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MISSÃO ÁSTER Brasil se prepara para enviar sonda a asteroide triplo REVISTA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA SBPC NÚMERO 298 | VOLUME 50 | NOVEMBRO 2012 | R$ 10,95 SOBRE LETRAS E AMEBAS Palavras comportam-se como células que englobam partículas GANHAR FÔLEGO Campanhas com mensagens positivas têm mais eficácia no combate ao fumo FALHA NO DEBATE AMBIENTAL Poder sobre recursos naturais não costuma ser mencionado

A arte nativa de uma terra distante

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Antropóloga analisa a projeção internacional da arte aborígene

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Page 1: A arte nativa de uma terra distante

MISSÃO ÁSTERBrasil se prepara para enviar

sonda a asteroide triplo

REVISTA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA SBPC NÚMERO 298 | VOLUME 50 | NOVEMBRO 2012 | R$ 10,95

SOBRE LETRAS E AMEBASPalavras comportam-secomo células que englobam partículas

GANHAR FÔLEGOCampanhas com

mensagens positivas têm mais efi cácia no

combate ao fumo

FALHA NO DEBATE AMBIENTALPoder sobre recursos naturais não costuma ser mencionado

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antropologia EM DIAEM DIA

A ARTE NATIVA DE UMA TERRA DISTANTEPesquisadora analisa projeção internacional de obras aborígenes

Semelhança notável entre Brasil e Austrália? Sim: um passado colo-

nial violento, no qual populações na-tivas foram exterminadas ou relega- das à margem da sociedade. A histó- ria dos aborígenes foi e tem sido incle-mente, mas os povos originários da terra do canguru encontraram uma forma interessante de se inserir no mundo dos ‘brancos’. Superando um quase extermínio, as etnias que ainda

vivem nos rincões do deserto austra-liano, ou que já habitam centros urba-nos, mostram ao mundo a força de sua arte – em cores vibrantes e ima-gens figurativas ou abstratas que, nas últimas décadas, vêm conquistando espaço nos mais refinados circuitos da arte contemporânea.

A estética aborígene tem, hoje, lugar garantido na Christie’s e na Sotheby’s – as duas mais sofisticadas casas de leilão dedicadas ao merca- do milionário da arte. E também no Musée du Quai Branly, em Paris, on- de diversos espaços exibem inter- venções permanentes idealizadas por artistas da etnia tradicional da

Austrália. No Museu de Arte Mo- derna de Nova York, na Bienal de Ve-neza, em diversos locais da Europa e no Japão são comuns exposições de aborígenes da Austrália. “Ter nos-sa arte em museu de branco é como mostrar ao branco a força de nosso povo”, dizem os anciãos do deserto.

Mas, para um povo outrora opri- mido e hoje marginalizado, como explicar tamanha projeção artística internacional? Quem se debruçou sobre o tema foi a antropóloga Ilana Goldstein, que, na Universidade Es-tadual de Campinas (Unicamp), de-dicou seu doutorado ao entendi- mento do processo que levou os abo-

Abaixo, obra Kungkarrakalpa, de Wingu Tingima (acrílico sobre tela, 2006). À direita, tela Ngalyipi Jukurrpa, de Liddy Napanangka Walker.

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rígenes da invisibilidade aos holofo- tes da arte contemporânea.

RENASCIMENTO ABORÍGENE Foram quatro meses de imersão na Austrá- lia, em 2010. “Descobri lá um siste- ma incrível de produção, divulga- ção e comercialização da arte nati- va”, conta a antropóloga. Em 1971, o professor de artes plásticas Geoff Bardon visitou um pequeno povoado e se encantou com as belas pinturas ritualísticas que mulheres e homens faziam sobre seus corpos e na areia. E sugeriu: por que não transferir es- sas representações pictóricas para um suporte durável? Apresentou aos aborígenes, então, telas e tinta acrílica.

Desde então, dezenas de coopera-tivas artísticas indígenas foram for-madas por toda a Austrália. São geri-das pelas próprias lideranças comu-nitárias, que – contando com fun- cionários ‘brancos’ contratados – ad-ministram atividades como forneci-mento de material, revenda dos tra-balhos, organização de exposições e

repasses de verba que o governo aus-traliano destina aos projetos. “É um modelo híbrido entre livre mercado e políticas públicas de fomento à produção artística”, explica Golds-tein. Há editais, prêmios e linhas de financiamento para garantir a pre- servação das artes nativas austra- lianas. Quanto aos museus do país, eles não apenas garantem espaço para as artes tradicionais como tam-bém contratam, muito frequente-mente, curadores de ascendência indígena. “Já que o contato parece inevitável, pelo menos os aboríge- nes se inserem na sociedade e no mercado a partir de uma atividade que faz sentido para eles.”

GÊNESE DO CONTEMPORÂNEO Na arte dos aborígenes há uma variedade de estilos e diferentes tendências. “Em muitos casos lembram o modernis- mo, o que, em parte, pode explicar o sucesso de mercado”, observa Golds-tein. Segundo ela, há variados mo- vimentos artísticos aborígenes, en- gajados em pintura abstrata, figura- tiva, retratos de paisagem em aqua- rela, além de esculturas, gravuras e peças de fibra trançada. Cada etnia tem sua própria estética. Os melhores artistas costumam ser os mais ve- lhos, pois a pintura tradicional requer

muita sabedoria. São representadas suas origens míticas e o conhecimento ancestral, em cenas que, aos olhos dos ‘brancos’, sugerem imagens oníricas. As pinturas, raramente assinadas, po-dem ser feitas a várias mãos. Membros da família costumam se envolver na tarefa – mas, para o mercado, apenas o artista de maior fama é apontado como autor. Pintam enquanto entoam canções, narram seus mitos, passam adiante regras morais e histórias de suas famílias e de seu povo.

“À medida que veio o sucesso co-mercial e de crítica, certos símbolos sagrados foram sendo progressiva-mente omitidos, mas muitos elemen-tos da iconografia tradicional se man-têm, como os círculos concêntricos que representam fontes de água ou as pegadas de canguru”, conta a pes-quisadora. Eles sabem que aquela arte é para os ‘brancos’. E, mesmo assim, encontraram um equilíbrio entre as demandas do mercado da arte e a prática de rememorar ou re-criar seus símbolos, canções e his- tórias tradicionais.

O mercado, aliás, tem sido promis-sor para os aborígenes da Austrália.

Artistas aborígenes da Austrália pintando de forma colaborativa

FOTO WARLUKURLANGU ARTISTS ABORIGINAL CORPORATION

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EM DIAEM DIA

Quadros de um artista jovem bem po-dem valer US$ 5 mil. Obras de Emily Kame Kngwarreye (1910-1996), uma artista anciã, valem de US$ 80 mil a US$ 100 mil (ela começou a pintar aos 80 anos, e o fez até o ano de sua morte, aos 86). Já trabalhos de Clif- ford Possum Tjapaltjarri (1932-2002) atingiram cifras na casa dos US$ 2 mi-lhões. “Os povos indígenas da Austrália têm na produção artísti- ca, hoje, sua principal fonte de ren- da, e utilizam-na como arma para conquistar visibilidade em uma na- ção cujo passado colonial é dos mais terríveis”, diz Goldstein.

ESPÍRITO ANCESTRAL Mesmo com obras valoradas por sedutoras cifras, artistas tradicionais da Austrália rara-mente enriquecem. O retorno finan-ceiro da arte não é para um só indiví-duo; mas sim repartido – como a car- ne de uma caçada – pelas redes de parentesco da comunidade. Golds- tein estudou duas delas: Yuendumu (no deserto central) e Yirrkala (ao nor-te do país). Na média anual, a primei- ra fatura US$ 3 milhões; a segunda, nada menos que US$ 5 milhões. Com

o saldo constroem novas dependên- cias para as cooperativas, adquirem bens de consumo ou medicamentos. “Em Yuendumu, parte da renda foi para construir uma clínica de hemo- diálise”, diz Goldstein. Hemodiáli- se? Explica-se: parte considerável da população aborígene é acometida por problemas renais. Por milhares de anos, esses povos se alimenta- vam da caça e raízes nativas. Hoje, consomem comida ‘civilizada’ – ham-búrguer, refrigerante e outros pro- dutos industrializados. “Os pro- blemas renais são reflexo do diabe- tes, cuja incidência, nos aborígenes australianos, está entre as mais ele- vadas do mundo”, preocupa-se a antropóloga.

NATIVISMO À BRASILEIRA Em terras tupiniquins, estamos habituados à ideia de arte nativa como artesanato – isto é, peças não assinadas produ- zidas em série, vendidas a preços módicos e, em geral, entendidas co- mo ‘lembrancinhas’ para turistas. Mas, para Goldstein, as etnias bra- sileiras guardam imenso potencial artístico, ainda que faltem, aqui, po-

líticas públicas capazes de ampliar a circulação e a comercialização de suas criações. “Nossos povos indí- genas têm uma produção artística maravilhosa”, diz a pesquisadora. “O que falta é divulgar, adaptar supor- tes e criar mercados.”

Os mbengokres (vulgarmente co-nhecidos como caiapós) têm uma ar- te plumária das mais refinadas; os caxinauás fazem pinturas corporais interessantíssimas; os waujás fa- bricam cerâmicas e máscaras de in-dizível beleza; entre vários outros exemplos. “O Brasil tem mais po- vos tradicionais que a Austrália, uma diversidade cultural riquíssima que poderia, talvez, beneficiá-los se fos- se integrada ao circuito da arte”, diz. “É um privilégio termos tantas tra- dições aqui.”

HENRIQUE KUGLER | CIÊNCIA HOJE | RJ

Mosaico feito por Michael Jagamarra Nelson, em frente ao Novo Parlamento, em Camberra, na Austrália

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