A Arte Da Felicidade

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A ARTE DA FELICIDADE, Um manual para a vida

A ARTE DA FELICIDADE, Um manual para a vida

DE SUA SANTIDADE, O DALAI_LAMA

e

HOWARD C. CUTLER

1 edio

fevereiro de 2000

7' tiragem

junho de 2000

Traduo

WALDA BARCELLOS

Bstan-'dzin-rgya-mtsho, Dalai Lama XIV, 1935A arte da felicidade: um manual para a vida / de sua santidade o Dalai Lama e Howard C. Cutler ; traduo Walda Barrellos.

- So Paulo : Martins Fontes, 2000.

Ttulo original: The art of happiness.

Dedicado ao leitor:

Que voc encontre a felicidade

INDICE

Nota do autor IX

Introduo 1

PRIMEIRA PARTE: O PROPSITO DA VIDA 11

Captulo 1 O direito felicidade 1,3

Captulo 2 As fontes da felicidade 20

Captulo 3 O treinamento da mente

para a felicidade 41

Captulo 4 O resgate do nosso estado

inato de felicidade 58

SEGUNDA PARTE: O CALOR HUMANO E A COMPAIXO 73

Captulo 5 Um novo modelo para a intimidade 75

Captulo 6 O aprofundamento da nossa ligao

com os outros 95

Captulo 7 0 valor e os benefcios da compaixo 127

TERCEIRA PARTE: A TRANSFORMAO

DO SOFRIMENTO 147

Captulo 8 Como encarar o sofrimento 149

Captulo 9 O sofrimento criado pela

prpria pessoa 168

Captulo 10 A mudana de perspectiva 194

Captulo 11 A descoberta do significado na dor

e no sofrimento 225

QUARTA PARTE: A SUPERAO DE OBSTCULOS 2415

Captulo 12 A realizao de mudanas 247

Captulo 13 Como lidar com a raiva e o dio 278

Captulo 14 Como lidar com a ansiedade e reforar

o amor-prprio 297

QUINTA PARTE: REFLEXES FINAIS SOBRE COMO

LEVAR UMA VIDA ESPIRITUAL 329

Captulo 15 Valores espirituais essenciais 331

Agradecimentos 359

Obras selecionadas de autoria de Sua Santidade,

o Dalai-Lama 363

NOTA DO AUTOR

Neste livro esto relatadas longas conversas com o Da~ lai-Lama. Os encontros pessoais com o Dalai-Lama no Arizona e na ndia, que constituem a base desta obra,

foram realizados com o objetivo expresso da cclaborao num projeto que apresentaria suas opinies sobre como levar uma vida mais feliz, acrescidas das minhas prprias

observaes e comentrios a partir da perspect;va de um psiquiatra ocidental. O Dalai-Lama permitiu com generosidade que eu escolhesse para o livro o formato que

a meu ver transmitiria melhor suas idias. Considerei que a narrativa encontrada nestas pginas proporcionaria uma leitu-

A ARTE DA FELICIDADE

ra mais agradvel e ao mesmo tempo passaria uma noo de como o Dalai-Lama pe em prtica suas idias na prpria vida diria. Com a aprovao do Dalai-Lama, organizei

este livro de acordo com o tema tratado; e assim, ocasionalmente, decidi combinar e associar material que pode ter sido extrado de conversas variadas. Da mesma

forma, tambm com a permisso do Dalai-Lama, nos trechos em que considerei necessrio para fins de clareza e compreenso, entremeei trechos de algumas das suas palestras

ao pblico no Arizona. O intrprete do Dalai-Lama, o dr. Thupten jinpa, gentilmente fez a reviso da verso final dos originais com o intuito de se assegurar de

que no houvesse, em decorrncia do processo de organizao, nenhuma distoro inadvertida das idias do Dalai-Lama.

Uma srie de descries de casos e relatos pessoais foi apresentada para ilustrar as idias em pauta. Com o objetivo de manter a confidencialidade e proteger

a privacidade dos envolvidos, em todos os casos alterei os nomes, detalhes e outras caractersticas particulares, de modo que impedisse a identificao dos indivduos.

DR. HOWARD C. CUTLER

INTRODUO

Encontrei o Dalai-Lama sozinho num vestirio de basquetebol pouco antes da hora em que se apresentaria para falar a uma multido de seis mil pessoas na Arizona State

University. Bebericava calmamente seu ch, em perfeita serenidade.

- Se Vossa Santidade estiver pronto...

Ele se levantou, animado, e saiu do vestirio sem hesitar, dando com a turba apinhada nos bastidores, composta de reprteres da cidade, fotgrafos, seguranas

e estudantes - os que procuram, os curiosos e os cticos. Caminhou em meio multido com um largo sorriso; e cum-

A ARTE D A FELICIDADE

primentava as pessoas medida que avanava. Finalmente, passou por uma cortina" apareceu no palco, fez uma reverncia, uniu as mos e sorriu. Foi recebido com um

aplauso ensurdecedor. A pedido seu, a iluminao no foi reduzida, de modo que ele pudesse ver a platia com nitidez. E, por alguns instantes, ficou simplesmente

ali parado, observando o pblico em silncio com uma expresso inconfundvel de carinho e boa vontade. Para quem nunca tinha visto o Dalai-Lama antes, suas vestes

de monge de um marrom-avermelhado e da cor do aafro podem ter causado uma impresso um pouco extica. No entanto, sua notvel capacidade para estabelecer contato

com o pblico logo se revelou quando ele sentou e comeou a palestra.

- Creio ser esta a primeira vez que vejo a maioria de vocs. Mas, para mim, no faz mesmo muita diferena se estou falando com um velho amigo ou com um novo

porque sempre acredito que somos iguais: somos todos seres humanos. claro que pode haver diferenas de formao cultural ou estilo de vida; pode haver diferenas

quanto nossa f; ou podemos ser de uma cor diferente; mas somos seres humanos, constitudos do corpo humano e da mente humana. Nossa estrutura fsica a mesma;

e nossa mente e nossa natureza emocional tambm so as mesmas. Onde quer que eu conhea pessoas, sempre tenho a sensao de estar me encontrando com outro ser humano,

exatamente igual a mim. Creio ser muito mais fcil a comunicao com os outros nesse nvel. Se dermos nfase ou objetos externos,

alguns aspectos so muito teis, ou.Itros muito prejudiciais e outros so neutros. E, quando lidamos com assuntos externos, geralmente tentamos primeiiro identificar

quais cessas diferentes substncias ou produtcos qumicos so benficos para que possamos nos dedicar a cultiv-los, propag-los e us-los. E das substncias que,

so dariosas ns nus livramos. De modo similar, quando falamos sobre a mente, h milhares de pensamentos diferentes ou de "mentes' diferentes. Entre eles, alguns

so muito teis. Esses, de,,eramos nutrir. Alguns so negativos, rmuito prejudiciais. Eolses deveramos tentar reduzir.

"Portanto, o prime?iropasso na busca da felicidade o aprendizado. Antes de mais nada, temos de aprender como as emoes e comporttamentos negativos rios

so prejudiciais e como as emoces positivas so benficas. E precisamos nos conscientizar de corno essas emoes negativas no so prejudiciais e danosas somente

para ns mesmos mas perniciosas para ai sociedade e para o futuro do mundo inteiro tambm. Esse tipo de conscientizao aumenta nossa determinao pa:ra encar-las

e super-las. Em seguida, vem a percepo dcos aspectos benficos das emoes e comportamentos positvos. Urria vez que nos demos conta disso, tornamo-nos determinados

a valorizar, desenvolver

O PROPSITO DA VIDA

e aumentar essas emoes positivas por mais difcil que seja. H uma espcie de disposio espontnea que vem de dentro. Portanto, atravs desse processo de aprendizado,

de anlise de quais pensamentos e emoes so benficos e quais so nocivos, aos poucos desenvolvemos uma firme determinao de mudar, com a sensao de que `Agora

o segredo da minha prpria felicidade, do meu prprio futuro, est nas minhas mos. No posso perder essa oportunidade'.

"No budismo, o princpio da causalidade aceito como uma lei natural. Ao lidar com a realidade, preciso levar essa lei em considerao. Por exemplo, no

caso de experincias do dia-a-dia, se houver certos tipos de acontecimentos que a pessoa no deseje, o melhor mtodo de garantir que tais acontecimentos no ocorram

consiste em certificar-se de que no mais se dem as condies causais que normalmente propiciam aquele acontecimento. De modo anlogo, caso se deseje que ocorra

um acontecimento ou experincia especfica, a atitude lgica a tomar consiste em procurar e acumular as causas e condies que dem ensejo a ele.

"O mesmo vale para experincias e estados mentais. Quem deseja a felicidade deveria procurar as causas que a propiciam; e se no desejamos o sofrimento,

o que deveramos fazer nos certificarmos de que as causas e condies que lhe dariam ensejo no mais se manifestem. muito importante uma apreciao desse princpio

causal.

"Ora, j falamos da suprema importncia do fator mental para que se alcance a felicidade. Nossa prxima tarefa , portanto, examinar a variedade de estados

mentais que

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A ARTE DA FELICIDADE

viverlciamos. Precisamos identificar com clareza diferentes estados mentais e fazer distino entre eles, classificando-os segundo sua capacidade de levar felicidade

ou no."

O senhor pode dar alguns exemplos especficos de diferentes estados mentais e descrever como os classificaria? - perguntei.

- Por exemplo, o dio, o cime, a raiva, entre outros, so prejudiciais - explicou o Dalai-Lama. - Ns os considerarmos estados mentais negativos porque

eles destroem nossa felicidade mental. Uma vez que abriguemos sentimentos de dio ou rancor contra algum, uma vez que ns mesmos estejamos cheios de dio ou de

emoes negativas, outras pessoas tambm nos parecero hostis. Logo, disso resultam mais medo, maior inibio e hesitao, assim como uma sensao de insegurana.

Essas sensaes se desdobram e, com elas, a solido em meio a um mundo visto como hostil. Todos esses sentimentos negativos derivam do dio. Por outro lado, estados

mentais como a bondade e a compaixo so decididamente positivos. So muito fteis..,

- Eu s queria saber... - disse eu, interrompendo-o. 0 senhor diz que existem milhares de estados mentais diferentes. Qual seria sua definio de uma pessoa

saudvel ou equilibrada em termos psicolgicos? Ns poderamos usar uma definio dessas como uma diretriz para determinar quais estados mentais cultivar e quais

suprimir?

Ele riu antes de responder com sua humildade caractoerstica.

- Como psiquiatra, voc poderia ter uma definio mellhor de uma pessoa saudvel em termos psicolgicos.

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O PROPSITO DA VIDA

- Mas o que eu quero dizer do seu ponto de vista. - Bem, eu consideraria saudvel uma pessoa bondosa, carinhosa, cheia de compaixo. Se mantemos um sentimento

de compaixo, de generosidade amorosa, algo automaticamente abre nossa porta interior. Atravs dela, podemos nos comunicar com os outros com uma facilidade muito

maior. E essa sensao de calor bumano gera uma espcie de abertura. Conclumos que todos os seres bumanos so exatamente como ns e, assim, podemos nos relacionar

com eles com maiorfacilidade. Isso nos confere um esprito de amizade. H ento menos necessidade de esconder coisas e, por conseguinte, os sentimentos de medo,

de dvida e de insegurana se dissolvem automaticamente. Da mesma forma, isso gera nos outros uma sensao de confiana. Do contrrio, por exemplo, poderamos encontrar

algum que muito competente e saber que podemos confiar na competncia daquela pessoa. No entanto, se sentirmos que essa pessoa no generosa, ficamos com um

p atrs. Nossa sensao "Ah, eu sei que essa pessoa capaz, mas posso mesmo confiar nela?", e assim sempre temos uma certa apreenso, que gera uma forma de distanciamento.

"Portanto, seja como for, na minha opinio, cultivar estados mentais positivos como a generosidade e a compaixo decididamente conduz a uma melhor sade

mental e felicidade."

A DISCIPLINA MENTAL

Enquanto ele falava, descobri algo muito interessante na abordagem do Dalai-Lama para alcanar a felicidade. Ela

A ARTE DA FELICIDADE

era absolutamente prtica e racional: identificar e cultivar estados mentais positivos; identificar e eliminar estados mentais negativos. Embora sua sugesto de

comear pela anlise sistemtica da variedade dos estados mentais que experimentamos me parecesse de incio um pouco rida, aos poucos fui me encantando com a fora

da sua lgica e raciocnio. E gostei do fato de que, em vez de classificar os estados mentais, as emoes ou desejos com base em algum julgamento moral imposto de

fora, como "a cobia um pecado" ou "o dio condenvel", ele distingue as emoes como positivas ou negativas atendo-se apenas ao fato de elas acabarem levando

ou no felicidade.

- Se a felicidade uma simples questo de cultivar mais estados mentais positivos, como a generosidade entre outros, por que tanta gente infeliz? - perguntei-lhe

ao retomar nossa conversa na tarde do dia seguinte.

- Alcanar a verdadeira felicidade pode exigir que efetuemos uma transformao na nossa perspectiva, nosso modo de pensar, e isso no nada simples - respondeu

ele. - necessria a aplicao de muitos fatores diferentes provenientes de direes diferentes. No se deveria ter a idia, por exemplo, de que h apenas uma soluo,

um segredo; e de que, se a pessoa conseguir acertar qual , tudo dar certo. semelhante a cuidar direito do corpo fsico. Precisa-se de uma variedade de vitaminas

e nutrientes, no apenas de um ou dois. Da mesma forma, para alcanar a felicidade, precisa-se de uma variedade de abordagens e mtodos para lidar com os vrios

e complexos estados men-

O PROPSITO DA VIDA

tais negativos, e para super-los. E se a pessoa est procurando superar certos modos negativos de pensar, no possvel conseguir isso apenas com a adoo de um

pen-

samento especfico ou a prtica de uma tcnica uma vez ou duas. A mudana demora. Mesmo a mudana fsica leva tempo. Por exemplo, se a pessoa est mudando de um

cli-

ma para outro, o corpo precisa de tempo para se adaptar ao novo ambiente. E, da mesma forma, transformar a mente leva tempo. So muitos os traos mentais negativos,

e necessrio lidar com cada um deles e neutraliz-los. Isso no fcil. Exige a repetida aplicao de vrias tcnicas e a dedicao de tempo para a familiarizao

com as prticas. um processo de aprendizado.

"Creio, porm, que medida que o tempo vai passando, podemos realizar mudanas positivas. Todos os dias,

ao acordar, podemos desenvolver uma motivao positiva sincera, pensando, `Vou utilizar este dia de um modo mais positivo. Eu no deveria desperdiar justamente

este dia.' E depois, noite, antes de nos deitarmos, poderamos verificar o que fizemos, com a pergunta `Ser que utilizei este

dia como planejava?' Se tudo correu de acordo com o planejado, isso motivo para jbilo. Se no deu certo, deveramos lamentar o que fizemos e passar a uma crtica

do dia. Assim, atravs de mtodos como esses, possvel aos poucos fortalecer os aspectos positivos da mente.

"Agora, no meu caso como monge budista, por exemplo, acredito no budismo e atravs da minha prpria experincia sei que essas prticas budistas me so muito

teis.

Contudo, em decorrncia do hbito, ao longo de muitas vidas anteriores, certos aspectos podem brotar, como a raiva

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A ARTE DA FELICIDADE

ou o apego. E nesse caso o que eu fao o seguinte: em primeiro lugar, o aprendizado do valor positivo das prticas; em segundo, o fortalecimento da determinao;

e, finalmente, a tentativa de implementar as prticas. No incio, a implementao das prticas positivas muito fraca. Com isso, as influncias negativas ainda

detm grande poder. Porm, com o tempo, medida que vamos gradativamente implantando as prticas positivas, os comportamentos negativos se reduzem automaticamente.

Portanto, a prtica do Dharma* de fato uma constante batalha interior, que substitui o antigo condicionamento ou hb:ito negativo por um novo condicionamento positivo."

E prosseguiu.

- No importa qual seja a atividade ou a prtica, a que queiramos nos dedicar, no h nada que no se tome mais fcil com o treinamento e a familiaridade

constante s. Por meio do treinamento, podemos mudar, podemos nos; trans-

* O termo Dharma tem muitas conotaes, mas nenhum eqjuivalente exato em ingls. usado com maior freqncia para fazer referncia aos ensinamentos e

doutrina do Buda, abrangendo a tradio (dos textos sagrados assim como o modo de vida e as realizaes espirittuais que resultam da aplicao dos ensinamentos.

s vezes, os budistas usam a palavra num sentido mais geral - querendo dizer prticas religinosas ou espirituais em geral, a lei espiritual universal ou a verdadeira

naturreza dos fenmenos - e usam o termo Buddhadharma para se referir dde modo mais especfico aos princpios e prticas do caminho budista. G7 termo Dharma em snscrito

deriva da raiz etimolgica que significa "ssegurar"; e nesse contexto, a palavra tem um significado mais amplo: o cde qualquer comportamento ou entendimento que

sirva para "refrear a pessoa" ou para proteg-la evitando que passe pelo sofrimento e suas caqusas.

48

O PROPOSITO DA VIDA

formar. Dentro da prtica budista, h vrios mtodos voltados para o esforo de manter a mente calma quando acontece algo de perturbador. Atravs da prtica repetida

desses mtodos, poden'ios chegar ao ponto em que alguma perturbao possa ocorrer, mas os efeitos negativos exercidos sobre nossa mente permanecem na superfcie,

como ondas que podem agitar a superfcie do oceano mas que ,to tm grande impacto nas profundezas. E, embora minha experincia possa ser muito limitada, descobri

a confirmao disso na minha prpria prtica. Portanto, se recebo alguma notcia trgica, naquele momento posso experimentar alguma perturbao na minha mente, mas

ela desaparece muito depressa. Ou ainda, posso me irritar e gerar alguma raiva; mas, da mesma forma, ela se dissipa com rapidez. No h nenhum efeito nas profundezas

da mente. Nenhum dio. Esse ponto foi alcanado atravs do exerccio gradual. No aconteceu da noite para o dia.

Claro que no. O Da lai-Lama vem se dedicando ao treinamento da mente desde os quatro anos de idade.

0 treinamento sistemtico da mente - o cultivo da felicidade, a genuna transformao interior atravs da seleo deliberada de estados ri?entais positivos, seguida

da concentrao neles, alm do questionamento dos estados mentais negativos - possvel graas prpria estrutura e funo do crebro. Nascem os com crebros que

j vm equipados geneticamente cam certos padres de comportamentos instintivos. somes predispostos mental, emocional e fisicarnente para reagir ao ambiente com

atitudes que per-

49

A ARTE DA FELICIDADE

mitam nossa sobrevivncia. Esses sistemas bsicos de instrues esto codificados em inmeros modelos inatos de ativao de clulas nervosas, combinaes especficas

de clulas do crebro que atuam em resposta a algum dado acontecimento, experincia ou pensamento. No entanto, a configurao dos nossos crebros no esttica,

no irrevogavelmente fixa. Nossos crebros tambm so adaptveis. Neurocientistas documentaram o fato de que o crebro pode projetar novos modelos, novas combinaes

de clulas nervosas e de neurotransmissores (substncias qumicas que transmitem mensagens entre as clulas nervosas) em resposta a novos estmulos. Na realidade,

nosso crebro malevel e sempre est mudando, reconfigurando seus circuitos de acordo com novos pensamentos e experincias. E, em decorrncia do aprendizado, a

funo dos prprios neurnios individuais muda, o que permite que os sinais eltricos transitem por eles com maior rapidez. Os cientistas chamam de "plasticidade"

a capacidade de mudar inerente ao crebro.

Essa capacidade de redefinir a configurao do crebro, de desenvolver novas conexes neurais, foi demonstrada em experincias como, por exemplo, uma realizada

pelos drs. Avi Karni e Leslie Underleider nos National Institutes of Mental Health. Nessa experincia, os pesquisadores fizeram com que os objetos desempenhassem

uma tarefa simples de coordenao motora, um exerccio de batucar com os dedos, e identificaram por meio de um exame de ressonncia magntica quais as partes do

crebro envolvidas na tarefa. Os objetos da pesquisa passaram ento a praticar o exerccio dos dedos todos os dias ao longo de

O PROPSITO DA VIDA

quatro semanas, tornando-se pouco a pouco mais eficientes e rpidos. Ao final do perodo de quatro semanas, foi repetido o exame do crebro, e ele revelou que a

rea do crebro envolvida na tarefa havia expandido. Isso indicou que a prtica regular e a repetio da tarefa haviam recrutado novas clulas nervosas e haviam

mudado as conexes neurais que originalmente estavam envolvidas na tarefa.

Essa notvel caracterstica do creb-o parece ser o embasamento fisiolgico para a possibilidade de transformao da nossa mente. Com a mobilizao dos nossos

pensamentos e a prtica de novos modos ce pensar, podemos remodelar nossas clulas cerebrais e alterar o modo de funcionar do nosso crebro. Ela tambm a base

para a idia de que a transformao interior comea com o aprendizado (novos estmulos) e envolve a disciplina de substituir gradativamente nosso "condicionamento

negativo" (correspondente aos nossos padres atuais caractersticos de ativao de clulas nervosas) por um "condicionamento positivo" (com a formao de novos circuitos

neurais). Assim, a idia de treinar a mente para a felicidade passa a ser uma possibilidade real.

A DISCIPLINA TICA

Em conversa posterior relacionada ao treinamento da mente para a felicidade, o Dalai-Lama salientou o seguinte ponto.

- Creio que o comportamento tico outra caracterstica do tipo de disciplina interior que leva a uma existn-

A ARTE DA FELICIDADE

cia mais feliz. Ela poderia ser chamada de disciplina tica. Grandes mestres espirituais, como o Buda, aconselham-nos a realizar atos saudveis e a evitar o envolvimento

com atos prejudiciais. Se nossa ao saudvel ou prejudicial, depende de essa ao ou ato ter como origem um estado mental disciplinado ou no disciplinado. A

percepo que uma mente disciplinada leva felicidade; e uma mente no disciplinada leva ao sofrimento. E, na realidade, diz-se que fazer surgir a disciplina

no interior da mente a essncia do ensinamento do Buda.

"Quando falo de disciplina, refiro-me autodisciplina, no disciplina que nos imposta de fora por outros. Alm disso, refiro-me disciplina que aplicada

com o objetivo de superar nossas qualidades negativas. Uma gangue de criminosos pode precisar de disciplina para efetuar um roubo com xito, mas essa disciplina

intil."

O Dalai-Lama parou de falar por um instante e pareceu estar refletindo, organizando os pensamentos. Ou talvez estivesse apenas procurando uma palavra em

ingls. No sei. No entanto, pensando na nossa conversa enquanto ele fazia a pausa naquela tarde, algum aspecto de toda essa histria relativa importncia do aprendizado

e da disciplina comeou a me parecer bastante entediante em comparao com os sublimes objetivos da verdadeira felicidade, da evoluo espiritual e da completa transformao

interior. Parecia-me que a busca da felicidade deveria de algum modo ser um processo mais espontneo. Levantei essa questo com um aparte.

- O Senhor descreve as emoes e comportamentos negativos como sendo "prejudiciais" e os comportamen-

O PROPSITO DA VIDA

positivos como "salutares". Alm disso, afirma que uma finte sem treinamento ou disciplina geralmente resulta em comportamentos negativos ou prejudiciais,

de modo que precisamos aprender a nos treinar para aumentar nossos comportamentos positivos. At a, tudo bem.

"Mas o que me perturba que sua prpria definio de comportamentos negativos ou prejudiciais a daqueles comportamentos que resultam em sofrimento. E

define um comportamento salutar como o que resulte em felicidade. O senhor tambm parte da premissa bsica de que todos os seres por natureza querem evitar o sofrimento

e alcanar a felicidade. Esse desejo inato. No precisa ser aprendido. A questo , portanto, a seguinte: se nos natural querer evitar o sofrimento, por que

no sentimos, de modo espontneo e natural, uma repugnncia maior pelos comportamentos negativos ou prejudiciais, medida que amadurecemos? E se natural querer

alcanar mais felicidade, por que no somos cada vez mais atrados, de modo espontneo e natural, para comportamentos salutares, tornando-nos assim mais felizes

medida que nossa vida avana? Ou seja, se esses comportamentos salutares levam naturalmente felicidade, e ns queremos a felicidade, isso no deveria ocorrer

como um processo natural? Por que deveramos precisar de tanta educao, treinamento e disciplina para que esse processo se desenrole?

- Mesmo em termos convencionais, no nosso dia-adia - respondeu o Dalai-Lama -, consideramos a educao um fator importantssimo para a garantia de uma vida

feliz e de sucesso. E o conhecimento no se obtm espontaneamente. preciso treinamento; temos de passar por uma

A ARTE DA FELICIDADE

espcie de programa de treinamento sistemtico e assim por diante. E consideramos essa instruo e treinamento convencional bastante rduos. Se no fosse assim,

por que os alunos anseiam tanto pelas frias? E, no entanto, sabemos que esse tipo de instruo vital para garantir uma vida feliz e bem-sucedida.

"Da mesma forma, realizar atos salutares pode no nos ocorrer naturalmente, mas temos de fazer um treinamento consciente nesse sentido. Isso acontece, especialmente

na sociedade moderna, porque existe uma tendncia a aceitar que a questo dos atos salutares e dos prejudiciais - o que se deve e o que no se deve fazer - algo

que se considera pertencer esfera da religio. Tradicionalmente, considerou-se ser responsabilidade da religio prescrever quais comportamentos so salutares e

quais no so. Contudo, na sociedade atual, a religio perdeu at certo ponto seu prestgio e influncia. E, ao mesmo tempo, nenhuma alternativa, como por exemplo

uma tica secular, veio substitu-Ia. Por isso, parece que se dedica menos ateno necessidade de levar um estilo saudvel de vida. por isso que acredito que

precisamos fazer um esforo especial e trabalhar com conscincia com o objetivo de adquirir esse tipo de conhecimento. Por exemplo, embora eu pessoalmente acredite

que nossa natureza humana essencialmente benvola e compassiva, tenho a impresso de que no basta que essa seja nossa natureza fundamental; devemos tambm desenvolver

uma valorizao e conscientizao desse fato. E a transformao de como nos percebemos, atravs do aprendizado e do entendimento, pode ter um impacto muito verdadeiro

no modo como interagimos com os outros e como conduzimos nosso dia-a-dia."

54

C) PROPSITO DA VIDA

_ ,esmo assim, o senhor usa a analogia do

formao e do

formao acadmica tradicional - retruquei, no papel de advogado do diabo. - Isso uma coisa. Porm, se estamos falido de certos comportamentos que o senhor

chama de `salutares" ou positivos, que resultariam na felicidade, e oilu'os comportamentos que resultariam em sofrimento, por que necessrio tanto tempo de aprendizado

para identificar quais comportamentos se enquadram em qual categoria e tanto treinamento para implementar os comportamentc's Positivos e eliminar os negativos? Ou

seja, se algum pe a mo no fogo, ele se queima. A pessoa recolhe a mo, tendo aprendido que esse comportamento resulta em sofrimento. No preciso um longo aprendizado

ou treinamento para que ela aprenda a no mais tocar no fogo.

"Ora, por que no so assim todos os comportamentos ou emoes que resultam em sofrimento? Por exemplo, o senhor alega que a raiva e o dio so emoes nitidamentie

negativas e que acabam levando ao sofrimento. Mas poir que preciso que a pessoa seja instruda a respeito dos Jeitos danosos da raiva e do dio para elimin-los?

Como aL raiva causa de imediato um estado emocional desagradvel, e sem dvida fcil perceber diretamente essa perturb,aao, por que as pessoas no passam simplesmente

a evit-lla no futuro de modo espontneo e natural?"

Enquanto o Dalai-Lama ouvia atentamente meus argumentos > seus olhos inteligentes se arregalaram um pouco, como soe ele estivesse levemente surpreso com

a ingenuidade dais minhas perguntas, ou at mesmo como se as considerasse divertidas. Depois, com uma risada vigorosa, cheia de boa vontade, ele respondeu.

O Pg PROPSI'TO DA VIDA

A ARTE DA FELICIDADE

_ diz que o conhecimento conduz lber- seu sucesso em alcanar a felicidade.

Quando se q

tmento, maor ser sei

' soluo de um problema, preciso comprem- por isso qiae eu cons)nsidero a. educao e o conhecimento

dade ou a der que h muitos nveis diferentes. Digamos, por exem- cruciais."

s seres humanos na Idade da Pedra no sabiam Percelvendo, sup, uponho ene, minha persistente resistn-

plo, que o

carne mas mesmo assim tinham a necessidade

cia idia. da mera fa educao como meio de transformacozinhar a

~servou.

biolgica de consumi-Ia. Por isso, comiam exatamente como o interior, ele obse

um animal selvagem. medida que evoluram, aprende-

- Um problema ca da nossa sociedade atual que temos

a acrescentar temperos para tornar a comi- uma atitude diante d. da educao como se ela existisse ape

ram a cozinhar, orosa e depois inventaram pratos mais diver- nas para tornar as pepessoas mais inteligentes, para torn-las

da mais saborosa sificados. E

at mesmo na atualidade, se estamos com al- mais criatvas. s ve2,ezes chega mesmo a parecer que aque

guma doena especfica e, atravs do conhecimento, apren- les que no receberaram grande instruo, aqueles que so

demos que um certo tipo de alimento no bom para menos sofisticados e em termos de formao acadmica, so

ns, muito embora tenhamos o desejo de consumi-lo, ns mais inocentes e helonestos. .Muito embora nossa socieda

nos refreamos. Portanto est claro que quanto mais sofis- de no d nfase a a esse aspecto, a aplicao mais valiosa

,

ticado for o

nvel do nosso conhecimento, com maior efi- do conhecimento e o da instruo a de nos ajudara enten-

ccia lidaremos com o mundo natural. der a importncia d ;da dedicao a atos mais salutares e da

" tambm preciso julgar as conseqncias dos nos- implantao da disciciplina na nossa mente. A utilizao cor

sos comportamentos a longo e a curto prazo, para ponde- reta da nassa intelig~gencia e conhecimento consiste em pro

dentro para fora, para desenvolver um

r-las. Por exemplo, no controle da raiva. Apesar de os vocar mudanas de

animais poderem experimentar a raiva, eles no podem bom corao.

entender que a raiva destrutiva. No caso dos seres humanos, porm, h um nvel diferente, no qual se tem uma espcie de percepo de si mesmo que permite refletir

e observar que, quando a raiva surge, ela prejudica a pessoa. Portanto, pode-se concluir que a raiva destrutiva. preciso ser capaz de fazer essa inferncia.

Logo, no se trata de algo to simples quanto pr a mo no fogo, queimar-se e aprender a nunca mais fazer isso no futuro. Quanto mais sofisticado for seu grau de

instruo e de conhecimento a respeito do que leva felicidade e do que provoca o sofri-

O PROPSITO DA VIDA

Captulo 4

O RESGATE DO NOSSO ESTADO

INATO DE FELICIDADE

NOSSA NATUREZA FUNDAMENTAL

-ra, fomos feitos para procurar a felicidade. E est claro que os sentimentos de amor, afeto, intimidade e compaixo trazem a felicidade. Creio que cada um de ns

dispe da base para ser feliz, para ter acesso aos estados mentais de amor e compaixo que produzem a felicidade afirmou o Dalai-Lama. - Na realidade, uma das

minhas crenas fundamentais que ns no s possumos inerentemente o potencial para a compaixo, mas tambm que a natureza bsica ou essencial do ser humano a

serenidade.

58

- E1 que o senhor baseia essa crena?

_ ~doutrna budista da "Natureza do Buda" oferece alguns Indamentos para a crena de que a natureza es-

sencialie iodos os seres sencientes basicamente serena e no aressiva`. Pode-se, entretanto, adotar esse enfoque sem qu seja preciso recorrer doutrina budista

da "Natu-

reza douda. H tambm outros fatores nos quais baseio essa crna. Para mim o tema do afeto humano ou da compaixoito apenas uma questo religiosa. Trata-se de

um fato indispensvel na vida do dia-a-dia.

"Pa comear, se olharmos o prprio modelo da nossa existna desde a tenra infncia at a morte, poderemos ver como vtnos nutridos pelo afeto dos outros.

E isso a partir do nasmento. Nosso primeiro ato aps o nascimento o de manar o leite da nossa me ou de outra mulher. um ato de feto, de compaixo. Sem ele,

no podemos sobrevi-

ver. Iss claro. E esse ato no pode ser realizado a menos que exta um sentimento mtuo de afeto. Por parte da crian-

a, se Ao houver nenhum sentimento de afeto pela pessoa que esver amamentando, se no houver nenhum vnculo, pode aontecer de a criana no mamar. E, sem o afeto

por

parte cL me ou da outra pessoa, pode ser que o leite no flua liv'-mente. E assim a vida. Assim a realidade.

"A~m disso, nossa estrutura fsica parece ser mais adequadal sentimentos de amor e compaixo. Podemos ver

. 1~ filosofia budista, a "Natureza do Buda" refere-se a uma natureza darente que oculta, essencial e extremamente sutil. Esse estado da menr que existe

em todos os seres humanos, totalmente imaculado por Moes ou pensamentos negativos.

59

60

A tRTE DA FELICIDADE

como umaa disposi;

'D mental tranqila, afetuosa e salutar produz efeitos benficos para mossa sade e bem-Bestar fsico. Inversamente, 3entimentc)s de frustrao, de medo,

agitao e'- raiva pod-m ser danosos nossa sade'

"Pode-'mos ver truralmente, as noes que ternos como lquidas e

certas a respeito da intimidade no so universais. Elas mudam coem Passar do tempo e costumm ser moldadas pe-

las condlles econmicas, sociais e culturais. E fcil ficar confuso' diante da variedade das defi> p

perigo ddeprimidos, pen- voltagem. A funio do estabilizador c consiste cem impedir

ficar totalmente desanimados, indefesos e ue no servimos oscilaes de enetrgia e, em vez disso, fornecer uma fonte

sando que no conseguimos fazer nada, q

importante a capacidade de energia estvell e constante."

da. Nessas circunstncias, para na

- O senhor salienta a importnci-,ia de evitar os extre-

de elevar nossa mente refletindo sobre nossas realizaes, momento e sobre mos - atalhei - ruas ser que chegar

cque chegar

~r a extremos no o

sobre o progresso que fizemos at o

a odor melhorar a que proporciona a emoo e o entusi

'siasmo na vida? Se ewi-

outras qualidades positivas de modo p

desanima- tarmos todos os extremos na vida, s sempre escolhendo o

disposio e escapar daquele estado de esprito do ou desmoralizado. Portanto, o que

necessrio aqui "caminho do meio", isso no levariaia apenas a uma exis-

uilibrado e hbil. tncia inspida e sem graa?

uni um tipo de enfoque muito equilibrado

bordagem ser valiosa - creio que voc precisa compr~reender a origem opa a

"No se trata apenas de essa a

se aplica tambm base dos extremos de comportameento - respondeu ele,

ara nossa sade fsica e emocional; ela p

. Ora, por exemplo, a negando com uni movimento de caabea. - Tomemos por

nosso desenvolvimento espiritual ao no

diferen- exemplo a busca de bens materiais:: moradia, moblia, wes

tradio budista inclui muitas tcnicas e prticas tes. , porm, importantssimo ser muito hbil na aplicao turio e assim por diante. Por um lado,

pode-se ver a ~po

ue damos s vrias tcnicas e procurar no chegar a ex- breza como uni tipo de extremo, ee temos todo direito de

q

de uma abor- lutar para super-la e para garantitlr nosso conforto fsico.

tremos. Tambm sob esse aspecto precisamos dagem hbil e equilibrada. Quando nos dedicamos pi- Por outro lado, o excesso de luxo. a busca exagerada

da

enfoque coordenado, que riqueza outro extremo. Nosso objetivo final, ao procurar

tina budista,

essencial ter um enfoq associe o estudo e o aprendizado s prticas da contem- maior prosperidade, uma sensao de satisfao, de feli-

i

to relevante para que cidade. No entanto, a prpria fundiamentao da busca por

fiao e da meditao. Esse um ponto

o aprendizado finte- mais uma impresso de no ter

r o suficiente, um sentip

no haja nenhum desequilbrio entre o rtica. Em caso mento de insatisfao. Esse sentimento de insatisfao, de

central ou acadmico e a i.mplementa p

contrrio, h o perigo de que um excesso de intelectuali- querer sempre mais e mais, no deriva da atrao ineren

mpcativas. Por outro te que os objetos que buscamos exerceriam sobre nosso

zadoo sufoque as prticas mais contelado, um excesso de nfase na implementao prtica sem desejo; mas deriva, sim, do nosscp estado mental.

o estudo acaba sufocando o entendimento. Por isso, pie- " por isso que acredito que nossa tendncia a chegar

a extremos muitas vezes nutris de reduzir a intensidade das afliesdemos eliminar os efeitos perniciosos cortando ramos e

pazes ns seremfolhas especficos ou podemos eliminar a planta inteira, indo

mentais e emocicnais; e tanto mais poderemos neutralizar suas influncias -' efeitos.at a raiz para erradic-la."

"Quando falimos em eliminar estados mentais negativos, h um ponto que devemos ter em mente. Dentro da prtica budista,

) cultivo de certas qualidades mentais po-Para concluir sua anlise da possibilidade de eliminar nos

sitivas especfic~s~ como a pacincia, a tolerncia, a bene-sos estados mentais negativos, o Dalai-Lama explicou.

volncia, entre outras, pode atuar como um antdoto espe-

cfico para estacos mentais negativos como a raiva, o diomente pura. Ela tem como base a crena de que a cons

e o apego. A aflicao de antdotos tais como o amor e acincia sutil bsica no conspurcada por emoes nega

compaixoSua natureza pura, um estado ao qual nos referi-

compaixo poce reduzir significativamente o grau ou inmos como "a mente da Luz Lmpida". Essa natureza essen-

fluncia das afies mentais e emocionais; mas,aflitivascial da mente tambm chamada de Natureza do Buda.

procuram eliminar apenas determinadas emo

em certo sentido podem ser vis-Logo, como as emoes negativas no fazem parte intrn

especficas ou ndividuais,

seca dessa Natureza do Buda, existe uma possibilidade de

tos apenas corxo medidas parciais. Essas emoes aflitivas,

tais como o algo e o dio, esto em ltima anlise enrai-elimin-las e purificar a mente.

equivocada da verdadei-

"Portanto, a partir dessas trs premissas que o budis

zadas na ignorAcia - na percepo eq

mo aceita que as aflies mentais e emocionais podem ser

ra natureza d-, realidade. Portanto, parece haver um con-

A ARTE DA FELICIDADE

eliminadas por meio do cultivo deliberado de foras contrrias como o amor, a compaixo, a tolerncia e o perdo, bem como atravs de vrias prticas, tais como a meditao."

A idia de que a natureza oculta da mente pura e de

que ns temos a capacidade para eliminar completamente nossos modelos negativos de pensamento era um tpico sobre o qual eu tinha ouvido o Dalai-Lama falar antes. Ele havia comparado a mente a um copo de gua lamacenta. Os estados mentais aflitivos eram como as "impurezas" ou a lama, que poderiam ser removidas de modo a revelar a natureza "pura" da gua. Isso parecia um pouco abstrato; e, passando para interesses mais prticos, eu o interrompi.

- Digamos que a pessoa aceite a possibilidade de eliminar suas emoes negativas e at mesmo comece a dar passos nessa direo. A partir das nossas conversas, no entanto, eu depreendo que seria necessrio um esforo tremendo para erradicar esse lado perverso: uma enorme dedicao ao estudo, contemplao, a constante aplicao de antdotos, a prtica intensiva de meditao e assim por diante. Isso poderia ser adequado para um monge ou para algum que pudesse devotar muito tempo e ateno a essas prticas. Mas o que dizer de uma pessoa comum, com famlia e tudo o mais, que talvez no tenha o tempo ou a oportunidade de pr em prtica essas tcnicas intensivas? Para elas, no seria mais adequado simplesmente tentar controlar as emoes que as afligem, aprender a viver com elas e administr-las de modo razovel, em vez de tentar erradic-las completamente? como os pacientes com diabe-

A SUPERAO DE OBSTCULOS

tes. Eles podem no ter meios para uma cura completa; mas se dedicarem ateno dieta, se fizerem uso da insulina e de outros recursos, eles podem controlar a doena e prevenir seus sintomas e seqelas negativas.

- , essa a melhor forma! - respondeu ele, com entusiasmo. - Concordo com voc. Quaisquer passos, por menores que sejam, que tomemos no sentido de reduzir a influncia das emoes negativas podem ser muito teis. Decididamente isso pode ajudar a pessoa a levar uma vida mais feliz e satisfatria. No entanto, tambm possvel que um leigo alcance altos nveis de realizao espiritual: algum que tenha emprego, famlia, um relacionamento sexual com seu cnjuge e assim por diante. E no s isso, mas houve indivduos que s comearam a prtica a srio j tarde na vida, quando estavam com mais de quarenta, cinqenta ou at mesmo oitenta anos; e, mesmo assim, conseguiram tornar-se grandes mestres de alto nvel.

- O senhor pessoalmente conheceu muitos indivduos que na sua opinio possam ter atingido esses estados sublimes? - indaguei.

- Creio que isso muito, muito difcil de avaliar. Ao meu ver, os praticantes verdadeiros e sinceros nunca se vangloriam disso. - E deu uma risada.

Muitos no Ocidente voltam-se para as crenas religiosas como fonte de felicidade, mas a abordagem do Dalai-Lama fundamentalmente diferente da de muitas religies ocidentais por depender muito mais do raciocnio e do treinamento da mente do que da f. Sob certos aspectos, o enfo-

A ARTE DA FELICIDADE

A SUPERAO DE OBSTCULOS

que do Dalai-Lama semelhante a uma cincia da mente, um sistema que poderamos aplicar exatamente como as pessoas usam a psicoterapia. No entanto, o que o DalaiLama sugere vai mais alm. Embora estejamos acostumados idia de recorrer a tcnicas psicoterpicas como a terapia comportamental para atacar maus hbitos especficos - o fumo, a bebida, as exploses de raiva - no estamos habituados a cultivar atributos positivos - o amor, a compaixo, a pacincia, a generosidade - como armas contra todas as emoes e estados mentais negativos. O mtodo do Dalai-Lama para alcanar a felicidade tem por base a idia revolucionria de que os estados mentais negativos no so parte intrnseca das nossas mentes; so obstculos transitrios que impedem a expresso do nosso estado latente de alegria e felicidade.

A maioria das escolas tradicionais da psicoterapia ocidental costuma concentrar o foco na adaptao neurose do paciente em vez de numa completa reformulao de todo o seu modo de encarar a vida. Elas examinam a histria pessoal do indivduo, seus relacionamentos, suas experincias dirias (a includos sonhos e fantasias) e at mesmo o relacionamento com o terapeuta no esforo de resolver os conflitos interiores do paciente, as motivaes inconscientes e a dinmica psicolgica que pode estar contribuindo para seus problemas ou sua infelicidade. O objetivo consiste em obter estratgias mais saudveis para encarar a vida, uma adaptao e melhora dos sintomas, em vez de treinar a mente de modo direto para ser feliz.

A caracterstica mais notvel do mtodo de treinamento da mente do Dalai-Lama envolve a idia de que os esta-

dos mentais positivos podem atuar como antdotos diretos para os estados mentais negativos. Quando se procuram abordagens anlogas a essa na moderna cincia do comportamento, a terapia cognitiva talvez seja a que mais se aproxima. Essa forma de psicoterapia vem se tornando cada vez mais popular ao longo das ltimas dcadas e j comprovou ser muito eficaz no tratamento de uma ampla variedade de problemas comuns, especialmente de transtornos do humor, como por exemplo a depresso e a ansiedade. A moderna terapia cognitiva, desenvolvida por psicoterapeutas tais como o dr. Albert Ellis e o dr. Aaron Beck, baseia-se na idia de que as emoes que nos perturbam e nossos comportamentos desajustados so causados por distores no pensamento e por crenas irracionais. A terapia concentra sua ateno em ajudar o paciente a sistematicamente identificar, examinar e corrigir essas distores no pensamento. Os pensamentos corretivos, em certo sentido, passam a ser um antdoto contra os modelos deturpados de pensamento que so a fonte do sofrimento do paciente.

Por exemplo, uma pessoa rejeitada por outra e reage com um sentimento excessivo de mgoa. O terapeuta cognitivo primeiro ajuda a pessoa a identificar a crena irracional latente; por exemplo: "Eu preciso ser amado e aprovado por quase todas as pessoas significativas na minha vida em qualquer ocasio ou, se no for assim, tudo horrvel, e eu no presto para nada." O terapeuta ento apresenta pessoa provas que questionam essa crena irrealista. Embora essa abordagem possa parecer superficial, muitos estudos demonstraram que a terapia cognitiva funciona.

275

A ARTE DA FELICIDADE

Na depresso, por exemplo, os terapeutas cognitivos alegam que so os pensamentos negativos e derrotistas que servem de alicerce para a depresso. Praticamente da mesma forma que os budistas consideram deturpadas todas as emoes aflitivas, os terapeutas cognitivos encaram esses pensamentos negativos, geradores da depresso, como "essencialmente desvirtuados". Na depresso, o pensamento pode desvirtuar-se pelo hbito de considerar os acontecimentos em termos de oito-ou-oitenta; pelo excesso de generalizao (ex.: se perdemos um emprego ou no passamos de ano, automaticamente pensamos:

"sou um fracasso total!"); ou pela percepo seletiva de apenas certos acontecimentos (ex.: trs fatos positivos e dois negativos podem acontecer num dia, mas a pessoa deprimida ignora os fatos positivos e se concentra exclusivamente nos negativos). Portanto, no tratamento da depresso, com a ajuda do terapeuta, o paciente encorajado a monitorar o surgimento automtico de pensamentos negativos (ex.: "Eu no sirvo para nada") e a corrigir energicamente esses pensamentos distorcidos por meio da coleta de informaes e provas que os contradigam ou neguem (ex.: '-Dei duro para criar dois filhos", "Tenho talento para cantar", "Sempre fui um bom amigo", "Consegui manter um emprego difcil" e assim por diante). Pesquisadores comprovaram que ao substituir nossos modos deturpados de pensar por informaes precisas, possvel provocar uma mudana nos nossos sentimentos e melhorar nosso humor.

O prprio fato de que podemos mudar nossas emoes e combater pensamentos negativos com a aplicaro de modos de pensar alternativos corrobora a posio do Dalai-

A SUPERAO DE OBSTCULOS

Lama de que podemos superar estados mentais negativos atravs da aplicaro de "antdotos", ou seja, os estados mentais positivos correspondentes. E, quando esse fato associado a recentes provas cientficas de que podemos mudar a estrutura e o funcionamento do crebro por meio do cultivo de novos pensamentos, a idia de podermos alcanar a felicidade atravs do treinamento da mente parece uma possibilidade muito real.

278

A SUPERAO DE OBSTCULOS

Captulo 23

COMO LIDAR COM A RAIVA

E O DIO

Se deparamos com uma pessoa que levou uma flechada, no perdemos tempo nos perguntando de onde a flecha pode ter vindo, a que casta pertencia o indivduo que a atirou; analisando de que tipo de madeira a flecha era feita, ou de que modo foi talhada a ponta da flecha. Em vez disso, deveramos nos concentrar em arrancar a flecha imediatamente.

- Shakyamuni, o Buda

oltemo-nos agora para algumas dessas "flechas", os V estados mentais negativos que destroem nossa felicidade, e seus respectivos antdotos. Todos os estados mentais negativos atuam como obstculos nossa felicidade, mas vamos comear com a raiva, que parece ser um dos maiores empecilhos. Ela descrita pelo filsofo estico Sneca como "a mais hedionda e frentica de todas as emoes". Os efeitos destrutivos da raiva e do dio foram bem documentados por recentes estudos cientficos. claro que no precisamos de comprovao cientfica para perceber como essas emoes podem toldar nosso discernimento,

causar sensaes de extremo desconforto ou devastao em nossos relacionamentos pessoais. Nossa prpria experincia pode nos dizer isso. No entanto, em anos recentes, foram realizados grandes avanos na documentao dos efeitos fsicos nocivos da raiva e da hostilidade. Dezenas de estudos demonstraram que essas emoes so uma causa importante de doenas e de morte prematura. Pesquisadores como o dr. Redford Williams na Duke University e o dr. Robert Sapolsky na Stanford University conduziram pesquisas que demonstram que a raiva, a fria e a hostilidade so especialmente prejudiciais ao sistema cardiovascular. Acumularam-se tantas provas dos efeitos danosos da hostilidade que ela agora de fato considerada um importante fator de risco de doenas cardacas, no mnimo igual a fatores de risco tradicionais como o colesterol alto ou a presso alta, ou talvez maior do que eles.

E, uma vez que aceitemos a idia dos efeitos nocivos da raiva e do dio, a prxima pergunta passa a ser como super-los.

No meu primeiro dia como consultor psiquitrico numa instituio de tratamento, eu estava sendo encaminhado ao meu novo consultrio por uma integrante da equipe quando ouvi gritos aterradores que reverberavam pelo corredor...

- Estou com raiva...

- Mais alto!

- ESTOU COM RAIVA!

- MAIS ALTO! MOSTRE QUE EST! EU QUERO VER!

- ESTOU COM RAIVA!! COM RAIVA!! QUE DIO!!! QUE

A ARTE DA FELICIDADE

Era realmente assustador. Comentei com a funcionria que parecia estar ocorrendo uma crise que exigia ateno urgente.

- No se preocupe com isso - disse ela, rindo. - Esto s fazendo terapia de grupo no final do corredor... ajudando uma paciente a se conectar com sua raiva.

Mais tarde naquele dia, estive com a paciente em pessoa. Ela parecia exausta.

- Estou to relaxada - disse ela. - Aquela sesso de terapia realmente funcionou. Estou com a sensao de ter posto para fora toda a minha raiva.

Na nossa sesso seguinte, no entanto, a paciente relatou.

- Bem, acho que acabei no pondo para fora toda a minha raiva. Logo depois de sair daqui ontem, quando eu estava saindo do estacionamento, um idiota quase me deu uma fechada... e eu fiquei furiosa! E no parei de xing-lo entre dentes at chegar em casa. Acho que ainda preciso de mais algumas dessas sesses de raiva para botar para fora

o resto.

Quando se prope dominar a raiva e o dio, o DalaiLama comea investigando a natureza dessas emoes destrutivas.

- Em geral - explicou ele - h muitas espcies diferentes de emoes negativas ou aflitivas, como a presuno, a arrogncia, o cime, o desejo, a luxria, a intolerncia e assim por diante. Mas de todas essas, o dio e a raiva so considerados os maiores males por serem os obstculos de maior vulto ao desenvolvimento da compaixo e do al-

A SUPERAO DE OBSTCULOS

trusmo; e por destrurem nossa virtude e nossa serenidade mental.

"Quando pensamos na raiva, pode haver dois tipos. Um pode ser positivo. Isso se deveria principalmente nossa motivao. Pode haver alguma raiva que seja motivada pela compaixo ou por uma sensao de responsabilidade. Nos casos em que a raiva motivada pela compaixo, ela pode ser usada como um impulso ou um catalisador para um ato positivo. Nessas circunstncias, uma emoo humana como a raiva pode agir como uma fora para provocar a ao urgente. Ela cria um tipo de energia que permite a um indivduo agir com rapidez e deciso. Pode ser um poderoso fator de motivao. Logo, esse tipo de raiva pode s vezes ser positivo. Infelizmente, porm, muito embora esse tipo de raiva possa funcionar como um tipo de proteo e nos proporcionar alguma energia a mais, com freqncia essa energia tambm cega, de modo que no se sabe ao certo se ela acabar sendo construtiva ou destrutiva.

"Pois, apesar de em raras circunstncias alguns tipos de raiva poderem ser positivos, em geral, a raiva gera rancor e dio. E, quanto ao dio, ele nunca positivo. No gera absolutamente nenhum benefcio. sempre totalmente negativo.

"No podemos superar a raiva e o dio simplesmente suprimindo-os. Precisamos cultivar diligentemente os antdotos ao dio: a pacincia e a tolerncia. Seguindo o modelo de que falamos antes, a fim de sermos capazes de cultivar com xito a pacincia e a tolerncia, precisamos gerar entusiasmo, um forte desejo de atingir o objetivo.

A ARTE DA FELICIDADEA SUPERAO DE 03STCULOS

Quanto maior o entusiasmo, maior nossa capacidade paraquele mesmo instante, ele nos d)mina totalmente e des

suportar as dificuldades que encontraremos durante o pro-tri nossa paz mental. ?Nossa pre,~na de esprito desapa

cesso. Quando nos dedicamos prtica da pacincia e darece por completo. Quiando um ?dio ou raiva surge com

tolerncia, na realidade, o que est acontecendo um en-tanta intensidade, ele ssufoca a m'lhor parte do nosso c

volvimento num combate com o dio e a raiva. J que serebro, que a capacidade de dislnguir o certo do errado

trata de uma situao de combate, buscamos a vitria, masassim como as conseqincias a c_irto e a longo prazo dos

tambm temos de estar preparados para a possibilidadenossos atos. Nosso podier de discernimento torna-se total

de perder a batalha. Portanto, enquanto estamos envolvidosmente inoperante, sem Fpoder mais funcionar. quase como

no combate, no deveramos perder de vista o fato de que,se tivssemos enlouqueecido. Esse raiva e dio costumam

nesse processo, enfrentaremos muitos problemas. Devera-nos lanar num estado (de confuso, que s serve para tor

mos ter a capacidade de suportar essas agruras. Quem sainar muito mais graves inossos problemas e dificuldades.

vitorioso contra o dio e a raiva atravs de um processo

"Mesmo no nvel fsico, o cio produz uma transfor

to rduo um verdadeiro heri.mao fsica muito feias e desagrljdvel no indivduo. No

" com isso em mente que geramos esse forte entu-mesmo instante em qu(e surgem os fortes sentimentos de

siasmo. O entusiasmo resulta da descoberta dos efeitosraiva ou dio, por mais que a pes?oa tente simular ou ado

benficos da tolerncia e da pacincia bem como dos efei-tar uma postura digna, muito bvio que o rosto da ges

tos destrutivos e negativos da raiva e do dio, associada soa apresenta uma apairncia contorcida e repulsiva. Sua

reflexo sobre eles. E esse prprio ato, essa conscientiza-expresso muito desagradvel, e da pessoa emana uma

o em si, criar uma afinidade com os sentimentos de to-vibrao muito hostil. (Os outros podem perceber isso.

lerncia e pacincia alm de fazer com que tenhamos maisquase como se sentissem a pres?ao saindo do corpo da

cautela e cuidado diante de pensamentos irados e cheiosquela pessoa. Tanto assim que, Lao s os seres humanos

de dio. Geralmente, no nos incomodamos muito com aso capazes de sentir isso, at mesmo bichos, animais de

raiva ou dio, e o sentimento simplesmente aparece. Noestimao, procuram eviitar a pessoa naquele instante. Alm

entanto, uma vez que desenvolvamos uma atitude de cau-disso, quando uma pessoa nutre pensamentos rancorosos,

tela para com essas emoes, essa mesma atitude relutan-eles tendem a se acumiular dentr corpo. Desde que a pessoa tenha essa resistncia bsica no~ organismo, ll,,iver o potenci,il o" capacid,'icle n corpo para curar-se da enfermidade atravs da inecli,aco. I)ct nwsnut t~rtncr. desde drtE~ tc~ttl?ctrnos co,tl?erntettt~, c, tios tttctntettluttnos conscientes clo fato de dttedispontos desse dota nutruvtIhoso dct intelitzcia htoncna beta cont.) de tttnct cupacidcule de d(-~ent,olver determincao potra tts-lct ctn termos positivos, Uni certo sentido dispwytos dessctscttde mental bsica. 07tafra kttente, que deritct clct mossa percepo desse imenso potencial btonctno. Essa percepo pode atuar como uma espcie de mecanismo integrado cie nos permita lidar com qualquer dificuldade, no in1E.)Lta que situao estejamos enfrentando. sem perder a esferana nem afundar no dio a ns mesmos.

A ARTE DA FELICIDADE

Lembrar a ns mesmos as maravilhosas qualidades que compartilhamos com todos os seres humanos atua de modo a neutralizar o impulso de pensar que somos perversos ou que no temos mrito. Muitos tibetanos fazem dessa uma prtica diria de meditao. Talvez seja por esse motivo que na cultura tibetana o dio a si mesmo nunca se enraizou.

Quinta Parte

REFLEXES FINAIS

SOBRE COMO LEVAR

UMA VIDA ESPIRITUAL

Captulo 15

VALORES ESPIRITUAIS

ESSENCIAIS

i

i

I

i

A arte da felicidade tem muitos componentes. Como vimos, ela comea cota o desenvolvimento de uma compreenso das fontes mais verdadeiras da felicidade e de estabelecermos nossas prioridades na vida com base no cultivo dessas fontes. Isso envolve uma disciplina interior, um processo gradual de extirpar estados mentais destrutivos e substitu-los por estados mentais positivos, construtivos, como por exemplo a benevolncia, a tolerncia e o perdo. Ao identificar os fatores que levam a uma vida plena e satisfatria, conclumos com urna anlise do componente final: a espiritualidade.

3B1

A ARTE IDA FELICIDADE

Existe urna tendncia natural de associar a espiritualidade religio. A abordagem do Dalai-Lama para que alcancemos a felicidade foi forjada pelos seus anos de treinamento rigoroso como monge budista ordenado. Ele tambm considerado por muitos como um eminente estudioso do budismo. Paira muitos, porm, no sua compreenso de complexas questes filosficas que desperta maior interesse mas, sim, seu calor humano, seu humor. sua abordagem prtica da vida. Com efeito, ao longo das nossas conversas, sua qualidade bsica de ser humano parecia superar at mesmo seu papel primordial como monge budista. Apesar da cabea raspada e do extraordinrio hbito marrom-averrnelhado, apesar da sua posio como uma das figuras religiosas mais proeminentes no mundo, o tom das nossas conversas sempre foi simplesmente de um ser humano para com outro, no exame de problemas que afetam a todos ns.

Ao nos ;ajudar a entender o verdadeiro significado da espiritualidade, o Dalai-Lama comeou traando uma distino entre espiritualidade e religio.

- Creio ser essencial apreciar nosso potencial como seres humanos e reconhecer a importncia da transformao interior. Isso deveria ser realizado atravs daquilo que poderia ser chamado de processo de desenvolvimento mental. s vezes, chamo essa atividade de ter uma dimenso espiritual na vida.

"Pode haver dois nveis de espiritualidade. Um nvel est relacionado a nossas crenas religiosas. Neste mundo, h tanta gentte diferente, tantas disposies diferentes. Somos cinco bilhes de seres humanos; e, sob uni certo aspecto,

COMO LEVAR UNIA VIDA ESPIRITUAL

creio que precisamos de cinco bilhes de religies diferentes, tendo em vista a enorme variedade de disposies. Creio que cada indivduo deveria enveredar por um caminho espiritual que melhor se adequasse sua disposio mental, sua inclinao natural, ao seu temperamento, s suas crenas, famlia, formao cultural.

--ora, por exemplo, como sou monge budista, considero o budismo o mais conveniente. Para mim, conclu que o budismo o melhor. Mas isso no significa que o budismo seja o melhor para todo o mundo. Isso est claro. E categrico. Se eu acreditasse que o budismo era o melhor para todos, seria uma tolice, porque pessoas diferentes tm disposies mentais diferentes. Portanto, a variedade das pessoas exige uma variedade de religies. O objetivo da religio beneficiar as pessoas. E eu creio que, se tivssemos apenas uma religio, depois de algum tempo ela deixaria de beneficiar muita gente. Se tivssemos um restaurante, por exemplo, e nele s fosse servido um prato - dia aps dia, em todas as refeies - no lhe restariam muitos fregueses depois de algum tempo. As pessoas precisam e gostam de variedade na comida porque existem muitos paladares diferentes. Do mesmo modo, as religies destinam-se a nutrir o esprito humano. E creio que podemos aprender a celebrar essa diversidade em religies e desenvolver uma profunda apreciao da variedade das religies. Certas pessoas podem considerar que o judasmo, a tradio crist ou a tradio islmica a mais eficaz para elas. Por isso, devemos respeitar e apreciar o valor de todas a~ diferentes tradies religiosas importantes no mundo.

"Todas essas religies podem fazer uma contribuic efetiva para o bem da humanidade. Todas foram projetada

A ARTE DA FELICIDADE

para tornar o indivduo mais feliz; e o mundo, um lugar melhor. No entanto, para que a religio tenha um impacto em tornar o mundo um lugar melhor, creio ser importante que cada praticante siga sinceramente os ensinamentos daquela religio. Ele precisa incorporar os ensinamentos religiosos sua vida, onde quer que se encontre, para poder recorrer a eles como uma fonte de fora interior. E preciso adquirir uma compreenso mais profunda das idias da religio, no apenas num nvel intelectual roas com uma profundidade de sentimento, tornando-as parte da nossa experincia interior.

"Creio que deveria ser cultivado um profundo respeito por todas as diferentes tradies religiosas. Um motivo para respeitar essas outras tradies que todas elas podem fornecer uma estrutura tica que pode comandar nosso comportamento e ter efeitos positivos. Por exemplo, na tradio crist, uma crena eIn Deus pode proporcionar pessoa uma estrutura tica coerente e bem-definida pela qual ela pode pautar seu comportamento e seu estilo de vida. E ela pode ser uma abordagem poderosssima porque existe uma certa intimidade criada no nosso relacionamento com Deus; e o modo de demonstrar nosso amor por Deus, o Deus que nos criou, demonstrando amor e compaixo pelos seres humanos nossos semelhantes.

"Acredito que h muitas razes similares para respeitar outras tradies religiosas tambm. Naturalmente, todas as religies importantes proporcionaram enorme benefcio a milhes de seres humanos ao longo de muitos sculos no passado. E, mesmo neste exato momento, milhes de pessoas ainda se beneficiam, obtm algum tipo de ins-

334

COMO LEVAR UMA VIDA ESPIRITUAL

pirao, dessas diferentes tradies religiosas. Isso est claro. Tambm no futuro essas diferentes tradies religiosas oferecero inspirao a milhes nas geraes que esto por vir. Essa a verdade. Portanto, importantssimo perceber essa realidade e respeitar outras tradies.

"Para mim, a nica forma de reforar esse respeito mtuo atravs do contato mais ntimo entre os fiis das diferentes religies - contato pessoal. Ao longo dos ltimos anos envidei esforos para me reunir e dialogar, por exemplo, com a comunidade crist e com a comunidade judaica; e creio que alguns resultados realmente positivos derivaram disso. Por meio desse tipo de contato mais ntimo, podemos tomar conhecimento das contribuies valiosas que essas religies fizeram humanidade e descobrir aspectos teis das outras tradies, com os quais podemos aprender. Talvez at descubramos mtodos e tcnicas que poderamos adotar na nossa prpria prtica.

"Portanto, essencial que desenvolvamos laos mais firmes entre as vrias religies. Com isso, poderemos fazer um esforo comum em prol da humanidade. So tantas as coisas que dividem a humanidade... tantos problemas no mundo. A religio deveria ser um remdio destinado a ajudar a reduzir o conflito e o sofrimento no mundo, no outra fonte de conflito.

"Costumamos ouvir as pessoas dizerem que todos os seres humanos so iguais. Com isso queremos dizer que todos tm o bvio desejo da felicidade. Cada um tem o direito de ser uma pessoa feliz. E todos tm o direito de superar o sofrimento. Portanto, se algum extrai felicidade ou benefcios de uma tradio religiosa em particular, torna-se

335

A ARTE DA FELICIDADE

importante respeitar os direitos dos outros. Devemos, por isso, aprender a respeitar todas as principais tradies religiosas. Isso evidente."

Durante a semana de palestras do Dalai-Lama em Tucson, o esprito de respeito mtuo era mais do que uma idia desejvel. Encontravam-se na platia integrantes de muitas religies diferentes, entre eles includa uma boa representao do clero cristo. Apesar das diferenas entre as tradies, o recinto estava permeado por uma atmosfera de paz e harmonia. Isso era palpvel. Havia tambm um esprito de intercmbio, e entre os no-budistas ali presentes no era pequena a curiosidade quanto prtica espiritual diria do Dalai-Lama. Essa curiosidade levou um ouvinte a uma pergunta.

- Quer sejamos budistas, quer pertenamos a uma tradio diferente, prticas tais como a orao parecem receber nfase. Por que a orao importante para uma vida espiritual?

- Creio que a orao , principalmente, um simples lembrete dirio dos nossos princpios e convices mais arraigados - respondeu o Dalai-Lama. - Eu mesmo repito alguns versos budistas todas as manhs. Os versos podem parecer oraes, mas na realidade so lembretes. Lembretes de como falar com os outros, de como lidar com as pessoas, de como lidar com problemas na vida diria, esse tipo de coisa. Portanto, na maior parte do tempo, minha prtica envolve lembretes: reexaminar a importncia da compaixo, do perdo, tudo isso. E, naturalmente, ela tambm inclui

COMO LEVAR UMA VIDA ESPIRITUAL

certas meditaes budistas quanto natureza da realidade, bem como certas prticas de visualizao. Por isso, na minha prtica diria, nas minhas prprias oraes dirias, se no me apressar, posso levar umas quatro horas. bastante tempo.

A idia de passar quatro horas por dia em orao propiciou a pergunta de outro participante.

- Sou me de duas crianas pequenas e trabalho fora. Tenho pouqussimo tempo livre. Para algum que seja realmente ocupado, como que a pessoa consegue tempo para esse tipo de orao e de prtica de meditao?

- Mesmo no meu caso, se eu quiser me queixar, sempre posso reclamar da falta de tempo - comentou o DalaiLama. - Sou muito ocupado. No entanto, se fizermos um esforo, sempre poderemos encontrar algum tempo, digamos, no incio da manh. E depois, creio que h certos perodos, como os fins de semana. Podemos sacrificar parte da nossa diverso. - Ele deu uma risada. - Portanto, no mnimo, digamos uma meia hora por dia. Ou, se nos esforarmos, se tentarmos com afinco, talvez consigamos encontrar trinta minutos pela manh e trinta minutos noite. Se realmente nos dedicarmos a pensar nisso, talvez seja possvel descobrir um modo de arrumar um tempinho.

"Porm, se pensarmos a srio sobre o verdadeiro significado das prticas espirituais, veremos que elas esto associadas ao desenvolvimento e treinamento do nosso estado mental, das atitudes, do estado e do bem-estar emocional e psicolgico. No deveramos restringir nosso entendimento da prtica espiritual a termos de algumas atividades fsicas ou atividades verbais, como recitar oraes ou can-

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tar hinos. Se nossa noo da prtica espiritual se limitar apenas a essas atividades, naturalmente, vamos precisar de uma hora especfica, um perodo marcado para realizar essa prtica - porque no podemos sair por a cumprindo as tarefas do dia-a-dia, como cozinhar entre outras, enquanto recitamos mantras. Isso poderia ser perfeitamente irritante para as pessoas ao nosso redor. No entanto, se entendermos a prtica espiritual no seu sentido verdadeiro, poderemos usar todas as vinte e quatro horas do dia para nossa prtica. A verdadeira espiritualidade uma atitude mental que se pode praticar a qualquer hora. Por exemplo, se nos encontramos numa situao na qual poderamos nos sentir tentados a insultar algum, imediatamente tomamos precaues e nos impedimos de agir dessa forma. De modo semelhante, se encontrarmos uma situao na qual talvez percamos as estribeiras, ficamos alerta imediatamente e dizemos a ns mesmos que no, que essa no a atitude adequada. Na realidade, isso prtica espiritual. A partir dessa perspectiva, sempre teremos tempo.

"Isso me lembra um dos mestres tibetanos Kadampa, chamado Potowa, que dizia que, para um praticante da meditao que tenha um certo grau de percepo e estabilidade interior, todos os acontecimentos, todas as experincias s quais estamos expostos nos chegam como uma espcie de ensinamento. Uma experincia de aprendizado. Isso para mim muito verdadeiro.

"Portanto, a partir dessa perspectiva, mesmo quando somos expostos a, digamos, cenas perturbadoras de violncia e sexo, como na televiso e nos filmes, existe uma possibilidade de encar-las como uma conscincia prvia dos efeitos nocivos de ir aos limites. Desse modo, em vez de

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nos sentirmos totalmente dominados pela viso, podemos considerar essas cenas como um tipo de indicador da natureza prejudicial das emoes negativas desenfreadas algo de que podemos extrair lies."

Extrair lies de velhas reprises de lhe A-Team ou de Melrose Place uma coisa. Como budista praticante, porm, o regime espiritual pessoal do Dalai-Lama sem dvida inclui caractersticas exclusivas do caminho budista. Ao descrever sua prtica diria, por exemplo, ele mencionou que ela inclua meditaes budistas sobre a natureza da realidade, bem como certas prticas de visualizao. Embora no contexto dessa conversa ele mencionasse essas prticas somente de passagem, ao longo dos anos tive oportunidade de ouvi-lo debater esses tpicos exaustivamente suas palestras representaram algumas das mais complexas anlises que j ouvi sobre qualquer assunto. Suas palestras sobre a natureza da realidade eram repletas de argumentos e anlises labirintinas, de natureza filosfica; suas descries de visualizaes tntricas eram inconcebivelmente intricadas e sofisticadas - meditaes e visualizaes cujo objetivo parecia ser o de construir dentro da nossa imaginao uma espcie de atlas hologrfico do universo. Ele passara a vida inteira imerso no estudo e na prtica dessas meditaes budistas. Foi com isso em mente, com conhecimento da monumental abrangncia dos seus esforos, que lhe fiz a seguinte pergunta.

- O senhor poderia descrever o benefcio ou impacto palpvel que essas prticas espirituais tiveram no dia-a-dia da sua vida?

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O Dalai-Lama permaneceu calado por alguns momentos e depois respondeu, em voz baixa.

- Apesar de minha experincia poder ser nfima, uma afirmao que posso fazer com segurana que, em decorrncia do treinamento budista, eu sinto que minha mente se tornou muito mais calma. Isso inquestionvel. Embora a mudana tenha ocorrido aos poucos, talvez de centmetro em centmetro - deu uma risada - creio que houve uma transformao na minha atitude diante de mim mesmo e de outros. difcil identificar as causas precisas dessa mudana, mas creio que ela tenha sido influenciada por uma percepo, no uma percepo plena, mas um certo sentimento ou noo da natureza fundamental e oculta da realidade, e tambm por meio da contemplao de temas tais como a impermanncia, nossa natureza sofredora e o valor da compaixo e do altrusmo.

"Portanto, por exemplo, mesmo quando penso nos comunistas chineses que infligiram um mal enorme a alguns tibetanos, em virtude da minha formao budista, sinto uma certa compaixo at mesmo pelo torturador, porque compreendo que o torturador foi de fato coagido por outras foras negativas. Por causa desses fatores e dos meus votos e compromissos de Bodhisattva, mesmo que uma pessoa tenha cometido atrocidades, eu simplesmente no consigo sentir ou pensar que, em decorrncia dessas atrocidades, ela deva passar por acontecimentos negativos ou no deva ter um instante de felicidade*. O voto de Bodhisattva

No voto do Bodhisattva, a pessoa que se submete ao treinamento espiritual afirma sua inteno de se tornar Bodhisattva. Um Bodhisattva.

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me ajudou a desenvolver essa atitude. Foi muito til, e naturalmente eu amo esse voto.

"Isso me lembra um dos nossos principais mestres de canto que est no mosteiro Namgyal. Ele esteve em prises chinesas como prisioneiro poltico e campos de trabalhos forados durante vinte anos. Uma vez eu lhe perguntei qual havia sido a situao mais difcil que ele enfrentou quando estava preso. Surpreendentemente, ele disse que para ele o maior perigo era o de perder a compaixo pelos chineses!

"E so muitas as histrias semelhantes. Por exemplo, h trs dias conheci um monge que passou muitos anos em prises chinesas. Ele me disse que estava com vinte e quatro anos na poca da insurreio tibetana de 1959. Naquela poca, ele se juntou s foras tibetanas em Norbulinga. Foi capturado pelos chineses e encarcerado com trs irmos que foram mortos l. Outros dois irmos tambm foram mortos. Depois, seus pais morreram num campo de trabalhos forados. No entanto, ele me disse que, na priso, refletiu sobre sua vida at a ocasio e concluiu que, muito embora tivesse passado a vida inteira como monge no Mosteiro Drepung, at aquele instante sua impresso era a de que no era um bom monge. Sentia que havia sido um monge obtuso. Naquele momento, fez um voto de que, agora que estava preso, tentaria ser um monge realmente

traduzido literalmente como o "guerreiro que desperta", algum que, por amor e compaixo, alcanou uma percepo de Bodhicitta, um es-

tado mental caracterizado pela aspirao espontnea e genuna de alcanar a plena Iluminao a fim de poder beneficiar todos os seres.

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bom. Assim, em conseqncia das suas prticas budistas, em virtude do treinamento da mente, ele conseguiu permanecer muito feliz em termos mentais, mesmo quando sofria dor fsica. Mesmo quando foi submetido a torturas e graves espancamentos, ele pde sobreviver e ainda se sentir feliz por encarar a provao como uma purificao do seu carma negativo.

"Portanto, com esses exemplos, podemos realmente apreciar o valor de incorporar prticas espirituais nossa vida diria."

Foi assim que o Dalai-Lama apresentou o ltimo ingrediente de uma vida mais feliz - a dimenso espiritual. Atravs dos ensinamentos do Buda, o Dalai-Lama e muitos outros encontraram uma estrutura significativa que lhes permite suportar e at superar a dor e o sofrimento que a vida s vezes traz. E, como sugere o Dalai-Lama, cada uma das principais tradies religiosas do mundo pode oferecer as mesmas oportunidades para ajudar a pessoa a alcanar uma vida mais feliz. O poder da f, gerada em enorme escala por essas tradies religiosas, est entremeado na vida de milhes. Essa profunda f religiosa foi o sustento de uma infinidade de pessoas durante tempos difceis. s vezes, ela atua com discrio, em pequenas realizaes; s vezes, em profundas experincias transformadoras. Cada um de ns, em algum ponto na nossa vida, sem dvida testemunhou a atuao desse poder em algum membro da famlia, algum amigo ou conhecido. De vez em quando, exemplos do poder de sustentao da f acabam nas primeiras pginas dos jornais. Muitos esto a par, por exemplo, da provao de

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Terry Anderson, um homem comum que de repente foi seqestrado de uma rua de Beirute numa manh em 1985. jogaram um cobertor por cima dele; empurraram-no para dentro de um carro; e ao longo dos sete anos seguintes ele foi refm do Hezbollah, um grupo de extremistas fundamentalistas islmicos. At 1991, ele ficou preso em pequenas celas e pores midos e imundos; passou longos perodos acorrentado e de olhos vendados; suportou espancamentos constantes e condies terrveis. Quando finalmente foi libertado, o mundo voltou os olhos para ele e encontrou um homem felicssimo por ser devolvido famlia e vida, mas com um dio e um rancor surpreendentemente baixos pelos seus seqestradores. Quando os reprteres lhe perguntaram qual era a fonte da sua fora extraordinria, ele identificou a f e a orao como fatores significativos que o ajudaram a suportar aquela provao.

O mundo est cheio de exemplos semelhantes de como a f religiosa proporciona ajuda concreta em tempos difceis. E extensas pesquisas recentes parecem confirmar o fato de que a f religiosa pode contribuir substancialmente para uma vida mais feliz. As pesquisas realizadas por pesquisadores independentes e por organizaes especializadas (como o Gallup) concluram que as pessoas religiosas relatam sentir felicidade e satisfao com a vida com freqncia muito maior do que as pessoas no-religiosas. Estudos revelaram que a f no s um indicador de que as pessoas vo relatar sentimentos de bem-estar, mas tambm que uma forte f religiosa parece ajudar indivduos a lidar com maior eficcia com questes tais como o envelhecimento, a atitude diante de crises pessoais e acontecimen-

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tos traumticos. Alm disso, estatsticas revelam que famlias daquelas pessoas com forte crena religiosa costumam apresentar ndices mais baixos de delinqncia, de abuso do lcool e drogas, e de casamentos desfeitos. Existem algumas provas que sugeririam que a f pode ser benfica para a sade fsica das pessoas - mesmo daquelas com enfermidades graves. Houve, com efeito, literalmente centenas de estudos cientficos e epidemiolgicos que estabeleceram uma ligao entre a forte f religiosa, menores ndices de mortalidade e melhor sade. Num estudo, mulheres idosas com firmes crenas religiosas conseguiram caminhar uma distncia maior depois de cirurgia para corrigir a fratura da bacia do que aquelas com menos convico religiosa; e tambm ficaram menos deprimidas depois da cirurgia. Um estudo realizado por Ronna Casar Harris e Mary Amanda Dew no Medical Center da University of Pittsburgh concluiu que pacientes de transplante de corao com firmes crenas religiosas apresentam menor dificuldade para lidar com as prescries mdicas ps-operatrias e revelam melhor sade emocional e fsica a longo prazo. Em outro estudo, realizado pelo dr. Thomas Oxman e seus colaboradores na Dartmouth Medical School, descobriu-se que os pacientes com mais de cinqenta e cinco anos de idade submetidos a cirurgia de corao para corrigir doena coronanana ou algum problema com as vlvulas do corao que haviam procurado amparo nas suas crenas religiosas tinham uma probabilidade trs vezes maior de sobreviver do que os que no procuraram esse amparo.

As vantagens de uma forte f religiosa s vezes se manifestam como um produto direto de certas doutrinas e cren-

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as especficas a uma tradio em especial. Muitos budistas, por exemplo, encontram ajuda para suportar seu sofrimento em decorrncia da sua firme crena na doutrina do carta. Da mesma forma, aqueles que tm uma f inabalvel em Deus costumam conseguir resistir a severas provaes graas sua crena num Deus amoroso e onisciente - um Deus cujos desgnios podem nos ser obscuros no momento, mas que, na Sua sabedoria, acabar revelando Seu amor por ns. Com f nos ensinamentos da Bblia, essas pessoas podem extrair conforto de versos tais como Romanos 8:28: "E sabemos que todas as coisas contribuem juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que so chamados por Seu decreto."

Embora algumas das recompensas da f possam ser baseadas em doutrinas especficas, exclusivas a uma nica tradio religiosa, existem outras caractersticas fortalecedoras na vida espiritual que so comuns a todas as religies. O envolvimento com qualquer grupo religioso pode gerar uma sensao de identificao com os pares, de laos de comunidade, um vnculo de interesse pelos companheiros de f. Ele oferece um espao significativo no qual podemos entrar em contato e nos relacionar com os outros. E nos proporciona um sentimento de aceitao. Crenas religiosas firmemente enraizadas podem nos dar um profundo sentido de objetivo, conferindo significado nossa vida. Essas crenas podem fornecer esperana diante da adversidade, do sofrimento e da morte. Podem nos ajudar a adotar uma perspectiva eterna que nos permita sair de dentro de ns mesmos quando estivermos dominados pelos problemas dirios da vida.

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Apesar de todos esses benefcios em potencial estarem disponveis para aqueles que resolvam praticar os ensinamentos de uma religio estabelecida, est claro que ter uma crena religiosa por si s no nenhuma garantia de felicidade e paz. Por exemplo, no mesmo instante em que Terry Anderson estava sentado acorrentado numa cela, demonstrando as melhores qualidades da f religiosa, bem do lado de fora da cela imperavam a violncia e o dio em massa, numa demonstrao das piores facetas da f religiosa. Durante anos no Lbano, vrias seitas de muulmanos estiveram em guerra com os cristos e os judeus, guerra alimentada pelo dio violento de todas as partes e que resultou em atrocidades inominveis cometidas em nome da f. uma velha histria, qu infelizmente j se repetiu muitas vezes ao longo dos tempos e que lamentavelmente continua a se repetir no mundo moderno.

Em conseqncia desse potencial para gerar a dissenso e o dio, fcil perder a f nas instituies religiosas. Isso levou algumas figuras religiosas, tais como o DalaiLama, a tentar isolar aqueles elementos de uma vida espiritual que possam ser universalmente aplicados a qualquer indivduo a fim de propiciar sua felicidade, no importa qual seja sua tradio religiosa ou mesmo se essa pessoa acredita em religio.

Desse modo, com um tom de total convico, o Dalai-Lama concluiu sua anlise com sua viso de uma vida verdadeiramente espiritual.

- Portanto, quando falamos em ter na nossa vida uma dimenso espiritual, j identificamos nossas crenas religio-

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sas como um nvel de espiritualidade. Agora, com relao religio, se acreditarmos em qualquer religio, isso bom. Porm, mesmo sem uma crena religiosa, ainda podemos nos arranjar. Em alguns casos, podemos nos sair ainda melhor. Mas esse nosso prprio direito individual. Se quisermos acreditar, timo! Se no quisermos, tudo bem. que existe um outro nvel de espiritualidade. o que chamo de espiritualidade bsica - qualidades humanas fundamentais de bondade, benevolncia, compaixo, interesse pelo outro. Quer sejamos crentes, quer no sejamos, esse tipo de espiritualidade essencial. Eu particularmente considero esse segundo nvel de espiritualidade mais importante do que o primeiro, porque, por mais maravilhosa que seja uma religio especfica, ainda assim ela s ser aceita por um nmero limitado de seres humanos, somente uma parte da humanidade. No entanto, enquanto formos seres humanos, enquanto formos membros da famlia humana, todos ns precisamos desses valores espirituais bsicos. Sem eles, a existncia humana difcil, muito rida. Resultado, nenhum de ns consegue ser uma pessoa feliz, toda a nossa famlia sofre com isso e a sociedade acaba ficando mais perturbada. Logo, torna-se claro que cultivar valores espirituais bsicos dessa natureza passa a ser crucial.

"No esforo para cultivar esses valores espirituais bsicos, creio que precisamos nos lembrar de que, dos talvez cinco bilhes de seres humanos no planeta, pode ser que um bilho ou dois acreditem em religio de modo sincero e genuno. Naturalmente, quando me refiro a crentes sinceros, no estou incluindo aquelas pessoas que simplesmente dizem, por exemplo, que so crists principalmente porque

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seus antecedentes familiares so cristos, mas que no diaa-dia podem no levar muito em considerao a f crist ou mesmo pratic-la. Portanto, excludas essas pessoas, creio que talvez haja apenas por volta de um bilho que sinceramente praticam sua religio. Isso quer dizer que quatro bilhes, a maioria das pessoas na terra, no so crentes. Logo, devemos descobrir um modo de tentar melhorar a vida para essa maioria, os quatro bilhes que no esto envolvidos com alguma religio especfica - modos para ajud-los a ser bons seres humanos, providos de moral, sem recorrer a nenhuma religio. Sob esse aspecto, creio que a educao de importncia crucial: ela pode instilar nas pessoas uma idia de que a compaixo e a benevolncia entre outras so as qualidades positivas bsicas dos seres humanos, no apenas temas religiosos. Creio que anteriormente falamos em detalhe sobre a extrema importncia do calor humano, do afeto e da compaixo para a sade fsica, a felicidade e a paz de esprito das pessoas. Esta uma questo muito prtica. No se trata de teoria religiosa, nem de especulao filosfica. um tema importantssimo. E para mim ele na realidade a essncia de todos os ensinamentos religiosos das diversas tradies. No entanto, ele continua tendo a mesma importnca crucial para aqueles que preferem no seguir nenhuma religio especfica. Quanto a essas pessoas, creio que podemos trein-las e ressaltar para elas que no h problema en no ter religio, mas que preciso ser um bom ser humano, um ser humano sensvel, com uma noo de responsablidade e compromisso por um mundo melhor e mais feliz.

"Em geral, possvel indicar nosso estilo de vida religioso ou espiritual aravs de meios exteriores, tais como

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o uso de certos trajes, a construo de um altar ou santurio na nossa casa, o hbito de recitar ou entoar oraes e assim por diante. H meios para demonstrar isso externamente. Porm, essas prticas ou atividades so secundrias nossa conduo de um modo de vida realmente espiritual, sustentado por valores espirituais bsicos, porque possvel que todas essas atividades religiosas exteriores ainda coexistam numa pessoa que abriga um estado mental muito negativo. J a verdadeira espiritualidade torna a pessoa mais calma, mais feliz, mais tranqila.

"Todos os estados mentais virtuosos - a compaixo, a tolerncia,, o perdo, o interesse pelo outro e assim por diante -, todas essas qualidades mentais so o autntico darma, ou genunas qualidades espirituais, porque todas essas qualidades mentais internas no conseguem coexistir com rancores ou estados mentais negativos.

"Ora, dedicar-se ao treinamento ou a um mtodo de produzir disciplina interior na nossa mente a essncia da vida religiosa, uma disciplina interior que tem o propsito de cultivar esses estados mentais positivos. Assim, o fato de levarmos ou no uma vida espiritual depende de termos tido sucesso em produzir esse estado mental disciplinado e suavizado, e de termos expressado esse estado mental nos nossos atos dirios."

0 Dalai-Lama deveria comparecer a uma pequena recepo oferecida em homenagem a um grupo de patrocinadores que tinham dado forte apoio causa tibetana. Do lado de fora do salo da recepo, formara-se uma grande mul-

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seus P1, _ . r

:E DA FELICIDADE

do seu aparecimento. Na hora em

-)essoas j estavam apinhadas. Entre os

omem que havia percebido umas duas

ente a semana. Era difcil determinar sua

,a calculado que ele teria seus vinte e pou

cos .,ata e poucos anos. Era alto e muito magro.

Embora sua aparncia desgrenhada fosse extraordinria,

elehavia chamado minha ateno pela sua expresso:

uma expresso que eu via com freqncia entre os meus

pacientes - ansiedade, depresso profunda, dor. E achei

terpercebido leves movimentos repetitivos involuntrios

namusculatura em volta da sua boca. "Discinesia tardia",

diagnostiquei em silncio, uma condio neurolgica pro

vocada pela ingesto crnica de medicao antipsictica.

"Pobre coitado", pensei na hora, e logo me esqueci dele.

Quando o Dalai-Lama chegou, a multido se adensou,

num movimento para cumpriment-lo. O pessoal da segu

rana, a maioria de voluntrios, fazia enorme esforo para

conter o avano da massa de pessoas e abrir caminho at

o recinto da recepo. O homem transtornado que eu tinha

visto antes, agora com uma expresso meio perplexa, foi

empurrado pela multido e forado at a beira da clareira

aberta pela equipe de segurana. Quando ia passando,