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Maria Carolina Rissoni Andery
A BUSCA PELA INDIVIDUAÇÃO ATRAVÉS DA RELIGIÃO: QUANDO O INDIVÍDUO ESTÁ PRIVADO DE
SUA LIBERDADE
Faculdade de Psicologia Pontifícia Universidade Católica – São Paulo
2008
Maria Carolina Rissoni Andery
A BUSCA PELA INDIVIDUAÇÃO ATRAVÉS DA RELIGIÃO: QUANDO O INDIVÍDUO ESTÁ PRIVADO DE
SUA LIBERDADE
Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial da graduação no curso de Psicologia, sob orientação do Prof. Dr. Sergio Ozella.
Faculdade de Psicologia Pontifícia Universidade Católica – São Paulo
2008
Agradecimentos
Aos meus pais, pelo financiamento. A eles, meu irmão e familiares pelo carinho,
incentivo, paciência e confiança que depositaram em mim nesses anos de trabalho e luta
para conquistar meu objetivo.
Aos amigos, sempre presentes, pelo apoio e incentivo, principalmente a Andrea,
pela convivência harmoniosa, confiança e cooperação para que eu conseguisse atingir este
objetivo.
À professora Graziela Acquaviva Pavez que me incentivou a continuar o projeto
feito em 2005, no qual foi orientadora.
Ao prof. Dr. Sergio Ozella que aceitou orientar meu trabalho, mesmo não sendo da
sua área. Por ter me ajudado com discussões, conversas e ter acreditado em meu projeto.
À profa. Noely Moraes que aceitou ser co-orientadora, ajudando-me nas questões
relacionadas à teoria e dispendendo seu tempo para discutir alguns assuntos comigo.
À profa Eloísa Penna pelas discussões, co-orientação e por se dispor a ler meu
trabalho.
No silêncio do si mesmo encontra-se o
que não tem representação, o que está para
além de qualquer suposta identidade.
(Gilberto Safra)
7.07.00.00-1
Ma Carolina Rissoni Andery: A Busca pela Individuação Através da Religião: Quando o
Indivíduo está Privado de Sua Liberdade, 2008.
Orientador: Prof. Dr. Sergio Ozella
Palavras-chave: Presidiário, Religião, Processo de Individuação.
Resumo
Vive-se hoje uma mudança nas relações dentro da sociedade, as pessoas estão mais individualistas e têm buscado um local que lhes dê conforto e possam encontrar pessoas com questões comuns. Tem sido perceptível o aumento na busca pela religião, crescimento da violência e a descrença nas instituições que deveriam dar segurança; provocando crises nos indivíduos e em algumas instituições que deveriam oferecer segurança, respaldo, além de ajuda ao indivíduo. Por esse motivo, o objetivo da pesquisa é investigar como se dá o processo de individuação para o indivíduo religioso que está no presídio cumprindo pena privativa de liberdade, ou seja, como essa pessoa, que está num local onde as regras são outras e sua vida mudou completamente, consegue se enxergar. Para isso foram feitas entrevistas com um presidiário que cumpre pena no Presídio Militar “Romão Gomes”. Estas foram feitas em duas visitas, com foco nas transformações ocorridas com o indivíduo desde que entrou no presídio, buscando compreender a influência da religião em sua vida e como todas as mudanças ocorridas foram vistas e passadas. Através da análise das mesmas foi possível identificar que a religião ajuda nesse momento por ser um espaço que recebe o indivíduo, o faz pertencer a um grupo e ao mesmo tempo leva o indivíduo a “pensar”. O processo de individuação acontece através do divino, pois a atitude religiosa tem em si a relação interno-externo e Deus, como força externa, atua como quem dita regras e é a energia que dá força ao indivíduo.
Sumário
Introdução ............................................................................................................................. 1
Método .................................................................................................................................. 5
1. Sistema Prisional e Religião ............................................................................................. 8
1.1 Sistema Prisional ............................................................................................................ 8
1.2 Sistema Prisional e Religião .......................................................................................... 11
1.3 Presídio Militar “Romão Gomes” ................................................................................. 15
2. Estado, Sociedade e Sistema Prisional / Penal ................................................................ 16
3. Psicologia Analítica ........................................................................................................ 24
3.1 Psicologia Analítica e Religião ..................................................................................... 31
4. Análise: Como se dá o Processo de Individuação Dentro do Presídio?........................... 37
4.1 Relações entre Presídio e Religião ................................................................................ 37
4.2 Análise do relato de um interno .................................................................................... 41
5. Considerações Finais ....................................................................................................... 49
Referências Bibliográficas .................................................................................................. 52
Anexos ................................................................................................................................. 55
Introdução
“O lugar de origem de uma fé verdadeira não é a consciência e sim a experiência religiosa espontânea que estabelece um elo direto entre o sentimento de fé e sua relação com Deus” (JUNG, [s.d.])1
O individualismo presente na sociedade de hoje é muito grande, principalmente nas
grandes cidades, onde as relações estão cada vez mais frias. Nas palavras de Bezerra (1995)
vive-se a ‘solidão das massas’, o ‘stress urbano’, o consumismo, e este conjunto torna o
contato humano cada vez mais difícil e distanciado. A mesma autora ainda comenta que no
nosso mundo globalizado, onde o indivíduo é reduzido apenas a uma “unidade econômica”,
produto do trabalho e do consumo, a busca da individuação2 começa a surgir como único
valor que ainda faz sentido. Em meio a esse processo, tem aumentado a procura por uma
religião, o desejo de pertencer a um grupo que possa diminuir as angústias e de alguma
forma oferecer respostas,
Muitas pessoas hoje buscam uma religião como forma de reencontrar-se. Essa busca em geral se dá nos momentos em que ele já não encontra mais respostas às suas questões existenciais. Surge o desespero, angústia e todos os recursos encontram-se esgotados, então o homem reza e suplica sem saber a quem. A religião se propõe através dos símbolos utilizados pelo homem, a ser portadora de um mundo que faça sentido, tornando desta forma o fiel mais forte. (BEZERRA, 1995: 25-26)
Considerando que a sociedade vive um momento de crise, a religião vem acenando
às pessoas a possibilidade de pertencerem a um mundo que propõe um sentido para suas
questões existenciais. Em outras palavras, a busca pela religião tem crescido devido ao
desejo das pessoas de pertencerem a um grupo já que nossa sociedade vive um momento de
crise. (BEZERRA, 1995; ANDERY, 2005)
1 In ANSPACH, Sílvia. C.G. Jung Rituais, Dogmas e Identidade Humana e Religiosa, p 62 2 Ou seja, a busca por si – mesmo, tornar-se único. Quando o indivíduo passa pela individuação ele entra em contato com o mundo externo e interno, “deixando” de lado as características que não são dele, que são de sua família / cultura e passa a ser mais dono de si. Ampliando sua consciência através da integração dos conteúdos psíquicos. (JUNG, 1987a)
Discorrendo um pouco sobre a crise atual, pode-se dar destaque para o problema da
criminalidade no Brasil. A impunidade é muito grande. Segundo o NEVUSP3 (Núcleo de
Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) de 1980 a 2006 houve 568
linchamentos; 8422 casos de execução sumária; e 5371 casos de violência policial no
Estado de São Paulo. A violência está cada vez maior, as pessoas mais descrentes em
relação à polícia, ao governo, enfim, não se sentem protegidas pelos órgãos que deveriam
dar segurança, prevalece a descrença e a sensação de impunidade.
Nessa linha de raciocínio em 2005, desenvolvi um estudo que tinha como hipótese
verificar se a religião era utilizada pelos presidiários (estes, ex-militares) como válvula de
escape. Observou-se que estes indivíduos apegavam-se a ela (religião) pelo seu simbolismo
e para conseguir continuar convivendo com a privação de liberdade, distanciamento da
família e cumprimento da pena. (ANDERY, 2005)
As religiões, muito antes de qualquer prática psicológica, procuram através de suas visões de mundo, de homem, ritos e sacramentos dar respostas e significados às necessidades existenciais humanas, baseadas nas normas estabelecidas e que devem ser seguidas por aqueles que têm fé e almejam as dádivas “prometidas”. Pode ser vista como um conjunto de pensamentos e ações em torno do divino, tendo por finalidade tornar o Ser Divino propício e favorável ao indivíduo ou comunidade. (BEZERRA, 1995: 8 - 22)
Hoje em dia há um grande número de Religiões que procuram ampliar o número de
devotos e movimentos, como por exemplo: Cristãos, Espíritas, Adventistas, Evangélicos,
entre outros. Falando particularmente sobre a religião Evangélica têm-se várias
ramificações, e dentro de cada movimento existem diversas Igrejas correspondentes. Dentre
as religiões optei, em 2005 abordar presidiários devotos da Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD), Igreja que pertence ao Neopentecostalismo Autônomo. No presente o estudo
tinha a mesma intenção, mas devido a saída da IURD desse presídio, fiz minha investigação
com um presidiário evangélico.
As Igrejas Neopentecostais surgiram do movimento pentecostal, de Igrejas
Evangélicas, onde a Palavra de Deus, é levada ao indivíduo através do Evangelho. Tais
Igrejas têm a fé como mecanismo solucionador da crise existencial do ser humano, que
procura pertencer a um grupo, mesmo que a sociedade e as próprias Igrejas o enxerguem
3 In http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_content&task=view&id=742&Itemid=81
através do individualismo. Esse movimento especializou-se em propor soluções para
pessoas que vivem em sociedades como o Brasil, assimétricas, dizendo respeito a
problemas de ordem material e espiritual. As igrejas neopentecostais têm em seu ideário e
culto características da contemporaneidade: o uso dos meios de comunicação de massa,
valorização do corpo como lugar em que as forças físicas e espirituais se encontram; o
exercício da cura obtida pelo poder do Espírito Santo; e a demonização do erro, do
sofrimento, e do ‘outro’. (MACHADO, 2000; SILVA, 1998)
Verifica-se hoje, na nossa sociedade, uma grande valorização da mercadoria. As
relações estão progressivamente frágeis e as pessoas sentem cada vez mais medo e vêem-se
desamparadas. Projetam suas expectativas, vontades e medos nos outros e nas instituições,
principalmente nas governamentais, pois são estas instituições que deveriam dar suporte e
segurança às pessoas; demonstrando que os indivíduos passam por muitas mudanças, crises
e falta de assistência. No caso dos presidiários o problema parece ainda maior. Na maioria
das vezes, o presidiário (homem) é o provedor da família e alguém que finge estar bem
onde está para não preocupar seus entes ainda mais, pois, estes, quando vão visitá-lo estão
preocupados com sua situação e em deixá-lo o menos preocupado possível com os
problemas da família. (ANDERY, 2005)
Levando em consideração a questão dos indivíduos que cometeram crimes e são
presos não se pode deixar de considerar o fato de o sistema prisional ser um sistema falho,
ou seja, não propõe mudanças para o indivíduo e não cumpre com seus deveres – não dá o
respaldo suficiente para que o indivíduo se ressocialize. (TORRES, 2001) Ele (Sistema
Prisional) é regulamentado pela Lei de Execução Penal – Nº 7.210 de 11/07/1984 (LEP),
que se fosse cumprida conseguiria reeducar e ressocializar pelo menos uma parcela da
população carcerária e transparecer seu nível de eficiência e competência.
Mas, como verificado através de dados, as prisões brasileiras não conseguem atingir a ressocialização, mostrando que a LEP não é cumprida e aplicada de forma eficaz, pois são desrespeitados os direitos dos presidiários através da superlotação dos presídios; formação dos grupos organizados, criando poder transversal – facções - aceito pelos diretores dos presídios; falta de atendimento médico; violência contra os presidiários cometida pelos agentes que lá trabalham; e morosidade do judiciário em conceder direitos ou a pena que será cumprida. (ANDERY, 2005:25)
A população do estudo de Andery (2005) envolveu presidiários que foram policiais
militares (PM), portanto, é possível que eles se sentissem poderosos ou até onipotentes,
pois tinham a incumbência de prender, matar, decidir pela vida de um terceiro. Com a falta
de preparo e infra-estrutura vista hoje (baixo salário, falta de cursos de reciclagem e
supervisão durante o dia de trabalho), esse poder tornou-se conflituoso fazendo com que,
em muitos momentos, o indivíduo não separe mais sua individualidade como PM de sua
individualidade como cidadão e provedor de família. Quando o policial é detido acontece
uma mudança em sua identificação, pois passa de militar para um presidiário, alguém que
precisa conviver com a ausência de sua família e do poder, a privação de liberdade e os
problemas do sistema prisional, razões pelas quais, provavelmente o indivíduo busca a
religião, um grupo para sentir-se amparado. Então, o presidiário passa a ser um ex-policial,
presidiário e religioso, ou seja, parece ter três individualidades diferentes, (ANDERY,
2005)
A assistência religiosa no presídio é forte, existem muitas Igrejas trabalhando dentro
dele, que procuram dar respaldo e conforto para os indivíduos. No caso dos freqüentadores
das Igrejas Evangélicas, estas buscam fazer um trabalho para “tirar o demônio do corpo”,
pois o erro foi do outro (demônio) e não do indivíduo. Nesse caso é dito que foi o demônio
quem o cometeu e não o José / Paulo/ João, por exemplo, o que de alguma forma os alivia
bastante, pois tira o peso da culpa.
Segundo Ferraz (1994) citado por Bezerra (1995: 9), para a Psicologia Analítica,
uma atitude religiosa está ligada à experiência do si-mesmo, sendo a psique a totalidade das
forças psíquicas instintivas e espirituais do ser. Neste sentido, o caminho da individuação
estará voltado para a “Imago Dei”, uma força suprapessoal diante da qual o ego deve
reconhecer sua posição subordinada estando preparado para servir à totalidade e aos seus
fins. Entenda-se o processo de individuação como o contato com o si-mesmo, acontecendo
de forma diferente para cada indivíduo. Com ele ocorre a integração dos conteúdos
psíquicos e, conseqüentemente, a ampliação da consciência (BEZERRA, 1995; JUNG,
1987a).
O presente estudo tem por objetivo investigar como se dá o processo de
individuação para o indivíduo religioso que está no presídio cumprindo pena privativa de
liberdade. Ou seja, como a pessoa que teve sua liberdade privada consegue enxergar a si
própria, tendo passado por uma completa mudança de vida e sendo obrigada a ficar em um
lugar repleto de novas regras, sendo esta, religiosa ou não antes de sua entrada no presídio,
mas que tenha se tornado ou continuado a freqüentar cultos de Igrejas Evangélicas. Como
entende a mudança que aconteceu e se vê como pessoa, como alguém que infringiu a lei,
não é mais policial e ao mesmo tempo continua sendo o pai, marido, irmão, filho de
determinada família. Segundo Bezerra (1995), o homem é o único ser que se pergunta a
respeito de sua identidade, “seu modo de ser no mundo” e sente necessidade de elaborar
suas angústias, o que o faz sair à procura de formas alternativas que o auxiliem a resgatar
sua identidade.
Para tanto, foi feita uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto – religião, sistema
prisional e violência e foi estruturado um capítulo de fundamentação teórica de acordo com
conceitos da Psicologia Analítica que permitirão a discussão dos resultados obtidos.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem como base teórica a Psicologia
Analítica, já que “é a partir do homem que Jung se propõe a entender e explicar Deus e os
dogmas religiosos. Desta forma seu estudo se dá sobre a imagem inconsciente e a
arquetípica que o homem tem de Deus – si mesmo”.(BEZERRA, 1995:16) e a “experiência
imediata, o numinoso, a revelação, para Jung, acontecem ao homem e o afetam, resistindo
a um controle meramente volitivo, interpretativo, racional e egóico”.(ANSPACH, 2005:57)
Contendo entrevistas semi-dirigidas, com pesquisador participativo – há interação e
participação ativa e não intervenção no ambiente (em anexo as entrevistas). Elas estão
estruturadas de forma a permitir a identificação do processo de individuação, que foi
percebido através dos símbolos apresentados pelo indivíduo. Posteriormente será realizada
a discussão dos resultados procurando fazer uma articulação dos primeiros capítulos com as
informações obtidas através da tradução (delimitação do contexto) e associação.
Para execução das entrevistas houve contato com o Presídio Militar Romão Gomes,
local onde foi feita a pesquisa anterior, buscando a possibilidade de fazer o presente estudo
como extensão do trabalho realizado em 2005. Nesse contato foi detalhado o objetivo da
pesquisa,; comentado sobre as entrevistas anteriores (como foram realizadas); falado sobre
a necessidade de mais de um encontro para que os objetivos da pesquisa fossem alcançados
e apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido.
O “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, e a pesquisa em geral, levaram
em consideração as questões éticas e estão de acordo com as normas previstas pelo
Conselho Nacional de Saúde (Resolução 196/96), garantindo sigilo profissional pelo
comprometimento de não divulgar a identidade dos participantes, bem como a utilização
dos registros obtidos apenas no âmbito acadêmico4.
A Psicologia Analítica trabalha com conceitos como: inconsciente coletivo,
inconsciente pessoal, arquétipo, complexo, símbolo, entre outros. Tais conceitos dizem
respeito ao modo de o indivíduo se portar e estabelecer suas relações com o mundo e o
outro. Estão relacionados também à história da cultura, como, por exemplo, os arquétipos
que dizem respeito a padrões de comportamentos comuns à humanidade e se expressam de
formas diferentes na cultura. Os símbolos são a conexão do consciente com o inconsciente
e o fenômeno psíquico possível de ser analisado, ou seja, dizem respeito a algo vivido ou
chamativo para o indivíduo, pois lhe causa emoção. Eles “podem ser interpretados a partir
de um contexto psicológico histórico, cultural ou generalizado5”.
Por meio desta abordagem foram discutidas e analisadas as entrevistas feitas com
presidiários que cumprem pena no Presídio Militar Romão Gomes e que, no interior do
mesmo, freqüentam cultos de Igrejas Evangélicas. Para escolha do sujeito houve uma
4 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com protocolo sob no 070/2008 5 In http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/simbolo.htm acessado em 24/03/2008
conversa com o Coronel do presídio, onde foi esclarecido que para cumprir o objetivo da
pesquisa seria necessário entrevistar presidiários religiosos que freqüentassem cultos
evangélicos. Primeiramente foram escolhidos três sujeitos, estes foram indicados pelo
Coronel, houve uma entrevista com os três na qual houve a participação de um sargento na
sala. As entrevistas podiam acontecer durante uma hora e meia e foram feitas perguntas
mais diretivas, não tão profundas. Após essa entrevista foi escolhido um dos três
entrevistados que havia iniciado freqüência às Igrejas Evangélicas dentro do presídio e
falou mais sobre as mudanças que ocorreram em sua vida. Por meio das entrevistas,
buscou-se identificar a forma como se dá o processo de individuação dos presidiários
devido às mudanças que sofrem dentro do presídio. Ou seja, como o indivíduo se vê dentro
daquele contexto, se conseguiu se singularizar, construir novas formas de ser dentro do
ambiente restritivo de liberdade.
A análise das entrevistas foi feita com base na Psicologia Analítica, como dito
acima, e teve como critério a transcrição, leitura e separação de algumas categorias, como:
busca pela religião; relação Deus - Demônio; transformações ocorridas; relação Deus – pai;
relação com a família; e escolha da profissão, ligada a poder. A partir dessas categorias
foram encontrados símbolos na fala do sujeito, levando em conta, principalmente os
momentos em que ele demonstrou emoção.
A Autora entende que o estudo trata de um tema instigante e com escassez de
informações, pesquisas ou publicações, pois aborda, concomitantemente, dois assuntos
muito discutidos nos tempos atuais: o sistema prisional e a falta de confiança na polícia,
órgão governamental. Por esse motivo espera que a discussão dos resultados obtidos
venham de alguma forma, ampliar seu conhecimento e trazer contribuição para essas
discussões contemporâneas.
1. Sistema Prisional e Religião
1.1 Sistema Prisional
“As prisões estão dentro das cidades e ninguém as vê” (Michel Foucault, [s.n.t.] apud ANDERY, 2005)
No Brasil até o século XIX, a repressão penal não distinguia os crimes de ordem
moral, religiosa, política ou econômica. Após a chegada da Família Real no Brasil em 1808
é que surgiu a gênese moderna das prisões e com a Constituição Imperial de 1824
organizou-se um código criminal que determinava a pena privativa de liberdade e a
existência de prisões sob condições de higiene e funcionamento. (TORRES, 2005) “O uso
da prisão enquanto sanção penal e autônoma aparece a partir do desenvolvimento da
sociedade organizada sob os modelos do capitalismo”. (SOUZA, 2004:1)
Segundo Torres (2005), a prisão recolhe intencionalmente o indivíduo a um sistema
social fechado de poder, com cultura, regime e conflitos internos próprios que não se
reduzem aos muros, grades, celas e trancas. “Estabelece o cunho terapêutico e correcional,
institucionalizando as relações e os comportamentos de funcionários, técnicos e massa
carcerária, falaciosamente acreditando que levará o indivíduo, supostamente adaptado
pela prisão, a viver livremente” (p. 36) Concebida pelos reformadores progressistas do
século XIX como local de meditação e arrependimento interior, como instituição total, não
cumpre suas funções regeneradoras dos homens que são encaminhados para lá pelo
Judiciário. Segundo Zaluar (1994), a prisão é, de fato, o lugar onde se completam os
circuitos da revolta por ser pobre, do aprendizado do crime e da aquisição de vícios pelo
ócio, na visão dos criminosos de Cidade Deus – tenham, estes, passado pela instituição ou
não. E a passagem por ela causa silêncio, o que acontece em seu interior não é muito
comentado pelos que lá estiveram, embora mencionem “horrores”; é como se a lei da prisão
(não ter olhos, ouvidos, boca) continuasse a impor proibições além dos muros. (p. 85 -86)
O sistema prisional brasileiro é regulamentado pela LEP (Lei de Execução Penal N
7210 de 11/07/1984). A referida lei regula os direitos e os deveres do presidiário, o que
demonstra que, se cumprida integralmente, ressocializaria e reeducaria o presidiário. Mas
este sistema apresenta grandes problemas em seu funcionamento, como: superlotação (“a
superlotação foi constante nos cárceres brasileiros desde o século XIX e no século XX, a
prisão crescerá se alimentando do contingente de excluídos sociais” (TORRES, 2001:58))
e desrespeito aos direitos humanos, demonstrando, então, que a ressocialização dificilmente
irá acontecer. (ANDERY, 2005) Segundo Marchezi & Menandro (2004), as prisões
brasileiras funcionam como mecanismo de oficialização da exclusão que já paira sobre os
detentos, o descrédito e rejeição como um atestado de exclusão com firma reconhecida.
Contudo, não podemos falar sobre esse assunto sem pensar na conjuntura social,
política e cultural na qual estamos inseridos, “pois a realidade carcerária brasileira é o
retrato fiel da questão social numa sociedade desigual e de excluídos sociais” (TORRES,
2001:78) O indivíduo sofre muitas violências em seu dia-a-dia, principalmente aqueles que
estão na margem de exclusão.
O empobrecimento dos mecanismos tradicionais de socialização, o enfraquecimento de algumas instituições, e a desresponsabilização do Estado para com os seus deveres de garantir os direitos de cidadania desencadeou uma crise de valores que fez surgir uma ideologia individualista onde o sujeito passa a ter como ideal uma liberdade exacerbada. Hoje, a sociedade “pede” que seus membros sejam consumidores através dos meios de comunicação de massa. Quem não pode participar desse consumismo acaba ficando excluído e, alguns partem para a vida de crimes em busca de dinheiro ou poder para conseguir ter tudo aquilo que almejam, ou seja, o não consumismo leva à exclusão da sociedade. (ANDERY, 2005:21)
Entretanto, essa realidade em que nos encontramos, na qual o individualismo está
muito presente e o consumismo exacerbado, faz com que as pessoas percam seu valor. Não
diz respeito somente à diferença de classe, rico e pobre, mas, também, ao que Bauman
chama de sociedade líquido – moderna.
‘Líquido – moderna’ é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir e onde o lixo é o principal e, comprovadamente, mais abundante produto da sociedade líquido-moderna de consumo (BAUMAN, 2007:6 – 17, grifo nosso)
Segundo o autor, na atualidade, os indivíduos se preocupam muito com o consumo e
em estar sempre “na moda”, os laços são frágeis, vive-se em constante incerteza e as coisas
são jogadas no lixo rapidamente, pois perdem seu valor de uso para que sejam substituídas
por outras melhores ou citadas como melhores. As realizações individuais não se tornam
permanentes porque as mudanças são bruscas, as capacidades se tornam incapacidades
rapidamente. “Entre as artes da vida líquido – moderna e as habilidades necessárias para
praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade em adquiri-las” (BAUMAN, 2007: 8)
O resultado disso tudo está estampado através dos meios de comunicação e nas ruas
através do medo, da intolerância e da grande violência. Esquece-se das pessoas e das
relações como se esquecem das coisas. As pessoas que estão em privação de liberdade são
um grande exemplo. Muitas delas não recebem visita o que faz com que precisem
comercializar ou pedir à Assistente Social ajuda para conseguir as coisas para sua
necessidade básica, gerando o crescimento do comércio também dentro dos presídios, que
não se resume aos produtos de necessidade básica.
O Estado de São Paulo é o mais problemático, a situação carcerária é a mais
desordenada, proporcionando diversas rebeliões que são mostradas pelos meios de
comunicação com um certo sensacionalismo, o que causa revolta e preocupação na
população. Mas, também fica evidente um outro lado, que é a precariedade do sistema.
Marchezi & Menandro (2004) dizem que o trajeto de exclusão que os presidiários
brasileiros sofrem são expressos através das rebeliões: desejo de ser gente e angústia por se
sentirem inferiores, sem valor, procurando por um reconhecimento social. (ANDERY,
2005)
Existe uma “desassistência” em relação a população carcerária que é o sinal da
“ausência de uma política pública séria voltada para este segmento da população em
situação de reclusão e portadora de necessidades sociais muito específicas” (TORRES,
2005:17) Fato comemorado pela sociedade - que concorda e autoriza o Estado a punir quem
comete crime - , destacando que a situação das prisões é problema político, pois a falta de
verba não é pior que a desorganização e desumanização encontradas.
O desafio da cidadania está, ininterruptamente, posto, para a academia e a rua, a teoria e a práxis, o conhecimento e a ação, dialeticamente. Há muito o que construir nesta direção, desde que se rompa com o senso comum dominante, e este é o desafio democrático que
hoje se impõe, sobretudo, aos que têm o poder da criminalização stricto sensu; pois têm, igualmente, o poder de reencontrar o território da cidadania. (ANDRADE, 2003:30)
Combinando as condições das prisões com as condições sociais no Brasil, verifica-
se que para o detento não há prognóstico, há apenas diagnóstico - bandido - segundo
Marchezi & Menandro (2004), pois as prisões devolvem para sociedade o indivíduo
destruído por ter passado por exclusão social, desigualdade e pobreza com grande
intensificação em relação a tudo que passava fora, já que aconteciam em um local que não
mostrava saída. (ANDERY, 2005)
Segundo a mesma autora, por esses e outros motivos, como, por exemplo, agüentar
o período de privação de liberdade, a religião é um instrumento bastante utilizado por essas
pessoas. Muitas delas quando saem do presídio são devotas, estão seguindo uma religião.
Sendo as evangélicas, pentecostais, as mais presentes, cujos cultos são mais procurados
pelos devotos para ouvir a “palavra de Deus”, sem que se preocupem com o nome da
Igreja. Segundo Machado (2000), praticamente todo sistema religioso tem uma narrativa
mítica que procura explicar o surgimento da mulher, do homem, da natureza. Com isso dá
para perceber que a religiosidade está intrinsecamente relacionada com o imaginário de
cada grupo social, já que a obsessão do homem para circunscrever o bem e o mal varia de
cultura para cultura.
1.2 Sistema Prisional e Religião
Existe relação entre o sistema prisional e a religião, pois a assistência religiosa é
prevista pela LEP, assim como as assistências: psicológica, médica, jurídica, social e
educacional.
Como previsto no artigo 24 da citada Lei:
Art. 24. A assistência religiosa, como liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo-se-lhes a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa.
§ 1o No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos religiosos § 2o Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa.
Esta é uma assistência muito importante para os presidiários, principalmente porque
como verificado em estudo realizado anteriormente, a religião é usada como válvula de
escape, um meio para que os mesmos continuem convivendo com a privação de liberdade e
outras mudanças decorrentes do encarceramento. (ANDERY, 2005)
A religião é importante para a sociedade moderna, onde o distanciamento dos
indivíduos e a perda do espírito coletivo são mais freqüentes, levando a solidariedade à
morte. Ou seja, é uma necessidade social que utiliza Deus como garantia para algum
imprevisto.
O Brasil é um país onde a mistura de crenças e rituais é bastante freqüente. “O
sincretismo configura um quadro de fronteiras indefinidas, em que possuir uma crença não
exclui a aceitação de outra”. (MACHADO, 2000:50) Muitos fiéis freqüentam a Igreja
Católica, mas vão algumas vezes a cultos evangélicos ou espíritas, buscando uma resposta
ou um conforto maior, para então decidirem qual religião vão seguir, pelo menos por um
certo período.
Existem muitas Igrejas fazendo trabalho nos presídios, sejam elas católicas,
evangélicas, espíritas, entre outras. Fazem um trabalho com os presidiários onde de certa
forma promovem saúde, levando a Palavra de Deus, a escuta e em alguns casos ajuda
material. Assim, além de conseguirem cada vez mais adeptos, ajudam os mesmos a
continuarem convivendo com a privação de liberdade e conversam sobre o crime, sobre o
porquê estão ali, dentre outras atividades que cabe a cada Igreja, por seu funcionamento e
forma de ver o trabalho. Demonstrando que, como diz Durkheim [s.d.], “não existem
religiões falsas. À sua maneira, todas são verdadeiras, todas respondem, mesmo que de
diferentes formas, a condições dadas da existência humana”. (p 206)
Segundo a psicóloga Karina Prates da Fonseca6, o trabalho religioso acaba sendo
muito rico para os presidiários, pois além de mostrar uma outra saída para os mesmos, “a
partir do momento em que o preso ‘encontra Deus’ toda a vida passada dele é apagada e a
responsabilidade por seus atos, destruída. Acontece a construção de um ‘novo homem’”.
A assistência social não pode ocorrer como deveria por falta de recursos, e a
psicológica nem sempre é encontrada dentro do presídio. Tal fato deixa o presidiário sem
respaldo e convivendo com mais uma carência. Então, a religião traz a relação com o
transcendente através de seu simbolismo e em alguns casos a ajuda material que o sujeito
precisa, o que demonstra a diferença promovida pelo trabalho religioso, que compensa a
falha da necessidade assistencial que os presidiários deveriam receber.
Por ser a religião importante atualmente e um dos temas do trabalho, foram
escolhidas como foco as Igrejas Evangélicas, hoje conhecidas como pentecostais. Por
serem estas Igrejas as mais fortes dentro do presídio, e existir uma Associação Religiosa de
Policiais Militares, onde não existe uma Igreja “comandando”, mas o Evangelho, a Palavra
de Deus é levada por um conjunto de Igrejas Evangélicas, considerando, especialmente,
que, segundo Durkheim [s.d.], é preciso saber atingir a realidade e a verdadeira significação
que o símbolo figura, já que todas as religiões são comparáveis, espécies do mesmo gênero
e têm elementos que lhes são comuns.
Nos últimos 20 anos estão emergindo novas religiões, caracterizadas por novas
formas da prática religiosa que trazem consigo novas configurações de Deus e resquícios
de religiões tradicionais. Contudo, a palavra Igreja continua sendo usada para “designar
uma manifestação organizacional de um conjunto de crenças, doutrinas e práticas que
ligam pessoas através de rituais coletivos, aos quais se atribuem uma eficácia de origem
sagrada” (CAMPOS, 1997:14), além de propiciar a interação coletiva entre o grupo
religioso e a sociedade que o contém.
6 In www.jornalvaleparaibano.com.br/preso/series28.html
Podemos identificar esse “excesso de ofertas de produtos religiosos” como uma
comprovação de que estamos vivendo num momento onde convivem muitos tipos de
credos que não permitem o abandono da secularização da religião, ou seja, apesar de
existirem muitos credos, não podemos abandonar a passagem das crenças que estavam sob
o domínio religioso, a despeito de termos abandonado a tendência à universalização desse
processo. (CAMPOS, 1997) Além disso, podemos, também, identificar que as diferentes
religiões oferecem experiências diferenciadas em relação à superação de sentimentos como
abandono, desemprego, autodepreciação, entre outros, e fortalecem a dignidade pessoal.
As Igrejas Pentecostais participam do processo de “reencantamento” do mundo.
Esse movimento pentecostal propõe dar soluções rápidas aos problemas das pessoas, de
ordem material e espiritual, e tem a fé como elemento indispensável para seu sucesso e
podendo ser identificado, também, como Pentecostalismo Autônomo (Neopentecostalis-
mo). (CAMPOS, 1997; ANDERY, 2005)
Enfim, segundo Campos (1997), as mudanças dos papéis sociais das organizações
religiosas, a exacerbação da competição entre agências produtoras de sentido, a
possibilidade de escolherem estilos religiosos a partir dos resultados observados
constituem-se como apropriação subjetiva e individualizante do sagrado. (34)
No caso típico do cristianismo ocidental, católico ou protestante, essas representações de Deus, ora muito próximas, ora distantes umas das outras, construíram um universo de sentido muito sólido, mas que começa a ser outra vez abalado por novas configurações. Tanto de um lado como de outro, o Deus cristão de nossa cultura tem oscilado entre Deus-milagre e Deus-razão, correndo as variações na esteira das circunstâncias sociais e culturais. Assim, temos tido o Deus do altar e o Deus da consciência, o Deus do indivíduo e o Deus morto e Deus vivo, Deus próximo e Deus distante. Como se configura Deus na efervescência religiosa de nosso tempo? (CAMPOS, 1997: 9)
1.3 Presídio Militar “Romão Gomes”7
O Presídio da Polícia Militar “Romão Gomes” – PMRG foi inaugurado em 21 de
abril de 1949 e foi oficializado pelo Decreto no 28.653 em 1957, como Unidade
Administrativa Autônoma.
Foi criado com o nome Presídio Militar “Romão Gomes” no tempo da Força
Pública do Estado de São Paulo. Quando houve a junção da mesma com a Guarda Civil,
que resultou na Polícia Militar. Em 1975, com a edição do Decreto no 7290 seu nome foi
mudado para Presídio da Polícia Militar “Romão Gomes”. Recebeu esse nome como
homenagem ao Coronel Dr. Romão Gomes, o primeiro militar juiz do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo.
Nesse presídio os internos seguem normas como as de um quartel, de forma que
acabam sendo resguardadas práticas anteriores, e nesse ponto não saem muito da rotina, já
que antes de serem presidiários tinham o cargo de Policiais Militares. Segundo a Assistente
Social, o presídio tem um regulamento próprio, não segue a LEP. (ANDERY, 2005)
Existe um diferencial deste com os outros presídios, pois os internos têm assistência
social, psicológica e religiosa, todos trabalham em empresas que ficam dentro do presídio e
ainda existem civis voluntários que aplicam acupuntura e reiki nos internos. (ANDERY,
2005)
O presídio é dividido em dois prédios: o da administração e o da subseção, neles os
presidiários são divididos por estágios. O ambiente parece tranqüilo, todos se
cumprimentam pelo nome ou seguindo a hierarquia que existe dentro da polícia militar –
isso acontece mesmo entre internos, apesar de não serem mais militares. É um lugar regido
pela norma militar, com limites e uma certa liberdade para os presidiários, sendo diferente
em alguns aspectos, do que se ouve dos outros presídios. E como muitos outros, recebe as
mais diferentes Igrejas para darem assistência a seus internos. (ANDERY, 2005)
7 In http://www.polmil.sp.gov.br/unidades/pmrg/ acessado em 05/05/2008
2. Estado, Sociedade e Sistema Prisional/ Penal
“Emancipação ou barbárie, eis o desafio” (RORHER, 2001)
Vive-se sob a égide de um Estado Neoliberal, ou seja, um Estado Mínimo quando se
refere aos elementos pertencentes à sociedade e um Estado Máximo para o capital, o que
faz com que exista, hoje, uma crise estrutural da sociedade. Dentro dessa perspectiva,
Demo (1995) discute quatro paradigmas8 de Estado, quando fala sobre a qualificação do
mesmo, apresentando alguns conceitos de uma nação: legítima, democrática e de serviço
público. Em relação aos itens citados, pretende-se discorrer sobre o Estado Capitalista
Máximo por ser, segundo Demo (1995: 20), o paradigma que representa a ideologia atual
dominante, que tem como carro-chefe a privatização crescente de empresas públicas e a
diminuição da área de abrangência da atuação do Estado. Faz parte dessa tendência a
definição do Estado como promotor de políticas sociais compensatórias, para assistir aos
que não conseguem se inserir adequadamente no mercado.
Esse modo de funcionamento do Estado tem como regra básica as relações de
mercado, que, do ponto de vista econômico, impõem-se como fim de tudo. “É da lógica do
mercado a tendência monopolista e concentradora, por privilegiar os que têm sobre os que
não têm, e todas as estratégias políticas que facilitam manter ou alargar as vantagens
disponíveis e desejáveis” (DEMO, 1995: 6-7). Segundo o mesmo autor, tal modo de
funcionar do Estado é o que faz com que os indivíduos se vejam perdidos, pois a
mercadoria tem valor maior, o ter é mais importante que o ser. A prioridade concedida ao
sistema financeiro faz com que cresça a ignorância9 entre as pessoas – levando em conta
que a educação também foi privatizada e cada vez menos pessoas têm acesso a ela – e o
sistema seja mantido, pois a partir do momento em que se evita que o trabalhador se
8 Esses quatro paradigmas dizem respeito ao sistema capitalista e ao socialista. Para Demo (1995) teríamos no sistema socialista o Estado Socialista Mínimo, pretendido por Marx, e o Estado Socialista Máximo, imposto por Lênin desde a revolução russa de 1917. No sistema capitalista o Estado Capitalista Mínimo, modelo norte-americano, onde a economia de mercado é o regulador central da sociedade e do Estado e o Estado Capitalista Máximo representado pelo Welfare state. (p 9-10) 9 Quando falamos sobre aumento da ignorância na sociedade, estamos falando da falta de recursos existentes, onde não é de interesse do Estado que as pessoas tenham clareza das relações e do modo de funcionamento do mesmo.
conscientize, revolte-se e interfira nas relações de mercado, elas acontecem como “leis
naturais”.
Por conseqüência, esse modo de funcionamento influencia a constituição da
sociedade que hoje está organizada de uma forma em que as mudanças são bruscas, as
coisas acontecem rapidamente, e as pessoas não têm tempo de significar tudo o que
acontece em seu dia-a-dia, precisando estar sempre prontas para o novo, para se
transformarem em indivíduos diferentes, visto que, na modernidade, sentem-se ameaçadas
pelos mais variados riscos, tais como tecnológicos, econômicos, sanitários, entre outros.
“Afinal, a ‘identidade’ (tal como costumavam ser a reencarnação e a ressurreição dos
velhos tempos) se refere à possibilidade de ‘renascer’, de deixar de ser o que é para se
transformar em alguém que não é”. (BAUMAN, 2007:15-16) Ao mesmo tempo em que o
indivíduo faz parte da sociedade, convivendo em situações igualitárias com outros
indivíduos, ele precisa ser diferente, para ocupar um lugar próprio na estrutura social,
havendo necessidade de se destacar de alguma forma, a fim de conquistar seus objetivos.
“O perigo não é mais o fato do ambiente, mas os riscos atribuídos às conseqüências das
decisões” (MARTUCCELLI, 1999: 160), pois, conforme citado acima, o indivíduo precisa
ser diferente, mas ao mesmo tempo sua singularidade é muito parecida com os demais, já
que o novo é sempre validado e os símbolos passam a ser os mesmos para todos, de modo
que não haja muita diferença entre as pessoas, por mais que busquem, intensamente,
constituírem-se em indivíduos únicos.
Tem-se, hoje, um modelo consumista, “o indivíduo vive num mundo no qual sua
segurança, individual e social, é fortemente garantida por relações sociais altamente
abstratas e impessoais”. (MARTUCCELLI, 1999: 165) Em correspondência com as
questões acima indicadas, referentes à regulamentação do Estado, estão imbricadas as
relações ocorridas no contexto social, onde o indivíduo não tem muito valor, a
singularidade acaba marcada pela diferença entre o novo e o velho, o fluído – leve e o
pesado. As instituições antes estabelecidas, hoje estão desaparecendo, perdendo seu grande
valor. Ulrich Beck10 denomina essas instituições como “instituições zumbis”, afirmando
que as mesmas “estão mortas e ainda vivas”.
Segundo Andery (2005), essa crise estrutural do Estado – impunidade, aumento da
violência, descrença institucional, entre outros - no Brasil, faz com que os cidadãos vivam
na barbárie e tem como conseqüência um aumento da violência que perpassa por todos os
setores, não deixando a Polícia imune a essa contaminação e, conseqüentemente, obrigando
os indivíduos a viverem com o mínimo possível, sem padrões de referência.
Temos uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos (...) os padrões e configurações não são mais “dados”, e menos ainda “auto-evidentes”; eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. (BAUMAN, 2001:14)
Levando em conta que a violência varia histórica e culturalmente, pois está
relacionada com as normas e tratos vigentes em cada sociedade, é possível perceber como
os princípios têm sido desconsiderados na atualidade, o limite tem sido ultrapassado (não é
mais respeitado o espaço de cada indivíduo, por exemplo) e com isso a perturbação em
relação aos outros tem aumentado, mostrando o desrespeito às regras e ao outro. A questão
da legalidade e legitimidade é fundamental quando discutida a violência, pois se a questão
da legitimidade não for contida satisfatoriamente, “se aqueles que cometeram violência,
não sofrem sanções, a população tende a perder a confiança nas instituições”.
(FERREIRA, 2002:40) Seguindo esse raciocínio, encontra-se a definição de violência de
Yves Michaud:
Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indiretamente, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses ou em suas participações simbólicas e culturais. (MICHAUD, 2001: 10-11)
A partir do exposto por Michaud (2001), e considerando que o estudo ora elaborado
também trata a questão da polícia, é possível pensar que com o aumento da violência e as
peculiaridades encontradas no trabalho dos policiais, estes vivem numa linha muito tênue,
10 Apud BAUMAN, 2007: 13.
pois convivem com a violência na maior parte do tempo em que estão desempenhando suas
funções.
A Polícia é um órgão que oferece proteção e pode coagir indivíduos que
ultrapassem os limites da lei. Trabalha com a relação proteção/ segurança x punição, uma
herança da ditadura militar, e é necessária para a sociedade atual. (ANDERY, 2005)
Segundo Dias Neto (2000), citado por Rorher (2001:17), a “Instituição policial é um órgão
do Estado que tem autoridade (grande) para intervir na privacidade, na autonomia e na
integridade física e psíquica dos cidadãos”. Por ter esse grande poder em suas mãos, é que
muitas vezes os indivíduos se encontram numa situação difícil, onde se vêem com grande
poder ao mesmo tempo em que são cidadãos comuns (ressalte-se que têm família,
necessidades básicas, também sentem angústia, amor, dificuldades financeiras, etc), o que
muitas vezes é esquecido pelas pessoas quando olham para a polícia, pois olham para o
órgão do Estado, somente, e não para o órgão do Estado e para a pessoa que o representa,
que não deixa de ser um indivíduo, embora vestido do fardamento policial. “A questão da
violência policial é importante pelo fato de o Estado não ter mecanismos de conter o uso
desnecessário de violência pelos seus próprios agentes”.(FERREIRA, 2002: 58)
Como diz Rorher (2001) vivemos numa situação conflitiva entre o impacto sobre a
segurança e a qualidade de vida, e entre confiança ou não na justiça. Na pesquisa realizada
por Zaluar (1994) citada por Ferreira (2002: 41), existem dados que mostram uma
ambigüidade em relação a confiar ou não na polícia e os mesmos sugerem que “o nível de
confiança nas ações do Estado interfere no tipo de repressão esperada e que quanto mais
grave a situação dos órgãos de questão da segurança é percebida, mais medidas
repressivas são propostas”.
Segundo Andery (2005), os policiais militares (PMs) não recebem o devido
respaldo, não fazem cursos de capacitação e educação continuada; o que é aprendido na
academia de Polícia será usado sempre em seu trabalho. Na minoria dos dias recebem
supervisão ao final da jornada de trabalho, o que faz com que tenham uma sobrecarga de
decisões e responsabilidades. Passam a ser os únicos representantes do Estado na área em
que atuam e precisam dar conta de todos os problemas que aparecem, não interessando qual
cena foi presenciada, se foi um homicídio ou uma pequena batida de carro onde só é
necessário fazer o Boletim de Ocorrência (B.O.). Pinheiro (1998), citado por Ferreira
(2002), fez um diagnóstico da polícia destacando questões de racionalização dos gastos de
segurança e de adaptação das instituições policiais às regras de uma sociedade democrática,
onde devem vigorar os direitos dos cidadãos e o controle da violência. Nesse diagnóstico,
destacou pontos como:
Descompasso entre o dever de assegurar os direitos democráticos e a segurança, dizendo que a polícia continua atuando como guarda - fronteiras entre as classes; diferenciação regional; ineficiência da organização em controlar o arbítrio e melhorar o desempenho de seus membros; autonomia excessiva e a falta de controle das policias pelos governos estaduais; incentivo ao uso de armas das corporações e de armas particulares por policiais fora de serviço; má divisão dos recursos para pagamento de pessoal na polícia, incentivando os ‘bicos’ e aumentando a vulnerabilidade dos policiais à violência; precariedade da investigação criminal; e anacronismo de uma policia ostensiva militarizada pelo fato de não haver maiores ameaças violentas aos governos estaduais. (PINHEIRO, 1998 apud FERREIRA, 2002: 58-59)
Por esses e outros motivos os PMs estão se organizando em associações que visam
parcialmente atendê-los em situações de acidente de trabalho, separações conjugais,
tentativas de suicídio e associações religiosas. Ou seja, associações que atuem sobre o
impacto da violência ou outros aspectos na vida pessoal dos policiais11.
A Associação PMs de Cristo, que será apresentada na presente pesquisa por ser
religiosa, tem como missão apoiar psicologicamente os policiais, fazendo um trabalho de
ronda para valorizar a vida do policial, atendendo-o no próprio lugar de trabalho, no
hospital e no presídio Romão Gomes. Existe, dentro da associação, um aconselhamento
pastoral, um serviço de plantão que ajuda o policial e sua família. Esse trabalho é
desempenhado por um pastor com experiência nessa atividade específica, pois, para dar o
aconselhamento, precisa passar por um treinamento e ter um bom “currículo”. A diferença
entre a associação e uma igreja é que, a primeira, conhece melhor tudo aquilo pelo que o
policial passa e vai ao encontro deste, fazendo com que aceite com maior facilidade seu
auxílio, pois individualiza o ser humano e começa sua ação levando Deus e a palavra, não a
11 In ANDERY (2005) e discussões feitas no Núcleo de Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – SP em 2005, quando o enfoque era a Policia Militar.
igreja. Por esse motivo sua ação não diz respeito a uma Igreja, leva o nome da mesma, mas
relaciona-se a muitas Igrejas Evangélicas12.
Segundo o Ex-Tenente Zeza (da Associação dos PMS de Cristo), o Policial Militar,
por estar em contato com a violência o tempo todo, não percebe que essa o ultrapassou, ou
seja, que está agindo com violência em seu cotidiano. Fica em “guarda”, como se estivesse
trabalhando, o que pode desestruturar sua família e a si próprio. Não tem momentos de paz,
tranqüilidade e distanciamento, necessários para repor as energias. “Segurança pública não
depende só do policial, mas a sociedade quando fala em segurança olha para o policial,
não pensa em infrações que as pessoas fazem que causem insegurança. É preciso que a
sociedade veja que ela também contribui para segurança. Se a sociedade rejeita o policial,
muitas vezes ele leva consigo essa rejeição, por isso é preciso que a sociedade mude de
comportamento”13.
Esse contexto, violência no cotidiano e modo de agir do policial quando não está no
exercício do trabalho, demonstra uma parcela dos problemas que ocorrem em nossa
sociedade, onde os indivíduos vivem em crise, pois não sabem em quem podem confiar e
está cada vez mais difícil sair de determinadas situações, já que o grande valor é dado ao
capital. A globalização neoliberal tem como conseqüência o desemprego estrutural e a
radicalização da pobreza e da exclusão social, pois “dificilmente são encontradas políticas
sociais que não sejam apenas compensatórias, no sentindo estrito de salvaguardar as
relações de mercado e compensar mazelas frente às massas marginalizadas através de
ofertas clientelistas ou assistencialistas”. (DEMO, 1995: 23; ANDERY, 2005)
Contudo, pode-se pensar no sistema penal (exercício institucionalizado de poder
punitivo), por ser “a dimensão de controle e regulação social. Nele, não é consolidada a
proteção do indivíduo e sim a reprodução de estruturas e instituições sociais”.
(ANDRADE, 2003:22). A mesma autora afirma que esse sistema aproveita que o fato de o
senso comum enxergar as manifestações de criminalidade de uma maneira maniqueísta, 12 Idem. 13
Entrevista feita com o Ex-tenente Zeza na Associação dos PMs de Cristo, no primeiro semestre de 2005. Como trabalho para o Núcleo de Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – SP.
onde o bem e o mal estão divididos na sociedade. Aparentemente, através dos homens bons
(pessoas que garantem a cidadania) e dos homens maus, simbolizados pelos criminosos:
observa-se um fator preocupante, pois radica tudo no sujeito e acaba imunizando as
estruturas e relações sociais da culpa, já que é a ação bondosa ou maldosa do sujeito que
determina sua conduta. Segundo Sequeira (2000), muitas vezes justifica-se o
comportamento do criminoso a partir de fatores sociais ou então a partir de explicações
moralistas, como se características intrínsecas ao sujeito fossem responsáveis pelos atos
delituosos.
Andrade (2003) diz que se tudo radica no sujeito, estão sendo imunizandas de culpa
as estruturas e relações sociais, pois a bondade ou maldade do sujeito é que determina sua
conduta. O que demonstra pouca expectativa nos indivíduos em relação ao seu modo de
viver e enfrentar os problemas ou em relação ao crescimento dos mesmos, já que são vistos
somente pelo causal e como mercadorias, com valor de uso.
Só como mercadorias, só se forem capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, é que os consumidores podem ter acesso à vida de consumo. Na vida líquida, a distinção entre consumidores e objetos de consumo é, com muita freqüência momentânea e efêmera, e sempre condicional (BAUMAN, 2007: 18)
Ou seja, os indivíduos, além de terem que enfrentar a falta do Estado, para poderem
sobreviver na sociedade contemporânea precisam lutar para mostrar que têm valor, como
uma mercadoria, onde vale mais o objeto – o consumo – do que o próprio indivíduo. Sendo
assim, é possível pensar na relação da violência como forma de o indivíduo mostrar sua
existência, como nos diz Martuccelli (1999:158) “por não dispor de outros meios, o ator
recorre à violência para se fazer ‘ouvir’”, como, por exemplo, as rebeliões dentro dos
presídios que servem para denunciar precariedade, existência de facções, etc. Tais fatos
evidenciam a necessidade de considerar a responsabilidade do sujeito, sem, entretanto,
desconsiderar o contexto social (SEQUEIRA, 2000) para que seja possível compreender,
ou pelo menos entender, o que determinado ato quer dizer, já que às vezes vem carregado
com outras questões que não podem ser ditas, ou o próprio indivíduo não encontra outra
forma de manifestar um conflito.
Martuccelli (1999), relata que existem dois fenômenos, diversos, que interferem no
modo em que a violência na modernidade é interpretada. Um deles é a
Deslegitimação crescente das práticas violentas, que doravante não possuem mais nenhuma significação positiva no seio das sociedades modernas. E outro diz que o aumento da consciência dos perigos e dos riscos possíveis no mundo moderno pode enraizar-se e prolongar-se na estética da violência proposta pela mídia, ele se refere antes de tudo, e de maneira substancial, à vontade do projeto moderno de domínio crescente do ambiente e à consciência de seus limites. (p 172)
Na sociedade atual, tem-se também grande influência da mídia na vida das pessoas,
a propagação de informações é muito grande e os meios de comunicação têm crescido e
demonstrado mais agilidade e rapidez a cada momento. No mesmo âmbito de pensamento,
encontra-se Caldeira (1991), citado por Ferreira (2002:12), que identificou na mídia dois
discursos defendendo soluções concorrentes para o crescimento da criminalidade violenta.
“De um lado, a defesa da contenção da criminalidade por meio de uma ação mais
truculenta do sistema de segurança e justiça penal junto ‘aos bandidos’” (demonstrando
que o combate à criminalidade se coloca acima dos direitos dos cidadãos).
De outro, a defesa do controle da violência, incluindo a limitação legal da atuação policial e a punição de justiçamentos privados (por meio da ação de grupos de extermínio e justiceiros) e linchamentos. A divulgação destas posições na mídia pode acabar contribuindo para reforçar ou mudar posições existentes na população de forma geral.
Enfim, a sociedade vive a pós-modernidade, momento conflitante, pois muitas
mudanças estão acontecendo sem que seja possível percebê-las, ou aprender como agir – ou
reagir - de acordo com o que aparece como demanda. Ao mesmo tempo em que o indivíduo
deseja ser único, busca locais para permanecer em grupos, onde possa identificar-se com os
outros, seja por meio da violência ou da igualdade de pensamento. Devido à influência da
mídia, e à grande quantidade de informações recebidas diariamente, as pessoas sofrem as
mais variadas emoções e sentimentos, pois não se sentem pertencentes e seguras em relação
a quem deveria lhes oferecer segurança. Em resposta a essa necessidade da população,
estão sendo criadas cada vez mais “comunidades”, locais que são identificados como porto-
seguro. (BAUMAN, 2001)
3. Psicologia Analítica
A Psicologia Analítica foi estruturada por Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, na
primeira metade do século XX. Sua teoria tem como foco estudar o desenvolvimento da
psique na “segunda metade da vida”, como denominou a fase adulta. Seus conceitos são
complexos e como ele mesmo fez, é necessário vivenciá-los para poder compreendê-los e
melhor assimilá-los.
Jung, antes de formular sua própria teoria, foi parceiro de Freud, com quem teve
grandes discussões. Dentre os diversos conceitos discutidos, apreendidos e divergentes
entre eles, estão o inconsciente e a religião, que são importantes para esse trabalho. “Para
Jung a religião apresenta-se como um fenômeno genuíno; para Freud é um derivado do
complexo paterno e uma das sublimações possíveis do instinto sexual”. (SILVEIRA,
1997:125)
Para Freud, o inconsciente existe e nele são colocados os materiais reprimidos que
se pode dizer que nunca foram conscientes, pois assim que surgem para consciência são
recalcados. “De acordo com a concepção desta escola [de FREUD], o homem, como ser
civilizado, não pode vivenciar uma série de instintos e desejos simplesmente porque são
incompatíveis com a lei e com a moral. O homem, desde que queira adaptar-se à
sociedade, é obrigado a reprimir estes desejos”.(JUNG, 2007, grifo nosso)
Para Jung há duas esferas do inconsciente, sendo uma coletiva e a outra pessoal e
não se tratando de um local onde os conteúdos reprimidos são, somente, “colocados”, mas
de um local que promove sintomas, sinais e sonhos, por isso de criatividade – aspecto
originário do Inconsciente Coletivo, pois o mesmo tem “inúmeras maneiras de
manifestação do coletivo através de uma leitura individual, sendo essa função
indispensável ao desenvolvimento humano”. (ZENI, 2005:20) Mas, segundo Jung (2007), o
inconsciente só terá para nós uma função criadora de símbolos se estivermos dispostos a
reconhecer nele um elemento simbólico. (p 27)
O inconsciente pessoal diz respeito a aquisições derivadas da vida individual e
fatores psicológicos; são ditos de natureza pessoal porque podemos reconhecer seus efeitos
na história de uma pessoa, manifestação parcial ou origem específica. O inconsciente
coletivo é a camada mais profunda, fonte inesgotável de energia e de conteúdos à priori,
portanto criativo em relação à psique. Segundo Jung (2000), essa esfera do inconsciente é
de natureza universal, possui conteúdos e modos de comportamento, estando estes em toda
parte e em todos os indivíduos. “Constituem um substrato psíquico comum de natureza
psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo (...) o inconsciente coletivo não se
desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes,
arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma
definida aos conteúdos da consciência”.(p 15 - 54)
Os arquétipos aparecem em forma de símbolos arquetípicos, em determinada era e
local de determinada maneira, conforme citação acima, “representam essencialmente um
conteúdo do inconsciente coletivo, o qual se modifica através de sua conscientização e
percepção, assumindo matrizes que variam de acordo com a consciência individual na
qual se manifestam”. (JUNG, 2000: 17) “O arquétipo é uma fonte primária de energia e
padronização psíquica. Constitui a fonte essencial de símbolos psíquicos, os quais atraem
energia, estruturam-na e levam, em última instância, à criação de civilização e cultura”
(STEIN, 1998b: 81; JUNG, 1987a), pois dão a base para os comportamentos de cada etapa
da vida. A manifestação do arquétipo é vista de forma polarizada, mas de acordo com cada
comportamento, surgimento de símbolos/ imagens, é possível analisar e identificar qual é o
arquétipo que está “agindo” naquele momento, o que faz com que se torne consciente.
Isto posto, os símbolos são a conexão do consciente com o inconsciente e o
fenômeno psíquico possível de ser analisado, ou seja, dizem respeito a algo vivido ou
chamativo para o indivíduo, pois causam emoção.
O símbolo traz para consciência conteúdos do inconsciente coletivo (arquétipo) e conteúdos do inconsciente pessoal (complexo). Segundo Jacobi (1986), “quando o arquétipo aparece no aqui e agora do espaço e do tempo, podendo ser, de algum modo
percebido pelo consciente, falamos então de símbolo” (opc.cit. p 7214). Através desse fenômeno psíquico, o conhecimento do inconsciente torna-se possível por via indireta. (PENNA, 2003: 169)
Estes (símbolos) “podem ser interpretados a partir de um contexto psicológico
histórico, cultural ou generalizado15”. Através deles é possível identificar os complexos
que temos, pois segundo Penna (2003), permitem a apreensão e compreensão da realidade
psíquica. (p 170)
O complexo, conteúdo do inconsciente pessoal, é um núcleo de energia com carga
afetiva forte que tem associado elementos que dizem respeito a um aspecto da vida
individual. São imagens inconscientes e responsáveis por perturbações da consciência.
Caracterizam os pontos suscetíveis de crise do indivíduo, quando vão para consciência,
através dos símbolos, causam grande emoção e fazem com que em alguns momentos o
indivíduo fique paralisado, não conseguindo agir naturalmente em determinadas situações.
Todos temos complexos, eles são expressão de temas da vida, que são também problemas da vida. Eles constituem nossa disposição psíquica, da qual ninguém pode fugir. Desse modo, os símbolos seriam expressão de complexos, mas seriam ao mesmo tempo, estações de processamento dos complexos. Ora, os complexos em si não são evidentes. Experienciável é a emoção que lhe é própria; perceptíveis são os modos estereotipados de comportamento que ocorrem no âmbito do complexo. Nos símbolos, por assim dizer, os complexos se desdobram em fantasias. (KAST, 1997:42)
Por esse motivo, quando um complexo está ativado o comportamento do indivíduo é
diferente, o desenvolvimento da individualidade não acontece normalmente, o que para
Jung é chamado de processo de individuação. Processo, esse, em que o Self convoca o Ego
a tornar-se aquilo que é, por meio do contato entre o mundo interno e externo, através do
qual é buscado um equilíbrio entre as polaridades (consciente e inconsciente) para chegar à
totalidade. Através dele os indivíduos se transformam em seres únicos e repletos de
possibilidades. “Pode ser considerado como um processo que busca a ampliação da
consciência, por existir conscientização de conteúdos desconhecidos pela consciência”.
(ZENI, 2005) Portanto, a individuação, segundo Jung (1987a), significa um processo de
desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas e
14 JACOBI,J Complexo Arquétipo Símbolo na Psicologia de C. G. Jung São Paulo: Editora Cultrix, [1957], 1986 15 In http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/simbolo.htm acessado em 24/03/2008
adquiridas. Com esse processo, as características do indivíduo tornam-se cada vez mais
pessoais e menos tomadas de características familiares, por exemplo.
As pessoas desenvolvem-se sob muitos aspectos ao longo de suas vidas, e passam por múltiplas mudanças em muitos níveis. A experiência total de integridade ao longo de uma vida inteira – o surgimento do si-mesmo na estrutura psicológica e na consciência – é conceituada por Jung e denominada individuação. (STEIN, 1998: 153b)
O si-mesmo é mais conhecido como Self e diz respeito à totalidade psíquica, para
Jung. Segundo Bezerra (1995), pode ser chamado de “Deus dentro de nós” e tem como
linguagem o símbolo. De acordo com Stein (1998b), situa-se além do domínio psíquico,
definindo-o como o mais impessoal dos arquétipos. “O Self gera impulso para
individuação, dele fluem nossas aspirações e instintos que suscitam a ânsia de nos
tornarmos aquilo que somos genuinamente, é o si mesmo que exige a concretização dos
seus potenciais”. (ZENI, 2005:20-21)
A sintonia com o self acontece através da auto-regulação, movimento que ocorre
naturalmente e diz respeito à dinâmica dos contrários como, por exemplo, a relação ego-
sombra16. Esse movimento tenta equilibrar tal relação, pois regula os conteúdos da sombra
com os do ego. Por esse motivo, as pessoas que não estão em equilíbrio, e acabam tendo os
conteúdos da sombra muito evidentes, agem de forma incomum, levando em conta o modo
de agir habitual.
Uma vez que apenas o bem é reconhecido, somos incapazes de aceitar e enfrentar a violência, a agressão e o sofrimento, a não ser tentando, impotentes, legislar de modo a afastar ou execrar essas manifestações (...) Dado que não tem um lugar significativo em nosso universo, a morte e a destruição geram terror e condenação moral. (WHITMONT, 1991:110)
O que quer dizer que muitos conteúdos, que vão para sombra, não são bem vistos
pela sociedade e precisam ficar “escondidos” junto a outros com os quais não queremos
entrar em contato no momento, sendo eles mal-vistos ou não.
16 Sombra é uma das estruturas da psique, diz respeito aos conteúdos reprimidos pelo ego, ou seja, características pessoais que não são bem aceitas pelo ego/ vistas pela sociedade. Segundo Stein (1998b), é caracterizada pelos traços e qualidades que são incompatíveis com o ego consciente e a persona (identidade psicossocial do indivíduo, máscara da psique coletiva que aparenta individualidade).
Byington, um dos seguidores de Jung, nomeou de dinamismo psíquico ou ciclos
arquetípicos, os períodos da vida em que arquétipos são ativados na consciência.
Denominou de ciclos/ dinamismos porque estes arquétipos podem ser ativados em qualquer
momento da vida.
Para Byington,
os ciclos arquetípicos são uma forma de abordarmos certas características evolutivas da consciência individual e coletivas em conjunto (...) por um lado, ele expressa a implantação progressiva de um determinado padrão de funcionamento da consciência; por outro, mantém a ação criativa do inconsciente coletivo durante toda a vida através do arquétipo regente que coordena cada ciclo. (BYINGTON, 1986:41)
Ele denominou quatro ciclos: matriarcal, patriarcal, alteridade (conhecido também
como coniuntio por Jung e conjugalidade por outros) e cósmico. Serão apresentadas
considerações sobre os ciclos matriarcal e patriarcal, que para o estudo são mais
importantes.
No dinamismo matriarcal tem-se a predominância do arquétipo da grande mãe, que
tem seu símbolo derivado do arquétipo materno;
seus atributos são o ‘maternal’: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal. Existem as qualidades opostas desses atributos que correspondem à mãe amorosa e à mãe terrível. (JUNG, 2000:92, grifo nosso)
Nesse dinamismo as coisas acontecem, não existe causalidade e lógica, antes ou
depois, causa e efeito. A lei é da natureza e há uma proximidade entre o consciente e o
inconsciente; não se pode dizer que existem sociedades sob a égide desse dinamismo,
porque dizer isso significa supor que existem regras e no dinamismo matriarcal cada um faz
parte do todo, as pessoas não se diferenciam. Nessa consciência não existe começo e fim,
por isso pode-se falar em eternidade. O mundo é mágico, não há distinção de tempo, vive-
se o aqui e agora. “No nível mágico ou instintivo só existe o aqui e agora. Ele tudo contém.
O passado, o presente, o futuro não estão diferenciados. Não há dentro e fora; corpo,
mente ou psique; o eu e o outro”. (WHITMONT, 1991: 62)
O mesmo autor continua:
o comportamento mágico é pré-moral ou amoral, da mesma forma como é pré-consciente segundo nossos padrões de consciência. O indivíduo é um membro do rebanho, participante e beneficiário ou vítima de um processo não-pessoal cujo padrão é grupal. As contingências da vida são uma questão a ser enfrentada em grupo. A consciência é uma consciência grupal. A vontade é do coletivo. O que chamamos de bom ou correto é, simplesmente, o que propicia terror e perigo, o que beneficia e sustenta a vida do grupo. O que hoje consideramos necessidades ou direitos individuais são coisas irrelevantes e até mesmo impensáveis nesse nível. (WHITMONT, 1991:64)
A passagem do dinamismo matriarcal para o patriarcal, segundo Whitmont (1991)
se deu através da fase mitológica, momento em que começa a surgir a diferenciação entre
eu e o outro, mente e corpo; a razão começa ser bem presente no pensamento humano; as
questões grupais deixam de ter tanta força, o individual passa a ser importante também.
O dinamismo patriarcal opera sob a predominância do arquétipo do pai. Nesse
dinamismo começam a surgir os conceitos, as formas, o deus passa a ser único e o feminino
não é tão valorizado; esse dinamismo também é denominado como fase mental por
Whitmont. Essas separações: entre eu e outro, homem e mulher, são necessárias para a
formação do ego. É nesse momento que ele começa se consolidar e passa a existir a sombra
e o indivíduo através do inconsciente coletivo e da consciência coletiva já existente. Ou
seja, começam a se formar as sociedades organizadas, a cultura e o pensamento se torna
lógico.
A relação com o Deus também se transforma, não existem mais diversas Deusas,
quem prevalece é o masculino – o pai – e passa a existir um único Deus, homem que vai
dar as regras e o estado e a sociedade como entidades separadas. Segundo Whitmont, a fase
patriarcal:
É a primeira fase de controle do ego, dominada pelo superego ou persona. São elementos básicos ao patriarcado e ao referencial andolátrico a rejeição e a desvalorização (a) da divindade feminina (conseqüentemente, dos valores femininos); (b) dos impulsos naturais; (c) das emoções e desejos espontâneos. Os primeiros vestígios de um ego consciente são desenvolvidos pelo controle e pela repressão de impulsos e necessidades subjetivas, ou seja, pela autonegação. (WHITMONT, 19991: 88)
Na atualidade, vive-se num momento de transição, ao mesmo tempo em que o
dinamismo patriarcal e seu modo de ver o mundo estão imbricados no modo de as pessoas
viverem, existe, também, grande influência do dinamismo matriarcal. Pois, as religiões,
buscam por grupos onde se pode agir menos pela razão e pensar como o todo. Em razão
desse comportamento, as pessoas querem viver de forma individualista, nos desvinculando-
se da natureza e tendo relações cada vez mais rápidas, onde os laços não ficam tão
duradouros (como apresentado com referência a Bauman nos capítulos anteriores).
No dinamismo patriarcal, “em virtude de sua ênfase sobre a imagem do pai, e de o
conteúdo do superego ser constituído por regras e normas sociais, a consciência
fundamenta-se na autoridade paterna” (STEIN, 1998a: 24), e pode ser denominada como
solar. Nesse dinamismo encontramos o símbolo do bode expiatório que é usado como
mecanismo de exclusão, pois deixa algo que não é bem visto e não suportável (por
incomodar) fora da consciência; diz respeito às coisas que se acredita serem ruins. Pode-se
usar como exemplo a relação ego – sombra. O ego é o que é mostrado (persona17), “a parte
bonita” e a sombra algo reprimido, que não pode ser colocado em público e usado como
persona.
“O modelo patriarcal propiciatório para se lidar com o instinto do inconformismo
e com a agressão pode ser ilustrado pela antiga cerimônia israelita do bode expiatório”
(WHITMONT, 1991: 124-125) onde existem dois bodes, um será destinado ao Senhor e o
outro será apresentado vivo ao Senhor e enviado para o deserto para Azazel.
Nem toda força vital pode ser sacrificada e dedicada à observância da lei. Há ânsias inaceitáveis, que não podem ser erradicadas. Devemos então nos distanciar delas e enviá-las para longe. (...) A diferença entre destruir e banir é a diferença entre a repressão e a disciplina. A repressão tenta matar o impulso, tornando-o inconsciente. A disciplina reconhece e acolhe o impulso, mas escolhe não agir em função dele. Ele pode viver embora banido para o deserto, em território adequado a ele, até que chegue o momento em que possa ganhar uma expressão conveniente nas festividades dedicadas a Dionísio, nas orgias ou em outros ritos para descarga da violência. (WHITMONT, 1991: 127-128)
17 Persona - máscara da psique coletiva que aparenta uma individualidade, apresenta um compromisso entre o indivíduo e a sociedade. Ou seja, é o rosto que usamos para o encontro com o mundo social que nos cerca, o contrário da sombra. É a pessoa que passamos a ser em resultado dos processos de aculturação, educação e adaptação aos meios físico e social, por isso existem personas diferentes em nosso dia-a-dia. (JUNG, 1987a; STEIN, 1998b))
Esse símbolo do bode expiatório é visto hoje em todas as pessoas, pois todos
precisam carregar a culpa e a alienação. Vive-se um momento onde só as nossas crenças é
que são boas e têm valor, as dos outros são ruins e não levam à libertação. Os impulsos, a
agressividade e outros sentimentos relacionados são vistos como ruins e por isso precisam
ser reprimidos ou colocados no outro, projetados, para que nossa imagem seja sempre boa.
“Torna-nos a todos andarilhos solitários perdidos num grande deserto, sentindo-nos
alheios e distantes de uma origem divina transpessoal, para sempre fadados ao ‘pecado’”.
(WHITMONT, 1991:138) E só é possível sair desse local, onde todos são bodes expiatórios
e não olham para os próprios sentimentos, quando reconhecem e aprendem a lidar com o
lado bom e o mal que temos dentro de nós.
Entretanto,
não podemos perder de vista o fato de que a disciplina do superego ainda é essencial para aquelas pessoas que ainda não alcançaram a consciência moderna, quer dizer, que não consolidaram uma plena estabilidade do ego. Para esse grupo, o conformismo (incluindo o padrão de bode expiatório) ajuda a construir a personalidade através de sua resistência, de sua frustração, de sua autodisciplina. (WHITMONT, 1991: 135)
Em razão do homem viver no dinamismo patriarcal, em que a ordem e a consciência
racional imperam, apresenta medo de mudança, pois ela ameaça seu estado atual de
consciência e a continuidade do “modus vivendi”. O ego patriarcal teme a mudança porque
se assenta na ilusão da mesmice. “Deseja a vida, mas cria exatamente a destruição e o mal
que teme e renega. (...) Tememos a violência porque fomos levados a esperar uma vida
organizada, racional, pacífica e perpétua”. (WHITMOTN, 1991: 32-33)
3.1 Psicologia Analítica e Religião
“Deus é um mistério, e tudo que dizemos sobre esse mistério é dito e acreditado pelos seres humanos. Fazemos imagens e conceitos, porém quando falo de Deus sempre quero dizer a imagem que o homem fez dele. Mas
ninguém sabe com o que se parece, pois quem o fizesse seria, ele próprio, um deus” (Jung, apud Aranha, 2004).
Jung acredita que “todas as religiões são válidas na medida em que recolhem e
conservam as imagens simbólicas oriundas das profundezas do inconsciente e elaboram
seus dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica”.
(SILVEIRA, 1997:125) Entende religião pelo latim Religio (re – ligare), que quer dizer
tornar a ligar, ou seja, ligar o consciente com fatores do inconsciente; fatores estes que têm
grande carga energética e intensos dinamismos. “Aqueles que os defrontam falam de uma
emoção impossível de ser descrita, de um sentimento de mistério que faz estremecer
(mysterium tremendum)”.(SILVEIRA, 1997: 126)
Com concentração da atenção do inconsciente, as religiões provocam também um extravasamento de conteúdos e forças inconscientes na vida consciente, influenciando-a e alterando-a (...) Confere ao conteúdo inconsciente um valor considerável, através de um dogma de fé ou de uma superstição, isto é, por meio de um conceito carregado de emoção. (JUNG, 2007:23)
Para Jung é uma acurada e conscienciosa observação do que Rudolf Otto denomina
de numinoso – “ato ou efeito dinâmico não causado por um ato arbritário. Pelo contrário,
o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador (...)
constitui uma condição do sujeito e é independente de sua vontade”. (JUNG, 1987b: 9) A
religião é entendida como uma atitude do espírito humano, pois designa uma atitude da
consciência, particular, transformada pela experiência do numinoso. Essa vivência do
numinoso e a realização de opostos proporcionada pelo diálogo entre o Ego e o Self seria a
religiosidade. E o numinoso, segundo Zeni (2005:22), é uma “energia capaz de provocar
grandes mudanças através da ativação de emoções conscientes ou não”.
Ainda Jung, diz que as religiões provocam um extravasamento de conteúdos e
forças inconscientes na vida consciente, influenciando-a e alterando-a. E que as mesmas se
incumbem dessa compensação (material inconsciente em consciente) de diversas formas,
“tomando as manifestações do inconsciente como sinais, revelações, ou advertências
divinas ou demoníacas”. (JUNG, 2007:23)
O mesmo autor quando fala de religião não diz respeito a uma Igreja ou crença em
particular, fala sobre a experiência religiosa como processo psíquico e a atitude religiosa
como função psíquica natural. Interessa-se pela simbologia das religiões, pois a linguagem
das mesmas é feita de símbolos que atuam sobre a vida dos homens, cada vez mais
profundamente. Tais símbolos têm a função de promover o processo de individuação e
favorecer a ampliação da consciência através da comunicação entre o inconsciente e o
consciente, por isso têm um significado diferente para cada um dos homens (SILVEIRA,
1997; ZENI, 2005)
Gostaria de deixar claro que, com o termo “religião”, não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa. A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro lado, também na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. (Jung, 1987b: 10).
Segundo Aranha (2004), para Jung a numinosidade encontrava expressão ou
correspondência na “imagem de Deus” (Imago Dei) de indivíduos que expressassem o
conteúdo arquetípico de forma reconhecível. Sendo assim, a função religiosa passava a
estar intimamente ligada ao conceito de arquétipo, ou seja, aos elementos primordiais da
psiquê humana que “se apresentam como idéias e imagens” (Jung, 1971d: CW 8ii, par. 435
apud ARANHA, 2004).
Jung (1987b) afirma que a experiência do arquétipo da divindade apresenta-se como
um impacto violento ao ego a ponto dele correr risco de se desintegrar. E que, como meio
de defesa a esse encontro violento com essa existência forte, o homem criou rituais como as
cerimônias religiosas, onde as energias existentes no psiquismo dirigem-se e articulam-se
em busca à totalidade. “Grande número de práticas rituais são executadas unicamente com
a finalidade de provocar deliberadamente o efeito do numinoso, mediante certos artifícios
mágicos como p. ex. a invocação, a encantação, o sacrifício, a meditação, a prática de
ioga, mortificações voluntárias de diversos tipos, etc.” (JUNG, 1987b: 9) Pois estas se
originaram como necessidade de proteção e funcionam como anteparo entre o divino e o
humano, “isto é, entre o arquétipo da imagem de Deus, presente no inconsciente coletivo, e
ego”. (p 133)
Para Jung, o arquétipo de Deus tem grande relação com o self, instância que abriga
a imagem divina na psique, que seria um princípio organizador da personalidade capaz de
dar significado ao símbolo. Segundo Zeni (2005), “assim como Deus, o arquétipo do Self
só pode ser conhecido pela sua expressão no mundo concreto, uma vez que está além dos
limites da consciência racional e da sua capacidade de apreensão”. (p 25) O que mostra
que a vivência desse arquétipo (Self) é ao mesmo tempo vital e perturbadora para o homem,
pois é carregada de intensa e profunda experiência, assim como a vivência do arquétipo da
divindade (citado acima).
Quando acima foi mencionado o self como estrutura totalizadora deste processo, quis-se evidenciar que para tanto é necessário o engajamento do ego que irá responder às solicitações do processo de individuação, o qual Jung conceitua como sendo “o processo pelo qual os seres individuais se formam e se diferenciam; em particular, é o desenvolvimento de um indivíduo psicológico como um ser distinto da psicologia geral e coletiva”. (Jung, 1971b: CW 6, par. 825). Esta “individuação”, ou seja, este “ato auto-realizador” se torna um ato de significação religiosa, uma vez que confere significado ao esforço individual. De outro modo, poder-se-ia dizer que o “ato de viver” se dá por meio de uma dinâmica dialética onde conflitos e resoluções interagem constantemente dando significado a existência humana. No âmbito das interações entre indivíduo e psique coletiva, entende Jung que a existência de uma atitude religiosa viva e válida é o único meio capaz de promover esta conciliação. (Aranha, 2004)
Ao tratar a questão do arquétipo, Jung relata a importância dos sonhos em sua obra
Psicologia e Religião. Pererius, citado por Jung, diz que os sonhos têm quatro causas: “1)
doença física; 2) afeto ou emoção violenta, produzidos pelo amor, pela esperança, pelo
medo ou pelo ódio; 3) o poder e a astúcia do demônio, isto é, de um deus pagão ou do
diabo cristão; 4) sonhos enviados por Deus” (JUNG, 1987b: 21)
Por ser o impulso religioso arquetípico, ele pode mudar de imagem, como, por
exemplo, quando acontece o empoderamento do ego, e através dele, a ruptura do mesmo
com o self, quando o ego passa a poder tudo. A responsabilidade não vem mais de fora,
tudo está nas mãos do indivíduo e com isso outras questões são tratadas como divinas.
Como por exemplo, observa-se hoje o “endeusamento” em relação ao dinheiro e à ciência.
“Essa fé cega, antes atribuída ao ‘Assim disse o Senhor’, encontra-se hoje transferida para
o ‘a ciência ensina’, com toda a sua antiga inviolabilidade mantida intacta”
(WHITMONT, 1991:114)
Junto com essa mudança em relação à idéia de Deus, onde o Deus religioso muda
para um deus laico como o dinheiro ou o poder, verifica-se a mudança em relação à forma
de lidar com a fé e com os outros indivíduos. É possível ver e viver a individualização da
sociedade junto com a necessidade de pertencimento a um grupo, ou seja, um período de
transição com grandes dificuldades onde se age, muitas vezes, pelo dinamismo matriarcal,
onde tudo acontece de forma mágica ao mesmo tempo em que os indivíduos vivem e são
regidos pelo dinamismo patriarcal.
Em conjunto com essas modificações e dificuldades encontradas nas relações
sociais, a visão sobre a religião e a relação entre o homem e Deus sofreu mudanças;
principalmente quando citadas algumas Igrejas, como as neopentecostais (um dos grupos
de Igreja dentre as Igrejas Evangélicas), que tratam essa questão de uma forma que
aproxime Deus das pessoas e faça com que ele seja obrigado a dar o que é pedido através
de um pagamento. Ou seja, hoje existe um novo perfil do sagrado, onde a fé é o grande
instrumento e o Reino de Deus que,
não distribui necessariamente justiça, mas benesses, principalmente materiais e individuais (...) Eclesiologicamente há formas de neopentecostalismo que combinam os temas congregacionalista e episcopal de governo, num modelo de administração eclesiástica centralizado nas figuras do “bispo”, “missionário” ou “apóstolo”. Tais personagens se configuram como líderes carismáticos, que governam de uma maneira personalista, centralizadora e autoritária seus movimentos, às vezes designando a si mesmos como “apóstolos” ou “missionários”, e as seus empreendimentos como “Igreja”, “Comunidade” ou “Ministério” (CAMPOS, 1997:12-19)
Segundo Zeni (2005), a vivência religiosa permeia o processo de individuação uma
vez que remete o sujeito às experiências que facilitam a ampliação da consciência através
do contato entre os aspectos individuais e coletivos oriundos da psique. (p 23) Essa
vivência pode ser comparada à experiência do inconsciente coletivo, pois coloca o homem
em contato com a sua própria essência e é entendida através de seu simbolismo,
possibilitando “uma maior apreensão do arquétipo que lhe dá sua energia”. (p 24)
O processo de individuação é permeado pela vivência religiosa, uma vez que as
religiões têm o objetivo de proporcionar o desenvolvimento psíquico através da relação
consciente – inconsciente, ou seja, o diálogo entre Ego e Self (que é indispensável para o
desenrolar deste processo), possibilitando então, o desenvolvimento psíquico, fortalecendo
o psiquismo e aumentando a confiança que cada um sente em si mesmo. (ZENI, 2005)
Por fim, as religiões são vistas como manifestações arquetípicas pela Psicologia
Analítica, já que falam da correlação entre seus símbolos e o significado atribuído
individualmente pelas pessoas, além de propiciar a comunicação Ego-Self num espaço
protegido pela presença do Outro no interior do homem. E o numinoso só pode ser
vivenciado quando há ressonância dessa vivência no mundo interno, demonstrando, então,
que o encontro com o sagrado não pode ser satisfatório quando focado apenas no mundo
externo.(ZENI, 2005: 26-27)
4. Análise: Como se dá o Processo de Individuação Dentro do Presídio?
Levando em conta tudo o que foi verificado sobre o Sistema Prisional e o presídio
em questão, as Igrejas Evangélicas e as questões da sociedade atual, será apresentada, neste
capítulo, a simbologia das referidas instituições (presídio e Igreja), através da Psicologia
Analítica e com base nas entrevistas realizadas com um presidiário, buscando identificar
como o mesmo se vê hoje.
4.1 Relações entre Presídio e Religião
Segundo Andery (2005), muitas pessoas ao entrarem no presídio se tornam
religiosas e usam a religião como válvula de escape, maneira de pertencer a um grupo, ou
diminuir a angústia por estarem privadas de sua liberdade. O fato de ser a religião um meio
de o indivíduo diminuir sua ansiedade tem relação com o culto, por ser este um local onde o
mesmo se sentirá igual aos outros, poderá receber apoio, pensar nas perdas que teve ao
entrar no presídio e se sentir próximo de Deus durante a oração. O indivíduo busca na
religião, normalmente, aquilo que falta, desde um acalanto para sua dor até a realização de
desejos. Isso pode ser ilustrado com a fala de D.18 quando conta da sua aproximação com a
religião “(...)Ai comecei a entender as palavras de Deus, de Jesus através do evangelho e
todas as vezes que eu ali freqüentava me sentia fortalecido, fortalecido e feliz. Então aquilo
que eu tinha: o stress, a vontade de chorar, as más intenções que tinham na minha mente
elas saíram, saiam sozinhas. Saíram da minha mente através da oração que eu fazia após”.
O modo de funcionamento das Igrejas Evangélicas tem relação com o dinamismo
patriarcal, descrito por Whitmont (1991), no momento em que elas colocam regras, limites,
organização e estabelecem valores sociais. Ou seja, ajudam o indivíduo a organizar todas as
mudanças e dificuldades pelas quais tem passado, apesar de utilizar a magia, característica
do sistema matriarcal - que tem influência do arquétipo materno, o mundo é mágico, não há
distinção entre eu – outro e as contingências da vida são enfrentadas em grupo - por se
18 Está sendo usado nome fictício para preservar a identidade do presidiário.
tratar de religião. Em suma, essas Igrejas são “um grande pai”, procuradas como forma de o
indivíduo se reorganizar, achar “alguém” que dê limites, regras, a quem ele deva obediência
e a partir disso aliviar sua angústia e buscar uma nova forma de viver, agindo como um
superior que estabelece normas, ajudando os indivíduos a conseguirem seguir a vida sem
que se sintam tão perdidos.
Ao mesmo tempo em que a maioria das religiões trabalha com o grupo, deixando o
indivíduo se sentir pertencente ao mesmo, elas cuidam das questões individuais e trabalham
de uma maneira onde a culpa é transferida, pois o demônio é o responsável pelo nervosismo
e agressividade das pessoas. Assim, tiram do indivíduo a culpa pelos sentimentos vistos
como maus. “Já que os membros obedientes do grupo devem ser amados, os sentimentos
agressivos são transferidos para inimigos, hereges e demônios imaginários, que podem ser
combatidos e destruídos em nome da bondade e do amor”. (WHITMONT, 1991:112)
Outra característica, interessante e importante, da relação com a religião é que
dentro do presídio o nome (placa) da Igreja não é o que chama o interno à escolhê-la, mas
sim o fato de existir Deus, alguém maior que imponha regras e que, de certa forma, venha a
confortá-lo na angústia e adversidade. “Aquela que falar a palavra de Deus para mim é
Igreja. E minha segurança”. Por essa fala de D. é possível perceber a importância da
existência de Deus, alguém maior que dê conforto, deixando em segundo plano a Igreja
instituição. Identifica-se a importância dada à “Palavra de Deus”, também, na Associação
PMs de Cristo, pois esta segue a religião evangélica, não uma Igreja específica e faz um
trabalho de ronda, para valorizar a vida do policial, atendendo-o no próprio lugar de
trabalho, no hospital e no Presídio Militar “Romão Gomes”. Em relação à Psicologia
Analítica é possível identificar nessa fala de D. e no funcionamento da Associação PMs de
Cristo, a presença do arquétipo de Deus, que como símbolo aparece sendo organizador da
personalidade e está ligado aos elementos primordiais da psique humana, através de sua
função religiosa. (ARANHA, 2004; ZENI, 2005)
Outro aspecto do dinamismo patriarcal aparente no tema estudado é o bode
expiatório, mecanismo usado para afastar o mal, sendo este a violência ou outro aspecto
que não é bem visto pela sociedade. Como colocado por WHITMONT (1991), “há ânsias
inaceitáveis, que não podem ser erradicadas. Devemos então nos distanciar delas e enviá-
las para longe. (...) Ele [impulso agressivo] pode viver embora banido para o deserto, em
território adequado a ele, até que chegue o momento em que possa ganhar uma expressão
conveniente. (p 127-128, grifo nosso) Por esse motivo, o presidiário pode ser visto como o
bode expiatório enviado ao deserto e o presídio como um local que o recebe, pois para estar
lá é necessário ter cometido algum crime, ato mal visto pela sociedade e merecedor de
punição. Em suma, é um local que obriga o indivíduo que carrega o mal a permanecer
isolado da sociedade por um tempo, para voltar de uma maneira diferente, se voltar. Essa
especificidade pode ser vista no PMRG e na fala de D., pois este presídio tem um alto
número de ressocialização e D. diz que é um local de transformação, “o homem que é
tirado da liberdade e colocado no isolamento se transforma”.
O Romão Gomes, em especial, tem a peculiaridade de ser o local que recebe o bode
expiatório, pois é um presídio de ex-militares; recebe pessoas que deveriam dar segurança
para população, que tinham até o direito de matar e decidir pela vida dos outros, seguindo a
lei da corporação. Não interessa o motivo do crime, legítima defesa ou não, o desejo do
inconsciente coletivo é de vingança, que tem por trás um desejo de justiça, levando em
conta que sempre haverá alguém sofrendo quando é tratado o tema violência. Numa fala de
D. é possível identificar essa influência do coletivo, quando diz que quem cometeu crime
tem que ficar preso. “Então tem muitos amigos na rua, mas quando você vem preso eles
torcem pra você ficar preso. Não sei porquê motivo, eles falam ‘ah ele fez isso então não
prestava, esse cara é... não falei pra você fulano que esse cara não prestava, olha lá ele ta
preso, ai ó, aconteceu alguma coisa com ele, matou fulano, ele roubou, ele fez isso e tal’”.
Segundo Andery (2005), a polícia é uma organização mantida pelo Estado,
encarregada de proteger as pessoas, responsável por aplicar a lei, garantir a ordem pública,
prevenir e descobrir crimes, oferecer proteção e pode coagir indivíduos que ultrapassem os
limites da lei. É responsável por impedir que ocorram crimes e pela segurança da
população. (p 14) Os policiais também sofrem influência do mal-estar presente nos dias de
hoje, não estando livres da violência que muitas vezes está presente em seus atos fora do
período de trabalho sem que percebam, além de não terem o respaldo/proteção necessários
durante a jornada profissional, ficando cada vez mais vulneráveis. Então, pelo fato de esses
indivíduos (que estão no presídio) serem ex-policiais militares, pode ser mais difícil a
aceitação, tanto dessa nova condição como a perda do poder que detinham anteriormente.
“Ah, foi um choque. Tomei um choque sabe porquê? Porque aqui no presídio todos são
iguais. Desde o coronel que vem preso, e vem coronel também, aqui é do coronel até pro
soldado. Ai a mordomia que eu era tratado, com certos respeitos né?! Tem mordomia, que
você é respeitado quando você dá respeito, então sempre dei respeito, então sempre tive
grande moral onde eu morei”.
Pode-se relacionar essa falta de proteção, também, ao fato de a sociedade atual estar
cada vez mais individualizada e as relações cada vez mais frias, sem tanta importância,
conforme citado anteriormente, quando foi conceituada a sociedade líquida. Segundo
Bauman (2007) isto caracteriza a sociedade moderna, onde seus membros mudam seus
hábitos (formas de agir) num tempo mais curto do que o necessário para consolidação das
relações e por isso a vida líquida não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por
muito tempo.
Analisando pelas concepções da psicologia analítica, é possível identificar a
influência dos dinamismos psíquicos. Estamos sob influência do domínio patriarcal, por
esse motivo nossa consciência também o é e pode ser identificada como: consciência
solar19, pois esta “fundamenta-se na autoridade paterna”. (STEIN, 1998a: 24) Mas,
atualmente vive-se um momento de mudança, onde as certezas e convicções estão sendo
enfraquecidas e o pensamento do dinamismo matriarcal também começou ter influência
sobre a vida das pessoas, demonstrando o início de uma era caracterizada pelo dinamismo
pós-patriarcal, ainda não conhecido. (WHITMONT, 1991)
19 Dimensão denominada assim por Stein (1998a), que diferencia a consciência do dinamismo patriarcal da consciência existente no dinamismo matriarcal, denominando-as de consciência solar e consciência lunar, respectivamente. E para ele “a consciência é percebida como um porta-voz interno dos valores sociais” (p 18).
4.2 Análise do relato de um interno
“Relato não é retorno ao passado, é reconciliação” (Paulo Endo20)
D. está no presídio há 2 anos e 2 meses, segundo ele, e foi apresentado como
freqüentador dos cultos da Associação PMs de Cristo. Houve diferença na relação
estabelecida nas duas entrevistas feitas: na primeira houve a apresentação e poucas
perguntas, sendo um contato rápido e mais pontual, na segunda já houve maior
profundidade e tempo para o processo de entrevista.
Foi possível identificar muitos símbolos em sua fala, seu movimento em relação a
religião e algumas mudanças em seu relacionamento com a família e consigo mesmo,
levando em conta a concepção de homem de Jung. Para ele, o homem é um “ser que
expressa uma individualidade ímpar e coletiva, cuja síntese envolve elementos comuns a
toda humanidade e cada ato individual é visto como modificador de todo o conjunto de
relações sociais”. (MORAES, 2006)
A aproximação de D. com a religião e sua transformação em um homem religioso,
aconteceu a partir da entrada do mesmo no presídio; quando passou a valorizar sua relação
com a família e buscar um lugar onde conseguisse diminuir sua angústia “Então essa
aproximação foi numa hora que eu me senti desesperado e sem me pegar a alguém. Esse
alguém eu achei que deveria ser alguém que eu sempre acreditei, que era Deus”.
Desde então, freqüenta os cultos das Igrejas Evangélicas e diz que se relaciona com
Deus, quando se sente sozinho ou mal, lendo a Bíblia, buscando entender as passagens da
mesma e conhecer o Testamento. Relata também a convivência com o demônio, que sente
da mesma forma como sente Deus e Jesus. “Esse demônio rodeia o homem também, 24
horas por dia para que ele cometa o mal, cometa o mal, para que ele tenha pensamentos
iníquos sob seus semelhantes, seja ruim. (...) Se você passa do limite você não se conduz, ai 20 Frase dita durante uma apresentação em mesa redonda , cujo nome era “Contexto de Vulnerabilidade”, apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 03/10/2008 no 16o Encontro de Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo.
você é conduzido, conduzido pelo quem? Pelo demônio e pelo vício, ai você não sabe o que
faz”. Pode-se dizer que o demônio, Demonismo como Jung denomina, é, provavelmente,
característica de um complexo.
Demonismo (demoniomania) caracteriza um estado peculiar da mente em que certos conteúdos psíquicos, os chamados complexos, assumem em lugar do eu, ao menos temporariamente, o controle de toda a personalidade, de modo a suspender a vontade livre do eu. Nestes estados a consciência do eu às vezes está presente, outras vezes ausente. O demonismo é um fenômeno psíquico primitivo e, por isso manifesta-se muitas vezes sob condições primitivas. Encontramos uma boa descrição do demonismo no Novo Testamento (Lucas 4,33; Marcos 1,23; 5,2, etc.). Nem sempre o fenômeno do demonismo é espontâneo; pode ser provocado deliberadamente como transe, por exemplo: no xamanismo, espiritismo, etc. (JUNG, 1998: 22621)
Além de relacionar essa relação entre Deus - demônio à relação ego – sombra, onde
o demônio é uma imagem adequada para simbolizar a instância psíquica depositária dos
aspectos relegados pela consciência, é possível constatar que, uma vez apartados do ego,
tais aspectos são percebidos como uma força autônoma e maligna. “Uma vez que Deus é
justo, nosso sofrimento, nossas dificuldades e transtornos devem ser punições por erros
cometidos. Por sua vez, o sucesso e ascensão social devem ser vistos como sinais de graça,
de recompensa pela bondade” (WHITIMONT, 1991: 114)
“Onde há fanatismo, intolerância, preconceito há unilateralidade, com a
conseqüente projeção da parte excluída sobre os ‘outros’”. (MORAES, 2006: 19) No caso
estudado, observa-se que Deus aparece como alguém que dá força, acalento, um pai,
alguém que tem que ser obedecido; é algo sobrenatural que tem poder e o demônio como a
figura projetada, a parte ruim. Por esses dados é possível dizer que os religiosos, como D.,
projetam algo deles no divino, atuando como se não fossem deles as forças usadas. Assim,
a força maior vem de fora e não do íntimo. “Na hora da necessidade temos que orar a
Deus e pedir que ele nos dê a mão, estenda sua mão para nós pegarmos e quando você ta
pego na mão de Deus nada lhe acontecerá, porque Ele te sustentará. Que Ele é a mistura,
a mistura que segura qualquer situação em qualquer momento então é isso que me fez eu
pegar a Bíblia, a religião e orar a Jesus e conhecer o Testamento”.
21 In parágrafo 1473. Escrito em Julho de 1945 para o Schweizer Lexikon, Encylios Verlag, I. (Zurique, 1949) – Verbete não foi assinado.
Em seu discurso D. fala muito que recorre à Deus em seus momentos de tristeza,
onde busca força ou ensinamento, como, também, através do Testamento, fala sobre a
estória de Jó, para exemplificar que o homem nunca deve deixar de acreditar. “Jó era rico
tudo ai o diabo falou ele tá cheio de riqueza por isso que ele te ama, tira tudo dele pra ver
se ele ama. Então tá aí, tá ai na escritura sagrada, ai Deus tirou tudo, mas não toque nele,
não deixe que Jó morra, vê se ele vai me negar. E Jó nunca negou pra Deus, sofreu tudo o
que sofreu, isso tá nas parábolas do evangelho. Então tem que ser persistente, ser
persistente, ter calma, serenidade e acreditar, ter credibilidade e saber também que o
tempo passa”. Usa a simbologia da história de Jó para demonstrar a necessidade de ter fé e
acreditar em Deus, nessa força maior que dá energia e, através da história que conta, mostra
sua força que está projetada em Deus, no externo. É possível observar, então, que está
acontecendo a vivência religiosa, que “permeia o processo de individuação uma vez que
nos remete à experiências que facilitam a ampliação da consciência através do contato
entre os aspectos individuais e coletivos, oriundos da psique”. (ZENI, 2005:23)
Em relação aos familiares D. conta que seu relacionamento melhorou, sente mais
proximidade e diz que o valor à família só é dado quando se está distante dela, sendo
possível perceber sua importância. “Quando você se sente aqui, ai você não vê a hora da
sua família apontar no portão, você vê, vê aquele amor. Aquele amor de família que dá
amor ao homem quando ele se encontra numa situação dessa de isolamento”.
Provavelmente diz isso para demonstrar o valor que dá ao externo, a “fonte de amor” para,
então, poder buscar esse sentimento em si mesmo.
Para falar melhor sobre essa situação usa um exemplo, e através do mesmo é
possível perceber que este é usado como metáfora para falar dele mesmo, de suas questões.
Através desses símbolos é possível identificar a presença do complexo paterno22 negativo,
pois não foi vivenciado positivamente por ele. Seu pai, apesar de impor regras, não
executou muito esse papel. Em sua fala, a mãe aparece fazendo um pouco das duas funções.
Além das constatações relatadas, é possível identificar traços coletivos (anteriores aos que
22 Conforme demonstrado, complexo é o núcleo do arquétipo, nesse caso, o arquétipo do pai.
estão sendo colocados hoje), onde o homem é o provedor da família e não executa muitas
atividades em casa. “Faça de conta, eu vejo meu pai todo dia, então todo dia estou vendo
meu pai. Minha mulher vê o marido todo dia, então você por ter aquela regalia de estar
todo dia com a família, você abusa. Então você não cumpre os horários, bebe, é.. dá
respostas más para mulher, talvez ela nem mereça, com os filhos também você dá
respostas agressivas que talvez não mereciam. Então você se acha um vilão dentro da
família, ai quando você é separado da família ai é que você sente o que é uma família,
porquê gente estranha não vem, não vem ninguém vê você aqui na prisão, nem vem bebe
com você (...) Então só quem dá valor na gente é quem nos ama de verdade, é única pessoa
que ama, ama mesmo da família é a mãe do interno, a esposa do interno se ela te amar
mesmo ela não te abandona, seus filhos e seu pai, sua família, só a família”.
Sobre seus pais diz que quando foi recolhido já os tinha perdido. Seu pai faleceu
antes da prisão e sua mãe quando já estava preso, mas esta estava com Alzheimeir, em grau
avançado, e por esse motivo não tomou conhecimento da situação. Relata que, quando
criança, sua mãe era presente nas questões escolares, preocupava-se bastante com ele, e
tinham (mãe e filho) uma relação afetuosa. Já com seu pai a relação era mais distante, não
fala muito sobre a figura paterna e demonstra um certo distanciamento.
“O homem se ele não tiver um controle rígido sobre si ele se extrapola. Se
extrapola, ele fala olha to bebendo uma cerveja vou pra seis, de seis vai pra doze, ta
correndo a oitenta quer correr a cento e sessenta. Então ele tem que ter sempre uma lei em
cima dele, se não ele se perde entendeu?! Assim mesmo é um filho da gente, se você não
souber educá-lo, ele não vai te respeitar, então vai ser, vai virar um animalzinho ai. Então
você tem que saber conversar, educar. E o homem tem que estar sempre sob domínio (fala
forte e alto essa palavra) de alguém. Alguém superior a ele e tem que ter superior, até o
presidente de república tem que ter superior”.
A partir do exposto é possível dizer que o arquétipo do pai está presente nessas
relações, em alguns momentos de forma positiva e em outros de forma negativa, e que
Deus, e agora o presídio, é que ditam regras, colocam limites e mostram o que é bom e o
que é mau. Nesse caso, o presídio tem função paterna e Deus passa a existir de forma única,
imagem construída por D., correspondente ao modelo oferecido pela religião em que
acredita. Ou seja, “entendemos que a experiência religiosa – através do seu simbolismo –
possibilita uma maior apreensão do arquétipo que lhe dá energia. Sendo assim, o fator
psíquico ao qual é dado um valor supremo atua psiquicamente como uma divindade à qual
devemos obediência; a esse fator avassalador dá-se o nome de Deus” (ZENI, 2005: 24)
Outro aspecto em sua fala que evidencia a presença do arquétipo do pai é a escolha
da profissão. D. escolheu ser policial porque serviu ao Exército quando tinha 18 anos.
Conta que sente saudade dessa época, quando a corporação ainda era denominada Força
Pública, como em sua cidade natal não havia possibilidade de seguir carreira, veio para São
Paulo prestar a prova. Foi aprovado e estudou até se tornar Tenente. Em sua fala demonstra
uma vontade de ter poder, lembrando que, quando detinha o cargo e a função de policial,
sentia-se respeitado pelos outros. Exemplifica e cita que seus vizinhos de bairro chamavam-
no de Tenente, mesmo depois de aposentado, quando seu prestígio era mantido.
Cada ato humano, nessa concepção [Junguiana], é a um só tempo individual, cultural e até mesmo cósmico. Um ato violento, por exemplo, expressa um possível desequilíbrio psíquico de quem o praticou, mas também denuncia uma certa forma de organização social favorecedora do ato; e ainda demonstra pela universalidade de sua ocorrência, que se trata da manifestação de um princípio universal (de destruição) do qual um determinado indivíduo foi porta-voz naquele momento. (MORAES, 2006: 17, grifo nosso)
Ao relatar o motivo que o levou à prisão, D. se refere ao ato de violência cometido
por ele como um ato de legítima defesa, onde precisou tomar tal atitude para não morrer, e
atribui o fato de estar no local da ocorrência como obra do destino. Ou seja, projeta no
externo a causa do seu ato e, por causa desse “destino”, conclui que foi obrigado a suportar
muitas mudanças em sua vida, mudanças essas não muito fáceis, pois passou da liberdade
plena para uma vida de reclusão, o que, segundo ele: “o homem, quando ele sai da sua
liberdade natural que ele vive, na companhia dos demais, então ele não sente nenhuma
pressão”.
Essa pressão é colocada de forma ambígua por D., pois, ao mesmo tempo em que
coloca as questões tais como: afastamento da família, falta de liberdade, perda de prestígio,
também diz que a prisão é local de transformação (“o homem que é tirado da liberdade e
colocado no isolamento se transforma”) e de aprendizado, pois no momento em que você é
colocado no presídio precisa aprender a se adaptar ao regime para não se prejudicar ainda
mais. Diz que é preciso tomar cuidado com as amizades feitas dentro do presídio, para não
se deixar levar, de forma a não receber a influência do demônio, pois: “ninguém daqui
persegue ninguém, estão aqui só para orientar, te servir e te instruir para o amanhã, pra
uma vida melhor. É, reformar a pessoa, reformar a pessoa para quando ele sair está em
outra vida, numa vida melhor que, para ele não errar mais. Então isso, aqui que é o
presídio Romão Gomes é pra ajudar, é pra ajudar os militares né?!”, mostrando um lado
positivo do trabalho do presídio em questão, que, também, é relatado pelo Coronel, chefe
da instituição, que ressalta a ressocialização, abordada como ato de reformar a pessoa.
Apesar deste lado positivo visto por D. existe em sua fala e no funcionamento do presídio
uma pressão, imposição de regras e comportamentos e não aceitação de desobediência e
insubordinação. D. busca enxergar essa pressão, também, como positiva, a fim de poder
lidar melhor com essas transformações em sua vida, mas, principalmente, porque acredita
ser necessário existir alguém que determine regras – uma figura paterna. Além disso, é
possível identificar que a religião nesse caso é a ponte que faz o indivíduo aceitar as regras
dadas pelo presídio, pois deixa a impressão de que ser submisso é bom. Sendo assim, ouso
dizer que dentro do presídio D. tem lidado melhor com seu complexo paterno, a figura do
pai tem se mostrado positiva e necessária para que ele se re-organize.
No que diz respeito ao chamado processo de individuação de Jung, é possível dizer
que este acontece de uma forma diferenciada dentro do presídio. No caso de D. são
identificadas mudanças em seu comportamento e muitas atitudes projetadas em Deus. A
relação com a religião foi muito importante para ele desde que adentrou no presídio e foi a
partir da mesma que pôde se tranqüilizar e compreender algumas coisas, mesmo que para
isso não tenha distinguido que, além da figura de Deus, existe uma força interna que o
sustenta e ajuda em tudo isso, e que o demônio muitas vezes pode estar dentro dele, ser seu
lado sombrio. “Em qualquer segundo, então você se torna assim, desprotegido. Quando
você está desprotegido, você se sente bem humilde, bem humilhado, então... você
entristece, você pensa em coisas que se você não estiver com Deus você faz. Pensa até em
suicídio, entra em desespero, ai você precisa tomar remédios. Remédios que pra fazer sua
mente não estressar, remédio pra te auto-controlar”.
Além de ser o presídio um local onde algumas mudanças internas e externas
precisam acontecer no sujeito, o fato de o mesmo se tornar, ou ser, religioso também tem
forte influencia nesse processo. No caso do indivíduo religioso o contato com os conteúdos
inconscientes aparece na relação com o sagrado, que só pode ocorrer satisfatoriamente
quando não estiver focado somente no externo (mundo concreto). Segundo Zeni (2005), as
religiões são vistas como formas de manifestações arquetípicas pela Psicologia Analítica,
pois através de seus símbolos falam da própria psique, já que os significados dos mesmos
podem ser diferentes de acordo com cada indivíduo; tendo a função de promover o
processo de individuação através da manutenção da comunicação entre os mundos interno e
externo em cada pessoa.
A atitude religiosa tem em si a relação entre interno-externo / ego-sombra, o
demônio é responsável pelos aspectos negativos, como a sombra, e Deus pelos aspectos
positivos. Por esse motivo, constata-se que as religiões proporcionam o desenvolvimento
psíquico, ampliação da consciência como o processo de individuação, aumentando então, a
confiança que cada um tem em si mesmo. (ZENI, 2005) As mudanças são possíveis de
serem identificadas através dos símbolos na fala de D. e por ele mesmo, quando diz que
está se transformando num novo homem. “E graças a Deus até hoje eu tô aqui esperando a
minha vitória para ser transformado em outro homem, ser companheiro da minha mulher,
ser bom amigo dos meus filhos, logo também eles vão se casar e terão um netinho pra
alegrar o vovô”.
“Quando você está desprotegido, você se sente bem humilde, bem humilhado,
então... você entristece, você pensa em coisas que se você não estiver com Deus você faz.
(...) Então tem que saber de, de ser, se adaptar ao regime. Se adaptar ao regime para não,
para não se auto-prejudicar por, através de pessoas que o trazem a palavra.” Através
dessa fala de D. é possível identificar as peculiaridades do processo de individuação dentro
do presídio. São muitos os momentos difíceis em que é preciso adaptar-se e reconhecer
comportamentos para conseguir conviver com a privação da liberdade, e mudanças que
surgem com a mesma, além de identificar em si mesmo os sentimentos presentes. A
religião ajuda, nesse momento, por ser um espaço que recebe o indivíduo, o faz pertencer a
um grupo, compreender que outras pessoas estão passando por momentos parecidos, ao
mesmo tempo que leva o indivíduo a “pensar”. Amplia sua consciência, pois segundo Zeni
(2005), religião indica uma atitude do espírito humano, uma consideração minuciosa e uma
observação cuidadosa de determinados fatores dinâmicos poderosos (deuses, demônios,
espíritos), ou ainda, a vivência de uma experiência primordial que permite ao homem entrar
em contato com o numinoso, que tem como conseqüência a modificação da consciência. (p
23)
A próxima etapa do processo de individuação seria o recolhimento da projeção que
o indivíduo fez no externo para poder se apropriar da mesma e compreender suas
mudanças, recolher suas questões. Nesse caso, D. “colocou” em Deus algumas questões,
vontades e ações que eram próprias dele. Para o processo de individuação acontecer, é
necessário que ele olhe para si e perceba que pode fazer aquilo que estava atribuído a Deus,
pois através da projeção conseguiu conquistar muitas coisas. Assim sendo, pode-se dizer
que o processo de individuação está acontecendo, o indivíduo está se tornando singular,
pois terá ampliado sua consciência e o ego terá um maior número de possibilidades no
mundo arquetípico e externo (cultural).
5. Considerações Finais
“Às vezes, ouve-se um tiro. Alguém rompeu o contrato. O que ocorreu? O crime nunca denuncia algo que acontece no tecido social e no indivíduo. O delito tem essa dupla face: é revelador da constituição do psiquismo e da instituição social”. (Teixeira, 199623)
Através desse trabalho foi possível observar a hipótese comprovada no estudo feito
pela autora em 2005, em relação ao apego à religião, sendo, também, possível uma reflexão
sobre a ocorrência do processo de individuação em indivíduos religiosos, pois se sabe que
quando a pessoa se encontra em um consultório para fazer acompanhamento psicoterápico,
tal processo acontece de uma forma diferente do contexto apresentado.
Foi possível identificar que o sistema prisional elimina ou diminui as diferenças na
medida em que todos usam a mesma roupa, crachá e, na maioria dos presídios, perdem sua
identidade – seu nome, pois passam a ser um número. Nesse contexto, a religião busca o
indivíduo, faz com este olhe para si, mesmo que seja através da projeção no divino. Ou
seja, as duas instituições apesar de agirem de forma diferente sobre o indivíduo, de certo
modo se completam, pois ao excluir o presídio apresenta uma forma de incluir e a religião
se apresenta como uma saída, uma maneira de o indivíduo se redimir de sua culpa,
encontrar respaldo para suas angústias e um grupo para pertencer, no qual acaba tendo um
lugar e uma identidade, deixando de ser o interno para ser um filho de Deus.
Nesse aspecto, o Romão Gomes se diferencia, de certa forma, dos outros presídios.
Pois, mesmo que os internos usem roupas iguais e tenham crachá, em alguns casos ainda
existe uma identificação com o cargo que exerciam na corporação e por esse motivo são
chamados por esse nome, como por exemplo “soldado”. O que muitas vezes pode causar
conflitos nos indivíduos por estarem num local onde não existe diferença hierárquica entre
23 In Sequeira, Vânia C. Penas Alternativas à Prisão: Um estudo sobre os efeitos subjetivos da Prestação de Serviço à Comunidade. São Paulo: 2000, 162p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
eles. Já em relação a religião, não é perceptível diferença em comparação aos outros
presídios, pois as Igrejas estão presentes em todos e têm bastante adeptos em seus cultos.
Talvez o trabalho nesse local seja diferenciado pelo fato de serem ex-militares e aparecer
essa diferença no tratamento entre alguns internos os internos e o presídio ser diferente, em
minha concepção, melhor que os demais pelo fato de ter um número grande de
ressocialização e todos trabalharem.
Essa ambigüidade exclusão-inclusão não acontece somente com estas duas citadas
instituições, mas está presente na sociedade atual, que é individualizada, onde o sujeito é
referência maior, causando a construção e desmoronamento de ancoragens identidárias por
causa do mundo moderno, das tecnologias e das velocidades com que as coisas acontecem,
segundo Benilton Bezzera.24 Essa idéia pode ser relacionada ao conceito de sociedade
líquido-moderna de Bauman, pois diz respeito à velocidade das mudanças e ao fato de as
relações estarem cada vez mais frouxas, e de as pessoas usarem a religião da forma que
melhor lhes convêm, ou seja, participam de diversas crenças e levam um pouco de cada
uma para suas vidas ou mudam freqüentemente de credo.
As mudanças ocorridas no campo religioso, com certeza, têm relação com essas
modificações apontadas na sociedade. Mexe-se com muitas questões coletivas,
inconscientes e conscientes, e ao mesmo tempo em que dão amparo a algumas pessoas,
causam desamparo em outras – como em todos os campos da vida. Existem muitos
arquétipos e imagens presentes nesse campo vasto e bastante complexo, por esse motivo
muitas pessoas aceitam as regras impostas, dando-as como certas e não questionam ou
buscam por mais clareza sobre o assunto. Acreditando naquela verdade aprendida e levando
isso para sua vida, muitas vezes sem saber o motivo e sem buscar compreender a relação
com suas atitudes no dia-a-dia.
Levando em conta o desamparo presente na sociedade e no sistema prisional,
entende-se que as projeções e as angústias ficam maiores, pois a pessoa precisa encontrar
24 Frase dita durante uma apresentação em conferência de encerramento do 16o Encontro de Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 03/10/2008.
um meio de se individualizar, viver com todas as mudanças ocorridas, sem muito respaldo,
ao mesmo tempo em que precisa respeitar as normas, conviver com os limites e mostrar
para sua família, amigos, etc, que está tudo bem para que estes não fiquem muito
preocupados e continuem visitando-a, levando um pouco de alegria e força de vontade para
que termine o cumprimento da pena e possa retornar a liberdade. Sendo assim, verifica-se
que acaba sendo mais difícil de o indivíduo recolher sua projeção e entender que alguns
sentimentos estão maiores pelo local em que está e pela situação que se encontra, pois
dificilmente pode conversar sobre as questões emocionais no presídio e com sua família
prefere não falar muito para não preocupá-la. Portanto, a religião aparece como único meio
e o culto como o local onde as emoções podem ser “colocadas para fora”.
Durante a execução do presente trabalho a autora encontrou contribuições para
questões contemporâneas, mas não só, pois ampliou o conhecimento em relação a
Psicologia Analítica, em especial sobre o processo de individuação. Como por exemplo: a
questão da projeção no divino ficou mais clara no decorrer do trabalho e mostrou muitas
peculiaridades existentes nesse momento, despertando curiosidade de saber mais e buscar
um conhecimento do trabalho psicológico junto ao religioso nessas instituições.
Enfim, com certeza é um tema que merece mais estudo e profundidade. É um
assunto bastante instigante que não se esgotou e provoca muitas questões nas pessoas que
dele se aproximam. Diz respeito a muitas situações coletivas e individuais que
normalmente não gostamos de ver, então deixamos como sombra. Além de tratar questões,
sobre o modo de funcionamento dessas instituições, tanto a polícia em relação ao respaldo
dado aos componentes da corporação em seu trabalho, quanto às modificações necessárias
no sistema prisional, mesmo que, conforme demonstrado, seja um presídio diferenciado,
como o Romão Gomes, que, ainda, oferece um respaldo maior ao indivíduo.
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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu, R.G. ,
declaro, por meio deste, que concordei em ser entrevistado(a) na pesquisa de campo do
projeto “O Processo de Individuação em Presidiários Religiosos” (título provisório),
desenvolvido por Maria Carolina Rissoni Andery da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, orientada pelo prof. Dr. Sergio Ozella. Afirmo que aceitei participar da pesquisa
sem receber qualquer benefício financeiro, com a finalidade de colaborar para o sucesso da
mesma.
Fui informado(a) dos objetivos da pesquisa, que são acadêmicos e em linhas gerais:
entender e verificar se acontece o processo de individuação em presidiários religiosos que
cumprem pena privativa de liberdade. E, também, que o uso da informação está submetido
às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, da Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde.
Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de entrevista gravada, e estou
ciente de que poderei contatar o pesquisador responsável ou seu orientador, ou ainda o
Comitê de Ética da PUC-SP, caso me sinta prejudicado ou tenha dúvida. Estou ciente,
também, de que posso desistir da participação no estudo a qualquer momento, sem prejuízo.
Recebi uma cópia assinada desse Termo de Consentimento Livre e Esclarecido da
pesquisadora principal.
São Paulo, de 2008.
__________________________ De acordo:
Assinatura do Participante __________________________ __________________________
Assinatura da Pesquisadora Nome: ____________________ OAB no ____________
Primeira entrevista com D.
- apresentação
C: Antes de ser recolhido você já freqüentava alguma Igreja ou passou a freqüentar depois?
D: Eu freqüentava alternativamente Igreja, a Igreja Católica, mas desde menino conhecia as
palavras escritas na Bíblia através dos meus estudos, que li muitos livros, então quis saber
também da vida de Cristo Salvador. Como nasceu, como cresceu, como veio ao mundo, os
milagres que Ele fez, que quem vai de encontro com Cristo tem a salvação da vida eterna,
mas nunca me apeguei a religião, ser freqüentador assíduo da Igreja Católica. Ia sempre na
Igreja Católica freqüentando casamento, crisma de crianças então nunca dei as costas a esse
Deus venerável, a Jesus. Nunca também zombei de crente algum, pessoas que
freqüentavam outra religião e nem discuti também religião com ninguém. Então se para
essa pergunta, esse quesito ta bom, então pode fazer outra pergunta.
C: Como você se vê, se sente, com essas mudanças que aconteceram em sua vida?
D: Então, após eu ser recolhido, ai cai, minha consciência me apontou para que eu deveria
procurar um recurso para eu tirar de dentro de mim as mágoas do meu coração quando eu
adentrei aqui na prisão, uma delas a principal era a saudade. (se emocionou um pouco,
apesar de não olhar para mim) Saudade de não conviver com meus familiares e co meus
filhos porque um homem que é tirado da liberdade e colocado no isolamento então ele se
transforma. Pode se transformar para pior, de momentos de levá-lo a loucura, de levá-lo ao
suicídio ou tomar...
C: Como foi para você ser recolhido?
D: Me achei jogado no fundo do poço. Mas, o Grande senhor faz milagre de tudo quanto é
tipo de jeito, é só ter fé... Ele lhe dará na hora certa, nem antes, nem depois.
O senhor me falou “... Eu o conduzirei aos caminhos, não deixarei que espinhos entrem...
apesar de interno, livre como um pássaro” (se emocionou muito enquanto falava isso e
contou que ainda não foi condenado)
C: E a relação com sua família, como era? Mudou depois que você foi recolhido?
D: Contou que quando foi preso sua mulher ficou com vergonha e lhe disse “doente até
fiquei quando você adentrou, nunca mostrou suas qualidades lá fora” e disse para mim “foi
uma nova conquista para mim”.
Estou passando pela situação que deveria passar na vida, é uma reciclagem. Estou sentindo
vitorioso e muito alegre com os pastores que aqui vem.
C: Você segue alguma Igreja aqui dentro ou só o PMs de Cristo?
D: Aquela que falar a palavra de Deus para mim é Igreja. E minha segurança.
C: E hoje, como é para você estar recolhido?
D: Essa casa aqui é segunda casa que encontrei, todos me recebem de braços abertos, de
todas as partes... não chamo de cadeia, internato para o bem. Quando o interno saia... (o
Coronel entrou na sala, falou e a atrapalhou o término do raciocínio. J. estava bem
emocionado e dizendo que se sente bem no presídio, é bem tratado e que é o local para
ressocialização).
Observação: Essa entrevista ficou um pouco prejudicada porque o gravador apresentou
problema, além da entrada do Coronel que chefia a instituição, porém D. estava bem
emocionado e, apesar de, no começo não olhar para mim, deixando dúvida quanto a sua
vontade de fazer esse contato, falou bastante durante a formulação das respostas,
mostrando-se aberto a uma nova conversa.
Segunda entrevista com D.
C: Na outra entrevista, você disse que nunca se apegou a religião, freqüentava Igreja
Católica, mas sempre leu sobre o assunto. Como foi se aproximar da Igreja, a PMs de
Cristo é evangélica né?! Como foi essa aproximação?
D: Perfeitamente! Então essa aproximação foi numa hora que eu me senti desesperado e
sem me pegar a alguém. Esse alguém eu achei que deveria ser alguém que eu sempre
acreditei, que era Deus. E a Igreja Católica não estava presente ao meu lado, porque a
Igreja Católica não vai onde eu vou aqui nesse presídio, na grade. Que eu estava na grade
preso, ai quem se apresentou foram as outras Igrejas Evangélicas como: PMs de Cristo,
Cristã do Brasil e religião espírita que eu também assisti cultos, para mim saber também,
ter conhecimentos de sobre espiritismo também. Ai freqüentei todas as religiões que ali
davam culto, que é na sub-sessão que é chamado, que é o local que você ainda ta no
primeiro estágio.
Ai comecei a entender as palavras de Deus, de Jesus através do evangelho e todas as vezes
que eu ali freqüentava me sentia fortalecido, fortalecido e feliz. Então aquilo que eu tinha: o
stress, a vontade de chorar, as más intenções que tinham na minha mente elas saíram, saiam
sozinhas. Saíram da minha mente através da oração que eu fazia após. Então tudo que me
dava de mal eu orava a Deus. Abria, via salmos e.... ia vê a Bíblia, as passagens que Jesus
passou, o Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas, João, Romano e tal. Fui vendo, fui
lendo e fui vendo que aquilo era verdade que eu precisava para colocar dentro do meu
coração para ser um homem feliz e conseguir romper todos os obstáculos que estavam em
minha volta e minha frente. Porque eu acreditei que se existe um Deus e que Jesus fora
atentado também, existe também esse demônio. Esse demônio rodeia o homem também, 24
horas por dia para que ele cometa o mal, cometa o mal, para que ele tenha pensamentos
iníquos sob seu semelhantes, seja ruim. Então para ter proteção desse demônio, desse mal
que também você não o vê. Eu também não vejo Deus, nem Jesus. Mas eu sinto ele, sinto a
presença dele quando oro, sinto a presença dele quando peço ele atende, sinto a presença
dele em tudo. E sinto também o demônio querendo fazer maldades do meu lado, que é
talvez um próprio companheiro que tem a maldade sobre seu semelhante que é seu amigo.
Tem o poder da inveja, que o demônio é invejoso, então ele não quer que você se
sobressaia, quer que sempre você fique aos pés dele. Peça pra ele as coisas e não para o
Deus verdadeiro que tem força e que tem valor e que te sustenta na hora da necessidade. Na
hora da necessidade temos que orar a Deus e pedir que ele nos dê a mão, estenda sua mão
para nós pegarmos e quando você ta pego na mão de Deus nada lhe acontecerá, porque Ele
te sustentará. Que Ele é a mistura, a mistura que segura qualquer situação em qualquer
momento então é isso que me fez eu pegar a Bíblia, a religião e orar a Jesus e conhecer o
Testamento, que fora escrito através de milhões de anos desde quando Moisés receberá as
Tapas da Lei no Monte Sagrado, entendeu? Isso ai, é o que me fez cada vez mais, a... me
fortalecer em Cristo.
C: E ai você também disse que uma fala sua era assim “o homem que é tirado da liberdade
e colocado no isolamento se transforma”. Eu queria que você falasse um pouco mais sobre
isso.
D: Ah sim... o homem, quando ele sai da sua liberdade natural que ele vive, na companhia
dos demais, então ele não sente nenhuma pressão. Porque citando um exemplo: se eu tenho
um inimigo, eu achando que ele é inconveniente a mim o que eu devo fazer? Me afastar
dele, ai eu consigo me afastar dele e bem longe porque eu tenho espaço. Mas quando eu
não tenho espaço eu estou perto do meu inimigo, ai que é o problema. Ai o problema se
torna gravíssimo, que aquele homem que te odeia então você não sabe quais são as
intenções, então ele poderá lhe prejudicar, até atacar no momento que você precisa dormir.
Então você não vai ficar dentro de uma cela acordado durante 24 horas porque você não vai
resistir então você tem que ter aliados. Ter aliados e não arrumar inimizades tem que
arrumar amizade. Você sabe que ele tem condenação alta e você tem pequena, então isso
porque querer levar você para o mal. Então ele lhe convida a fazer coisas que, que a lei
penal não permite fazer. Como por exemplo: fumar ou não obedecer os horários ou te
convidar, até, ninguém sabe se tem ou não tem, ou te convidar para que aqui eu nunca vi ou
te convidar para fumar droga ou remédio, tomar remédio que é proibido. Então... para você
se prejudicar e ficar com ele ai a vida toda, então não é assim, então por isso que a gente
tem que estar sempre alerta e se pegar sempre em Deus e se você perceber que aquele
fingimento, que é o demônio que finge, então você se afasta. Se afasta e como deve se
afastar, então se deve ficar no seu canto sem dialogar, sem dialogar muito, pegar sua Bíblia
e ler.
Pegar sua Bíblia e ler e ver aqueles que, que tem um relacionamento mais ou menos
equiparado ao da gente. É que fala a mesma língua, que tem um comportamento, um
comportamento de calor humano que um ajuda o outro. Que tem vezes que aqui você se
acha completamente sozinho, então você tem que saber viver naquele momento para saber
viver naquele momento é somente pedindo a Deus mesmo e ficar no seu canto, quietinho,
entendeu?
C: Como foi essa transformação para você? E como você saiu e ficou nesse isolamento?
D: Para mim foi, foi muito difícil essa passagem ai. Porque como vivia lá fora, viva muito
bem, vivia bem. Tinha minha família, vivia com meus amigos. Então eu também, uma
pessoa como eu aposentada, só tava desfrutando da minha aposentadoria e da minha
liberdade. Então o que fazia era estar em casa, lá com a minha família e sair e voltar a hora
que eu queria. É... sem ter compromisso, é, ir para Igreja em alguns dias de final de semana,
é, conversar com minha mulher em casa, conversar com os filhos, das conselhos a eles né?!
E dormir sossegado sem pensar que as contas eram pagas certas, sempre ta tudo dentro do
regime, o que se pode comprar, o que se pode gastar.
Então levava uma vida maravilhosa, uma vida tranqüila, até que o destino me levou para
um lugar ai que eu não devi ter ido lá, que não era para ter ido lá e encontrei-me com uma
situação que deparou a mim, que se deparou diante mim que eu tive que tomar uma atitude,
que uma atitude para não morrer de legítima defesa. E fez com que eu viesse parar aqui na
cadeia. E falei, não é possível eu ta solto e em poucos minutos eu ta preso. Isso acontece
com qualquer tipo de pessoa, não somente ir para cadeia como encontrar a morte, como
todos encontram pela rua. Às vezes você ta indo para o trabalho, um carro bate no outro
vem em cima de você na calçada e te mata, vai atravessar uma rua e é atropelada. Vai para
um tal lugar, há um tiroteio a bala pega em você e leva você, a fatalidade ao morrer. Então,
são coisas que você tem que ser guiado por Deus, por isso que nós devemos orar ao sair de
casa, ao voltar, de noite para deitar, nunca esquecer daquele que nos protege, entendeu?
Que é esse Deus que eu acredito, que ele existe mesmo. E que mandou o seu filho para
morrer na cruz, que é o cordeiro de Deus. Primeiro sacrificavam animais, então Jesus veio e
foi colocado em sacrifício pelo seu pai, ai a morte de Cristo na cruz para tirar todos os
nossos pecados. Então, nós temos que crer em Cristo, Jesus, crer no pai e ter também um
Espírito Santo de Deus que são o ministério da santíssima trindade que é, que é o
Catolicismo, que a Igreja Evangélica acredita, entendeu?!. Agora tem religiões, demais
religiões ai que, que fatiam essas, essas três peças que é o pai, o filho e o espírito santos.
Testemunho de Jeová, por exemplo, Cristo Rei também não tem Espírito Santo, então Jesus
é Jeová, Deus é Jeová, então não acompanha quase a Bíblia, não é 100%, então é distorcido
entendeu?!
C: Você era PM e veio pra cá e virou... e foi recolhido. Como foi, como se sentiu aqui
dentro?
D: Não, o regulamento, então o regulamento do Militar em si, na vida do Policial na ativa,
já tem regulamento. No meu tempo, agora os regulamentos aqui são mais, não são tão
severos quanto eu entrei na policia, que eu entrei na ex – força púbica. Então tinha: prisão;
prisão isolada; prisão fazendo serviços, que nem você ia trabalhar e depois voltava; prisão
sem fazer serviço; prisão fazendo serviço; detenção que você ficava no quartel só, não
ficava na grade, mas ficava lá preso dentro do quartel sem poder ir pra casa; e repreensão
verbal e escrita. Agora não, agora não tem mais prisão como o homem entrava na grade e
fechava. Como eu sou da época antiga, então, eu não fui punido com prisão, com prisão
fechada, eu nunca fui. Mas sentia com os meus colegas que iam para prisão, se sentiam
tristes, humilhados porque ficava isolado da família. Uma prisão sem vir pra cá era 30 dias
que o comandante podia dar num quartel, qualquer quartel. Ai o comandante podia dar até
30 dias de prisão para um homem, se fosse mais que isso ai ele teria que vir pra cá. Da
prisão já era removido para prisão do Romão Gomes, que seria um crime mais grave como
se fosse: uma deserção, ou uma agressão ao superior ou um descumprimento de ordem que
tava no regulamento que era punido com, com mais rigidez.
Ai eu vi, via aquilo tudo. Então guardei dentro do meu coração também, que eu fui detido,
mas fiquei detido no quartel. Mas a detenção, não é tão pesada como a prisão. Ai quando
você se acha preso, longe da família, no isolamento, com pessoas desconhecidas, sem
conhecer o sistema prisional, então você se torna um perdido ali no meio. Mesma coisa que
você, é uma formiga caída num monte de pé de elefante que pode esmagar. Entendeu? Em
qualquer segundo, então você se torna assim, desprotegido. Quando você está desprotegido,
você se sente bem humilde, bem humilhado, então...você entristece, você pensa em coisas
que se você não estiver com Deus você faz. Pensa até em suicídio, entra em desespero, ai
você precisa tomar remédios. Remédios que pra fazer sua mente não estressar, remédio pra
te auto-controlar. E muitas vezes esses remédios não fazem bem nenhum porque ele vai
viciando você, então cada vez tem que tomar dose maior. Você vai sofrendo pressão e vai
tomando dose maior, quando você vê está envolvido por esse remédio. Ai você não
consegue dormir sem ele, então é uma situação que o homem tem que saber se auto-
administrar quando ele se vê isolado numa prisão. Então ele tem que ser seu próprio
médico, seu próprio professor, saber das amizades que ele arruma, saber o que fala. Então
tem que saber de, de ser, se adaptar ao regime. Se adaptar ao regime para não, para não se
autoprejudicar por através de pessoas que o trazem a palavra. A palavra que chega a você,
chega completamente distorcida então talvez a conversa é uma, mas ao chegar a você ela
está totalmente distorcida e se você levá-la a frente vai se distorcer mais ainda, então vai
chegar lá no fundo quem falou foi fulano, foi ciclano, ai vai dar, vai da o maior rebu, ai
você vai ser chamado e ouvido e pelo que você falou pode ser até punido.
C: Você disse pra mim, da outra vez, que está vivendo uma reciclagem. Como seria essa
reciclagem? O que seria ela?
D: Ah, não.. a reciclagem que eu digo são os estágios né, são os estágios que o interno
passa por aqui. Então quando você chega aqui você tem um crachá vermelho, que quer
dizer, nós temos um semáforo: temos vermelho, amarelo e verde. O vermelho tudo é
proibido, então você tem muitos artigos a cumpriri, ta escrito na LEP é Lei das Instituições
Penais, então ta lá. Então você não pode quebrar nenhum desses artigos, se você quebrar
algum desses artigos você é punido. Ai você fica sendo observado, você passa pelo
psicólogo. Então é observado suas atitudes juntamente com os outros internos, se você é
causador de, causador de brigas, causador de fofocas, se é causador de não cumprir as
ordens, é causador de criar caso com amigo dentro do, dentro do, aqui é chamado “X” né!?
Que é xadrez, aqui dentro da sala que você tá preso, não vou falar grade, aqui dentro do
“X”, então você tem que ser, o menos encrenca que você arranjar melhor, então você está
sendo analisado. Ai vai ter uma seleção e eles vão ter também se você é trabalhador, se é
cumpridor dos deveres que é cuidar, se faz a faxina bem feitinha e tal. E.. você é colocado
também pra trabalhar, ai você vem trabalhar pra fora, porque o interno do vermelho só
trabalha na cozinha ou pode trabalhar em obra, mas com escolta. Ai eles trazem você com,
você ta mais antigo ali, ai eles te dão uma chance pra você passar pro amarelo.
Então no amarelo você fica entre o vermelho e o verde, ta amarelo. Ta ali, pode mudar;
então pode dá vermelho de novo como você ir pro verde. Então você vai progredindo ai no
amarelo até uns tempo, ai... que esse crachá ai, que é o amarelo te dá a chance de você
receber mais visitas também. Sendo que o vermelho era só três visita, esse amarelinho se
você pegar, recebe cinco visitas fora de lá, você já sai de lá da cadeia, da grade. Ai não tem
mais a grade que fecha e tal, ai você vai pro alojamento, então o alojamento você não vê
mais a grade bater, você já tem mais espaço pra respirar, é um alojamento conjunto. Ai
você tem seus amigos pra dialogar, se pode trocar livros, conversar, tem televisão, tem
banheiro já coletivo. Ai você se solta, se solta mais, mas tem que se soltar sem esquecer que
você pode voltar lá pro vermelho, pode retroagir se você se alterar. Então tem que ter muito
cuidado, então esse cuidado vem da sua calma, da sua maneira de agir, de arrumar seu
grupo de amizades. Amizades com aquelas pessoas que, ta cheio de gente falsa. Chama
fazer a mão, querendo fazer a mão, faz uma coisa e culpa o outro. Até prova você pode
deixar, que nem os armários são todos abertos os armários, se eu quiser prejudicar um
amigo, é só eu colocar apenas um pacote de bolacha lá que não pode ter bolacha aqui no
alojamento, não pode ter. Só pode ter no dia da visita pra você comer, ai você consome e na
segunda-feira é outro dia, lá, ai já ta proibido. Ai se ele coloca lá, se for ter uma visita e
pegar você com aquilo lá então você vai ser punido. Conforme o que for pego lá, você pode
até retroagir do amarelo pra você voltar lá pra grade outra vez. Já tem acontecido muito,
você esquecer de cumprir os regulamentos a risca e cometer falhas. Cometer falhas e voltar
outra vez. Então não é bom, então... aqui, deixa você atento 24 horas por dia. Porquê tem a
revista às 6 horas da manhã, tem a corneta, ela toca tudo, mas é as corneta aqui. Ai você se
levanta, faz a barba, escova os dente e desce para o café às 6:50, a corneta toca novamente
ai é feita outra revista pra ver se você está barbeado, se está em condições.
Ai você toma o café, ai você vem pro desfile, toca o reunir também, o reunir quer dizer ta
pronto pra entrar em forma. Ai entra o desfile, ai o desfile recebe o comandante, é feita a
continência ao comandante ou a mais alta autoridade que estiver no quartel, sub-
comandante, ai é feita a revista a tropa ai você vai trabalhar. Você vai trabalhar, isso quem
ta no segundo e no terceiro estágio, que do segundo passa pro terceiro, ai você passa por
outra entrevista entre os comandos. Entra numa sala, é feita perguntas pra você ai você
responde, se eles acharem que você está apto através das perguntas que você respondeu, ai
você passa pro crachá verde. Depois disso o crachá verde fica na pessoa até que ele seja
julgado, porque ninguém tem crachá, tem um outro crachá ainda que é o azul. Mas só
depois que ele for julgado e sentenciado, ai ele ganha um azul que ele recebe o semi-
aberto. Aquele que já cumpriu metade da pena fechado, ai ele vai e passa pro semi-aberto e
ai ele pega o azul. Então quer dizes que ele pode através de petição ao juiz e autorização do
comandante daqui, ele pode estudar ou até trabalhar pra fora, através de autorização do juiz.
Mas só que essa autorização, também, ele não pode quebrar. Ele não pode quebrar também
nenhuma, nenhum dos artigos dela que é manter o horário da ida e da vinda, a hora que ele
saiu e a hora que ele chegar porque eles tem um horário para ele ta em trânsito. Seu transito
faz de conta é duas horas, então você não pode chegar aqui duas e vinte sem que tenha
acontecido nada lá, se não quebrou ônibus, tal. Então ele tem que se manter, então ele não
pode ser pego também, quando ele vir em locais impróprios, como: bares ai ele entra lá pra
comprar, pode comprar talvez um cigarro se ele fuma, mas não pode permanecer lá.
Permanecer lá dentro, porque se o serviço de vigília, que faz esse serviço ai pra olhar esses
internos que receberam essa carta de, de poder estudar e trabalhar então ele pode quebrar.
Se ele receber uma comunicação que estava em locam incompatível que estava no jogo,
que estava no, no, no dance ou tava no bar ai ele pode quebrar, ele quebrando isso ele é
recolhido, ele é recolhido do semi-aberto ai ele não pode mais sair. Então ele tem que puxar
no semi-aberto que tem a saidinha só, as saídas que são temporárias que são 5, 5 por ano.
Então ele tem que tomar todas as precauções, então se pensa que você ta num regime que tá
muito aberto, mas, não tá, tem que tá sempre alerta. Então o interno tem que ser
monitorado, então ele que faz ele mesmo, se ele quiser que vá tudo bem então ele cumpra
tudo. Ninguém daqui persegue ninguém, estão aqui só para orientar, te servir e te instruir
para o amanhã, pra uma vida melhor. É, reformar a pessoa, reformar a pessoa para quando
ele sair está em outra vida, numa vida melhor que, para ele não errar mais. Então isso, aqui
que é o presídio Romão Gomes é pra ajudar, é pra ajudar os militares né?! Às vezes ele tá
em dependência também, tem elementos que estão em dependência química, então eles são
tirados né, tirados da rua e vão internados, são internados. Mas quando na internação ele
não quer obedecer e continua fazendo então ele também é sujeito a ser recolhido pra cá, ser
preso né, com droga e tal.
Então o Presídio Militar Romão Gomes o objetivo é reeducar, reeducar o policial para
sociedade né?! Inclusive aqui tem serviço também, para aqueles que não podem sair, eles
dão serviço aqui também. Para que a pessoa possa ganhar um dinheirinho, pra ajudar a
mulher que está em casa tomando conta dos filhos, né?! E várias firmas dão emprego ai
também, inclusive dá cesta básica, paga o salário, um salarinho ai a pessoa vai levando a
vida até chegar o dia de ela ganhar sua liberdade e começar uma nova vida.
C: Como é a relação com a sua família? Você trabalha também, recebe um dinheiro, a sua
mulher vem visitar. Como foi tudo isso? Como era antes a relação com a sua família?
D: A relação com a minha família era uma relação normal, mas, não afetiva, não tão
afetiva. Faça de conta, eu vejo meu pai todo dia, então todo dia estou vendo meu pai.
Minha mulher vê o marido todo dia, então você por ter aquela regalia de estar todo dia com
a família, você abusa. Então você não cumpre os horários, bebe, é.. dá respostas más para
mulher, talvez ela nem mereça, com os filhos também você dá respostas agressivas que
talvez não mereciam. Então você se acha um vilão dentro da família, ai quando você é
separado da família ai é que você sente o que é uma família, porquê gente estranha não
vem, não vem ninguém vê você aqui na prisão, nem vem bebe com você porque aquele
tempo que vocês andavam lá pelos bares, pagava pá um. Então tem muitos amigos na rua,
mas quando você vem preso eles torcem pra você ficar preso. Não sei porquê motivo, ele
falam “ah ele fez isso então não prestava, esse cara é... não falei pra você fulano que esse
cara não prestava, olha lá ele ta preso, ai ó, aconteceu alguma coisa com ele, matou fulano,
ele roubou, ele fez isso e tal. Então só quem dá valor na gente é quem nos ama de verdade,
é única pessoa que ama, ama mesmo da família é a mãe do interno, a esposa do interno se
ela te amar mesmo ela não te abandona, seus filhos e seu pai, sua família, só a família. É, a
família é aquilo pai e mãe, filhos e irmãos. Até irmão, até irmão eu dizendo pra você que
irmãos não tem a mesma afetividade no outro não, como tem uma esposa ou um filho. Os
irmãos cresceram junto com a gente, mas tem uns que não ligam muito. Não ligam muito
para a vida do outro não, vivem separados cada um que, que, que se salve por onde puder.
Porque eu tenho irmãos que não vieram me visitar, até hoje não vieram me visitar, não sei
porque motivo. Um falou “ah não gosto de ver cadeia que eu fico triste”, “ah não gosto de
ir lá, tatal.. porque faz revista, por isso, por isso”. Porque quando você ama uma pessoa
você enfrenta qualquer situação para estar junto dela, para dar um conforto de palavras né?!
Palavras confortáveis, escreve carta. Agora tem gente aqui, que não no meu caso que estou
bastante assessorado pela minha mulher que nunca falta, meus filhos que me amam, minhas
irmãs.
C: E com os seus pais como era a relação, eles vêm aqui também?
D: Meus pais, eu perdi a minha mãe eu tava preso aqui, quando eu fiquei três meses minha
mãe faleceu. Minha mãe tava na clínica de repouso, minha mãe sofria de Mal de
Alzheimer, então ela não, não chego a pega, saber que eu tava preso porque a mente dela já
não funcionava. Então eu ia visita ela lá, mamãe tatal, mas ela não sabia mais nem que eu
era filho dela porque esse Mal de Alzheimer, Alzheimer deixa a pessoa sem noção
nenhuma né?! Ai meu pai também tinha falecido já há dois anos atrás, meu pai com 85 anos
e minha mãe com 83 anos. Ai tem meus irmãos que moram nos EUA e outro irmão meu
que mora na Inglaterra. Agora os que estavam aqui, que estão aqui ainda, me visitam ai
toda semana, então não tem visita to contente. Nunca eu transpareci nenhuma tristeza para
minha família para que eles não levassem isso pra casa, ai entristece a mim e eles. Então
sempre me mantive como se ta contente, estar alegre, nunca demonstrar, nunca reclamar de
nada. Porque “oh o meu marido ta”, se você falar pra sua mulher mil coisas pra ela, ela já
toma uma facada já, uma facada quer dizes um golpe. Um golpe de teu marido ir pra cadeia
e ela ficar lá sozinha tomando conta da casa, já é difícil. Agora se ela chega aqui pra visita e
fica contando as coisas que aqui acontece, ela vai sai chorando e vai perder as forças para
trabalhar, na outra semana inteira vai ficar de cama e com remédio e sedativo para depois
voltar aqui, então você sepulta sua esposa se você transferi problema de cadeia pá, pá sua
família. Então tem que ser um homem forte e perseverante e como você consegue ser forte
e perseverante? Juntamente com aquele um que lhe quer bem que é Deus, que é Jesus. Ai
você ora, freqüenta os cultos e via suportando tudo o que vier pela frente com a maior
calma.
C: Então é por isso que o senhor diz que a relação com a família melhora quando está aqui
dentro? Por esse valor que dá à família?
D: É lógico, se dá valor a família, você muda completamente. Lá fora você não dá valor pra
família porque você tá em liberdade, fala “ah o que eles vão fazer comigo, nada”, vô chega
e vô andar até com outras mulheres. O homem pode praticar até adultério ou ir pra essas
casas de dancing ou falar pra mulher que tava em tal lugar ou nem dar satisfação. Falar pros
filhos também que vai ficar dois dias fora de casa, fala que vai viajar com os amigo, com
pescaria. Então tem tudo isso!
Agora quando você se sente aqui, ai você não vê a hora da sua família apontar no portão,
você vê, vê aquele amor. Aquele amor de família que dá amor ao homem quando ele se
encontra numa situação dessa de isolamento. Ele é isolado da família, ah a maior força é
sua esposa e seus filhos, você vendo eles você tem força, agora você não vê, se a sua
família num vim te visitar, meu filho você ta embarcado, ai você sente que a depressão bate
e a semana demora muito pra passar. A semana demora demais pra passar se você não vê
ninguém. Agora se você vê traz noticia, fala que o amigo mandou lembrança, que a sua tia
falou isso, o que aconteceu durante a semana “ah nós almoçamos isso, fomos, veio amigo
meu em casa, a minha vizinha veio visita eu, fizemos bordado, fizemos isso”, ai você se
alegra, entendeu?! Faz de conta que você ta acompanhando a família, só que você tá
isolado ali, até na outra semana, então vai até passar esse tempo que foi determinado pela
sentença da justiça né?! Depende o que cada um fez né, o artigo ou a pena que cabe né?!
C: Por quê você escolheu ser policial?
D: Escolhi ser policial porque, quando eu, na minha cidade eu servi né?! Você é reservista
então você serve e eu adorei muito, adorei servir o exército e que... e amizade que você
adquire entre os camaradas e a dificuldades que você passa lá também, a correria, mas tudo
em harmonia sabe?! Então você sente saudade. Então falei, já que fui militar do exercito e
eu gostei, então vou entrar pra ser militar na policia militar. Ai entrei na ex-força pública,
não era tão evoluída que nem hoje, não tinha armamento que nem hoje, era com mais
dificuldade. Mas eu entrei também, naquela época no interior, no interior era tudo serviço
pesado, tinha de servente de pedreiro, tinha de carpi na roça, nos cafezais e tinha também
de trabalhar na cidade, no comércio, mas era muito disputado. O estudo naquele tempo, o
jovem estudava no máximo até o quarto ano primário, depois abandonava o estudo porque
já ia procurar profissão, porque as profissões que já eram oferecidas eram profissões
como... profissões simples, você ia ser pedreiro, você ia ser eletricista, você ia ser
açougueiro, você ia servir a cidade. Então a cidade tem o comércio, tem tantas lojas de
tantas coisas, tais lojas abraçam feminina, tais lojas abraçam masculina; então numa cidade
pequena você vai e tem a rede bancaria é unisex, então você escolhe lá, mas a disputa é
muito grande pra arranjar emprego. Eu, como minha mãe se esforçou muito, me pôs na
escola, ela era costureira. Meu pai não ligava muito se eu ia bem na escola ou não, ele não
era assíduo nos meu boletins, agora minha mãe era. Então ela me esforçava, eu com a
minha inteligência, então ela colocou eu, eu terminei o primário, não repeti nenhuma. Fiz
admissão, tinha admissão pro quinto ano. Tinha admissão para passar pra primeira série,
não sei se você sabe disso.
C: Não!
D: É então você não sabe né?! Você terminava o ginásio, para você passar pra primeira
série que era mais quatro série, que você tinha que fazer de colégio, não de ginásio você
terminava um grupo escolar, 4 anos. Ai ginásio era mais quatro, ai o colégio era mais três,
ai era 4 e 4 = 8 e mais 3, onze anos,que você ficava estudando. Então minha mãe pegava
no meu pé na escola e eu ia bem. Ai de menor, com 13 anos eu consegui colocação no
comércio, fui do sindicato, sindicalizado pelo comércio. Entrei no SESC, o SESC naquele
tempo tinha na minha cidade também, então entrei no SESC, quem tinha carteirinha do
SESC era assistido. Era assistido, odontológico, médico, odontológico, tinha isso no SESC
né?! É o Serviço Social do Comércio, ai tem as suas vantagens lá, tinha até clube, então eu
fui, cresci assim com uma mentalidade de um jovem para o progresso. Ai eu vim porque eu
queria conhecer a cidade grande, ai eu vim fiz inscrição lá em São José do Rio Preto que lá
tinha a força pública lá também tinha inscrição e tinha escola lá. Mas lá eu fui reprovado, ai
como eu tinha parente aqui em São Paulo, uma tia irmã da minha mãe ai ela foi me visitar e
eu falei com ela se podia ficar na casa dela e, e prestar os exames aqui na polícia militar.
Desde até que eu arrumasse um emprego ou uma pensão, então foi isso que aconteceu, ai
ela deixou, ai eu prestei os exames e nesse ínterim eu prestava exames de manhã e arrumei
emprego a tarde pra ajudar nas despesas né?! Então eu trabalhava até mais tarde, ai eu
passei na polícia, incorporei e fiquei. Ai meu tempo foi, ai.. foi de policial, fui estudando fiz
concurso pra Cabo, Sargento né?! Até que, cheguei até Tenente né?! Ai eu fui ajudando
minha família que é era do interior, trouxe todo mundo para São Paulo, então fui mantendo
minha estrutura, fiz uma estrutura pra mim né?! Ajudei a minha família e a mim também,
até que através do meu trabalho comprei minha casa, como todo mundo faz. Todo mundo,
aquele que quer evoluir tem que se esforçar, então fui esforçado e tive tudo isso. Minha
esposa, minha casa pra morar, meu carrinho, meus filhos estudaram também. Tive dois
filhos, graças a Deus é o Guilherme e o Rodrigo que vêm me ver. Um é Policial militar
também, o outro gosta mais de mexer com mecânica então vai fazer engenharia mecânica,
então eu levei minha vida. Então eu, pela idade que eu tenho, então eu fiz aquilo que eu
pude pela minha família, então eu acho que eu já ensinei tudo. Então, se eu chegar a faltar,
eles vão sentir falta desse pai que fez tudo, desse pai bom né?! Que eles tiveram, eu nunca
deixei faltar as coisas em casa, nada de comida, tudo sempre a primeira coisa que eu fiz foi
olhar pra casa, ver as despesas da casa né, deixar todo mundo sossegado.
E graças a Deus até hoje eu tô aqui esperando a minha vitória para ser transformado em
outro homem, ser companheiro da minha mulher, ser bom amigo dos meus filhos, logo
também eles vão se casar e terão um netinho pra alegrar o vovô. É mais ou menos assim.
C: E como foi, você era policial, chegou a ser Tenente, tinha um cargo alto...
D: É não é tão alto, é médio né?!
C: É então, mas é um cargo que é bem visto, tem um certo poder. Como foi essa
transformação de ter tudo isso como policial e, de repente, se encontrar no presídio? Assim,
como você se sentiu?
D: Ah, foi um choque. Tomei um choque sabe porquê? Porque aqui no presídio todos são
iguais. Desde o coronel que vem preso, e vem coronel também, aqui é do coronel até pro
soldado. Ai a mordomia que eu era tratado, com certos respeitos né?! Tem mordomia, que
você é respeitado quando você dá respeito, então sempre dei respeito, então sempre tive
grande moral onde eu morei, no lugar que eu morei. No bairro onde eu morei todo mundo
precisava de mim, ia tirar conclusões comigo, ia perguntar coisas inclusive de lei de direito,
eu ajudava uns carentes naquilo que eles precisavam. O meu carro tava sempre a disposição
aqueles que necessitavam. Então fui uma pessoa que quando souberam que fui preso, lá no
meu bairro, muito foram, levaram à minha mulher a força que ela precisava né?! Falava
“não sei marido vai, mas vai sair, não é possível que tenha acontecido isso com o Tenente.
Tenente não é pessoa dessa não, porque ele não faz nada, nada errado”. E quando eu fui
preso a situação veio distorcida ainda, distorcida pra minha casa, não sei quem inventou.
Falaram “não o Tenente matou o caseiro dele e enterrou”. Falei que coisa absurda quando
minha mulher soube disso, mas depois foi tudo desmentido, falei “não meu caseiro ta vivo”
até a juíza falou, eu falei “não meu caseiro ta lá, mora em tal lugar, o sítio é esse, o telefone
é esse, pode ligar lá ele vai atender e tal”. O que aconteceu não, o cara que eu dei carona
que me assaltou, me assaltou e eu pá não morre, reagi e ele morreu. Como eu tava dentro da
cidade e ouviram os tiro, então acionaram a polícia. E a polícia me pegou e eu tava
embriagado, não soube explicar, fui pra delegacia. Ai o delegado falou “vou fazer flagrante
pra prender ele no Romão Gomes e depois o juiz resolve com a juíza, resolve lá o caso dele,
então não vou resolver porque ele não ta falando coisa com coisa”. Então, o prejudicado foi
eu porque eu não devia ta lá naquela hora, que era copa do mundo. Mas não devia ta onde
eu tava, que era no pesqueiro no Engenho de pinga, então eu passei do limite. Se você passa
do limite você não se conduz, ai você é conduzido, conduzido pelo quem? Pelo demônio e
pelo vício, ai você não sabe o que faz. Quantas pessoas matam os outros pelas ruas?
Diariamente, a todo momento, todo segundo. Por isso que a lei seca foi imposta, pra parar
com essas mortandades, essas banalidades porque o homem se ele não tiver um controle
rígido sobre si ele se extrapola. Se extrapola, ele fala olha to bebendo uma cerveja vou pra
seis, de seis vai pra doze, ta correndo a oitenta quer correr a cento e sessenta. Então ele tem
que ter sempre uma lei em cima dele, se não ele se perde entendeu?! Assim mesmo é um
filho da gente, se você não souber educá-lo, ele não vai te respeitar, então vai ser, vai virar
um animalzinho ai. Então você tem que saber conversar, educar. E o homem tem que estar
sempre sob domínio (fala forte e alto essa palavra) de alguém. Alguém superior a ele e tem
que ter superior, até o presidente de república tem que ter superior porque ele é o presidente
da república não.... tem gente vendo ele, tem os seus ministros entendeu?! Então tem que
ter sempre alguém sobre, comandando alguém, se não ele pensa que é o dono do mundo ai
não dá certo, ai vai fazer coisa que vai prejudicar alguém. Então é essa a entrevista que eu
dei pra você, mas tem mais coisa, se quiser falar de outra coisas mais né?!
C: Pode falar o que o senhor quiser.
D: Não sei estou falando daqui, então o importante é pensar positivo, nunca você deve
entrar em coisas negativas. Saiu ai na praça também um livro chamado O Segredo, não sei
se você o leu?!
C: Eu já li algumas coisas, mas o livro mesmo não.
D: Eu quero que você leia ele todinho, eu posso até emprestar pra você, se for voltar aqui
me devolve, eu tenho. Então o segredo fala que o homem tem que ser objetivo nas suas
coisas, tem que ter muita força de vontade e tem que acreditar, tem que acreditar
entendeu?! Se colocar uma coisa na mente fazer que aquilo que você colocou seja
realizado, seja realizado. E você não pode desistir, você tem que ser persistente. Então você
persistindo você consegue, então você pode estar no nada, mas se você persistir alguém
ensina você o fio da meada para você pegar, ir e realizar o seu desejo. É como diz a fé
move até as montanhas, entendeu? Então você vai e consegue.
Então esse livro o segredo ele cita apenas, poucas coisas sobre Deus e religião, ele fala mais
na vocação do homem mesmo, entendeu? Do homem em si. É a mesma coisa que teoria
evolutiva, então sabe que Darwin e Deus, Darwin matou o Deus, então se acreditar na
teoria de Darwin então você não pode ir pela religião. Você esquece Adão e Eva tatatá que
não tem nada a ver. Então você tem que saber que existe um ser que domina esse mundo e
eu acredito na teoria da evolução né, também. Mas, com um ser superior dominando tudo
isso que é o senhor Deus desde universo. Então eu termino aqui dizendo a você, que você
também tenha boa sorte nos seus estudos e que continue entrevistando pessoas porque cada
cabeça uma sentença.
C: Posso fazer uma última pergunta para você?
D: Não a última não, a penúltima porque a última é só quando você não fizer nunca mais
perguntas para mim.
C: Tá bom. É, depois de ler tudo isso que você falou sobre O segredo, de tudo isso que
você falou, de todas essas mudanças que aconteceram na sua vida, como você se vê? Como
o D. se vê hoje?
D: Você sabe que eu me vejo, um homem que eu tenho orgulho de mim mesmo. Sabe
porquê? De tudo o que o homem tem conhecimento, eu conheço uma migalhinha, uma
migalhinha do mundo, de todos os conhecimentos. Então, através sabe do que? Da leitura,
então o livro, a maior riqueza que o homem pode ter em sua mão é o saber. O saber não
ocupa lugar, o saber está na sua mente. Então se voce acompanhar as notícias do mundo e
conhecer o mundo desde o começo como ele foi, como ele foi criado, do jeito que as coisas
se evoluíram, então através dos livros, você tem que se sentir orgulhoso e contente. Porque
se um amigo estiver discutindo de um assunto, apenas ao ouvi-lo você já vai saber do que
ele está conversando então já está inteirado daquele assunto e pode abordar, abordar o tema.
Agora quem não lê nada, não sabe nada, não pode compartilhar através de reuniões ou de
roda de companheiros, de amigos, do que eles estão conversando só se ele ficar ouvindo
porque talvez não entenda.
Então por isso que o homem tem que ter chance de, de estudar e o governo tem que colocar
normas nas escolas para que nossos jovens sejam instruídos para o amanhã. Para que um
país que quer crescer, tem que gastar na educação, o primeiro lugar. Principalmente agora
em época política quais os slogans que eles usam para conquistar votos é: casa, habitação,
comida e remédio. Então você tem que ser, bem cuidado pela medicina para você não ficar
doente tem que ter lugar para se tratar. Se bem alimentado para ser forte, para que vírus não
te peguem. Ser, ter religião para poder respeitar, respeitar os demais e ter residência para
que você possa acolher sua família. Então, são as coisas básicas da vida né?! De um homem
que vive, que vive em conjunto com sociedade.
C: Como você se descreveria agora, não sendo mais policial porque está aqui dentro? E
agora que é religioso, que se apegou a religião?
D: Então eu não sou mais policial por estar aqui dentro, não porque eu cheguei até, eu
aposentei. Eu trabalhei o tempo todo, não era mais. Mas é uma grande diferença, você pode
ser até aposentado, estar aposentado e estar na rua, mas o seu prestígio não cai, dentro de
você, dentro do seu dogma, você é ele mesmo que foi antes. A não ser a moral de cada
pessoa, então eu construí a minha moral, a minha fortaleza ao meu redor. Qual é a fortaleza
ao seu redor? União de família e união dos amigos que te conhecem, mas não pras horas,
pras horas difíceis da vida. Nas horas difícil mesmo, então você é abandonado (com grande
entonação na palavra), que nem aqui, que eu estou aqui, então você tem um bom dia,
manda um olá, mas ninguém vem te oferecer dinheiro para você sair da cadeia, pra te pagar
advogado, ninguém vem aqui porque é longe. Ninguém vem saber se sua família precisa de
coisas tal, então esses amigos, não é aquele amigo que gosta, que é, que é com a sua família
que gosta de você, que sofre por você. Então, aconteceu, ta acontecido, aquilo ta esquecido.
Então eu tenho ao meu redor mais quinze, então era a mesma coisa. Eu tava num grupo lá
de 20, faltava um você não vai falta, agora tira tudo de você pra você vê, então, você vê Jó.
Vê pelo Testamento, então lê o livro de Jó, Jó era rico tudo ai o diabo falou ele tá cheio de
riqueza por isso que ele te ama, tira tudo dele pra ver se ele ama. Então tá aí, tá ai na
escritura sagrada, ai Deus tirou tudo, mas não toque nele, não deixe que Jó morra, vê se ele
vai me negar. E Jó nunca negou pra Deus, sofreu tudo o que sofreu, isso tá nas parábolas do
evangelho. Então tem que ser persistente, ser persistente, ter calma, serenidade e acreditar,
ter credibilidade e saber também que o tempo passa. Eu nasci nu, fui menino, me criei,
cresci, dei frutos, agora sou árvore madura e eu sei que um dia essa árvore também vai ficar
velhinha, seu caule vai apodrecer e ela vai cair, é o dia que está escrito “do pó tu nasceste,
do pó tu virá, tu será pó também”.
Então não tem ninguém que é bom, nem que é rico, nem que é sobrepotente a todos né, que
é orgulhoso, mas um dia ele vai, vai quebrar, vai cair porque não existe reino que não caia.
Então todos os grandes reis da terra todos caíram, então você vê que nunca uma coisa
permanece eterna. Uma coisa que eu li que apenas os diamantes são eternos, mas isso eu li
num livro e isso tá se falando em outra matéria, tá se falando em coisas de objeto né, não de
carne, e...e ele falava sobre isso, sobre a humanidade também viu?! Que a humanidade
cresce, se transforma tal né e se modifica e tudo acaba do mesmo jeito,tudo acaba no pó.
Então por isso que o homem tem que não ser arrogante ao seu próximo, ter sempre a
humildade porque a humildade traz a perseverança, traz a conquista e traz o amor no
próximo junto de você. Então aprendi a ser assim considerar todo mundo, não zombar das
pessoas, não ser prepotente, você não sabe o dia de amanhã. Então agora o que eu sou aqui
do quer era antes? Era o Tenente e tal, agora sou o interno, interno que qualquer
funcionário daqui que nem policia é, não é nada manda em mim, então eu tenho que me
sujeitar aos regulamentos daqui entendeu? Então tem que saber que hoje é um dia e amanhã
é outro dia.
Então eu desejo a você também que você estude bastante para que você amanhã possa
passar lições de vida, de boas maneiras àqueles que necessitam. Seja uma professora para
educar né?! Pra que a humanidade se construa de uma forma com um alicerce sobre a
rocha. Um alicerce firme né, para amanhã.
Observação: Termina conversando sobre conselhos que daria se eu fosse uma policial
novata e dizendo que era o que fazia com os colegas de profissão.
D: O mundo do jeito que ta hoje não tem muita gente pensando no dia de amanhã não, só
pensa no hoje e esse hoje é que é o perigo; que leva todo mundo ai a estar no vermelho no
perigo.