospelos chefes de Estado na `frica de 2001, ainda um sonho. Masa dimenso utpica das novas vontades expressadas pelos africanosmove a vida deles para uma nova agenda poltica da qual a `fricano poder mais se afastar.

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    0O Brasil, que se lana novamente para a `frica, por meio

    dos movimentos dinmicos de sua poltica exterior e de uma pautacomercial de produtos diversificados e que evolui percentualmentepara j representar cerca de 6% das trocas internacionais do Brasil,tem possibilidades importantes de ocupar a brecha africana. Apro-veitar a dinmica do renascimento africano e da autoconfianaque emerge l para propor dilogo de interesses mtuos e de valoresabrangentes para a nova geografia poltica internacional agendaconvidativa para a fronteira atlntica do Brasil. Otimismo caute-loso deve guiar o Brasil, pois h sempre chance, aqui como na`frica, de reverter o ciclo de retrao e de desespero em favor doavano cidado e da esperana de uma `frica muito melhor aofinal do sculo XXI.

    Africa in the international order of the XXIth Century: a Brazilian interpretationAbstract. In this article we propose new concepts on Africas place in the internationalorder established since the XXIth Century. The gradual progress of democracyprocesses in the United States, the satisfactory economic performances, along witheconomic growth spread in the continent, as well as the growing political confidenceof the elites, have been contributing to strengthen the decision-making ability ofgovernors among the available options in the international system which is takingshape. The Mozambique case will be used to explain the main point of this article.Keywords: Africa. International Order. African Economy. Mozambique.

    Notas

    1 H, nesse tpico, duas linhas de interpretao que disputam hegemonia acadmicaacerca do novo papel da ` frica no sistema internacional ps-Guerra Fria. Os queadvogam em favor da adaptao sem mudanas insistem na idia de certa reformaepidrmica, quase apenas cosmtica do continente ante os novos desafios interna-cionais. H a linha, na qual se inscreve este autor, que procura avaliar a hiptese deque h uma oportunidade de insero mais altaneira, menos deprimida, da ` fricano sistema internacional.

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    2 Pululam, na imprensa brasileira, interpretaes catastrficas das crises polticasafricanas como aquelas advindas do Darfour, os problemas polticos advindos daseleies presidenciais em tradicional democracia africana como a do Qunia ou dosproblemas do Zimbbue. Ver, por exemplo, as avaliaes alarmistas produzidasnos primeiros meses de 2008 em grandes jornais nacionais: Mariana Della Barba,Cinco anos de inferno em Darfour, O Estado de So Paulo, 6 de abril de 2008, p.A24; Elias Thom Saliba, Se os crocodilos falassem... O jornalista Peter Godwinvale-se de poderosa lenda africana para analisar a tragdia do Zimbbue, O Estadode So Paulo, 6 de abril de 2008, p. D5. Quando no se reproduzem, na imprensanacional, interpretaes de autores das ex-metrpoles, algumas saudosas do passa-do colonial, criam-se imagens de eterno e cclico desterro das sociedades e Estadosafricanos contemporneos.3 Segundo dados de hoje do Fundo Monetrio Internacional, o PIB da regio cresceude 4%, em 2003, para 5,7%, em 2004, 5,6%, em 2005, 4,8%, em 2006, com previsode crescimento em torno de 6% para 2007. O crescimento da `frica foi no perodomencionado, portanto, na mdia da Amrica Latina e superior mdia brasileira.4 IMF & BIRD, Africa Foreign Investment Survey 2006. Washington: IMF, 2007.5 Um bom estudo acerca das origens e dos desdobramentos desses conflitos estna obra de Taisier M. Ali; Robert O. Mathews, Civil Wars in ` frica. Roots and Resolutions.London: Ithaca, 1999.6 Os conflitos na ` frica foram chaga da histria recente com impacto econmicoincontestvel, como demonstra o Relatrio da ONG Oxfam, Ians e Saferwood, queacaba de ser publicado: US$ 284 bilhes foi o custo para o desenvolvimento docontinente causado pelos conflitos armados entre 1990 e 2005. O curioso que essasoma corresponde aproximadamente ao valor de toda a ajuda financeira internacionalrecebida pela ` frica no mesmo perodo.7 PNUD. Relatrio do Desenvolvimento Humano, 2005 e 2006.8 evidente que, como um processo histrico recente, h idas e vindas na construodemocrtica dos Estados africanos contemporneos. O caso recente do Qunia,considerado, at pouco tempo, um exemplo satisfatrio de democratizao gradu-al, demonstra que h reveses, mas h tambm negociao e sistema de pesos econtrapesos que tornam os encaminhamentos polticos no to trgicos quantoaqueles pintados pelas vises da catstrofe africana.9 A stima visita do presidente da Repblica do Brasil, Luiz Incio Lula da Silva, aocontinente africano, entre os dias 15 e 19 de outubro de 2007, momento recente eespecial para ver o quanto, na grande imprensa, seguem os olhares enviesados e asatitudes de desconfiana acerca do que o Brasil pode realizar com a ` frica. O desconhe-cimento mdio de entrevistador e entrevistado marca do que se viu nos jornais.Expressam a carncia de reflexo sofisticada no Brasil acerca do que est ocorrendonaquele continente. Ver, por exemplo, o editorial Diplomacia e Ditatura, Folha de

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    2So Paulo, 17 de outubro de 2007, bem como a entrevista, ao Correio Braziliense, doBrazilianist Thomas Skidmore: Lula um pernambucano que goza das viagenspelo mundo, e seu tour internacional o faz ter mais visibilidade que seus antecessores...A viagem ` frica muito mais um show... O cara quer ir a todos os lugares. Algumasvezes parece que ele (Lula) deseja fugir de Braslia e dos problemas polticos., CorreioBraziliense, Skidmore critica tour presidencial, 17 de outubro de 2007, p. 24.10 Isso ocorre mesmo no contexto de forte expanso da presena comercial doBrasil na ` frica e da ` frica no Brasil, como demonstram os dados do Ministrio doDesenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior. Apesar do crescimento, de 2002para 2006, do fluxo comercial entre o Brasil e a `frica de US$ 5 para US$ 15,5bilhes, no se percebe uma estratgia empresarial de longo prazo a cuidar para quea presena do comercial migre para os investimentos em logstica e sustentabilidadedessa rea relevante para a diversificao de parcerias comerciais e polticas do Brasil.Tal crescimento se d mais, para alguns analistas como meu colega Wolfgang Dpcke,pelo crescimento inercial da economia global e seus impactos no Brasil e na ` frica.Mas h que se registrar, por exemplo, a nova linha de crdito anunciado pelo BNDESpara Angola, em torno de US$ 1 bilho, na visita do presidente Lula quele pas em18 de outubro de 2007, como um movimento altamente favorvel a uma presenamais induzida pelo Brasil, pelo prprio Estado nacional.11 A produo nacional de livros a respeito da ` frica escassa, em geral, sem pesquisain loco, alm de reproduzir, em grande medida, vises romnticas ou voltadas parao estudo do outro lado do Atlntico Sul apenas pela via politizada do discurso daafro-brasilidade.12 Ver alguns livros meus e de colegas brasileiros a respeito da poltica africana doBrasil, no passado e no presente: Jos Flvio Sombra Saraiva, O lugar da `frica: adimenso atlntica da poltica exterior do Brasil. Braslia: Editora da UnB, 1996; JosFlvio Sombra Saraiva & Amado Luiz Cervo (orgs.), O crescimento das relaes inter-nacionais do Brasil. Braslia: Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais, 2005;Jos Flvio Sombra Saraiva, ` frica e o Brasil: o Frum de Fortaleza e o relanamentoda poltica africana do Brasil no governo Lula. In: Pedro Mota Coelho & Jos FlvioSombra Saraiva (orgs.), Frum Brasil-Africa: Poltica, Cooperao e Comrcio. Braslia:Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais (IBRI), 2004, p. 295-307; Jos FlvioSombra Saraiva, A poltica exterior do governo Lula: o desafio africano, RevistaBrasileira de Poltica Internacional, v. 45, n. 2, 2002, p. 5-25.13 H 20 anos, estudei aquele outro intento de renascimento africano, naquela poca,marcado pelo grande debate ideolgico entre uma ` frica que renascia entre acomodaesaos padres neocoloniais, sob o manto do conceito de negritude de Leopold Senghor,e o grito revolucionrio, da luta armada como teoria de libertao de Amlcar Cabral. VerJos Flvio Sombra Saraiva, Formao da ` frica Contempornea, So Paulo: Editora daUnicamp/Atual, 1987, captulo Renascimento cultural na ` frica contempornea,

  • p. 6-16. Ver tambm os debates clssicos propostos por Paulin J. Hountondji, Sur laphilosophie africaine. Paris: Maspero, 1980; Ola Balogun, Honorat Aguessy, Path Diagne,Alpha Sow, Introduo cultura africana. Lisboa: Edies 70, 1977.14 Anouar Abel-Malek, Sociologia del imperialismo. Ciudad de Mxico: UniversidadNacional Autonoma de Mxico, 1977.15 Ver o texto de Paulo Fernando de Morais Farias (Centre of West African Studies,University of Birmingham, Inglaterra) preparado para o seminrio preparatrio dostemas africanos para a II CNPEPI, em 2 e 3 de maro de 2007, intitulado Tombuctu,a ` frica do Sul e o idioma de renascena africana. Paulo Farias que lembra quepor definio, o atual idioma da Renascena Africana se refere tanto ao presentequanto ao passado, dentro e fora das fronteiras da ` frica do Sul, o pas onde temsido proclamado. So tambm de Paulo Farias outras duas idias lapidares para odebate em curso: primeiro, o papel dos cronistas de Tombuctu na inveno doesquema no tem sido reconhecido, porque a funo que lhes imposta pelosdiscursos posteriores outra. As crnicas passaram a ser vistas sobretudo comotestemunhos de uma grandeza saheliana perdida, que simboliza o futuro a ganhar.As tenses sociais e audcias intelectuais da Tombuctu do sculo XVII so substi-tudas pela imagem de um classicismo africano estereotipado; segundo, tododiscurso de renascena corre o risco de mitificar o passado. Mas esse risco no inevitvel, e subtrair-se a ele tambm uma maneira de preservar a capacidade crticaem relao ao presente e aos caminhos para o futuro.16 Mamadou Diawara, Paulo Fernando de Moraes Farias et Gerd Spittler, HeinrichBarth et lAfrique. Kln: Rdiger Kppe Verlag, 2006.17 Modelar o balano dos 30 anos da independncia da ` frica realizado por DouglasRimmer, em 1991, com prefcio da Princesa Diana, em nome da Royal AfricanSociety britnico. Ver Douglas Rimmer (ed.), `frica 30 Years 0n. London: JamesCurrey, 1991. Indicava j aquele documento do incio dos anos 1990 que a ` fricanecessitaria voltar-se para si mesma, para dentro, para sair de suas crises.18 Vale aqui lembrar que os mais de cerca de 600 milhes de africanos sero, nasegunda metade do sculo XXI, em torno de um bilho de 200 milhes de pessoas.Tomando-se em conta a grande populao de velhos na China e o modesto cresci-mento vegetativo da ndia, a ` frica, ao lado dos outros dois pases, sero as reasmais populosas do mundo no final do sculo XXI.19 Ver os relatrios de 2006 e 2007 do BIRD e do FMI, nos captulos referentes soportunidades de crescimento mais sustentvel das economias africanas para os prxi-mos anos.20 Esse tema foi particularmente tratado recentemente, pela obra mais difundidaacerca dos 50 anos da independncia africana pelo britnico Martin Meredith, TheState of `frica: a History of Fifty Years of Independence. London: Free Press, 2006.

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    421 Apud Martin Meredith, op. cit., p. 688.22 Conversas com o colega, quando esteve no Brasil, como representante do PNUDe do sistema onusiano em Braslia.23 Ali Mazrui alertou para esse problema na abertura da Conferncia InternacionalDemocracy and Peace: Dialogue between Africa and Latin America, Jos University,Ibadan University, em Abuja, 2000, conferncia da qual tive a honra de participarcomo membro da delegao latino-americana.24 Ali Mazrui, Foreword. Em: Ricardo R. Lauremont (ed), The causes of war and the consequencesof peacekeeping in `frica. Portsmounth: Heinemann, 2002, p. xi.25 Paulo F. de M. Farias, Tombuctu, op. cit.26 Conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicao nos dias 18 e 19de outubro de 2007, pelas televises e jornais, depois de sua desastrosa entrevistapara a BBC.27 Ian Taylor; Paul Wiilliams (eds), Africa in International Politics: External Involvementon the Continent. London: Routledge, 2004.28 Idem, pgina 1.29 Ian Tayor; Paul Williams, op. cit., p. 1.30 Seguindo a tradio dos ingleses de reviso, a cada duas ou trs dcadas, deavaliao das grandes tendncias em curso na `frica. Destaca-se, por exemplo, obalano de 1991, j um pouco ultrapassado, mas bastante interessante pelas visesmescladas, entre otimismo e pessimismo, acerca do futuro da ` frica quanto aqueleorganizado pelo Royal African Society, sob os auspcios do meu mestre em Birmingham,Inglaterra, Douglas Rimmer, op. cit. de Douglas Rimmer a seguinte assertiva,produzida em 1991, e de grande atualidade para o renascimento africano:Responsible governments, competent governments, and governments limited intheir agenda to what they can usefully achieve are the second requirement of a betterfuture in ` frica, p. 13.31 CFR, More than Humanitarianism: A Strategic US Approach towards Africa. Washington:Council on Foreign Relaitons, 2007.32 Apud Ian Taylor, The all-weather friend? Sino-African interaction in the twenty-first century in Ian Taylor & Paul Williams, op. cit., p.87.33 Adama Gaye, Chine-Afrique: le dragon et lautruche. Paris: LHarmattan, 2006; Jean-Franois Susbielle, Chine-USA: la guerre programe. Paris: Ed. Gnrale First, 2006,captulo La conqte pacifique de lAfrique, p. 231-232; Armand Tenesso, La nouvelledestine de lAfrique. Paris: LHarmattan, 2006.34 Daniela Kroslak, Frances policy towards Africa In: Ian Taylor and Paul Williams,op. cit., p. 61-82.35 Ver o incio de avaliao desse movimento do Brasil em artigo relativo confernciaque preparei para evento anterior organizado pelo Ministrio das Relaes Exterio-res: Jos Flvio Sombra Saraiva, Moambique em retrato 3x4: Uma pequena brecha

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    para a poltica africana do Brasil. Em: Seminrio Preparatrio `frica, para a IIConferncia Nacional de Poltica Externa e Poltica Internacional, 2 de maro de 2007.36 IMF & BIRD, Africa Foreign Investment Survey 2005. 2006.37 Os jornais e revistas moambicanas e internacionais desses dias festejam ou vemcom desconfiana a estratgica visita realizada, no contexto do tour do presidente chinspor vrios pases da regio. Ver: Beijing Time 5/2/07; Beijing/AFP/Turkishpress.com30/1/07; Le Monde Economie 15/12/06; Le Monde/AFP/Reuters 30/1/07; Notcias8/2/07; Notcias Lusfonas 5/2/07; The Guardian 31/1/07; Xinhua News Agency 9/2/07.38 Ver, nesse caso, o impressionante relatrio preparado pelo South African Instituteor International Affairs (SAIIA), publicado em 2002, intitulado Cada continenteprecisa de seu Estados Unidos da Amrica, voltado ao balano e endosso da presenasemi-hegemnica que a ` frica do Sul procura impor a Moambique. Um trecho dodocumento fala por si: Over the last 10 years, Mozambique, sometimes touted asSouth Africas tenth province, has emerged as one of the most significant SouthAfrica investment destinations on the African continent. South Africa is a leadinginvestor in that country representing 49% of total foreign direct investment (FDI)from 1997-2002. South African companies have capitalized on Mozambiques geographicalproximity to expand their reach into the continent (p. 1) Ver GROBBELAAR, N.Every Continent Needs an America. Pretoria: SAIIA, 2002.39 Ver, por exemplo, os trabalhos de Scarlett Cornelissen, a respeito do avanojapons na `frica, e a impressionante radiografia de Ian Taylor concernente aodesembarque do governo de Hu Jintao na `frica: Cornelissen, S. Japan-Africarelations: patterns and prospects. In: Taylor, Ian; Williams, P. Africa in InternationalPolitics: External Involvement on the Continent. London: Routledge, 2004, pp. 116-135; Taylor, I. The all-weather friend? Sino-African interaction in the twenty-firstcentury. In Taylor, Ian; Williams, Paul, op. cit. p. 83-101.40 Esclarece-se, no entanto, que no h unanimidade entre os estudiosos da `fricacontempornea acerca dessa matria. Para alguns deles, como Dcpke, o que diferenciaacorrupo moambicana da angolana a proporo da economia. Haveria menos adistribuir em Moambique que em Angola. (Entrevista com o especialista)41 Olsen, C. A luta continua: a formao do Estado em Moambique. Braslia: MRE,Instituto Rio Branco, 2006, p. 48. (Orientador: Jos Flvio Sombra Saraiva)42 Ver www.freedomhouse.org.43 Um importante trabalho que consolida de forma bastante apropriada essa tran-sio o livro organizado por Abrahamsson e Nilson. Ver Abrahamsson, H.;Nilson, A. Mozambique: The Troubled Transition from Socialist Construction to FreeMarket Capitalism. London: Zed Books, 1995. Ver tambm Castel-Branco, F. ;Cramer, C. ; Hailu, D. Privatization and Economic Strategy in Mozambique. London:UNU/Wider, 2001.44 PNUD. Relatrio do Desenvolvimento Humano 2005.

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    45 OECD. Mozambique. In: African Economic Outlook 2004-2005. London: OECD,2006, p. 346.46 Ver, nesse aspecto, a proposio conceitual de Amado Luiz Cervo relativa noode Estado logstico, recentemente apresentado no seu novo livro: Amado L. Cervo,Insero internacional: a formao dos conceitos brasileiros. So Paulo: EditoraSaraiva, 2008, parte I: Conceitos, transio e paradigmas, p. 7-9147 NEPAD, documento oficial de lanamento, 2001, pargrafo 22.

    Recebido em: 24/06/2008Autor Convidado.

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