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Texto recebido em 30 de junho de 2014. Aceito para publicação em 31 de agosto de 2014. www.apebfr.org/passagesdeparis Passages de Paris 10 (2015) 223-251 A ARTE COMO MATERIALIDADE MEDIADORA DA FORMAÇÃO NO TRABALHO EM SAÚDE MENTAL Lúcia Maria PISSOLATTI * Vera Lúcia TREVISAN DE SOUZA ** Resumo: Neste artigo, apresentamos um eixo da pesquisa de doutorado em curso, realizada em uma instituição psiquiátrica localizada na cidade de São Paulo-Brasil. Aqui discutimos de que maneira a utilização de diferentes manifestações artísticas, tais como reproduções de fotografias, pinturas, músicas, poesias, contos e filmes, constitui-se como materialidades mediadoras da relação com os profissionais em formação no trabalho. Tomamos por base os pressupostos teóricos metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural, representada por Vygotsky, que tem como objeto de investigação o sujeito histórico e, como método, o materialismo dialético. Palavras-chave: Formação no Trabalho; Psicologia Histórico-Cultural; Vygotsky; Arte. Abstract: In this article we present an axis of doctoral research in course, held in a psychiatric institution located in the city of São Paulo-Brazil. Here we discuss how the use of different artistic manifestations, such as reproductions of photographs, paintings, songs, poetry, short stories and films, is mediating the material elements characteristic relationship with professionals in training at work. We take based on theoretical assumptions of Cultural-historical Psychology methodology, represented by Vygotsky, that has as its object the research subject history and dialectical materialism as a method. Keywords: Training at Work; Vygotsky; Human Development; Historic-Cultural Psychology; Art. I. INTRODUÇÃO Apresentamos aqui um eixo da pesquisa de doutorado que investiga a Formação em situação de trabalho com os profissionais de saúde mental que trabalham em um hospital psiquiátrico, localizado na cidade de São Paulo. * A autora é psicóloga, doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP. Doutorado PSDE/ CNAM Diretora Técnica de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Doze anos de experiência docente em cursos de graduação e pós-graduação. Atualmente é professora universitária da FMU-SP em curso de graduação em psicologia. Psicóloga clínica por vinte e um anos. Atua há 22 anos no serviço público de saúde, desde a assistência, planejamento, implantação, coordenação e supervisão de serviços na área de saúde mental. [email protected] ** Doutora em Psicologia da Educação. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Avaliadora adhoc de cursos superiores do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e pesquisadora cadastrada no CNPQ, desenvolvendo pesquisas sobre aspectos que interferem no desenvolvimento humano em processos educativos.

A ARTE COMO MATERIALIDADE MEDIADORA DA … · decorre do estabelecimento da forma material, seja na definição e destinação dos recursos financeiros, seja na efetivação de determinada

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Texto recebido em 30 de junho de 2014.

Aceito para publicação em 31 de agosto de 2014.

www.apebfr.org/passagesdeparis

Passages de Paris 10 (2015) 223-251

A ARTE COMO MATERIALIDADE MEDIADORA DA FORMAÇÃO NO

TRABALHO EM SAÚDE MENTAL

Lúcia Maria PISSOLATTI*

Vera Lúcia TREVISAN DE SOUZA**

Resumo: Neste artigo, apresentamos um eixo da pesquisa de doutorado em curso, realizada em uma

instituição psiquiátrica localizada na cidade de São Paulo-Brasil. Aqui discutimos de que maneira a

utilização de diferentes manifestações artísticas, tais como reproduções de fotografias, pinturas, músicas,

poesias, contos e filmes, constitui-se como materialidades mediadoras da relação com os profissionais em

formação no trabalho. Tomamos por base os pressupostos teóricos metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural, representada por Vygotsky, que tem como objeto de investigação o sujeito histórico e,

como método, o materialismo dialético.

Palavras-chave: Formação no Trabalho; Psicologia Histórico-Cultural; Vygotsky; Arte.

Abstract: In this article we present an axis of doctoral research in course, held in a psychiatric institution

located in the city of São Paulo-Brazil. Here we discuss how the use of different artistic manifestations,

such as reproductions of photographs, paintings, songs, poetry, short stories and films, is mediating the

material elements characteristic relationship with professionals in training at work. We take based on

theoretical assumptions of Cultural-historical Psychology methodology, represented by Vygotsky, that

has as its object the research subject history and dialectical materialism as a method.

Keywords: Training at Work; Vygotsky; Human Development; Historic-Cultural Psychology; Art.

I. INTRODUÇÃO

Apresentamos aqui um eixo da pesquisa de doutorado que investiga a Formação em

situação de trabalho com os profissionais de saúde mental que trabalham em um

hospital psiquiátrico, localizado na cidade de São Paulo.

* A autora é psicóloga, doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP. Doutorado

PSDE/ CNAM Diretora Técnica de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Doze anos de

experiência docente em cursos de graduação e pós-graduação. Atualmente é professora universitária da

FMU-SP em curso de graduação em psicologia. Psicóloga clínica por vinte e um anos. Atua há 22 anos

no serviço público de saúde, desde a assistência, planejamento, implantação, coordenação e supervisão de

serviços na área de saúde mental. [email protected] ** Doutora em Psicologia da Educação. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de

Campinas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Avaliadora adhoc de cursos

superiores do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e pesquisadora cadastrada no CNPQ,

desenvolvendo pesquisas sobre aspectos que interferem no desenvolvimento humano em processos

educativos.

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Parte-se da análise vivencial com um grupo de 17 profissionais que atuam em um dos

setores desta instituição, voltada à internação de pacientes com transtorno mental agudo.

Nela detectamos problemas na relação desses profissionais com o trabalho, a saber:

dificuldades em trabalhar coletivamente, em comunicar-se e relacionar-se. Estas

impactam diretamente na qualidade do atendimento prestado ao paciente e gera, nos

profissionais, o sentimento de falta de reconhecimento de seus trabalhos. Temos por

objetivo investigar quais vivências promovem e sustentam esse sofrimento.

Tomamos por base os pressupostos teóricos metodológicos da Psicologia Histórico-

Cultural, representada por Vygotsky, que tem como objeto de investigação o sujeito

histórico e o materialismo dialético. Essa perspectiva teórica postula a arte como uma

linguagem que toca os afetos e possibilita acessar o sujeito por meio do sensível, do

afetivo-volitivo. Propomo-nos, assim, utilizar a arte como estratégia na formação em

situação de trabalho e analisar em que medida esta vivência promove a expressão de

emoções e sentimentos que levem ao desenvolvimento da consciência de si como

sujeito histórico, do seu papel profissional, dos efeitos do seu trabalho no outro e das

condições em que o trabalho ocorre. Como resultado, espera-se que as ações de

formação possibilitem desvelar a intrincada trama de sentidos presentes no contexto de

trabalho dos profissionais da saúde mental, favorecendo o repensar de suas práticas, a

fim de promover mudanças que se constituam no estabelecimento de novos modos de

pensar e viver a profissão.

Considerando que as vivências no campo do trabalho desses profissionais, promovem e

sustentam o sofrimento, e que a busca por reconhecimento está no âmago do trabalho,

partimos da hipótese de que a falta de adoção de uma política institucional de formação

apropriada ao desenvolvimento dos profissionais, em relação ao conhecimento

teórico/prático em saúde mental e saúde pública, somada às atribuições do trabalho e ao

modelo de gestão adotado pelas instituições públicas nesta área, são geradoras de

conflitos e promovem o sofrimento dos trabalhadores.

Cabe ressaltar que a concepção que embasa esta pesquisa leva em consideração o

coletivo no trabalho, porém, pretendemos focalizar o sujeito e, neste caso, o sujeito do

trabalho, o trabalhador-uno na relação com o coletivo em seu processo de

desenvolvimento. Os movimentos e não movimentos, no processo de criar e recriar o

seu trabalho.

Nesse sentido, considera-se que a análise sobre o trabalho na perspectiva histórico-

cultural apresenta uma especificidade que não pode ser tomada como postura de

extraterritorialidade (Schwartz 15), o que para nós significa que pesquisador e objeto de

pesquisa estão envolvidos em uma rede de complexidade singular, em que a história

acontece, de forma que o pesquisador deve estar na cena dos acontecimentos, tomando

também o contexto como objeto de investigação. Essa perspectiva epistemológica e

metodológica apoia-se na compreensão que temos do que é viver e trabalhar e na

avaliação de que os limites do conhecimento científico sobre saúde e trabalho só podem

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ser superados se confrontados e estimulados pelos desafios e pelas indagações advindas

da experiência daqueles que vivem as relações que investigamos (Brito & Atayde 240).

Compreendendo que tais situações vividas na atividade do trabalho pelos profissionais

que atuam no setor público de saúde também perpassam as diretrizes estabelecidas pelas

leis e portarias que irão incidir, de forma direta ou indireta, no seu cotidiano. O que

decorre do estabelecimento da forma material, seja na definição e destinação dos

recursos financeiros, seja na efetivação de determinada ação, que produz seus efeitos

nos profissionais trazendo dificuldades na efetivação destas políticas no exercício do

trabalho coletivo institucionalizado.

Propomo-nos, a seguir, iniciar nossa apresentação trazendo uma análise crítica de

algumas leis e portarias frente ao cenário da reforma psiquiátrica e sua incidência nas

propostas da política de formação para a saúde mental no Brasil. Uma vez que

compreendemos que, de um lado, esta pesquisa decorre do vácuo de tais ações e, de

outro, pode apontar para a possibilidade de superação de tais limitações pela via do

trabalho do psicólogo atuando no campo institucional, voltado ao desenvolvimento de

pessoas por meio da formação no trabalho, e desta forma apresentamos ao final o

desenvolvimento de nossa proposta e análise metodológica realizada a partir dos

encontros de formação no trabalho, em que utilizamos a arte como mediação.

II. OS MARCOS LEGAIS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE FORMAÇÃO

EM SAÚDE: O QUE DEVERIA NORTEAR SUSCITA DESENCONTROS

Muitos países têm construído políticas de saúde mental comprometidas com o

desenvolvimento de novas formas de cuidado, com a melhoria da qualidade de vida,

garantia dos direitos de cidadania e combate às formas de violência, exclusão e estigma,

de que são alvo as pessoas com transtornos mentais.

Ainda que tais políticas decorram, em grande parte, dos movimentos que culminaram na

Declaração Universal dos Direitos Humanos, que por sua vez decorrem de um processo

ético que teve sua origem com a Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, da

Revolução Francesa. No que diz respeito às pessoas que sofrem de transtorno mental,

constatamos que até o momento boa parte destes princípios ainda não atende ou atende

parcialmente as necessidades e direitos dessas pessoas.

No Brasil, o início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes

psiquiátricos acontece em meados de 1978. Decorre do movimento dos trabalhadores

em saúde mental (MTSM), que era formado por integrantes do movimento sanitário,

associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e

algumas pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas. Esse protagonismo é

marcado pelas denúncias de violência praticada nos manicômios, da mercantilização da

loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência além da crítica ao chamado

saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com

transtornos mentais.

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Nesse mesmo ano, na cidade da Alma Ata no Cazaquistão, se dá a 1ª Conferência

Internacional sobre os Cuidados Primários em Saúde, movimento mundial em que

participaram representantes de 67 países, cujo objetivo era combater as desigualdades

entre os povos e alcançar a audaciosa meta de “Saúde Para Todos no Ano 2000”.

Conferência que resulta na carta de intenções Declaração de Alma-Ata. Entende-se, a

partir daí, que o envolvimento e participação popular formam ao mesmo tempo um

direito e um dever das pessoas e dos países, a serem exercidos individual e ou

coletivamente, e que por sua vez esta deve influenciar no planejamento e na prestação

dos cuidados primários em saúde. Na Declaração, definem-se como Cuidados Primários

em Saúde aqueles de caráter essencial, prestados mediante o uso de métodos e técnicas

práticos, cientificamente fundamentados e aceitáveis socialmente. De forma geral,

propõe que as práticas assistenciais ocorram a partir e em conjunto com a sociedade e

de forma a atender as suas necessidades. Para tanto, orienta que a população esteja

envolvida na aquisição de capacidade de participação pela via da educação.

Destacamos dois aspectos presentes nesta declaração que consideramos importante para

a presente discussão. O primeiro, diz respeito à menção, pela primeira vez, de que a

saúde mental deve integrar as ações de cuidado primário em saúde (Who 48) e o

segundo se relaciona à ênfase dada ao caráter educativo para o êxito dos desafios

propostos. A palavra educação é utilizada 32 (trinta e duas) vezes no documento e está

relacionada ao caráter preventivo das ações em saúde junto à população, com a

finalidade de orientação à efetiva participação popular, como à formação continuada dos

profissionais de saúde, que atuam na atenção primária.

Inspirados e envolvidos por tais recomendações e principalmente pelo modelo de

desinstitucionalização italiana, nascem as primeiras propostas e ações para a

reorientação da assistência dos cuidados em saúde mental no Brasil.

A década de 1980 é marcada por intensos e significativos movimentos em prol de uma

política de saúde mental centralizada no atendimento na comunidade. Em 1987, na

cidade de Bauru –SP, acontece o II Congresso Nacional do MTSM com o tema “Por

uma sociedade sem manicômios” e, nesse mesmo ano, é realizada a I Conferência

Nacional de Saúde Mental, na cidade do Rio de Janeiro.

Surge nesse período o primeiro CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – no Brasil,

localizado na cidade de São Paulo, seguido do processo de intervenção, em 1989, pela

Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP), no hospital psiquiátrico daquela cidade,

a Casa de Saúde Anchieta. Dessa intervenção, com repercussão nacional, origina-se a

construção da chamada rede de cuidados, com a finalidade de ser substitutiva ao

hospital psiquiátrico. Ainda em Santos, é implantado o primeiro NAPS – Núcleos de

Atenção Psicossocial, que funcionava 24 horas, além da criação de cooperativas,

residências para os egressos do hospital e associações. Essas experiências na cidade de

Santos passam a ser um marco no processo da Reforma Psiquiátrica brasileira.

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Na esteira da constituição de 1988 e com a criação do SUS – Sistema Único de Saúde,

em 1989, ao mesmo tempo em que se dá a instalação do primeiro CAPS na cidade de

São Paulo e do movimento em Santos, dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de

Lei do deputado Paulo Delgado, que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa

com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. É o início

das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo.

Em 1990, na cidade de Caracas na Venezuela, reúnem-se as organizações, associações,

autoridades da saúde, profissionais de saúde mental, legisladores e juristas para a

Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica dentro dos

Sistemas Locais de Saúde, evento organizado pela OMS e OPAS. Ao final dessa

Conferência, redige-se a “Declaração de Caracas”, que surge como resultado da análise

crítica e da necessidade de transformação da situação da atenção em saúde mental na

região das Américas. Nesta, considera-se que a melhora da atenção era possível por

meio da superação do modelo assistencial baseado no hospital psiquiátrico e que a sua

substituição deveria se dar por meio de dispositivos comunitários de atenção, e por

ações de defesa dos direitos humanos e inclusão social. Ela foi adotada por todos os

países da Região das Américas.

No Brasil, a partir de 1992, com o impulso do movimento originário de Caracas e da

psiquiatria democrática italiana, começa a implantação da rede extra-hospitalar de

forma mais expressiva e com o caráter de substituir o modelo de internação psiquiátrica

hospitalar. A política de saúde mental, desde então, se caracterizou pela redução

significativa dos leitos psiquiátricos e pela implantação de serviços baseados na

comunidade.

Em janeiro de 1992 é publicada a Portaria 224, que dispõe sobre a participação de

psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e outros técnicos no atendimento à saúde

mental.

O documento orienta o atendimento a ser prestado, dá diretrizes para o funcionamento

adequado dos serviços, mas não indica nem o investimento nem as formas de

capacitação desses profissionais, um tema antes já contemplado na Carta de Otawa, que

enfatizava a necessidade de reorientação dos serviços de saúde e também apontava para

a necessidade de investimento na investigação, educação e formação dos profissionais,

uma vez que já priorizava a abordagem multidisciplinar e interdisciplinar.

É somente em 2001, após doze anos de tramitação no Congresso Nacional, que é

sancionada a Lei 10.216 (06/04/2001), que dispõe sobre a proteção e os direitos das

pessoas que sofrem de transtornos mentais ao mesmo tempo em que redireciona o

modelo assistencial em saúde mental. A lei tem como principais características: a

redução de leitos de internação psiquiátrica, o estabelecimento de critérios de avaliação

e controle dos serviços hospitalares existentes através do P.N.A.S.H.1 e a criação de

1 PNASH: Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria.

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rede de serviços substitutivos, como CAPS, RTs; CECCO e CCC2. Em julho de 2003 é

publicada a Lei 10.708, que institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes

acometidos de transtornos mentais egressos de internações psiquiátricas e, em outubro

do mesmo ano, é assinada a Portaria nº 2077/GM, que regulamenta a Lei 10.708 e cria

dispositivos de apoio aos processos de desinstitucionalização, como o “Programa de

Volta para Casa”3. Além da introdução da saúde mental na pauta de prioridades da

educação permanente para o Sistema Único de Saúde (SUS).

No entanto, a Coordenação Geral de Saúde Mental, ao contrário do modelo italiano que

surge do embate político de base municipal, dá início ao processo de desospitalização de

milhares de pessoas que retornaram para o convívio social, mesmo não existindo, à

época, uma rede de cuidados que de fato assistisse pacientes e familiares. Tão pouco se

evidenciava a instauração, na prática, de dispositivos para orientação das famílias e dos

usuários no geral. Também não se observava a união dos movimentos de trabalhadores

e associações que fizessem frente aos poderes executivo e legislativo para que houvesse

a inclusão nos municípios de mecanismos estratégicos de cuidados em saúde mental,

como a ampliação de recursos humanos e serviços de apoio. As equipes que atuavam

em saúde mental nesse momento, em número reduzido, viam-se de um lado angustiadas

pela falta de capacitação e até mesmo de informação sobre os serviços de referência e

contra referência que acabavam de ser instituídos e que não atendiam a real necessidade.

Assim, concordamos com Birman e Freire Costa sobre a afirmação de que a sociedade

de fato não entendia a nova política de saúde mental e tampouco que esta decorresse da

construção de um objetivo social e consensual mais amplo (Birman and Freire Costa

97). Naquele momento, década de 90, tínhamos um reduzido número de CAPS em

funcionamento no Brasil para o atendimento da população egressa dos hospitais, além

daqueles pacientes que já eram assistidos pela precária rede de serviços ambulatoriais e

por seus poucos profissionais, conforme se observa nos gráficos abaixo, com número de

CAPS existente no país até 2010 e o número de pessoas internadas nos Hospitais

Psiquiátricos no mesmo período.

Gráfico 1 - Série histórica: expansão dos CAPS (1993 a 2010)

2 CAPS: Centros de Atenção Psicossocial; RTs: Residências Terapêuticas; CECCO: Centros de

Convivência e Cooperativa; CCC: Centros de Convivência e Cultura 3 Programa que tem como objetivo possibilitar a reinserção social e familiar da pessoa com transtorno

mental egresso de internação psiquiátrica de longo tempo pela via do auxílio-reabilitação psicossocial.

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Fonte: (Brasil. Saúde Mental em dados 5)

Gráfico 2 - Leitos Psiquiátricos SUS por ano (2002 a 2010)

Fonte: (Brasil. Saúde Mental em dados 16)

Ainda que nos indignemos diante da violência manicomial e que rechacemos o

paradigma psiquiátrico dominante, positivista e organicista, e os horrores produzidos

em muitas instituições, não podemos negar os efeitos que a forma como se deu o

fechamento de muitas instituições em algumas localidades, já desassistidas dos cuidados

em saúde mental, trouxe grandes dificuldades para familiares, os próprios pacientes e os

profissionais. Muitos sofreram fora dos muros dos hospitais do mesmo movimento de

exclusão, agora somado à desassistência de toda natureza, dos cuidados básicos de

assistência social, familiar e das instâncias de cuidados em saúde e saúde mental. Será

que não conseguimos produzir ações humanizadas sem empedernir?

No Brasil, ao longo do processo de desinstitucionalização, a comunidade, pouco

preparada ou conscientizada para essa nova realidade de convivência, recebeu as

pessoas com transtorno mental para serem cuidadas em um novo modelo de atenção, os

denominados Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, constituídos por trabalhadores a

quem foi disponibilizada a priori, de forma efetiva, pouca ou nenhuma capacitação em

saúde mental.

Todos aprendendo com a nova experiência. Como uma grande onda, nascida do terror

dos manicômios, o movimento toma grupos de profissionais da saúde mental e alguns

representantes da comunidade, que levados pela necessidade de mudança na concepção

e forma do tratamento em saúde mental, apoiam de forma inquestionável o novo

modelo proposto.

Ainda que se justifique a estratégia do “fazer acontecer” do ponto de vista político, se

este não estiver ligado à lógica de cuidados, afasta-se do planejamento da clínica, o que

traz consequências para todos os envolvidos.

Diante da falta da rede de suporte para o tratamento que pudesse dar continência às

necessidades desses pacientes e, ao mesmo tempo, aplacasse as angústias de seus

familiares, quando estes eram localizados, os profissionais, muitas vezes, padeceram e

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padecem do mesmo mal de que tratam: o sofrimento e desamparo. Tema que tem

merecido pouca atenção nas publicações acadêmicas, entre estas destacamos dois

artigos, o de Ramminger, T. e o de Sampaio, J.J.C. Nesses dois trabalhos, os autores

apontam para os problemas que vão desde a falta de estrutura de uma rede de cuidados

que atenda os pacientes com efetividade, às dificuldades vividas pelos profissionais,

sendo que esta última vai desde a enorme discrepância salarial e de carga horária entre

áreas profissionais afins, sobretudo comparando com a área médica; a precariedade da

estrutura física para atendimento, em geral realizado em espaços pequenos e/ou

inadequados para o desenvolvimento das atividades; a escassez de materiais e

equipamentos, passando pela carência de profissionais. Todos estes fatores levam à

formação de equipes pequenas com elevada carga de trabalho, finalizando com vínculos

empregatícios precários, com insuficiência ou ausência de formação continuada.

Situação que de um lado compromete o atendimento clínico ambulatorial de qualidade

levando o paciente ao mecanismo da “porta giratória”, ou seja, a reinternação

psiquiátrica, pelo jargão frio e simplificado: “o perfil do paciente não se enquadra aos

critérios propostos por este serviço”, e de outro produz o sofrimento do profissional que

é envolvido pelo “efeito borboleta ”4 da inoperância do sistema do serviço público em

saúde mental.

Este tópico por si só, mereceria uma discussão maior, que no momento escapa aos

objetivos deste trabalho, mas que não poderíamos deixar de mencionar, dada sua

relevância para a compreensão mais ampla das questões ético políticas que, enredadas

sistemicamente, mereceriam atenção maior aqui e nas discussões sobre a política

pública em saúde mental.

Retomando os dados historiográficos, destacamos o Relatório Sobre a Saúde no Mundo,

o qual, como no Guia para intervenções em saúde mental do “Gap Action Programe”

para transtornos mentais, neurológicos e de abuso de substâncias em serviços não

especializados de saúde, reitera a necessidade de ampliar o processo de treinamento,

supervisão e capacitação periódica para os profissionais envolvidos no sistema de

Cuidados Primários em Saúde, cujo objetivo, além de integrá-los a um sistema

integrado de suporte e cuidados, é proporcionar o aumento da competência das equipes

(Who 47).

A ênfase destinada ao cuidado prestado ao paciente torna evidente a necessidade de

atualização do corpo de técnicos, tanto no nível básico como superior, uma vez que sem

esse item de importância capital - atualização -, o atual modelo psicossocial estará

fadado à ineficiência.

4 Efeito borboleta é um conceito atribuído a Edward Lorenz (1917-2008). Matemático e metereologista

americano, ele desenvolveu modelos computacionais que vieram explicar que pequenas mudanças ou

pequenos erros em um par de variáveis produziam efeitos tremendamente desproporcionais. Para um

período de uns dois dias, elas mal faziam diferença; mas extrapolando-se para um mês ou mais, as

mudanças produziam padrões completamente diferentes. Essa teoria, em sua representação geométrica

apresentada, foi relacionada, ao bater de asas de uma borboleta.

PISSOLATTI e TREVISAN DE SOUZA/ Passages de Paris 10 (2015) 223-251

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O relatório da OMS/OPAS aponta e denuncia as limitações observadas nos países

pobres ou em desenvolvimento em relação à necessidade do fortalecimento das ações

em educação e recursos humanos neste setor,

... Es necesario contar con recursos humanos con capacitación adecuada y

apropiada para ampliar y mejorar todas las intervenciones en salud,y

especialmente las dirigidas a los trastornos MNS, ya que la atención de estos

problemas depende en gran medida del personal de salud, más que de la

tecnología o del equipo. El problema ha empeorado por la migración al extranjero de los profesionales capacitados. Por otro lado, las competencias

del personal podrían no estar actualizadas, ni satisfacer las necesidades de la

comunidad y gran parte de ese personal podría estar mal utilizado, ser

improductivo o estar desmoralizado. En muchos países de bajos ingresos

falta infraestructura y establecimientos para la capacitación continua del

personal de salud. El desarrollo y fortalecimiento de los recursos humanos

son el eje de la capacitación organizacional y uno de los principales desafíos

a enfrentar. (OMS/OPAS 48)

Ainda, o mesmo relatório denuncia o mau direcionamento das verbas para a saúde

mental que ocorre em muitos países, inclusive no Brasil, em que boa parte destes

recursos são aplicados, quando muito, na manutenção dos cuidados institucionais, ou

com pouca, modesta ou nenhuma disponibilização para a capacitação, principalmente

aquela voltada à área de saúde mental.

Pelas informações que encontramos nas leis e portarias voltadas à área de Saúde Mental

e abaixo mencionadas, verificamos que há dotação orçamentária destinada à

capacitação, contando com uma Secretaria para cuidar mais diretamente deste assunto,

que é a SGTES (Secretaria da Gestão do Trabalho em Saúde) ligada ao Ministério da

Saúde e que se encarrega, entre outras ações, da formação para a área de saúde, também

àquelas voltadas à Saúde Mental. Entre estas, estão contempladas a Supervisão Clínico-

Institucional, as oficinas, as capacitações, congressos, seminários, fóruns e as

especializações em álcool e drogas e demais ações consideradas estratégicas para a

política em saúde mental.

No que diz respeito à supervisão clínico institucional, consideramos que se trata de

ferramenta indispensável tanto para o processo de gestão como para produção de

avanços ao processo de conhecimento teórico-prático. No entanto, ao analisarmos o

Edital da VIII Chamada para Supervisão Clínico-Institucional da Rede de Atenção

Psicossocial, Álcool e Outras drogas, verificamos que entre os anos de 2005 e 2010, o

ministério havia atendido a 753 projetos desta natureza no Brasil. Levando em

consideração a existência de 1624 CAPS em funcionamento no país até aquele ano,

foram atendidos portanto em torno de 46% do total de serviços existentes. O mesmo

documento informa que, para efeito daquele edital, 200 (duzentos) novos projetos

seriam atendidos, com um investimento na ordem de 2 milhões de reais. 5

5 O material da fonte pode ser acessado no Portal Brasil. http://www.brasil.gov.br/saude/2011/05/saude-

habilita-26-novos-caps-para-atendimento-em-saude-mental.

PISSOLATTI e TREVISAN DE SOUZA/ Passages de Paris 10 (2015) 223-251

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No entanto, correlacionando as informações deste edital com as informações contidas

no documento Saúde Mental em Dados, algumas aspectos nos chamam a atenção.

Verificamos a oscilação no número de projetos atendidos a cada ano e o pequeno

número de projetos atendidos frente ao número de CAPS existentes no país em 2010.

Somando o número de projetos contemplados nos dois editais publicados no ano de

2010, constatamos que apenas 13,3% dos serviços existentes foram contemplados.

Como podemos acompanhar no gráfico abaixo.

Gráfico 3- Número de Supervisões Clínico Institucionais implantadas por ano a

partir dos editais (2003 -2010)

Fonte: (Brasil, Saúde Mental em dados 21)

Os motivos para o baixo alcance da proposta de capacitação, de acordo com o Relatório

da Oficina de Educação Permanente (2004) do Ministério da Saúde, podem ser

atribuídos desde à falta de projetos encaminhados ao pequeno número de eventuais

candidatos a supervisores das equipes de CAPS que atendam aos requisitos da portaria.

Acrescentamos ao baixo interesse daqueles que atendem à qualificação exigida os

trâmites burocráticos municipais, que muitas vezes emperram, dificultam ou

simplesmente não arcam com o compromisso de pagamento dos honorários aos

profissionais.

Apesar da legislação e do aporte financeiro destinado para o programa de formação em

recursos humanos em saúde mental, cujo valor total não fica claro nos documentos

pesquisados, entre 2003 e 2006 o Relatório de Gestão do Ministério da Saúde divulga os

principais eventos promovidos e/ou apoiados pelo Ministério para a área, sendo

realizados no período em âmbito nacional ou regional: 8 (oito) Encontros; 5 (cinco)

Fóruns, 3 (três) Seminários de capacitação; 4 (quatro) Oficinas; 1 (um) Congresso

Nacional e 1 (uma) Conferência Regional (Brasil. Educação Permanente em Saúde: um

movimento instituinte de novas práticas: Agenda 2014 67).

Outra informação do mesmo relatório nos chama a atenção. Trata-se dos incentivos para

a formação em saúde mental contida na página Ações de Apoio para Realização de

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Programas de Formação no período (Brasil. Educação Permanente em Saúde: um

movimento instituinte de novas práticas no Ministério da Saúde: Agenda 2014 77).

Entre os 25 Estados ou Municípios apoiados, o estado de São Paulo foi contemplado

com 12 ações de aperfeiçoamento, capacitação ou especialização. A maioria realizada

por universidades públicas. Atendo-nos ao estado de São Paulo, dois desses cursos,

voltados à especialização, são de grande relevância para a ampliação das ações e

conhecimento em relação à atenção ao álcool e outras drogas. Ambos, no entanto, são

pagos e os valores não sofrem redução ou gratuidade em se tratando de profissionais ou

instituições públicas. Na última chamada para o curso de especialização em álcool e

outras drogas oferecido pelo GREA-USP6, com duração de um ano e aulas quinzenais, o

custo total do curso é de seis mil quinhentos e cinquenta e cinco reais (R$ 6.555,00), ou

aproximadamente € 2048,44. Não fica claro, nas informações do Ministério, qual o

critério utilizado para a palavra “apoio”. Há recurso de investimento para essas ações,

ou o Ministério apenas considera como uma ação relevante e estratégica para a

consolidação da política de álcool e outras drogas e „apenas‟ apoia? E se é estratégica,

porque o curso não é oferecido gratuitamente aos profissionais que atuam em saúde

mental no âmbito público?

No quadro abaixo, vemos a expansão dos serviços de CAPS no país entre os anos de

2002 e 2010.

Número de Caps por tipo/ano - 2002 a 2010

Fonte: (Brasil, Saúde Mental em dados 10)

Observarmos a expansão progressiva da cobertura assistencial em saúde mental, que

atualmente é composta por uma rede com 1.620 CAPS, 570 Serviços Residenciais

Terapêuticos e 3.635 beneficiários do “Programa de Volta para Casa” em quase todo o

país. Além desses serviços, ainda compõem a rede de saúde mental 862 ambulatórios de

saúde mental, cerca de 60 Centros de Convivência e Cultura (Brasil. Saúde Mental em

Dados 12).

Apesar de o Ministério da Saúde apontar para uma redução progressiva dos leitos de

internação em hospital psiquiátrico, os dados do Relatório de Gestão 2003-2006 (Brasil.

6 GREA – Programa Interdisciplinar de estudos de álcool e outras drogas do Instituto de Psiquiatria da

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.grea.org.br/grea-

midia-004.php. Acesso em 27/05/2014.

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Acesso ao Tratamento e Mudança do Modelo de Atenção. Relatório De Gestão 2003-

2006 24) informam que no Brasil temos em funcionamento 226 hospitais psiquiátricos,

que totalizam 39.567 leitos.

Apesar da política de desinstitucionalização em psiquiatria em curso no Brasil, não

localizamos informações seguras sobre o número total de leitos psiquiátricos

disponíveis em hospital geral. Concluímos que a centralização do investimento recai nas

ações psicossociais de base comunitária e nenhum investimento direto para as equipes

que atuam nos hospitais psiquiátricos apesar do número elevado de pacientes atendidos

por este tipo de serviço. Para atender coerentemente à política de desospitalização,

ignoram-se tantos os pacientes ainda atendidos neste modelo hospitalar como seus

profissionais.

É inegável o crescimento dos recursos humanos atuando em ações de saúde mental no

nosso país. Se levarmos em consideração a existência de 3.112 (três mil cento e doze)

serviços entre CAPS, Residências terapêuticas, ambulatórios de saúde mental e centros

de convivência e considerarmos que esses serviços são constituídos apenas por uma

equipe mínima (8 profissionais de nível superior e 4 de ensino médio), teríamos no

mínimo 37.344 profissionais atuando em saúde mental no Brasil. Isto sem levar em

consideração os 226 hospitais psiquiátricos em funcionamento em todo território

nacional que, por atenderem 24 horas, contam com um número de profissionais ainda

maior.

Temos aí uma clientela significativa para as ações de formação e em contínua expansão.

Compreendendo a importância desse processo para a melhoria da qualidade das ações

em saúde prestadas no território nacional, em 2004 o Ministério da Saúde apresenta a

proposta de Educação Permanente em Saúde. Apresenta “como uma ação estratégica,

capaz de contribuir para a transformação dos processos formativos, das práticas

pedagógicas e de saúde, para organização dos serviços, empreendendo um trabalho

articulado entre os sistemas de saúde e suas várias esferas de gestão e as instituições

formadoras” (Brasil, Política de educação e desenvolvimento para o SUS: caminhos

para a educação permanente em saúde...6), sendo que o campo da saúde mental é

considerado prioritário nesta política.

No entanto, de um lado verificamos que a maioria dos municípios não incluiu em seus

projetos de saúde as equipes de saúde mental como público alvo e de outro a maioria

das capacitações não se mostram eficientes e eficazes, seja em relação aos seus

desdobramentos na gestão, na atenção ou no controle social, tal como preconiza esta

política (C.F.P. 6).

Consideramos que a ineficiência e ineficácia da proposta da Educação Permanente (EP)

decorrem do planejamento e execução equivocados e contraditórios desta política.

Podemos verificar que, ao contrário do que se propõe, o Ministério da Saúde centra a

maior parte de suas ações no modelo que critica, ou seja, “nos processos de educação

continuada baseados nas demandas individuais de capacitação.” (Brasil. Caderno da

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Agenda da Educação Permanente 2014. 6). Tal modelo, segundo o texto da agenda, não

atinge aos objetivos de transformação da prática do trabalho, além de apresentar “pouca

integração com o sistema de saúde nas suas esferas estaduais e municipais” (Brasil 15).

Como podemos observar, as duas citações estão presentes no mesmo documento no

texto de abertura do Caderno da Agenda da Educação Permanente 2014.

Passamos a explicar onde estão assentadas as razões do que afirmamos.

A agenda citada foi elaborada a partir de um processo de trabalho no âmbito do próprio

Ministério, com o objetivo de “identificar práticas de Educação Permanente (no/para o

trabalho) que estão acontecendo nas secretarias, nos núcleos estaduais, nos hospitais e

nos institutos do Ministério da Saúde” (Brasil 6)

Aproveitando do momento, considerado “oportuno” pela e em virtude da publicação da

Portaria nº 278, de 27 de fevereiro de 2014, que dá diretrizes para implementação da

Política de Educação Permanente em Saúde, no âmbito do Ministério da Saúde (MS) e

que, ao mesmo tempo em que também reafirma os princípios e as diretrizes da educação

permanente como estratégia para a formação e o desenvolvimento dos trabalhadores do

Ministério da Saúde, novos atores se debruçam sobre o mesmo tema no âmbito do

próprio Ministério.

Mais algumas siglas, de um lado há a SGTES e de outro CODEP/CGESP. Estes últimos

são responsáveis pela elaboração do documento, pelo que compreendemos. Estes órgãos

estariam trabalhando em conjunto, no sentido de viabilizar e executar as ações de

formação pretendidas? Os órgãos de gestão (CODEP e CGESP) que elaboram a agenda,

como dissemos, objetivam “identificar práticas de Educação Permanente” no âmbito do

Ministério da Saúde e seus núcleos, e pretendem com isto “[...] superar discussões

pautadas apenas em aspectos conceituais e metodológicos.” (Brasil ---. 7). Será esta

frase uma crítica às ações implementadas pela SGETS até então? Ou estes órgãos, por

seus representantes, não mantêm comunicação visando a afinar seus objetivos e

propostas?7

De toda forma, fomos verificar na grande listagem de ações da agenda, aquelas que

contemplavam a área de saúde mental. Das vinte e cinco páginas de quadros

demonstrativos entre ações planejadas de educação permanente, plano de ações

educativas e competências a serem alcançadas ou desenvolvidas, contabilizamos apenas

duas ações descritas como de educação permanente relativas à área de saúde mental,

uma no Plano de Ações Educativas. São elas, respectivamente:

Plano de Educação Permanente

7 SGTES – Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde.

CGESP – Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas.

CODEP – Coordenação de Desenvolvimento de Pessoas.

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1- Processo de trabalho e auditoria na atenção psicossocial com o objetivo de apresentar

e discutir a programação da atividade de controle (auditoria /visita técnica) para 2014 na

rede de saúde mental, visando à qualidade das ações na perspectiva do fortalecimento da

política de saúde mental com foco no CAPS, no estado do Ceará.

2- Jornada de Saúde Mental tem por objetivo a apresentação de trabalhos científicos e

discussões de casos clínicos, busca envolver 120 profissionais da área de saúde mental e

afins do Instituto Nacional de Cardiologia (Brasil. Educação Permanente em Saúde: um

Movimento Instituinte de Novas Práticas: Agenda 2014 44-70).

Plano de Ações Educativas

1 - IV Congresso Brasileiro de Saúde Mental – Congresso a ser realizado no Nordeste.

(Brasil. Educação Permanente Em Saúde: Um Movimento Instituinte de Novas Práticas

no Ministério da Saúde: Agenda 2014 86).

As demais ações contempladas no Plano de Ações Educativas tem como tipo de ação

aquelas voltadas ao aperfeiçoamento, à educação formal, à palestra, à aprendizagem em

serviço (neste caso, capacitação em informática), seminários e congressos (Brasil ---.

75-108). Não verificamos no documento da referida Agenda a identificação da origem

do recurso financeiro a fim de contemplar a execução destas ações e nem qual o valor

destinado.

Também verificamos, no Relatório de Gestão 2013-2015 da Secretaria de Gestão do

Trabalho em Saúde (SGTES), órgão ligado ao Ministério da Saúde, que, das mais de

quatrocentas ações de formação previstas para o biênio, apenas quatro estão voltadas

diretamente à área de saúde mental.

Por fim, um outro canal que consideramos importante para o avanço da política pública

em saúde e particularmente em saúde mental que é nosso foco, é a Universidade Aberta

do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS ). Esta foi instituída em junho de 2008 e resulta

de uma ação conjunta entre a SGTES e a OPAS-OMS. Tem como objetivo, segundo

informa o Ministério da Saúde, criar condições para o funcionamento de uma rede

colaborativa de instituições acadêmicas, serviços de saúde e gestão do SUS, destinada a

atender as necessidades de formação e educação permanente do SUS.8

No momento, em 2014, o UNA-SUS em parceria com a Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC), desenvolve dois cursos voltados à área de saúde mental. O primeiro é

o de atualização em Álcool e drogas, em formato EAD (educação à distância) com

carga horária de 120 horas, destinado aos profissionais que compõem a Rede de

Atenção Psicossocial – RAPS. Apesar de prever atender até o final do primeiro

semestre de 2015 um total de 7000 alunos, indica que atenderá apenas “2 (dois)

profissionais de cada ponto de atenção selecionado”, entre profissionais de nível médio

8 UNA-SUS – Disponível em: http://www.unasus.gov.br/

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e superior (um de cada) dentre os serviços de CAPS I, II, AD e AD III existentes no

país.9

Diante da importância desta inciativa para a política de saúde mental no Brasil,

consideramos oportuno trazermos algumas questões, que entendemos como

equivocadas.

Em levantamento curricular realizado sobre os membros integrantes da equipe

responsável pelo curso de aperfeiçoamento em álcool e drogas que é formada por

professores do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa

Catarina, verificamos que dos oito membros apenas um está diretamente ligado à

pesquisa na área de saúde mental, e este é médico e pesquisador com carreira notável

dedicada à saúde mental. Os demais, apesar de pertencerem ao mesmo departamento,

estão ligados à pesquisa voltada ao programa de saúde da família. Possuem formação

em odontologia, enfermagem, educação física e contabilidade e não é mencionada em

seus currículos nenhuma aproximação com a área de saúde mental.10

Outro ponto diz respeito ao público a que se destina esta formação e ao curso de

aperfeiçoamento que é voltado aos profissionais que já atuam em CAPS. Levando em

consideração o número de CAPS existentes e os profissionais a que se destina tal curso

já atuarem nestes serviços; perguntamos, não seria mais oportuno oferecer curso de

especialização ao invés de aperfeiçoamento? E destinar curso de aperfeiçoamento aos

profissionais que atuam na atenção básica (ambulatórios e postos de saúde), uma vez

que a política de álcool e outras drogas deveria também ser desenvolvida neste nível de

atenção?

Entendemos que a política pública voltada ao processo de capacitação e

desenvolvimento pela via da ação educativa para as equipes de saúde mental carece de

maior atenção e planejamento. Além do fato de que efetivamente a área de saúde mental

entre na agenda das políticas educativas no contexto do trabalho. Também

compreendemos que ainda estamos muito distantes de executarmos a preconizada

transformação da prática do trabalho. Primeiro pela via da ampliação da consciência dos

trabalhadores desta área sobre a sua práxis e fortalecimento do coletivo do trabalho. Em

seguida, possibilitar que os textos das leis, portarias e demais documentos que orientam

a política de educação permanente, se efetive de forma integral no cotidiano do trabalho

em saúde mental.

9 Informação disponível na página do UNA-SUS: https://unasus.ufsc.br/alcooleoutrasdrogas/inscricoes/

Acesso em 27/06/2014. 10 Levantamento realizado a partir da plataforma Lattes e na própria página da UFSC do Departamento de

Saúde Pública. http://spb.ufsc.br/?page_id=222.

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No entanto, questionamos como implantar ações de educação permanente em saúde

mental, tendo em vista que a lógica do trabalho neste campo difere muito da lógica das

ações na atenção básica em saúde na qual se baseia esta proposta de educação.

Origina-se aí uma das nossas inquietações que nos levaram ao processo de investigação

da presente pesquisa que resultou numa prática educativa no contexto do trabalho em

saúde mental. Esperamos abrir e ampliar a discussão sobre esta temática e também

apresentar a nossa contribuição.

III. A INQUIETUDE E O CONTEXTO

O cotidiano do trabalho dos profissionais que atuam na saúde mental no Brasil e

particularmente em São Paulo enfrenta um duplo desafio; de um lado os profissionais

travam uma batalha diária para extrair do lugar da exclusão os usuários dos serviços e,

de outro, eles próprios vivenciam essa própria condição, sobretudo quando trabalham

nos 216 hospitais psiquiátricos ainda existentes.11

Este contexto caracteriza-se pela prevalência de dificuldades ou disfunções no trabalho,

que vão desde problemas na comunicação interpessoal àquele relacionado diretamente à

atividade do trabalho. Também foi possível verificar a expressão do sofrimento, fosse

ele verbalizado ou verificado frente ao elevado índice de absenteísmo (média de

28%/mês). Índice que podemos considerar elevado entre as instituições hospitalares

frente ao exemplo do estudo de Sancinetti et al (1007), realizado em hospital público de

ensino, que aponta para uma taxa de absenteísmo em torno de 5,6% a 9,7% para as

equipes de enfermagem.12

Há de se ressaltar, no caso da instituição pesquisada, que o índice mencionado refere-se

à totalidade de categorias profissionais da instituição. No entanto, cerca de 70% do

quadro é composto pela equipe de enfermagem.

Observamos, também, que as reuniões semanais realizadas pelas equipes técnicas,

voltadas à “discussão de casos clínicos” que se caracterizam por reflexões construídas

com base nos erros ou acertos cometidos, regra geral, não se constituíam em ações de

transformação da prática profissional.

Importante esclarecer que esses aspectos do trabalho, num primeiro momento,

chamaram a minha atenção na condição de gestora de duas equipes voltadas ao

atendimento de pacientes adultos (masculino e feminino) portadores de transtorno

11 Em algumas localidades, como no caso do Estado de São Paulo, algumas dessas instituições públicas

estaduais, desde 2008, passaram a ser denominadas de CAISM – Centro de Atenção Integral em

Saúde Mental. 12

Fonte: Núcleo de RH e Medicina do Trabalho da instituição pesquisada.

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mental. A inquietude transformou-se na busca do entendimento da realidade e de

soluções possíveis. Considerando que as ferramentas de gestão de que já dispunha não

se mostravam, a meu ver, apropriadas para o que pretendia desenvolver junto àquela

equipe, ou seja, desejava possibilitar que os profissionais partissem da reflexão crítica

da realidade, pensando o coletivo do trabalho e que deste processo decorresse a proposta

de transformação da realidade do trabalho bem como a melhoria da assistência de

cuidados praticados e que essa decorresse do movimento dialético de confrontação

interior e exterior de cada profissional na relação com sua prática cotidiana.13

Tal objetivo leva-me ao processo de investigação, agora não mais na condição de

gestora, mas sim na de pesquisadora, o que se dá a partir da minha inserção no

programa de doutorado em psicologia da PUC - Campinas, no PROSPED – Grupo de

Pesquisa sobre os Processos de Constituição do Sujeito em Práticas Educativas. Este

grupo ancora-se no materialismo histórico dialético e tem como compromisso ir ao

contexto com o objetivo de superar determinadas condições presentes nas relações do

trabalho, tendo como foco o processo de desenvolvimento humano. Utiliza-se dos

princípios metodológicos da Psicologia Histórico Cultural, sobretudo os pressupostos de

L. S. Vygotsky.

Para este autor, o objeto e o método de investigação em psicologia mantêm uma relação

muito estreita. O pesquisador, ao se acercar dos fatos que pretende investigar (o objeto

de pesquisa), já o faz de certa perspectiva metodológica. A elaboração do problema e a

do método desenvolve-se conjuntamente, ainda que não de modo paralelo (Vygotsky

Teoria e Método 47). Nessa perspectiva, a questão do método nas pesquisas com aporte

teórico da Psicologia Histórico-Cultural tem um duplo desafio. Ela é, a um só tempo,

ferramenta e resultado da investigação, demandando um trabalho de construção

permanente do pesquisador. Essa abordagem nos permite focalizar o fenômeno

investigado desde seu surgimento, de forma a identificar e analisar dialeticamente as

transformações e contradições que o constituem. Objetiva-se ir além do evidente, busca-

se responder como dado fenômeno chegou a ser o que é (Zanella 27).

Consideramos, em conjunto com o grupo de pesquisa, que este enquadre teórico e

metodológico é pertinente ao tipo de investigação que desejávamos realizar. Queríamos

ir além das constatações. Objetivávamos, ao investigar o fenômeno, colocar luz sobre

ele a fim de que o grupo de profissionais, no coletivo do trabalho, pudessem, a partir da

reflexão e análise da realidade e objetivos do trabalho, propor formas de superar os

problemas detectados.

Nesse tipo de pesquisa, o pesquisador é frequentemente confrontado em sua

intencionalidade, e também reconfigura sentidos, o que, no nosso caso, nos levou a

13 As ferramentas de gestão das quais se dispunha diz respeito àquelas adquiridas nos cursos de curta

duração destinados à capacitação gerencial de equipes tais como: comunicação, liderança, coaching e

gestão de recursos humanos, somadas à experiência pessoal atuando em gestão de equipes.

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repensar e redefinir cada encontro, as materialidades que seriam utilizadas e as ações

que seriam executadas.

Diante dessas observações, partimos da hipótese de que o favorecimento de um espaço

voltado à formação desses profissionais, e que ocorresse no contexto do trabalho,

poderia constituir-se em um dispositivo para alcançar os objetivos acima expostos.

Estamos, portanto, nos referindo às possibilidades de transformação da atividade do

trabalho. Nesse sentido, temos que considerar que uma parcela significativa de

profissionais, principalmente os que integram a equipe de enfermagem, trabalha nesse

hospital, na média, há mais de doze anos. Portanto, sua prática origina-se do período

anterior à Reforma Psiquiátrica cuja lei data de 2001. Alguns prestaram concurso para a

área de saúde, mas não em saúde mental e entre os demais profissionais não médicos,

poucos têm experiência quer seja no trabalho com pacientes com transtorno mental

grave em fase aguda ou crônica, ou sobre a política do Sistema Único de Saúde – SUS

seja no âmbito municipal ou estadual.14

Apesar do gerenciamento da política de recursos humanos do Estado e da própria

instituição preconizar educação continuada, não a adota de forma eficaz e contínua.

Para nós, estava claro que não desejávamos propor uma formação no trabalho nos

moldes do processo educativo voltado à atualização técnico-científica, como educação

continuada. Compreendíamos que a proposta deveria não só garantir a melhoria na

qualidade da assistência, mas que se constituísse a um só tempo num processo de

desenvolvimento humano crítico, na ampliação da consciência sobre si, sobre o outro e

sobre o seu papel na instituição hospitalar, promovendo o coletivo do trabalho. Ao

possibilitar que os membros das equipes refletissem e falassem sobre suas atividades no

trabalho, ao mesmo tempo realizassem o questionamento vivo delas, visávamos que a

formação em situação de trabalho constitui-se em espaço privilegiado para a

transformação da prática do trabalho e no seu coletivo.

IV. O PROCESSO DE FORMAÇÃO E O USO DA ARTE COMO

MATERIALIDADE MEDIADORA

A partir das vivências propostas no processo de formação, dois aspectos precisam ser

considerados. O primeiro diz respeito ao objetivo do campo da observação da atividade

do trabalho que tem entre os seus propósitos “compreender para transformar” (Clot,

Trabalho e Poder de Agir 12) e para tanto é necessário que o sujeito da atividade - o

profissional - esteja diretamente envolvido nesse processo. E o outro diz respeito às

vivências do sujeito no processo de formação no trabalho e, nesse caso, concebe-se esse

processo a partir do “desenvolvimento de competências baseando-se na hipótese de que

14 A reforma psiquiátrica no Brasil foi instituída pela lei n 10.216, de 6 de abril de 2001, que se propôs a

modificar o sistema de tratamento da doença mental.

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a análise da prática das atividades pelos próprios profissionais possa constituir-se em

um poderoso instrumento de profissionalização” (Barbier 7).

Entendemos vivência no sentindo vygotskyano, algo que vai além da experiência. Trata-

se de um processo individual, portanto subjetivamente vivido pelo sujeito de forma

significativa repleta de sentimentos, emoções que tem em sua base o afetivo-volitivo

(afeto e vontade). Ela está imbricada à situação social de desenvolvimento (que é uma

produção do social e do cultural) e é construída a partir do engajamento dele na

atividade do trabalho, na educação, no contexto social, ou com ele mesmo. Esse

fenômeno toca o sujeito de uma maneira diferente, permitindo que ele possa atribuir

significado e sentido ao fato ou ao contexto do vivido. Nesse processo, também se dá a

ampliação da consciência pela apropriação de suas condições de vida e trabalho,

levando à configuração de novos sentidos e em consequência à possibilidade de

mudança.

Chamamos de competência “a propriedade que confere a um sujeito individual e ou

coletivo uma combinação de conhecimentos gerais, conhecimentos práticos (savoir-

faire)” (Barbier 37). Diz respeito a construções mentais e discursivas, decorrentes do

processo de mediação com o social e cultural. Para tanto, entram em jogo tanto as

construções decorrentes dos processos internos como externos ao sujeito, produto dessa

interação, que deve ser dita, representada ou comunicada ao sujeito por outros ou por

ele mesmo.

Já a profissionalização, compreendemos com Barbier (2011) como a intenção de

transformação contínua de competências em resposta a uma intenção de transformação

contínua de atividades (ação). Para o autor, esse conceito é mobilizador e a partir dele

pretende-se chegar ao campo da análise da atividade. O que dialeticamente explica que,

ao proceder à análise da atividade, estamos apontando para a profissionalização e

desvelando competências.

Nesse sentido, compreendemos que em toda ação de formação no trabalho, em que se

objetiva sua transformação e que esta decorra dos próprios atores, devemos considerar

em nossa análise a ocorrência ou não da profissionalização.

Apresentado, de forma breve, o nosso ponto de ancoragem, passamos à descrição do

processo de pesquisa voltado à formação no contexto do trabalho, utilizando a arte

como mediação.

Nosso objetivo na utilização da arte no processo de formação em situação de trabalho

consiste em, ao deslocar o foco para a linguagem artística, diminuímos a intensidade de

luz sobre o contexto do trabalho a ser analisado, a atividade, porém sem obscurecer.

Uma vez que a atividade artística incorpora forçosamente os atos de conhecimento

racional precedentes, as concepções, identificações e associações (Vygotsky, Psicologia

da Arte 325). Envolvidos assim, pelos sentidos internos e externos à obra e ainda

tocados pelos sentimentos e emoções vivenciados de modo contraditório, e com poder

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de catarse, que transforma e humaniza (Vygotsky, Psicologia da Arte 311), ao

retomarmos à máxima intensidade do foco para a cena do trabalho, temos por objetivo

discuti-la e analisá-la, de outra perspectiva, ou seja, aquela que decorre da possível

identificação entre o trabalho do artista e o trabalho executado naquele contexto. Na

capacidade de criar e transformar a natureza pelo trabalho criativo a partir do contexto

histórico, cultural e social. São todas essas interfaces que desejamos focar no campo da

observação da análise do trabalho.

(Re)conhecer a maneira como o trabalho é organizado, identificar as dificuldades ou

disfunções presentes para melhorá-lo, transformá-lo, a quem caberia essa função?

Compreendemos que tal tarefa cabe aos próprios atores, ou seja, às equipe envolvidas

diretamente na assistência de cuidados aos pacientes. E é isso que nos propomos, ou

seja, viabilizar, o tanto quanto possível, que os profissionais possam libertar-se de suas

maneiras habituais de pensar e dizer suas atividades, para poder agir (Clot, Trabalho e

poder de agir).

V. O USO DA ARTE ENQUANTO MATERIALIDADE MEDIADORA NO

PROCESSO DE FORMAÇÃO NO TRABALHO

Partimos do pressuposto de que, ao lançarmos mão do uso desse instrumento, o fazemos

naquilo que sua função concerne, ou seja, a arte como expressão do homem total, algo

que o capacita a identificar-se com a vida de outros, a incorporar aquilo que ele não é,

mas tem possibilidade de ser. O próprio Brecht considerava que no teatro lidava com

forças que se transformavam na cena do ato. A tensão e a contradição dialética são

inerentes à arte; a arte não só precisa derivar de uma intensa experiência da realidade

como precisa ser construída, tomar forma através da objetividade. O livre resultado do

trabalho artístico resulta da mestria. Tal como os demais trabalhos deveriam se propor a

alcançar.

Marx (A ideologia alemã 98) caracteriza a arte como um momento histórico da

humanidade, e neste sentido reside o seu poder de agir para além dele. Para ele, a arte é

condição geral necessária para que se efetive um intercâmbio entre o homem e a

natureza; é condição permanentemente imposta pela natureza à vida humana e, por

conseguinte, é comum a todas as formas sociais.

Ao nos propormos utilizar a arte, em suas diferentes formas, como materialidade

mediadora, nosso interesse não era o de fazer arte nem tecer uma crítica sobre ela, ou

ainda utilizá-la no sentido educativo, antes compreender de que maneira ela pode

contribuir para o desenvolvimento e a constituição do sujeito – estamos interessados na

Psicologia da Arte, o que significa voltarmos nosso olhar para o que a arte pode

provocar nos sujeito, de que maneira ele pode ser afetado. Durante os encontros de

formação, tivemos o cuidado de não usar a arte sem uma finalidade, como um recurso,

mas sim como outra forma de conhecimento, que nos possibilita acessar a produção

humana de outra dimensão a partir dos sentimentos expressos em forma de síntese.

PISSOLATTI e TREVISAN DE SOUZA/ Passages de Paris 10 (2015) 223-251

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Compreendemos que a arte enquanto materialidade mediadora articula-se ao conceito de

atividade, o qual compreende ações, porém o transcende, na medida em que amplia,

para o sujeito, as possibilidades de leitura e intervenção sobre a realidade.

Tais esclarecimentos são necessários em nossa proposta do uso da arte como

materialidade mediadora no processo de formação no trabalho, para destacar nosso

propósito voltado à construção do trabalho coletivo não prescrito a ser construído pelos

profissionais de saúde mental. Feito isso, retomamos as descrições dos encontros de

formação.

VI. OS ENCONTROS DE FORMAÇÃO

Realizamos, no total, onze encontros de formação. Este foi o nome que demos para o

processo, com a participação de duas coordenadoras de cada um dos núcleos de

internação, e as três equipes desses setores compostas por profissionais de diferentes

áreas da saúde (médico psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente social,

enfermeiros e auxiliares de enfermagem). Todos os encontros foram planejados

anteriormente com o objetivo de colocar o cotidiano da atividade do trabalho em

análise.

As expressões artísticas utilizadas foram trechos de filmes, imagens de obras de arte,

músicas e trechos gravados de peças de teatro. Cada encontro tinha um tema a ser

discutido e se iniciava com a expressão artística como um disparador para a

problematização e análise da atividade, e ao final estabelecíamos a relação entre a

materialidade mediadora o sentido da atividade desenvolvida e os resultados

alcançados.

Citamos como exemplo o filme indiano “3 Idiots - Aal Izz Well”, em que objetivamos

realizar reflexões sobre o motivo da escolha profissional - saúde mental, e os motivos da

escolha por aquela instituição. Ao utilizarmos trechos do filme “O sabor de uma

paixão”, pedimos para que os profissionais relatassem como era para eles se

relacionarem com o paciente com transtorno mental e seu dia a dia do trabalho em um

hospital psiquiátrico. Apresentamos, também, o DVD da peça teatral “Nise da Silveira -

A Senhora das Imagens” que teve como objetivo refletir sobre o protagonismo do

hospital e daquela equipe nas ações de cuidado/tratamento desenvolvidas e dispensadas

aos pacientes. Em outro encontro, utilizamos a imagem da tela do artista plástico Edvar

Munch intitulada “O Grito” (1893); o curta metragem “Euspelho” e o vídeo sobre o

artista Arthur Bispo do Rosário intitulado “A poesia do fio”. Esses materiais

possibilitaram, juntamente com alguns textos acadêmicos, a identificação de

dificuldades vivenciadas pela equipe na atividade do trabalho. Apresentamos também

um trecho do filme “Camille Claudel”, de Bruno Nuytten, (1989), mostrando algumas

obras da artista, buscamos evidenciar, por meio dos desafios enfrentados pela escultora,

as dificuldades da prática da interdisciplinaridade presente na lógica do trabalho em

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saúde mental, e possibilitar a identificação das aproximações e distanciamentos das

áreas de especialidade presentes no processo da atividade neste campo profissional.

Todas as reflexões disparadas com o uso dessas materialidades nos auxiliaram na

compreensão dos sentidos do trabalho para esses profissionais, na medida em que nos

aproximaram dos aspectos constitutivos de suas profissões, tais como a história, o

contexto em que atuam e o modo como história e contexto, na relação com a sociedade

atual, configuram o modo de atuação destes profissionais.

Além dessas obras, sugerimos a realização de uma “oficina de arte” com o objetivo de

proporcionar, pela fruição da vivência em artes plásticas – pintura em tela – reflexões

sobre o uso da arte enquanto expressão de linguagem nas ações de cuidado/tratamento

dos pacientes, em relação aos sentimentos e emoções provocados em si mesmo levando

à reflexão sobre o sentido e significado do trabalho em saúde mental naquela instituição.

A sugestão da oficina de pintura em tela surgiu do próprio grupo a partir do

questionamento de alguns participantes sobre a atividade do trabalho desenvolvido pela

área de terapia ocupacional.

Essa foi uma vivência inédita para vários profissionais e a pintura em tela possibilitou a

expressão de emoções como felicidade, leveza, bem como reminiscências da infância,

do local de nascimento. Em relação ao trabalho, disseram que puderam ali vivenciar,

pela primeira vez, aquilo que imaginavam que os pacientes pudessem sentir ao realizar

uma atividade como aquela. Utilizamos aqui a palavra emoção no sentido Vygotskyano,

ou seja, a partir do caráter dialético existente entre fatores biológicos e culturais na

constituição das emoções e da possibilidade de desenvolvimento e transformação,

atrelada a condições histórico-sociais.

Os profissionais apontaram para a necessidade de que ocorram outros encontros como

esses, sinalizando que deveriam ser regulares. As reflexões e discussões realizadas nos

encontros resultaram na necessidade de uma revisão e realinhamento de um documento

já existente, mas não familiar a todos, designado Projeto Terapêutico, sendo que cada

núcleo de internação de agudos tem o seu próprio projeto. Esse movimento foi realizado

na construção do Projeto Terapêutico dos Núcleos (P.T.N.) e à revisão do Projeto

Terapêutico Singular (P.T.S.), este voltado diretamente aos cuidados a serem

dispensados a cada paciente e que comporia o plano de tratamento, evidenciando a

importância de o paciente participar ativamente da sua proposta de tratamento.

Consideramos que todo esse processo estabelecido com os encontros de formação,

tomando contato com diferentes formas de representação da realidade, ao produzirem

materialidades, ao descreverem e trocarem suas experiências sobre o cotidiano do

trabalho, os profissionais puderam tomar consciência da sua práxis e, neste processo, as

ações pensadas, (re) elaboradas, redesenhando a atividade no coletivo do trabalho,

possibilitasse a diminuição da angústia e sofrimento vividos pelo trabalho prescrito e na

precarização dele.

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VII. METODOLOGIA

Esta é uma pesquisa qualitativa do tipo participativo com características de pesquisa

intervenção em que se busca transformar para conhecer. Ancora-se no materialismo

histórico dialético que vem sendo utilizado pelo Grupo de Pesquisa Processos de

Constituição do Sujeito em Práticas Educativas – PROSPED. Tem como compromisso

ir ao contexto com o objetivo de superar determinadas condições presentes nas relações

do trabalho. Utiliza-se dos princípios metodológicos da Psicologia Histórico Cultural,

sobretudo os pressupostos de L. S. Vygotsky.

Para este autor, o objeto e o método de investigação em psicologia mantêm uma relação

muito estreita. O pesquisador, ao se acercar dos fatos que pretende investigar (o objeto

de pesquisa), já o faz de certa perspectiva metodológica. A elaboração do problema e a

do método se desenvolve conjuntamente, ainda que não de modo paralelo (Vygotsky,

Teoria e Método 47). Dessa perspectiva, a questão do método nas pesquisas com aporte

teórico da Psicologia Histórico-cultural tem um duplo desafio: é, a um só tempo,

ferramenta e resultado da investigação, demandando, portanto, um trabalho de

construção permanente do pesquisador.

Há que se esclarecer que compreendemos como “histórico” o estudo do fenômeno em

movimento, e historicidade como processo em movimento dialético, marcado por

oposição, concordância, simetria e assimetria, enfim, tensões que se objetivam em

sínteses provisórias. Tal abordagem nos permite focalizar o fenômeno investigado desde

seu surgimento, de forma a identificar e analisar dialeticamente as transformações e

contradições que o constituem. Objetiva-se ir além do evidente, busca-se responder

como dado fenômeno chegou a ser o que é (Zanella 25).

Para tanto, Vygotsky (Sobre los sistemas psicológicos 316-22) propõe três princípios

que devem ser tomados como base pelas pesquisas nesta perspectiva teórica: na análise,

devem ser focalizados os processos e não os objetos ou produtos, o que significa

analisar as origens do fenômeno sua historicidade e não se ocupando somente do

resultado obtido; explicar ao invés de descrever os dados da pesquisa, o que implica ir

além do evidente ou aparente; e, por fim, ir à gênese do fenômeno investigado,

buscando desvelar o que o autor denomina de comportamento fossilizado. Nas palavras

de Vygotsky, "precisamos concentrar-nos não no produto do desenvolvimento, mas no

próprio processo" de estabelecimento das formas superiores (Vygotsky, Sobre los

sistemas psicológicos 68). Contudo, temos que tomar o cuidado para, na tentativa de

buscar a complexidade, o processo, o todo, não perdermos de vista o foco de análise.

De acordo com Souza (2), podemos dizer que a possibilidade de realizar esse tipo de

análise reside no fato de conhecermos o sujeito em movimento nas relações que são

estabelecidas em seu contexto, investigando as condicionantes dessas relações, já que

são elas as promotoras da emergência do sujeito tal como se manifesta. Sendo assim, o

sujeito e a realidade se imbricam em um processo de constituição mútua e contínua.

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Portanto, o método utilizado no caso de nossa investigação, visa às relações que os

sujeitos estabelecem no contexto do trabalho em saúde mental, levando em

consideração o devir que se encontra na base do movimento que fundamenta a dialética.

Nessas relações é que nos deparamos com o movimento entre o singular e o coletivo.

Em nossa tentativa de buscar apreender os fenômenos estudados, temos realizado, em

nosso grupo de pesquisa, intensos estudos sobre as formas possíveis de fazer emergir os

sentidos e significados que os sujeitos configuram. No caso da presente pesquisa, esses

esforços são direcionados para a ampliação da consciência dos profissionais que atuam

na instituição pesquisada, sobre si e sobre seu papel profissional. Para tanto,

sistematizamos o uso de materialidades mediadoras no processo de formação no

trabalho, em que estas são representadas pelas diversas expressões artísticas – textos

literários, músicas, filmes, fotografias e reproduções de pinturas. Tomamos como base

Vygotsky (Psicologia da Arte 352) quando diz que a arte pode ser utilizada como um

instrumento psicológico mediador, um signo que possibilita ao sujeito o

desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores, das quais destacamos a

consciência. A mediação realizada pela arte possibilita que acessemos os sujeitos pelo

afeto que, como veremos adiante, é fundamental para a compreensão da constituição e

ação humanas.

Para Vygotsky (Sobre los sistemas psicológicos 177), a compreensão dos próprios

afetos pelo sujeito promove alterações em sua vida psíquica, pois ele se volta para si

mesmo e desenvolve novas conexões entre as funções psicológicas. Pensar sobre seus

afetos, suas emoções, faz com que o sujeito não se volte somente para aquilo que é

externo a ele. Foi esse movimento pendular que buscamos realizar ao utilizarmos as

materialidades mediadoras. Neste processo, consideramos que todos, pesquisador e

profissionais, são atingidos, possibilitando a dissolução, a criação e a transformação das

realidades existentes. Considera-se a pesquisa realizada, dessa perspectiva, como uma

pesquisa-intervenção, haja vista a intenção clara do pesquisador de transformar os

sujeitos e o contexto em que se inserem.

Em consonância com os pressupostos teórico-metodológicos assumidos, tomamos como

unidades de análise os núcleos de significação de modo a apreender os sentidos

atribuídos às vivências dos profissionais que atuam em saúde mental. Segundo Aguiar e

Ozella, “O sentido coloca-se em um plano que se aproxima mais da subjetividade, que

com mais precisão expressa o sujeito, a unidade de todos os processos cognitivos,

afetivos e biológicos” (5). Para se compreender os sentidos, afirmam esses autores, é

necessário analisar as determinações constitutivas do sujeito, como por exemplo, o

reconhecimento e compreensão dos modos de agir, de sentir e de pensar dos

participantes envolvidos na pesquisa. O sentido só pode ser compreendido nas relações

que o sujeito estabelece, considerando seu contexto e sua historicidade. O que nos leva a

olhar para a realidade e pensá-la em movimento e, mais do que isso, apreender seu

movimento.

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Com o intuito de não perder a complexidade do vivido nos encontros de formação,

procedemos à escrita dos encontros a posteriori, quando possível foram realizadas

gravações em áudio material que constituiu o que chamamos de “construção da

informação”, tal como propõem Aguiar e Ozella. Após organizar o material, foi

realizada uma leitura cuidadosa, mas ainda de caráter geral, buscando palavras ou

expressões chaves, ou seja, que se relacionassem aos objetivos da pesquisa. Essa busca

visava identificar momentos em que os conteúdos sobre o trabalho, a relação com o

outro, o sofrimento, se revelassem, de alguma forma, importantes para os sujeitos.

Já na segunda leitura, procuramos aglutinar conteúdos semelhantes a partir das palavras

ou expressões previamente identificadas. Essa aglutinação poderia ser feita por

similaridade, complementaridade ou contraposição. Isso é o que Gonzalez Rey chama

de indicadores, ou seja, “elementos que adquirem significação graças à interpretação do

pesquisador” e acrescenta que a “sua significação não é acessível de forma direta à

experiência, nem aparece em sistemas de correlação” (112). Por essa razão, esse

processo de aglutinação inicial serviu à elaboração de uma forma de compreender os

processos investigados.

Organizados os indicadores, procedemos à construção dos núcleos de significação,

conforme proposto por Aguiar e Ozella. O processo consistiu em nomear os conteúdos

que haviam sido aglutinados a partir de uma nova análise, para apresentar o que seria

essencial dos aspectos analisados. Segundo os autores, é nesse momento que o refletir

passa do empírico para o interpretativo, e assim se faz necessária a relação, a

comparação, a reelaboração e a discussão da base teórica com as informações

elaboradas durante o processo da pesquisa.

Importante destacar que esse processo de análise não deve estar restrito à fala do

informante, ela deve ser articulada (e aqui se amplia o processo interpretativo do

investigador) com o contexto social, político, econômico, em síntese, histórico, que

permite acesso à compreensão do sujeito na sua totalidade (Aguiar e Ozella 231).

VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando nossa discussão inicial acerca do sistema psicológico, poderíamos reafirmar

que a ampliação da consciência entre os profissionais de saúde mental foi possível a

partir do contato com as materialidades mediadoras, na medida em que estas, ao tocar os

sujeitos pelo sensível, mobilizaram a força motriz afetivo-volitiva e iniciaram um

processo de estabelecimento de novos nexos entre as funções psicológicas, promovendo

reorganizações, reestruturações, reelaborações no modo de funcionar do sujeito, tendo

como um dos resultados desse processo a configuração de novos significados e sentidos.

A mediação pela arte na formação no trabalho permitiu ao grupo maior capacidade de

abstração, menor resistência para entrar e lidar com as situações conflitivas, pessoais ou

na relação direta com a prática do trabalho (comparação com outras situações

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observadas); além de menor nível de tensão para a execução das tarefas e maior

motivação (ou engajamento) na atividade de formação.

A relação entre as expressões artísticas e a situação do trabalho possibilitou o

desenvolvimento da capacidade de abstração, análise e síntese transcendendo o vínculo

concreto ou factual da rotina do trabalho evidenciando a potência desta estratégia no

favorecimento e desenvolvimento do pensamento conceitual, levando a superação dos

conceitos cotidianos e a elevação da capacidade de utilização das operações intelectuais

mais complexas. O que demonstra a potencialidade do instrumento para o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores no adulto. Na medida em que

temos este desenvolvimento, é possível que o sujeito vá além da análise cotidiana e

rotineira de suas atividades, emergindo o capital profissional.

De ouro lado, se as materialidades eram estranhas aos profissionais envolvidos nas

pesquisas relatadas, para nós também o eram e, como pontua Delari Jr., “ao se

aproximar de mediações culturais tradicionalmente apartadas da linguagem „científica‟,

um psicólogo pode aguçar o olhar para sua própria condição e tarefa social e, quiçá,

rumar para refazê-la e potencializá-la.” (183).

Destacamos por fim, o alcance da arte como estratégia empregada na formação no

trabalho segundo os pressupostos da Psicologia Histórico Cultural, ao mesmo tempo em

que inscreve a relevância desse campo teórico para o campo da saúde mental.

Verificamos o lastro dessa teoria para o campo da formação no trabalho, em que

objetivamos, antes, o desenvolvimento do adulto em sua plenitude. Ao mesmo tempo a

arte, utilizada como materialidade mediadora, constitui-se efetivamente como

mediadora no processo de formação, uma vez que possibilita vivências de atividade que

implicam em uma resposta direta dos participantes da formação àquilo que ela se

propõe, ou seja, ao envolvimento do sujeito com o ambiente físico e social, com ele

mesmo, com o outro e com o trabalho. O que leva por sua vez à análise da at ividade, o

que viabiliza não só a reflexão e revisão da atividade do trabalho, mas a construção de

novos procedimentos de trabalho pelos próprios atores no coletivo. Demonstrando a

plausibilidade da utilização das produções de natureza artística como mediação e seu

potencial na promoção e ampliação da consciência dos sujeitos sobre si, sobre o outro e

suas condições materiais de existência.

Compreendemos que cabe ao psicólogo ou outro profissional de área correlata que

desejar atuar na formação do trabalho, atentar-se que a sua ação deverá ir além das

relações estabelecidas entre o formador e o grupo. Atuar na promoção do conhecimento

objetivado a partir dos produtos intelectuais da prática social humana, em sua totalidade,

promovendo não apenas a qualidade do trabalho, mas o desenvolvimento humano de

forma mais completa, em sua capacidade de criar e transformar a realidade.

Cabe-nos apontar ainda, dada a compreensão que desenvolvemos a partir dos estudos

que realizamos, a importância da divulgação e ampliação da contribuição dos estudos de

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Vygotsky para a psicologia, para a formação do psicólogo e principalmente para as

ações de formação em situação de trabalho.

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