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A BESTA DE MANÉ JOSÉ

A BESTA DE MANÉ JOSÉ - perse.com.br · O dia ainda não tinha amanhecido e, como de rotina, fui ... lhada pelo sereno da noite e exalava cheiro fresco e agradável. ... Aleluia,

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A BESTA DE MANÉ JOSÉ

1.ª edição

Giusone Ferreira Rodrigues

A BESTA DE MANÉ JOSÉ

Esta obra é uma publicação da

Editora Livronovo Ltda.CNPJ 10.519.646/0001-33www.editoralivronovo.com.br© 2011. São Paulo, SP Impresso no Brasil. Printed in Brazil.

Créditos

Editor-responsávelZeca Martins

Controle editorialRaquel Benchimol (coordenadora)

Projeto gráfico e diagramaçãoRafael Molotievschi

CapaZeca Martins

RevisãoRaquel Benchimol (coordenadora)

ISBN – 978-85-62426-85-8

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livropoderá ser copiada ou reproduzida por qualquer meio impresso,

eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expressoconsentimento dos editores.

Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores, ilustradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais responsáveis por trans-formar boas ideias em realidade e trazê-las até você.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

R696r

Rodrigues, Giusone Ferreira

A besta de Mané José / Giusone Ferreira Rodrigues -- São Paulo: Livronovo, 2010.

1. Histórias. 2. Crônicas. I. Título

CDD – 306

À minha esposa:Cleodomira Guedes Rodrigues

Aos meus filhos:Arquimedes, Giulson, Miraídes e Sandra.

A meus netos:Arthur, Gabriel, Aimée, Lívia, Tayná, Marina e Hannah.

A meu irmão Salatiel, pela incomensurável colaboração na publicação deste livro.

SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................ 9

Uma manhã memorável ............................................................ 11

Quem fora Mané José ................................................................ 19

Uma expectativa desgastante .................................................... 31

A comunidade dos urubus canibais ........................................ 37

Bata, antes de entrar .................................................................. 41

A morte de Alão ....................................................................... 45

Os ciganos .................................................................................... 53

A doença de padre Bento ......................................................... 63

A vidente ...................................................................................... 71

A desculpa de Seu Bôni ............................................................ 77

A orfandade de Baronesa .......................................................... 83

A visita de Seu Bôni .................................................................. 93

O susto de Manoel ..................................................................... 101

A festa do padroeiro .................................................................. 109

Novo Surto de Ciganos.............................................................. 121

A noite da agonia ....................................................................... 129

Giusone Ferreira Rodrigues8

O Caraçá ....................................................................................... 137

A astúcia de Diogo ..................................................................... 147

As despedidas .............................................................................. 157

A surpresa .................................................................................... 167

A viagem ...................................................................................... 175

O ingresso no Caraçá ................................................................ 185

O assédio da Baronesa ............................................................... 193

Manoel sucumbe ao assédio ..................................................... 201

A lembrança do passado ........................................................... 211

Dias depois ................................................................................... 219

Uma péssima notícia .................................................................. 229

A sósia perfeita ............................................................................ 237

O passado não perdoa ............................................................... 245

A grande aventura ...................................................................... 255

A consumação da desgraça ....................................................... 265

O desfecho fatal .......................................................................... 277

Os momentos seguintes ............................................................. 285

Leia do mesmo autor ................................................................. 291

Sobre o autor ............................................................................... 293

APRESENTAÇÃO

A Besta de Mané José é mais uma tentativa do autor de resgatar histórias que contavam na cidade e no município de Taperoá. Elas eram da cultura oral e jamais foram escritas, o que conduz ao esquecimento. Histórias cheias de fatos interessantes e de passagens inesquecíveis que os taperoenses devem conhecer para lembrar a vida e a glória dos antepassados.

A história da besta de Mané José é verídica. No entanto, foi contada e recontada, e cada vez tinha um ponto acrescido, chegando à expressão em que foi narrada neste livro. As pessoas mais simples acreditam em tudo que é contado e não admitem que dúvidas sejam levantadas sobre os fatos que envolveram a vida de Manoel e de sua besta: a presença dos ciganos; a epidemia de febre aftosa; os surtos de raiva, cuja transmissão pode se dar pelo contato com um animal doente ou pelo ataque de morcegos hematófagos; os fazendeiros bondosos e avessos a contatos com ciganos; os pesadelos de Manoel; o convívio difícil com seus pais; a solidariedade do doutor Maciel, tudo são fatos acontecidos que não sofreram acréscimo ou afetação, ao longo dos tempos.

Como nas histórias da Cascavel Banguela, da Queda do Meteorito, da Porca de Zé Silva, da Raposa Diferente, da Grande Jiboia, do Bode de Zé Hilário, a referência a nomes de pessoas não tem qualquer relação com prováveis coincidências.

As regiões descritas e mencionadas são de fato existentes e têm as características que lhes foram atribuídas na história. Taperoá, na época do conto, era exatamente como nele se des-

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creve. A generosidade do seu povo, as feiras livres do lugar, as arruaças de alguns elementos, e o procedimento das autoridades policiais eram, sem tirar nem pôr, como foram descritas pelo Tio José, e fizemos o possível para ser fiel à sua narração.

A besta de Mané José, se não foi exatamente o animal prodi-gioso da história, teve lugar de destaque na vida da comunidade e, por incrível que pareça, por efeito da praga de Madalena ou não, acabou morrendo queimada quando o dono tentava clarear o seu corpo com um tição de fogo, para melhor untá-lo com querosene, a fim de tentar acabar a praga de carrapatos que a tinha infestado.

UMA MANHÃ MEMORÁVEL

O dia ainda não tinha amanhecido e, como de rotina, fui despertado pelo ruído dos paus da porteira do curral se abrindo. À proporção que iam batendo nas pontas dos ditos paus, ecoava pelas redondezas um som quase metálico, característico de coisas duras que se encontravam. Uma, duas, três pancadas e se tinha a certeza de que era Gil-Braz que já havia chegado ao curral. Vinha dos armazéns que ficavam em frente à casa-grande da fazenda, onde costumava dormir. Logo que chegava, ia direto à porteira para fazer entrar o primeiro bezerro, a fim de que, depois de apojar, pudesse a vaca, sua mãe, ser ordenhada. O filhote estava sempre muito guloso e impaciente, andando de um lado para outro da porteira, só esperando que fosse aberta uma fresta para que ele penetrasse. Entrava, e saía correndo ao encontro da mãe.

Quando ouvi a primeira pancada, meti os pés e sentei-me na rede. Sempre enfrentava a preguiça de me levantar àquelas horas! Ainda estava escuro e os pássaros já cantavam para o lado do cercado. Era uma alegria inesquecível, uma maviosidade impressionante. Todos tinham vez na orquestra, mas alguns se sobressaíam. Eram os sabiás, os galos-de-campina, os corrupiões, os papa-sebos, as rajadas e as casacas-de-couro. Os sapos que ainda coaxavam não eram aqueles das primeiras águas, mas os remanescentes do fim do inverno. Estava fazendo frio, porém eu tinha de enfrentá-lo. Levantei-me, bocejei, calcei as alper-catas de estalo e enrolei a rede até o ponto que me permitiu enganchá-la no armador.

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Fui até a porta da frente e a abri. Ainda estava escuro. Gil-Braz certamente exagerara naquela manhã. Os mosquitos aperreavam muito, principalmente ao amanhecer, sobretudo, no curral, mas, ainda não era hora de se estar ali para desleitar a vacaria. Mesmo assim não hesitei e parti rumo ao local de trabalho. Gil-Braz não perdoava o meu atraso. Eu era o único ajudante na missão e tinha se tornado rotina a minha partici-pação no desleite. Peguei o caldeirão grande, de alumínio, e parti. Saí pelo círculo de arame que contornava a casa e a protegia da invasão dos animais. Ao chegar à porteira do círculo, logo avistei a pastagem madura que acamava no campo. Estava mo-lhada pelo sereno da noite e exalava cheiro fresco e agradável.

Em minha frente estava o campo de mata-pasto, enorme e cheio de mistérios, que costumava acobertar as investidas das raposas e dos guaxinins contra o nosso terreiro. Transpúnhamos aquele matagal por vereda estreita e sinuosa, aberta pelos cascos dos animais. No chão havia o traço acentuado da passagem, aberto sobre o barro vermelho, mas, no alto, o mato fechava, encostando os ramos de um lado, ao outro. Tínhamos de ir abrindo caminho com o próprio corpo. Ali estavam muitas gotas de orvalho suspensas nas folhas de menor inclinação e nas teias de aranha. Ao passarmos por elas, a água fria de sua composição se infiltrava em nossas vestes. Quando chegávamos do outro lado, as nossas roupas já estavam completamente mo-lhadas. O vento rasteiro e leve que soprava do leste fazia com que sentíssemos muito frio.

Quando acabamos de tirar o leite, o sol já vinha saindo por trás das copas mais proeminentes que ocupavam o horizonte. Só restava abrir a porteira e liberar a vacaria para que seguisse em direção ao pasto. Alguns bezerros ainda escorropichavam

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os úberes murchos das mães, mamando por trás, enquanto elas andavam cercado adentro. Seguiam em fila indiana pelas veredas abertas no mata-pasto, como que estivessem com medo de se molhar no orvalho.

Pegamos o caldeirão de leite e voltamos para casa. O dia não era de trabalho, porque estávamos na quinta-feira da Semana Santa que era dia santo de guarda. Naquele dia, só se fazia o que fosse absolutamente indispensável e inadiável. Até o desleite das vacas seria suspenso no dia seguinte. Por isso mesmo, o terreiro estava deserto. Os únicos viventes que andavam por ele eram as galinhas. Lá, debaixo da rainha-dos-prados florida, estava o pedaço de trilho sobre o qual batíamos as enxadas. Tupi, o velho cão de guarda, pressentindo a nossa aproximação, veio ao nosso encontro bamboleando a cauda.

Chegamos e fomos até a cozinha, onde se preparava o café. Era dia de jejum, mas a gente não costumava jejuar, porque por ali se dizia que já vivíamos de jejum a vida inteira. O cuscuz de milho já estava cheirando. Era sinal de que estava no ponto de ser saboreado. O café estava no bule que ocupava o centro da mesa enorme da sala de jantar. Ali, andando e observando tudo, estava o tio José — José Lino da Silva —, pessoa de nossa mais profunda estima. Papai gostava de conversar com ele, porque admirava a sua inteligência e experiência. Nós, sobrinhos, ado-rávamos seus contos. Sempre que o encontrávamos com tempo suficiente, pedíamos para que nos contasse uma das histórias de seu inesgotável repertório.

— Bom-dia, tio José! — disse Gil-Braz, pedindo-lhe a bênção, em seguida, e demonstrando a satisfação de vê-lo por ali.

— Bom-dia, Gil-Braz! Deus te abençoe — respondeu ele, muito alegre e da forma simpática com que costumava falar com as pessoas.

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Corri e me abracei com suas pernas, porque era o máximo que podia alcançar, com a estatura que eu tinha. Ele me aca-riciou a cabeça e seguimos para onde estava posto o café. Em torno da mesa, estava reunida a família inteira e se conversou sobre amenidades, enquanto era feita a primeira refeição do dia. Tio José tinha ido dormir na fazenda para ficar mais perto da cidade, onde deveria cortar carne no dia da feira. O abate, da semana, só poderia ser feito na madrugada do Sábado de Aleluia, depois de totalmente passada a Sexta-feira da Paixão, e demandava esforço vir do sítio Caititu, onde ele morava, até a cidade. Por essa razão, ele resolveu vir para a fazenda da irmã, ou do cunhado, pernoitar e chegar à cidade sem grande esforço. Além da distância que teria de percorrer se não to-masse tal decisão, tinha o fato de estarem correndo cachorros na região, o que fazia a caminhada muito perigosa, durante o escuro da noite.

Terminado o café, seguimos para o terreiro, num pequeno exercício de meditação, sempre usado durante a Semana Santa. O sol ainda estava baixo no horizonte e se refletia nas gotas de orvalho que ainda não tinham caído. Ali, pedimos ao tio José que nos contasse uma das suas histórias, já que nada tínhamos a fazer naquele momento. Ele relutou, não estava com disposição de contar histórias.

— Tio José, conte uma história daquelas! — pedira Vicente, certo de que seria atendido.

— Menino, hoje não é dia de contar histórias. Estamos na quinta-feira da Semana Santa e quem contar histórias neste dia cria rabo — descartara o nosso contador de casos.

O pátio da fazenda deixava ver até o alto do plano que se descortinava em sua frente. As árvores de grande porte não

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impediam a visibilidade das terras circunvizinhas, especialmente na direção do campo de pouso, onde ficava a colossal porteira do campo. Lá no alto se via o capim panasco fazendo olas ao sopro do vento. Dava para divisar os caminhos feitos, por entre a vegetação, pelos pneus do trator e de um ou outro carro de passeio que, vez por outra, passavam por ali.

À certa altura, fixaram-se os olhares na direção da porteira do campo. Vinha um cavaleiro e, pela forma como se compor-tava, dava a impressão de que estava muito apressado. Chegou, finalmente, e não queria falar com ninguém da fazenda. Sabia da presença do tio José, no local, e tomou a iniciativa de con-versar com ele. José Lino já conhecia de longa data o visitante e o cumprimentou cordialmente. O homem desceu do cavalo e disse a que veio. Estava zangado com tio José porque, sendo ele um dos fiscais da Associação dos Abatedores de Suínos do lugar, não vinha cumprindo com o dever de combater a concor-rência desleal de alguns abatedores clandestinos. Eles abatiam um porco e botavam na feira. Quando se olhava para o interior do seu banco, viam-se oito, doze e até vinte mocotós. Era a evidência de que estavam sonegando impostos! Tinham matado dois, três ou até cinco suínos e só pagavam o imposto de um. Assim podiam vender carne mais barato e o fato prejudicava os demais associados que, honestamente, pagavam os seus tributos. Zé Lino sabia da tramoia, mas não os denunciava. Era verdade que ele tinha um grande coração, contudo o dever exigia que denunciasse os companheiros desonestos. Doutra forma, podia ser bondoso, mas não seria justo.

O homem, agitado e zangado, passou cerca de uma hora falando para tio José que, impassível, olhava fixamente para ponto indefinido do horizonte, com um pé apoiado no chão