A causa de duplo efeito e sua aplicação à gravidez ectópica

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Pe. LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ

O PRINCPIO DA AO COM DUPLO EFEITO E SUA APLICAO GRAVIDEZ ECTPICA

Pe. LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ

O PRINCPIO DA AO COM DUPLO EFEITO E SUA APLICAO GRAVIDEZ ECTPICA

Dissertao de Mestrado (Licenza) apresentada na Faculdade de Biotica do Ateneu Pontifcio Regina Apostolorum (Roma), em 24 de abril de 2009, sob a direo do Professor Pe. Vctor Pajares

Capa, projeto grfico: Marissol Martins de Santana [email protected] Explicao do desenho da capa: Um embrio humano implantado na trompa de Falpio (portanto, fora do tero), ameaado de morte por uma salpingectomia (simbolizada pela tesoura) e pela aplicao do frmaco metotrexato (simbolizado pela seringa de injeo), procedimentos comuns em uma gravidez ectpica.

Cruz, Luiz Carlos Lodi da O princpio da ao com duplo efeito e sua aplicao gravidez ectpica / Luiz Carlos Lodi da Cruz Anpolis: Mltipla, 2009. 88 p.; 15,5 x 22,5 cm Palavras-chave: 1. Duplo efeito. tubrio-uterina 2. Gravidez ectpica 3. Converso

Imprimatur Anpolis, 24 de julho de 2009 Dom Joo Wilk, Bispo Diocesano de Anpolis - GO

Em matria de princpios, devemos ser furiosamente intransigentes Dom Manoel Pestana Filho, Bispo Emrito de Anpolis, GO

AGRADECIMENTOS Agradeo primeiramente a Deus, Autor e Senhor da Vida. Agradeo a Maria Santssima, me de Deus e nossa, qual me consagrei na qualidade de escravo, segundo o mtodo de So Lus Maria Grignion de Montfort. Agradeo a Dom Joo Wilk, Bispo Diocesano de Anpolis (GO), que gentilmente concedeu-me o Imprimatur para esta dissertao. Agradeo a Dom Manoel Pestana Filho, Bispo Emrito de Anpolis, que me estimulou e estudar Biotica em Roma. Sua santa intransigncia com os princpios morais veio-me lembrana quando decidi escrever sobre a correta aplicao do princpio da ao com duplo efeito. Agradeo ao telogo Antonio Donato Paulo Rosa, que me apoiou durante todo o percurso desta dissertao e me forneceu preciosas fontes bibliogrficas acerca da converso da gravidez ectpica em gravidez uterina. Agradeo aos mdicos que me socorreram, respondendo s minhas perguntas sobre a gravidez ectpica, em especial Dra. Marli Virginia Gomes Macedo Lins e Nbrega, Dr. Jos Arantes da Silva, Dra. Lucinda Maria Lodi Ciuffo, Dra. Elizabeth Kipmman Cerqueira e Dr. Dernival da Silva Brando. Agradeo ao meu diretor Prof. Pe. Vctor Pajares, da Faculdade de Biotica do Pontifcio Ateneu Regina Apostolorum, que aceitou a misso de orientar-me nesta dissertao. Agradeo ao Pe. Nathanael Thanner e professora Berenice Oliveira, que fizeram a reviso gramatical do texto. Agradeo projetista Marissol Martins de Santana, que generosamente disps-se a elaborar o desenho da capa e a fazer o projeto grfico do livro.

Agradeo ao meu pai (in memoriam) e minha me, por me terem transmitido a vida e por me terem ensinado, por palavras e exemplos, a respeit-la como sagrada. Agradeo aos Frades Franciscanos da Imaculada, que gentilmente me hospedaram em Roma durante os meus estudos. Agradeo a todos os amigos pr-vida espalhados pelo Brasil e pelo mundo, que me ajudaram com suas preciosas oraes. Espero que a leitura deste livro ajude os profissionais de sade, que tantas vezes se deparam com o delicado caso da gravidez ectpica. Se servir para salvar a vida de um s beb, j ter valido a pena t-lo escrito. Anpolis, 21 de agosto de 2009. Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

NDICEINTRODUO..............................................................................11 I. O PRINCPIO DA AO COM DUPLO EFEITO ...............13 1. A morte do inocente como meio...............................................13 2. A morte do inocente como segundo efeito ...............................15 3. A formulao do princpio da ao com duplo efeito..............16 4. Origem histrica do princpio da ao com duplo efeito ........19 5. Os juristas e o princpio da ao com duplo efeito .................21 II. CASOS CONTROVERSOS.....................................................25 1. A legtima defesa......................................................................25 2. A histerectomia em uma gestante com cncer .........................29 III. O PROBLEMA TICO DA GRAVIDEZ ECTPICA ......33 1. A gravidez ectpica..................................................................33 2. A salpingectomia em uma gravidez tubria.............................34 3. Declaraes do Magistrio relacionadas com a gravidez ectpica ........................................................................................35 4. A tese de Bouscaren .................................................................39 5. O problema do momento da remoo da trompa ....................43 6. Dificuldades da tese de Bouscaren ..........................................47 a. Primeira dificuldade ............................................................47 b. Segunda dificuldade.............................................................52 7. Depois de Bouscaren, outras distines ..................................53 8. A expectao armada...............................................................56 9. A ordenha tubria ....................................................................63 10. Avaliao moral.....................................................................65 IV. CONVERSO DA GRAVIDEZ ECTPICA EM GRAVIDEZ UTERINA.................................................................67 1. Tentativas e sucessos ...............................................................67 2. Moralidade da converso tubrio-uterina...............................79 3. A necessidade de uma conclamao........................................81 CONCLUSO ................................................................................83 BIBLIOGRAFIA............................................................................85

INTRODUOO princpio da ao com duplo efeito uma ferramenta poderosa de que dispomos para resolver questes intrincadas de biotica, quando um ato em si bom, praticado com boa inteno, produz um efeito mau indesejado, mas inevitvel. O desconhecimento ou o conhecimento imperfeito desse princpio pode levar a consequncias desastrosas do ponto de vista moral. O objetivo da presente dissertao expor a doutrina da ao com duplo efeito e verificar a legitimidade de sua aplicao s diversas terapias hoje disponveis para a gravidez ectpica, em especial para a gravidez tubria. No captulo primeiro, ser apresentada, por meio de exemplos, a formulao exata do princpio da causa com duplo efeito, assim como o percurso histrico que levou os moralistas a formul-lo. No captulo segundo, sero apresentados dois casos controversos a morte de um agressor em legtima defesa e a remoo de um tero grvido canceroso com as respectivas propostas de soluo a partir do referido princpio. No captulo terceiro, ser enfrentado, com base no mesmo princpio, o difcil problema da gravidez ectpica e suas diversas opes teraputicas, com as declaraes do Magistrio at hoje feitas sobre o tema. Dar-se- uma ateno especial tese de Bouscaren, segundo a qual lcito remover a trompa contendo em si um embrio implantado, antes mesmo da ruptura tubria. Sero apresentadas as dificuldades que o caso apresenta na aplicao do princpio acima citado. Ao fim, sero identificados, dentre os procedimentos teraputicos, quais seguramente no constituem um atentado direto vida do embrio humano. No captulo quarto, ser tratada a possibilidade de transplantar a criana da tuba para o tero, uma tcnica cirrgica existente desde 1915, mas pouco conhecida e pouco aplicada. Ser estudada sua viabilidade tcnica e sua licitude moral. Por fim, verificar-se- de que modo os profissionais de sade e a populao 11

em geral podem contribuir para a preveno e a cura da gravidez ectpica, levando em conta as atuais possibilidades diagnsticas e cirrgicas.

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I. O PRINCPIO DA AO COM DUPLO EFEITO 1. A morte do inocente como meio No ano 70 d.C., a cidade de Jerusalm foi sitiada pelo general Tito, em represlia a uma rebelio dos judeus comandada pelo partido dos zelotes. Flvio Josefo, chefe militar da Galilia, foi capturado pelos romanos. Escreveu com detalhes os horrores daquela guerra, e tentou, em vo, fazer com que seus compatriotas se rendessem. O texto a seguir refere-se ao cerco de Jerusalm:Josefo, cuja prpria famlia sofreu com os sitiados, no recuou nem mesmo diante dum episdio desumano que prova que o desespero da fome j comeava a turvar a razo dos israelitas. Os zelotes percorriam as ruas em busca de alimento. Duma casa saa cheiro de carne assada. Os homens penetraram imediatamente na habitao e pararam diante de Maria, filha da nobre famlia Bet-Ezob, extraordinariamente rica, da Jordnia oriental. Maria tinha ido como peregrina a Jerusalm para a festa da Pscoa. Os zelotes ameaaram-na de morte se no lhes entregasse o assado. Perturbada, a mulher estendeu-lhes o que pediam, e eles viram, petrificados, que era um recm-nascido meio devorado o prprio filho de Maria1.

Poder-se-ia tentar justificar a atitude da mulher faminta com o seguinte argumento: se ela no tivesse matado o prprio filho, ambos teriam morrido; ao mat-lo para saciar sua fome, pelo menos uma das vidas foi poupada. No entanto, segundo o Direito Natural, matar diretamente um ente humano inocente um ato intrinsecamente mau, que no pode ser justificado nem pela boa inteno, nem pelas possveis boas consequncias, nem mesmo pelo estado de extrema necessidade, nem sequer para salvar outro inocente.

W. KELLER, E a Bblia tinha razo...., tr. Joo Tvora. Melhoramentos, So Paulo 19582, 340.

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No repugnante caso acima, a salvao da vida da me foi obtida por meio da morte do beb. Analogamente, se durante uma gestao o aborto fosse um meio para salvar a vida da gestante ainda que fosse o nico meio , tal ato seria gravemente imoral. dever do mdico salvar me e filho, mas no se pode salvar um deles por meio da morte do outro. O fim, por mais nobre que seja, no justifica um meio mau utilizado para alcan-lo. Sobre o aborto diretamente provocado como meio para salvar a vida da gestante, mesmo em caso de extrema necessidade, assim se pronunciou Pio XI:Pelo que diz respeito indicao mdica e teraputica para usar as suas prprias palavras j dissemos, Venerveis Irmos, quanta compaixo sentimos pela me, a qual, por ofcio da natureza, encontra-se exposta a graves perigos, seja de sade, seja da prpria vida: mas qual razo poder jamais ter fora para tornar desculpvel, de qualquer maneira, a morte direta do inocente? Porque dessa que se trata aqui. Seja que se cause a morte me, seja que se cause prole, ser sempre contra o mandamento de Deus e a prpria voz da natureza: No matars! (Ex 20,13). de fato igualmente sagrada a vida de uma e da outra pessoa, e ningum poder destru-la, nem sequer a autoridade pblica. Com suma leviandade, quer-se deduzir do direito da espada, que vale s contra os delinquentes, este poder contra os inocentes; nem se pode invocar aqui o direito de defesa, at o sangue, contra um injusto agressor (quem, de fato, chamaria injusto agressor uma inocente criaturinha?); nem pode existir, de modo algum, o direito que chamam direito de extrema necessidade, e que possa chegar at a morte direta do inocente2.

PIO XI, Casti Conubii, in AAS 22 (1930), 562-563, (cap. II), cit. in ENCHIRIDION DELLE ENCICLICHE. Edizione bilingue. V. Pio XI, Edizioni Dehoniane, Bologna 19982, n. 509.

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2. A morte do inocente como segundo efeito Um submarino torpedeado em uma guerra3. Um dos compartimentos comea a encher-se de gua. O comandante imediatamente manda que fechem a escotilha, a fim de que a gua no invada o restante da embarcao. Ao fazer isso, porm, dez tripulantes que estavam no compartimento torpedeado morrem afogados. A ao de fechar a escotilha no m em si, e nem sequer praticada com m inteno. No entanto, ela ter como efeito inevitvel a morte de dez tripulantes daquele compartimento, que sero afogados. A morte desses inocentes, causada indiretamente, no um meio de salvar a embarcao. O meio o fechamento da escotilha. Se, absurdamente, o comandante mantivesse a escotilha aberta, mas mandasse matar os dez tripulantes, no salvaria o submarino. Nesse exemplo, jamais se pode dizer que a salvao do submarino se deu por meio da morte de dez inocentes. A distino entre meio e efeito fundamental para que se resolvam certas questes cruciais da Biotica e do Biodireito. Muitos de nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados, mas inevitveis. Ao tomarmos uma aspirina para curar uma dor de cabea, podemos causar dano ao estmago. Ao corrigirmos o prximo, s vezes ele se sente humilhado ou envergonhado. Ao lutarmos contra o aborto, causamos a ira dos abortistas. Se fssemos obrigados a evitar todos os atos bons que acarretam ou podem acarretar algum efeito mau, ficaramos paralisados. Para resolver essa questo, os moralistas formularam o princpio da ao com duplo efeito, que veremos a seguir.

Este exemplo citado por T. A. CAVANAUGH, Double-effect reasoning. Doing good and avoiding evil, Oxford University Press, Oxford 2006, 13.

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3. A formulao do princpio da ao com duplo efeito O beneditino Estvo Bettencourt, referindo-se ao dever do cristo de anunciar a verdade, mesmo sabendo que tal anncio poder ser causa de discrdias, explica o princpio da ao com duplo efeito:A Teologia Moral aceita o princpio da causa com duplo efeito: um bom, diretamente intencionado, e outro mau, no intencionado, mas apenas tolerado. Eis como se formula este princpio: lcito recorrer a uma causa com duplo efeito um bom, outro mau desde que 1) o efeito bom no decorra do efeito mau, mas, ao contrrio, seja obtido diretamente; 2) o efeito bom seja intencionado como tal; o efeito mau seja apenas admitido ou tolerado; 3) no haja outro meio de atingir o efeito bom a no ser ocasionando o efeito mau tolerado; 4) haja razes proporcionalmente graves para recorrer a tal causa; 5) o efeito bom atingido compense devidamente o efeito mau ocasionado. Ora, a afirmao da verdade , no raro, causa com duplo efeito: pode provocar reaes hostis ou divises, mas lcita ou mesmo necessria, se se observam as condies acima indicadas4.

Nas cinco condies acima, E. Bettencourt deixa subentendido algo que outros autores fazem questo de explicitar: o ato deve ser bom em si mesmo ou, ao menos, indiferente. Isso se verifica no exemplo de anunciar a verdade, que um ato em si bom, embora possa trazer efeitos maus. Ao contrrio, no seria lcito dizer uma mentira, que um ato intrinsecamente mau, ainda que a

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E. BETTENCOURT. Silenciar a verdade para preservar a paz? Pergunte e Responderemos 285 (1986), 13. O destaque nosso.

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inteno fosse boa, como evitar uma discrdia5. Sobre isso assim se exprime o Catecismo da Igreja Catlica:Uma inteno boa (por exemplo, ajudar o prximo) no torna bom nem justo um comportamento que em si mesmo desordenado (como a mentira e a maledicncia). O fim no justifica os meios. Assim, no se pode justificar a condenao de um inocente como meio legtimo para salvar o povo6.

Por isso, a terceira condio de E. Bettencourt precisa ser bem entendida. necessrio que no haja outro meio de atingir o efeito bom a no ser praticando o ato bom que, lamentavelmente, acarreta tambm um efeito mau. No caso da mulher faminta durante o cerco de Jerusalm, o fato de no haver outro meio de sobreviver a no ser matando e devorando o prprio filho no justifica o seu ato homicida, que intrinsecamente mau. O princpio da ao com duplo efeito nunca justifica atos maus. Ele serve para justificar atos bons, praticados com boa inteno, mas que acarretam inevitavelmente um efeito colateral mau, indesejvel, mas inevitvel, embora previsvel.

e praticado com boa inteno

ATO BOM

querido pelo agente como FIM e decorrente diretamente do ato bom

EFEITO BOM

no querido pelo agente, mas inevitvel, pois decorrente diretamente do ato bom

EFEITO SECUNDRIO MAU

Figura 1 O princpio tico da ao com duplo efeito5

Ramn Lucas Lucas diz que mentir para ganhar na loteria e depois dar o dinheiro em beneficncia, no seria uma ao em si boa e, portanto, ilcita (R. LUCAS LUCAS, Biotica per tutti, San Paolo, Cinisello Balsamo 20052, 27.) 6 CATECHISMUS CATHOLICAE ECCLESIAE. Testo latino e italiano, Libreria Editrice Vaticana, Vaticano 1999, n. 1753.

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Por ltimo, a quinta condio de E. Bettencourt (que o efeito bom atingido compense devidamente o efeito mau ocasionado) entendida por Giuseppe Aertnys e Cornelio Damen do seguinte modo: que o efeito bom seja superior ou ao menos equivalente ao efeito mau7. Idntico o entendimento de Ramn Lucas Lucas: o efeito bom deve ser proporcionalmente superior ou ao menos equivalente ao efeito mau8. Seria, por exemplo, inadmissvel que uma mulher grvida tomasse talidomida para aliviar seus enjos. A razo que essa substncia, se ingerida durante a gravidez, provoca focomelia na criana (encurtamento dos membros junto ao tronco, dando a aparncia de uma foca). O alvio dos enjos (efeito bom almejado) muito inferior ao efeito mau causado indiretamente sobre o beb9. Diversamente, uma interveno cirrgica cardiovascular em uma mulher grvida pode ter como consequncia a morte do nascituro. Em tal caso, a morte do inocente no um fim visado pela cirurgia (o fim a cura da cardiopatia). Tambm no um meio (pois no a morte da criana que causa a cura da me). simplesmente um segundo efeito. Se o risco de ele ocorrer for pequeno (comparando com a boa chance de recuperao da me) e se no for possvel esperar at o nascimento do beb, nem houver outro meio teraputico inofensivo para a criana, ento lcito fazer a cirurgia. A aplicao do princpio da ao com duplo efeito ao campo obsttrico foi explicada por Pio XII, em um discurso de 26 de novembro de 1951 aos participantes do congresso Frente da Famlia (Fronte della Famiglia) e s Associaes de Famlias Numerosas (Associazioni delle Famiglie Numerose):Ns temos sempre usado de propsito a expresso atentado direto vida do inocente, ociso direta.I. AERTNYS, - C. DAMEN, I. Theologia Moralis secundum doctrinam S. Alfonsi de Ligorio Doctoris Ecclesiae, I, Marrieti, Roma 195617, 70. 8 R. LUCAS LUCAS, Biotica per tutti, San Paolo, Cinisello Balsamo 20052, 28. 9 Segundo R. LUCAS LUCAS, no caso do aborto, no haveria proporo se, para curar um resfriado, a me tomasse uma substncia que provocasse a morte do embrio (Ibid., 28).7

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Pois se, por exemplo, a salvao da vida da futura me10, independentemente do seu estado de gravidez, requeresse urgentemente um ato cirrgico ou outra aplicao teraputica, que tivesse como conseqncia acessria, de nenhum modo querida nem tencionada, mas inevitvel, a morte do feto, tal ato no se poderia dizer atentado direto vida inocente. Nessas condies a operao pode ser lcita, como outras intervenes mdicas semelhantes, sempre que se trate de um bem de alto valor, como a vida, e no seja possvel adi-la at o nascimento da criana, nem recorrer a outro eficaz remdio11.

Note-se que o Pontfice fala de uma interveno urgente, feita para salvar a vida da me e que seria feita independentemente do seu estado de gravidez. Este ltimo requisito ter particular importncia na anlise do caso da gravidez ectpica. Tambm a Academia de Medicina do Paraguai (1996) descreveu de maneira lapidar o princpio da ao com duplo efeito:No comete ato ilcito o mdico que realiza um procedimento tendente a salvar a vida da me durante o parto ou em curso de um tratamento mdico ou cirrgico, cujo efeito cause indiretamente a morte do filho quando no se pode evitar esse perigo por outros meios12.

4. Origem histrica do princpio da ao com duplo efeito O princpio da ao com duplo efeito foi desenvolvido pelos telogos dos sculos XVI e XVII, especialmente pelos carmelitas descalos de Salamanca (Espanha), conhecidos como Salmanticenses. Segundo Joseph T. Mangan, o princpio explicadoNesta passagem o Pontfice comete, inadvertidamente, um erro de linguagem, ao chamar futura me aquela que j me. 11 PIO XII. Discorsi ai medici. Orizzonte Medico, Roma, 19606, 179. 12 ACADEMIA DE MEDICINA DEL PARAGUAY, Declaracin aprobada por el Plenario Acadmico Extraordinario en su sesin de 4 de Julio de 1996. O destaque nosso.10

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no Cursus Theologicus dos Salmanticenses, escrito em 1674 por Domingos de Santa Teresa13. Guido M. Miglieta encontrou outro texto no Cursus Theologiae Moralis dos Salmanticenses, escrito por Sebastio de So Joaquim14, em que h quatro pargrafos em perfeita correspondncia com as condies do princpio, tal como o conhecemos hoje. Coube ao jesuta Jean Pierre Gury em 1850, em seu Compendium Theologiae Moralis, expor de maneira clara, simples e abrangente o princpio da ao com duplo efeito em quatro condies. A sua formulao se tornou clssica, e aparece seja nas edies seguintes do seu Compendium, seja nas obras dos moralistas posteriores15. Transcrevemos, a seguir, como Gury enuncia o princpio na nona edio de seu compndio, publicada pela Tipografia Poliglota de Propaganda da F em 1887 e revista pelo autor:Princpio. lcito atuar uma causa boa ou indiferente, da qual imediatamente se seguem dois efeitos, um bom, outro mau, desde que haja uma razo proporcionalmente grave e o fim do agente seja honesto, ou seja, no deseje o efeito mau. A razo deste princpio que, se tal ao no fosse lcita, o agente pecaria ou por desejar o efeito mau, ou por atuar a causa, ou por prever o efeito mau. Mas nada disso se pode dizer. Com efeito, 1 a ao no ilcita por causa do fim, que se supe honesto; 2 nem em razo da atuao da causa, que se supe boa ou ao menos indiferente [...]; 3 nem pela previso do efeito mau, pois por hiptese ele no desejado, mas s permitido, e h uma razo proporcionalmente grave e justa para permiti-lo.

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Cf. SALMANTICENSES, Cursus Theologicus, t. 7, tr. 13, disp. 10, dub. 6, n. 211 e seguintes, cit. in J. MANGAN. An historical analysis of the principle of the double effect, Theological Studies 10 (1949) 56-58. 14 Cf. SALMANTICENSES, Cursus Theologiae Moralis, t. 5, tr. 20, cap. 13, n. 21-24, cit. in G. M. MIGLIETA, Teologia morale contemporanea. Il principio del duplice effetto, Urbaniana University Press, Roma 1997, 235-242. 15 Cf. G. M. MIGLIETA, Teologia morale contemporanea 25-26

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Entretanto, todas as quatro condies enunciadas neste princpio devem estar presentes simultaneamente, a saber: 1 que o fim do agente seja honesto; 2 que a causa seja boa; 3 que o efeito bom seja imediato; 4 que haja uma razo grave para atuar a causa, e que o agente no esteja obrigado a omiti-la por justia, por ofcio ou por caridade. Portanto: 1 O fim deve ser bom, isto , o agente no deve desejar o efeito mau, porque seno o efeito seria em si voluntrio. Por isso, de nenhum modo ele deve comprazer-se do efeito mau. 2 A causa deve ser boa ou, ao menos, indiferente, ou seja, no deve ser oposta a nenhuma lei. A razo evidente. Se a causa fosse m em si mesma, tornaria a ao culpvel. 3 O efeito bom deve seguir imediatamente a causa. A razo que, se a causa tivesse direta e imediatamente um efeito mau e se o efeito bom s ocorresse mediante o efeito mau, ento o bem seria desejado por meio do mal. Mas nunca lcito fazer um mal, ainda que leve, para obter um bem; pois, conforme o conhecido axioma do Apstolo extrado de Rm 3,8: nunca se deve fazer o mal para que da decorra o bem. Assim, no lcito mentir, mesmo para salvar a vida de um homem. 4 Deve haver uma razo proporcionalmente grave para atuar a causa, pois a equidade natural obriga-nos a evitar os males e impedir os danos ao prximo, quando podemos faz-lo sem um dano proporcionalmente grave16.

5. Os juristas e o princpio da ao com duplo efeito Os juristas, em sua maioria, no fazem distino entre meio e efeito, quando se trata do estado de necessidade. Para muitos deles, indiferente provocar o aborto para salvar a vida da meJ. P. GURY, Compendium theologiae moralis, I, Typogr. Polygl. Vat., Roma 18879, cit. in G. M. MIGLIETA, Teologia morale contemporanea 29-33.16

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(aborto como meio) ou aplicar uma terapia na me que provoque indiretamente a morte do nascituro (aborto como efeito). Referindo-se ao aborto chamado necessrio, assim se exprime o Cdigo Penal brasileiro:Art. 128 - No se pune o aborto praticado por mdico: I - se no h outro meio de salvar a vida da gestante.

Em agosto de 1998, na poca em que o Ministrio da Justia pretendia reformar o Cdigo Penal, os bispos brasileiros enviaram ao Presidente da Comisso Revisora do Anteprojeto do Cdigo Penal, Luiz Vicente Cernicchiaro, uma sugesto em que o artigo acima teria a seguinte redao:Art. 128 - No constitui crime um procedimento mdico, no diretamente abortivo, tendente a salvar a vida da gestante, que tenha como efeito secundrio e indesejado, embora previsvel, a morte do nascituro. Pargrafo nico: A excluso de ilicitude referida neste artigo no se aplica: I - se a morte do nascituro foi diretamente provocada, ainda que tenham sido alegadas razes teraputicas II - se era possvel salvar a vida da gestante por outros procedimentos que no tivessem como efeito secundrio a morte do nascituro.

Note-se que, na proposta dos bispos, desaparecia o aborto como meio, admitindo-se a morte do nascituro apenas como efeito, desde que observadas diversas condies. Essa sugesto, infelizmente, no foi acolhida pelo governo brasileiro. Subsiste, portanto, na atual redao do artigo 128 a palavra meio. Muitos anos antes, o jurista Nelson Hungria j zombava da aplicao do princpio da ao com duplo efeito pela Igreja Catlica:... Ora, esse apelo ao aborto indireto apenas uma acomodao com o cu, um expediente ardilosamente excogitado para conciliar escrpulos religiosos com a

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imperativa necessidade prtica. Tanto vale querer um resultado quanto assumir o risco de produzi-lo...17

O erro do raciocnio acima elementar. O dolo direto (querer um resultado) equivale ao dolo eventual (assumir o risco de produzilo) porque neste caso o agente pouco se importa com a produo do eventual resultado. O homicida que, mirando em direo ao seu desafeto, que est cercado de outras pessoas, diz consigo mesmo pouco me importa se, ao errar o tiro, eu vier a matar outrem, est agindo com dolo eventual. Caso totalmente diferente o do mdico que, querendo preservar a vida do nascituro e temendo que ele venha a morrer, ainda assim prescreve a uma gestante vtima de infeco renal um antibitico que eventualmente poder ter efeito abortivo.

N. HUNGRIA, Comentrios ao Cdigo Penal, v. 5, Forense, Rio de Janeiro 19584, 308.

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II. CASOS CONTROVERSOS 1. A legtima defesa A expresso duplo efeito ocorre na Suma Teolgica (II-II, q. 64, a. 7) quando Santo Toms de Aquino (1225-1274) justifica a morte do injusto agressor, se ela necessria para a salvao da prpria vida. Essa passagem citada pelo Catecismo da Igreja Catlica:A defesa legtima das pessoas e das sociedades no uma exceo proibio de matar o inocente que constitui o homicdio voluntrio. Do ato de defesa pode seguir-se um duplo efeito: um, a conservao da prpria vida; outro, a morte do agressor. Nada impede que um ato possa ter dois efeitos, dos quais s um esteja na inteno, estando o outro para alm da inteno18.

Santo Toms teve o cuidado de interrogar se lcito matar algum, defendendo-se (utrum liceat alicui occidere hominem seipsum defendendo) e no se lcito matar algum para se defender (ut seipsum defendat). Do modo como exposta e respondida a questo, a defesa de si mesmo e a morte do agressor aparecem como dois efeitos que decorrem simultaneamente do ato defensivo.

ATO DE AUTODEFESA

obtida diretamente do ato defensivo e no por meio da morte do agressor

CONSERVAO DA PRPRIA VIDA

MORTE DO AGRESSORefeito secundrio inevitvel do ato defensivo

Figura 2 A morte do agressor como efeito secundrio do ato defensivo18

CATECHISMUS CATHOLICAE ECCLESIAE, n. 2263.

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No corpo do artigo, So Toms afirma literalmente que ilcito matar algum para se defender (illicitum est quod homo intendat occidere hominem ut seipsum defendat)19, a no ser que se esteja revestido de autoridade pblica. Francis J. Connell encontra um problema na aplicao do princpio da causa com duplo efeito legtima defesa:Uma dificuldade na aplicao do princpio a este caso, entretanto, que parece faltar a terceira condio, uma vez que a preservao da prpria vida parece decorrer da morte do agressor. Assim, outros afirmariam que, neste caso, Deus d vtima a permisso para protegerse, se necessrio, mediante a ociso direta do injusto agressor20.

Que a vtima possa defender-se causando indiretamente a morte do agressor bvio. H, porm, moralistas que afirmam que a vtima pode se defender tambm causando diretamente a morte do agressor, desde que seja guardada a devida moderao. Joseph T. Mangan relata que, segundo interpretao de Leonardo Lssio, Domingos de Soto e Gabriel Vsquez, o princpio da ao com duplo efeito no teria sido aplicado por Santo Toms autodefesa. Em consequncia, a morte do agressor poderia ser querida como meio. Em 1937, na Universidade Gregoriana, Vicente M. Alonso defendeu a tese El principio del doble efecto en los comentadores de Santo Tomas de Aquino, segundo a qual aquele artigo da Suma Teolgica (II-II, q. 64, a. 7) nada teria a ver com o princpio da ao com duplo efeito, na significao que atualmente damos a esses termos. Os intrpretes modernos teriam dado aos termos de So Toms um significado que no correspondiam ao contexto histrico e ideolgico em que foram escritos. Para Alonso, o termo praeter intentionem (para alm da inteno) no significa que a vtima sejaEssa passagem no foi incorporada ao Catecismo da Igreja Catlica. F. J. CONNELL, Double effect, principle of, in THE CATHOLIC UNIVERSITY OF AMERICA, New catholic encyclopedia, McGraw-Hill, New York 1967. volume IV, 1021.20 19

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proibida de querer diretamente a morte do agressor como meio de autodefesa. Significa somente que a morte do agressor no pode ser querida como fim em si mesmo21.ATO DE AUTODEFESA MORTE DO AGRESSORcomo nico meio possvel de defesa

CONSERVAO DA PRPRIA VIDAfim obtido por meio da morte do agressor

Figura 3 - A morte do agressor como meio para se defender Mangan, que no concorda com Alonso, cita diversos outros autores que interpretaram aquela passagem de Santo Toms como a enunciao do princpio da ao com duplo efeito tal como o entendemos hoje, excluindo, portanto a ociso direta do agressor: Toms Caetano, Francisco de Vitria, De Lugo, Joo de So Toms e Gregrio de Valena22. Segundo refere Bouscaren (um autor do qual nos ocuparemos de modo especial mais adiante), Cardeal De Lugo interpreta literalmente Santo Toms, mas no concorda com ele. Para De Lugo, o direito de legtima defesa no explicado pelo princpio da ao com duplo efeito, uma vez que a morte do agressor pode ser querida como meio23. Marcelino Zalba afirma que lcita a defesa cruenta ao menos indireta (saltem indirecta) contra um injusto agressor. Mas acrescenta: H, porm, quem julgue lcita a inteno de ferir ou matar o agressor at o ponto em que seja um meio necessrio para a defesa24. E ainda:

Cf. J. MANGAN. An historical analysis, 45-46. Cf. J. MANGAN. An historical analysis, 49. 23 Cf. T. L.BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, Loyola University Press, Chicago 1933, 47. 24 M. ZALBA. Theologiae Moralis Summa. Vol. II. Theologia moralis specialis. De mandatis Dei et Ecclesiae. De statibus particularibus. Biblioteca de Autores Cristianos, Madri 19572, 76.22

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A muitos parece que seja lcito intencionar a prpria defesa cruenta e assim, a vulnerao ou ociso do agressor como meio legtimo e honesto institudo por Deus para perseguir o direito. De fato, mais obscura a explicao da defesa cruenta tirada do princpio da ao com duplo efeito, pois a conservao da prpria vida se obtm mais pela vulnerao da vida alheia do que enquanto ela vulnerada (potius habetur per vulnerationem alienae vitae quam dum haec vulneratur)25.

Alsem Gnthr inclui entre os casos de ociso direta do prximo lcita a ociso de um injusto agressor na esfera privada26. Vejamos o que diz o Catecismo da Igreja Catlica:O amor para consigo mesmo permanece um princpio fundamental de moralidade. , portanto, legtimo fazer respeitar o seu prprio direito vida. Quem defende a sua vida no ru de homicdio, mesmo que se veja constrangido a desferir sobre o agressor um golpe mortal27.

Dar um golpe mortal (ictum ferre mortalem) significaria matar diretamente o agressor? O Magistrio da Igreja no se pronunciou explicitamente sobre a questo. O que solenemente proibido pelo Magistrio matar diretamente um ente humano inocente: ningum, em circunstncia alguma, pode reivindicar para si o direito de destruir diretamente um ser humano inocente28. O direito de matar diretamente o agressor como meio de autodefesa

M. ZALBA. Theologiae Moralis Summa..., 79. Cf. A. GNTHR, Chiamata e risposta. Una nuova teologia morale. III. Morale speciale. La relazione verso il prossimo, Edizione Paoline, Roma 1977, 540. 27 CATECHISMUS CATHOLICAE ECCLESIAE, n. 2264. 28 CONGREGAO PARA A DOUTRINA DA F, Instruo sobre o respeito vida humana nascente e a dignidade da procriao (Donum Vitae), Vozes, Petrpolis 1987, Introduo, 5.26

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continua sendo uma questo controvertida, cuja soluo ultrapassa o escopo desta dissertao.

2. A histerectomia em uma gestante com cncer Uma mulher grvida descobre que est com o tero canceroso. A gravidez ainda est no incio e o tumor avana com velocidade espantosa. O mdico lhe diz que preciso fazer uma histerectomia (remoo do tero) para extirpar o tumor. Diz tambm que esta cirurgia deve ser feita urgentemente e no aps o nascimento da criana, seno a mulher (juntamente com a criana) morrer em pouqussimo tempo. Verifiquemos para este caso a aplicao do princpio da ao com duplo efeito. 1) O mdico no deseja matar a criana, mas remover o tero canceroso (que, acidentalmente, est grvido). 2) A salvao da vida da me (efeito bom) decorre diretamente da histerectomia e no do efeito mau (a morte da criana). E isso se v de duas maneiras: a) se o mdico simplesmente matasse a criana, mas deixasse o tero canceroso intacto, no salvaria a vida da me; b) tal cirurgia seria feita mesmo se a mulher no estivesse grvida. 3) O efeito mau tolerado (a morte da criana) no inferior ao bem obtido (a conservao da vida da me), mas equivale a ele. 4) No h outro meio de se obter a salvao da me (efeito bom querido como fim) a no ser praticando essa ao boa (a histerectomia), que trar consigo inevitavelmente um efeito colateral mau: a morte do beb. Tal caso foi objeto de uma grande polmica entre o franciscano Pe. Agostino Gemelli (contrrio histerectomia) e o jesuta Pe. Arturo Vermeersch (favorvel ao procedimento), como

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testemunham os artigos publicados por ambos em 1933 na Nouvelle Revue Thologique29. Conforme narram Antonio Lanza e Pietro Palazzini, para Gemelli constituiria aborto direto a histerectomia em uma mulher grvida, assim como qualquer tipo de operao que provocasse sempre, com certeza, a morte da criana. Lanza e Palazzini contestam a posio de Gemelli:Quando a ao dirigida a obter um efeito bom determinado no causa por si mesma o efeito mau, mas s na hiptese de um concurso acidental de outra causa, o efeito no deixa de ser acidental somente porque na hiptese desta coincidncia ou causalidade acidental o efeito sempre se produza. Fazer voar uma ponte, sobre a qual se encontram por casualidade cidados livres, em caso de necessidade blica, sempre foi considerado pelos telogos um caso de voluntrio indireto. A gravidez acidental na mulher grvida afligida por carcinoma no tero e a histerectomia se dirige diretamente a eliminar o tumor, no o produto da concepo30.

O j citado pronunciamento de Pio XII, em um discurso de 26 de novembro de 1951 aos participantes do congresso Frente da Famlia (Fronte della Famiglia) e s Associaes de Famlias Numerosas (Associazioni delle Famiglie Numerose) ps fim questo. De fato, o Pontfice falou da morte do feto como consequncia acessria, de nenhum modo querida nem tencionada, mas inevitvel31. No se requer, portanto, como pretendia Gemelli,Cf. A. GEMELLI, De avortement indirect. Application lavortement des notions de causalit per accidens et de causalit indirecte (I-II); in NOUVELLE REVUE THOLOGIQUE, 40 (1933) 500-527 e 577-599; A. VERMEERSCH, Avortement indirect ou direct. Rponse au T. R. P. Gemelli, o.f.m. in NOUVELLE REVUE THOLOGIQUE, 40 (1933) 600-620, cit. in E. SILVESTRINI, Lembrione umano in gravidanza ectopica con particolare attenzione a quella tubarica. Aspetti antropologico-teologici e biologico-etici, Ancora, Milano 2007, 483-484. 30 A. LANZA P. PALAZZINI. Princpios de Teologia Moral. II. Las virtudes. Ediciones RIALP, Madrid 1958, 279-280. 31 PIO XII. Discorsi ai medici. Orizzonte Medico, Roma, 19606 179.29

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que a morte da criana seja apenas possvel, mas no certa. A histerectomia, que sempre produz como efeito secundrio a morte da criana, um procedimento em si legtimo. Mas, a tolerncia deste efeito (que grave), requer que haja uma razo proporcionalmente grave para a interveno cirrgica.

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III. ECTPICA

O

PROBLEMA

TICO

DA

GRAVIDEZ

1. A gravidez ectpica Gravidez ectpica (ek + topos = fora do lugar) aquela em que a implantao do beb se d no no tero (lugar natural), mas fora dele, como no abdmen, no ovrio ou na trompa. O caso mais comum de gravidez ectpica a gravidez tubria, em que o embrio se implanta na tuba ou salpinge ou trompa de Falpio.

Figura 4 Tipos de gravidez ectpica

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Segundo Brian Clowes, a salpingectomia (remoo da trompa de Falpio) [...] a mais comum aplicao do princpio do duplo efeito quando aplicado ao aborto32.

2. A salpingectomia em uma gravidez tubria Concentremos a ateno sobre a gravidez tubria, o mais frequente e o mais complicado caso de gravidez ectpica. O embrio est implantado na trompa de Falpio. Com o passar do tempo, a criana crescer e causar a ruptura da trompa e, com ela, uma hemorragia que por em perigo a vida da me. A soluo (bvia) para esse problema seria transportar o beb para o tero, a fim de que a gestao prosseguisse em seu lugar natural at o nascimento. Tal tcnica (chamada converso tubrio-uterina) ser objeto do captulo IV. Suponhamos, por ora, apenas por hiptese, que isso seja impossvel do ponto de vista cirrgico. Que poderamos fazer para resolver esse problema? H vrias atitudes possveis, nem todas eticamente aceitveis33: a) Salpingostomia linear: uma inciso na trompa por meio de um laparoscpio com o fim de remover o embrio, preservando a trompa e possibilitando uma nova gravidez. Obviamente, essa cirurgia antecipa a morte da criana. b) Metotrexato: um frmaco que, quando aplicado sobre o trofoblasto, impede o desenvolvimento do embrio e causa a sua morte por inanio. Como no caso anterior, esse procedimento visa preservar a trompa. c) Ordenha tubria: consiste em pegar a trompa na proximidade do lugar de dilatao e comprimi-la fazendo o embrio avanar para a parte infundibular da trompa. Essa tcnica, alm de preservar a trompa, no excluiria a possibilidade (remotssima) deB. CLOWES. The facts of life. An authoritative guide to life and family issues, Human Life International, Front Royal, Virginia 20012, 193. 33 Cf. A. G. SPAGNOLO M. L. DI PIETRO, Quale decisione per lembrione in una gravidanza tubarica?, Medicina e Morale 2 (1995), 293-306.32

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que o embrio viesse a se implantar no tero, prosseguindo a gestao34. d) Salpingectomia: remoo da trompa (ou de parte dela) antes de sua ruptura, contendo em seu interior o embrio ainda vivo. e) Expectao armada: o monitoramento da gestante, a fim de intervir com uma salpingectomia imediatamente aps a ruptura da trompa, estancando, assim, a hemorragia35. Nas tentativas de justificao de cada uma das condutas acima, est sempre presente, como veremos, o princpio da ao com duplo efeito. Esse maravilhoso e utilssimo princpio tico j deu ocasio a abusos, obrigando a Igreja a intervir para explicar sua correta aplicao. Examinemos como o Magistrio da Igreja se pronunciou sobre algumas solues propostas para problemas obsttricos no final do sculo XIX e incio do sculo XX.

3. Declaraes do Magistrio relacionadas com a gravidez ectpica No sculo XIX, a cesariana era uma operao arriscada, com alta taxa de mortalidade materna, que s diminuiria a partir da difuso da antissepsia. Diante de uma bacia estreita, parecia no haver outra escolha alm de provocar o parto antes da maturidade da criana ou praticar a craniotomia, com o parto j iniciado36. A craniotomia consistia na perfurao do crnio da criana e na aspirao da substncia cerebral, de modo a tornar possvel a extrao do beb, obviamente morto. Os cirurgies que a praticavam sustentavam que era simplesmente um meio de extrair o feto sem esperana de sobrevivncia e de salvar a me que, de outro modo,Cf. G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione e nel dibattito bioetico contemporneo. Dissertatio ad doctorandum in Theologia Morali consequendum. Academia Alfonsiana, Fano 2006, 408-410. 35 Cf. A. R. MARN, Teologia Moral para seglares. I. Moral Fundamental y Especial, La Editorial Catlica, Madrid 1957, 434. 36 Cf. M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento della preeclampsia e della corioamnionite, Medicina e Morale 3 (2008), 496.34

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tambm morreria37. Autores como Pietro Avanzini defendiam essa prtica considerando o beb um agressor materialmente injusto, do qual a me poderia legitimamente defender-se pela violncia38. Diante da controvrsia, o Santo Ofcio (hoje Congregao para a Doutrina da F) foi consultado: Pode-se ensinar com segurana nas escolas catlicas que lcita a operao chamada craniotomia quando, omitindo-a, morreriam a me e o filho e, ao invs, executando-a, a me seria salva e o beb morreria? A resposta, de 28 de maio de 1884, foi: no se pode ensinar com segurana39. Em 19 de agosto de 1888, o Santo Ofcio respondeu a uma pergunta formulada pelo arcebispo de Cambrai (Frana) em 1886, relativa a certas operaes cirrgicas afins craniotomia. A resposta foi: Nas escolas catlicas no se pode ensinar com segurana que a operao chamada craniotomia lcita, segundo o que foi declarado em 28 de maio de 1884, o mesmo valendo para qualquer outra operao cirrgica diretamente ocisiva do feto ou da me em gestao40. Apesar de o Santo Ofcio haver qualificado a craniotomia como diretamente ocisiva, encontramos, ainda hoje, Germain Gabriel Grisez justificando tal prtica com base no princpio da ao com duplo efeito. Segundo Grisez, a craniotomia teria por objeto to somente reduzir as dimenses do crnio da criana, sendo sua morte apenas um efeito indesejado41. O novo arcebispo de Cambrai resolveu enviar ao Santo Ofcio uma nova questo: um mdico, sob o pseudnimo de Tcio, perguntava se era lcito praticar aborto quando a presena do feto no tero materno fosse causa de uma enfermidade mortal para a gestante e quando no houvesse outro meio a no ser a expulso do feto para salvar a me de uma morte certa e iminente. Em suaCf. M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento, 497. Cf. M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento, 504. 39 M. ZALBA J. BOZAL, El magisterio eclesiastico y la medicina. Razon y Fe, Madrid, 1955, 74. 40 Cf. M. ZALBA J. BOZAL, El magisterio eclesiastico y la medicina, 81. 41 Cf. M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento, 516.38 37

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pergunta, Tcio tentou justificar-se dizendo que costumava empregar meios e operaes que no eram por si e imediatamente tendentes a matar o feto no tero materno [mediis et operationibus, per se atque immediate non quidem ad id tendentibus, ut in materno sinu fetum occidere], mas tendentes a remov-lo de l vivo, se possvel, ainda que logo depois ele morresse por causa de sua imaturidade. Note-se que Tcio no praticava a craniotomia, prtica esta diretamente ocisiva. Ele apenas acelerava o parto, embora soubesse que tal acelerao conduziria inevitavelmente morte da criana. Seria possvel em tal caso aplicar-se o princpio da ao com duplo efeito? A resposta do Santo Ofcio, de 24 de junho de 1895, foi negativa, fazendo referncia a dois outros decretos: o de 28 de maro de 1884 e o de 19 de agosto de 1888, ambos relativos craniotomia42. Ou seja, segundo o Magistrio da Igreja, diretamente ocisiva no s a destruio do beb no seio materno, mas tambm a sua expulso prematura, pela qual ele morrer. No se pode falar aqui de um efeito indireto, como pretendia Tcio. Assim explicam M. Zalba e J. Bozal: que a inteno do mdico, ainda que explcita e reflexamente quereria salvar tambm a criatura, implcita e diretamente aceita e ainda escolhe mat-la, ao executar livremente a ao que em semelhantes circunstncias um atentado real contra aquela vida incipiente. Ineficaz e afetivamente quereria salv-la; eficaz e efetivamente quer mat-la ao querer a ao que leva em si a morte43.

Em 1898, o bispo do Mxico props ao Santo Ofcio trs questes: 1. lcita a acelerao do parto quando, por estreiteza da mulher, for impossvel a sada do feto no seu devido tempo?42 43

Cf. M. ZALBA J. BOZAL, El magisterio eclesiastico y la medicina, 84-85 M. ZALBA J. BOZAL, El magisterio eclesiastico y la medicina, 86.

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2. Se a estreiteza da mulher for tal que nem o parto prematuro se julgue possvel, lcito provocar aborto ou fazer a cesariana no seu tempo? 3. lcita a laparotomia quando se trata de uma concepo extrauterina ou ectpica? A resposta, de 4 de maio de 1898, foi: 1: A acelerao do parto no ilcita, desde que se faa por justas causas e no tempo e modo que se proveja, segundo as ordinrias contingncias, a vida da me e do feto. 2: Quanto primeira parte [ou seja, quanto ao aborto], negativamente, segundo o decreto de 24 de junho de 1895 acerca da licitude do aborto; quanto segunda parte [ou seja, quanto cesariana], nada obsta a que a mulher, da qual se trata, seja submetida, no devido tempo, operao cesariana. 3: Quando se impe a necessidade, a laparotomia lcita para extrair a concepo ectpica do seio da me, desde que se proveja, enquanto possvel, sria e oportunamente, a vida da me e do feto44. Como a resposta sobre a gravidez ectpica no fazia distino entre fetos viveis e no viveis, o decano da Faculdade de Montreal (Canad) fez uma pergunta especfica: lcito alguma vez extrair do seio da me os fetos ectpicos ainda no maduros, no transcorrido o sexto ms depois da concepo? Em 5 de maro de 1902, o Santo Ofcio respondeu: Negativamente, segundo o decreto de 4 de maio de 1898, em virtude do qual se deve prover, enquanto for possvel, sria e oportunamente, a vida do feto e da me [fetus et matris vitae, quantum fieri potest, serio et opportune providendum est]; quanto ao tempo, segundo o mesmo decreto, recordo ao consulente que no lcita nenhuma acelerao de parto, a no ser que se faa no

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M. ZALBA J. BOZAL, El magisterio eclesiastico y la medicina, 90.

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tempo e modo nos quais, segundo as ordinrias contingncias, se proveja a vida da me e do feto45. Essa foi a ltima declarao do Magistrio sobre a gravidez ectpica. Conclui M. P. Faggioni:Afirmada com vigor a ilicitude da ociso direta do feto, mesmo na forma de induo do parto ou da extrao cirrgica do feto certamente no vivel, os moralistas se perguntaram se existiriam condies em que a perda do feto, mesmo se prevista e conexa com um ato cirrgico, devesse ser considerada no diretamente ocisiva46.

Como tratar de uma gravidez ectpica, em especial de uma gravidez tubria, sem destruir o embrio no seio materno e sem remov-lo diretamente ainda vivo e imaturo? Uma soluo para esse problema foi proposta pelo jesuta Thomas Lincoln Bouscaren, usando o princpio da ao com duplo efeito. Sua tese de doutorado serviu de marco histrico na defesa da salpingectomia em uma gravidez tubria.

4. A tese de Bouscaren Em junho de 1928, Thomas Lincoln Bouscaren defendeu, sob a direo de Arthur Vermeersch, sua tese doutoral na Faculdade de Teologia Moral da Universidade Gregoriana. Apresentada originalmente em latim, ela foi depois publicada em ingls sob o ttulo Ethics of ectopic operations47. A tese defendida por Bouscaren, com aprovao de Vermeersch, de que a tuba grvida possa ser removida antes mesmo de sua ruptura. A morte da criana seria produzida apenas

45 46

M. ZALBA J. BOZAL, El magisterio eclesiastico y la medicina, 95. M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento, 500. 47 T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, Loyola University Press, Chicago 1933.

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indiretamente, uma vez que o objeto da cirurgia a remoo da tuba, que se tornou patolgica. Bouscaren cita a objeo de quem afirma que a prpria gravidez ectpica, e no alguma condio patolgica da tuba, que ameaa a vida da me. O objetor Dr. Finney, cujas palavras so a seguir transcritas:Ser constatado que praticamente todos [os mdicos] concordam que em uma gravidez tubria a gravidez que causa perigo vida da me. O mero fato de que os mdicos chamem a gravidez tubria de uma condio patolgica, ou uma doena, que ameaa a vida da me, no pode obscurecer o fato de que a gravidez, e no alguma condio patolgica da tuba alm da gravidez, que ameaa a vida da me48.

Bouscaren responde que tal objeo confunde a gravidez em si mesma (a presena do beb) com o dano que essa presena causa trompa. Segundo ele, preciso distinguir ente o objeto prximo e o objeto remoto da operao ou, falando com termos mais precisamente ticos, o objeto indireto e o objeto direto da cirurgia. O objeto direto da salpingectomia, segundo ele, a prpria tuba, que, como resultado da gravidez, torna-se debilitada e desorganizada pela invaso das vilosidades corinicas ou pela hemorragia interna, mesmo antes da sua ruptura49. Segundo Bouscaren, portanto, a criana no a doena a ser removida. Seu crescimento, porm, torna a tuba doente. esse rgo doente (que agora constitui uma fonte distinta de perigo para a vida da me) que removido pela salpingectomia, tendo como efeito indireto a morte da criana que se encontra em seu interior. Vejamos como ele explica essa distino: preciso, portanto, distinguir a afirmao de que a gravidez que causa o perigo vida da me. Originalmente ou remotamente a gravidez que causaResposta de Dr. Finney a Pe. Davis, Ecclesiastical Review, jan. (1928) 58, cit. in T. L BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 159-160. 49 , T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 160-161.48

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o perigo; mas finalmente e proximamente ou seja, aqui e agora, em muitos casos avanados de gravidez tubria, mesmo antes da ruptura da tuba a prpria tuba. E se a prpria tuba est, aqui e agora, to desorganizada, ou no sentido amplo da palavra, to doente, que apresenta um grave perigo para a vida da me, ento o rgo pode ser removido sob certas condies e pouca diferena faz qual seja a causa de sua condio doente. 50

O ponto-chave da argumentao de Bouscaren que a ruptura apenas o final de um processo patolgico: ... absolutamente falso que em uma gravidez tubria a tuba permanea sadia at o momento de sua ruptura externa51. E ainda:... o que chamado ruptura da tuba nada mais do que o ltimo estgio de um processo que gradual e que frequentemente, muito antes da crise, enfraqueceu, crivou e desintegrou a prpria tuba. Em consequncia, um erro conceber a ruptura tubria como o estouro repentino de um rgo que at o momento era perfeitamente sadio, um primeiro acidente resultante da mera distenso fsica causada pela presso exercida pelo crescimento do feto52.

Se lcito intervir aps a ruptura, a fim de estancar a hemorragia, tambm ser lcito, segundo ele, intervir antes da ruptura, desde que a trompa j esteja danificada e ameaando a me, o que constituiria uma causa proporcionada para a interveno. A tese de Bouscaren teve uma difuso e aceitao generalizadas. Giorgio Giovanelli cita J. Mc. Carthy, J. Mc. Fadden, E. F. Healy, Gerald Kelly, J. Paquin e T. ODonnel entre aqueles que a seguiram53. Tambm a defendem Antonio G. Spagnolo e Maria Luisa Di Pietro:50 51

T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 162. T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 156. 52 T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 157-158. 53 G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 310-323.

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Sobre o perigo para a me que justifique a interveno de salpingectomia e torne aplicvel o princpio do duplo efeito, necessrio precisar que tal perigo no se refere unicamente ruptura em ato da tuba e conseqente hemorragia. Mesmo antes que esses eventos se verifiquem, pode haver a justificao mdica e tica para intervir com a remoo da tuba ou de uma parte dela no caso em que a prpria tuba resulte gravemente comprometida sob o plano anatomopatolgico pela presena do embrio, e que ponha srios riscos para a vida da mulher. o que defendeu h algum tempo o telogo-moralista Bouscaren, em sua importante obra sobre a gravidez ectpica, e sucessivamente tambm a Conferncia Nacional dos Bispos Catlicos dos EUA, a qual nas Diretivas ticas e religiosas para os hospitais catlicos considerou moralmente justificvel a salpingectomia em uma gravidez ectpica, mesmo na previso da morte do embrio, quando: 1. a tuba j esteja perigosamente danificada de um modo tal que justifique a sua remoo; 2. a interveno cirrgica no consista simplesmente em remover o embrio de seu lugar (o que seria um aborto direto); 3. a interveno em questo no possa ser adiada sem um significativo perigo para a me54.

Emlio Silvestrini, em sua volumosa monografia sobre a gravidez ectpica editada em 2007, faz coro com os defensores da tese de Bouscaren, concluindo:Depois de uma paciente e longa investigao antropolgica [...], biomdica [...] e biotica [...], diversos moralistas e estudiosos julgam que no caso indicado, [...] no se trata de uma interveno abortiva do embrio, mas de uma ao teraputica sobre o rgo patolgico da me que vem removido, uma vez queA. G. SPAGNOLO M. L. DI PIETRO, Quale decisione per lembrione, 300. As diretivas citadas so CONFERENCE OF CATHOLIC BISHOPS, Ethical and religious directives for catholic Health Care Facilities, Washington, D.C.: United States Catholic Conference, 1971.54

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este pe em perigo a vida e no h outro modo para salv-la da morte certa. De fato, o rgo doente no o do embrio, mas o da me. A morte do embrio, se j no ocorreu espontaneamente, como de costume acontece, ocorre casualmente por circunstncias situacionais naturais, no obstante todas as cautelas e precaues proporcionadas e adotadas por aqueles que fazem a interveno para evitar a morte do concebido. De fato, para os mesmos moralistas e estudiosos, no se trata de aborto direto, mas s indireto [...]. Portanto, diante de uma patologia tubria gravssima, real e atual de perigo de vida para a me, a interveno laparotomo-salpingectmica moralmente lcita, desde que se verifiquem as condies requeridas para a aplicao do supracitado princpio moral [da ao com duplo efeito]55.

Por fim, M. P. Faggioni apresenta a tese de Bouscaren como uma soluo j adquirida como opinio comum (communis opinio)56.

5. O problema do momento da remoo da trompa O jesuta Henry Davis, em dois artigos publicados na The Ecclesiastical Review em 1927, fazendo analogia com o tero canceroso grvido, defendia que a trompa pudesse ser removida em qualquer estgio da gestao. Para ele, a simples presena do feto na tuba j constitua um perigo para a me: geralmente admitido, se no universalmente, que um feto ectpico na tuba , em todos os estgios, um srio perigo para a me. Pode desenvolver-se por alguns

55 56

E. SILVESTRINI, Lembrione umano in gravidanza ectopica, 606-607. Cf. M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento, 513.

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meses; pode romper a tuba em duas semanas ou menos57.

Bouscaren, mesmo no concordando que a salpingectomia possa ser realizada em qualquer estgio da gestao, demonstra grande dificuldade em determinar o momento exato em que ela pode ser efetuada licitamente:No se pode moralmente sancionar nenhuma regra precisa [rule of thumb] para um ou outro caminho; nem Nunca opere at a ruptura externa da tuba, nem Sempre opere imediatamente em qualquer caso logo que for descoberta uma gravidez ectpica no rompida. As circunstncias de cada caso devem ser consideradas58.

Essa impreciso de critrio favoreceu a atitude laxista de considerar como regra geral a remoo imediata da tuba e de considerar como exceo a remoo posterior. Vejamos como se exprime Edwin F. Healy, adepto da tese de Bouscaren: portanto lcito em qualquer caso de gravidez ectpica remover a trompa de Falpio doente? A resposta que a operao lcita se a tuba se encontra atualmente em um estado muito perigoso para a me, ou se o adiamento da operao comporta um grave perigo. o mdico que deve decidir quando a tuba pode ser considerada um grave perigo. Ele deve considerar cada caso, individuando segundo as suas caractersticas. A linha geral que se deveria seguir esta: se se prev que um atraso na remoo da trompa de Falpio doente exporia a grave risco a vida da me, o mdico pode operar imediatamente. A deciso definitiva no caso singular sempre remetida ao juzo do cirurgio. Podese dizer que, na maior parte dos casos em que se descobre uma gravidez ectpica, necessria a imediata remoo da tuba para afastar o grave perigoH. DAVIS. A medico-moral problem Ectopic gestation, The Ecclesiastical Review 4 (1927), 409-411, cit. in G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione 288. 58 T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 169-170.57

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que ameaa a vida da me. Mas isso no verdade em todos os casos. Em algum raro caso, pelo menos, no h um efetivo grave perigo para a me, no momento em que descoberta uma gravidez ectpica. Nestes poucos casos, a remoo imediata da tuba no lcita59.

Para Healy, portanto, com exceo de poucos casos, lcito praticar a salpingectomia imediatamente. Thomas W. Hilgers, em um artigo em que condena a salpingostomia linear e o uso de metotrexato como diretamente abortivos, justifica a salpingectomia (com base no princpio da ao com duplo efeito), sem fazer qualquer referncia a um momento especfico em que ela possa ou no possa ser licitamente praticada:Contudo, a partir de uma perspectiva catlica, uma tica prtica especfica foi delineada e, em grande parte, aceita. Essa tica afirma que se pode remover, total ou parcialmente, a trompa de Falpio danificada, como uma inteno direta, mesmo se o embrio estiver localizado dentro da trompa de Falpio (a destruio do embrio uma ao previsvel, mas no pretendida). Em tais circunstncias, o ataque ao embrio visto como indireto. O princpio sob o qual isso funciona chama-se duplo efeito e ele um exemplo da distino entre o aborto direto e o aborto indireto60.

Seria a tese de Bouscaren o incio de uma ladeira escorregadia (slippery slope), tendo por primeiro passo a permisso de remover a trompa a qualquer momento, independentemente do real perigo para a me? Outro aspecto interessante o motivo segundo o qual a remoo precoce da tuba no lcita. Para A. G. Spagnolo e M. L. Di Pietro, em tal caso a morte do embrio seria diretamente provocada:

59

E. F. HEALY, Medicina e Morale, Paoline, Roma 19602, 280-281. O destaque do original. 60 T. W. HILGERS, Ectopic Pregnancy. Celebrate Life 4 (2000) 37.

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Ora, enquanto a configurao do princpio do duplo efeito parece indiscutvel como se disse quando a interveno motivada por uma patologia da tuba ou por uma hemorragia em ato, devida eroso ou ruptura da prpria tuba e que ameaa gravemente a vida da me, ela muito menos clara, e at francamente dbia, quando se procede interveno de remoo/supresso do embrio isto , de uma interveno direta sobre o embrio em ausncia de qualquer ameaa atual para a vida da me (sinais ou sintomas de patologia tubria)61. Para Healy, ao contrrio, a remoo precoce da tuba continuaria a causar s indiretamente a morte do embrio. O motivo da ilicitude estaria na falta de uma razo proporcionada: A tuba doente no pode ser removida enquanto no se torne fonte de grave perigo para a me. Removendo a tuba antes de tal tempo, encurtar-se-ia indiretamente a vida do feto ectpico sem uma razo suficiente, o que ilcito. Portanto em todos os casos em que no exista atualmente um grave perigo, o mdico deve adotar a terapia de espera62. O argumento de Healy parece ser fiel ao pensamento de Bouscaren. De fato, este primeiro se prope a demonstrar que quando uma tuba grvida removida, a morte do feto produzida s indiretamente63; depois, passa demonstrao de que esta remoo indireta lcita quando h uma causa proporcionalmente grave para a operao64. Essa falta de unanimidade dos moralistas quanto ao motivo da ilicitude da salpingectomia precoce (ociso direta do embrio ou falta de razo proporcionada) no seria um indcio de que, no caso presente, o princpio da ao com duplo efeito no se aplica bem?A. G. SPAGNOLO M. L. DI PIETRO, Quale decisione per lembrione, 301. O destaque nosso. 62 E. F. HEALY, Medicina e Morale, Paoline, Roma 19602, 281. O destaque nosso. 63 T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 152-162. 64 T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 162-173. O destaque nosso.61

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6. Dificuldades da tese de Bouscaren Os crticos de Bouscaren, como veremos, alegam que a remoo de um tero grvido canceroso no se pode comparar validamente com a remoo de uma tuba contendo em si um embrio implantado. Curiosamente, o prprio Bouscaren, admite que no h uma analogia perfeita entre os dois casos:Somos inclinados a admitir que a paridade no perfeita. H esta diferena entre os dois casos: que no caso do tumor uterino, a condio doentia do rgo que contm o feto no causada pela gravidez, enquanto a condio patolgica da tuba em gestao ectpica diretamente causada pela prpria gravidez65.

Quando estudamos a aplicao do princpio da ao com duplo efeito histerectomia em uma gestante com cncer (captulo II.2), verificamos que a salvao da vida da me (efeito bom) decorria diretamente da histerectomia e no do efeito mau (a morte da criana). E isso se via de duas maneiras: a) tal cirurgia seria feita mesmo se a mulher no estivesse grvida; b) se o mdico simplesmente matasse a criana, mas deixasse o tero canceroso intacto, no salvaria a vida da me. Essas duas condies no se verificam na salpingectomia em uma gravidez tubria. Examinemo-las em detalhe. a. Primeira dificuldade A salpingectomia no seria feita se a mulher no estivesse grvida. O carter indireto da morte do beb no caso da remoo do tero canceroso demonstra-se porque essa operao (a histerectomia) seria feita mesmo se a mulher no estivesse grvida.

65

T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 87.

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A presena da criana no tero um acidente que no altera o objeto da ao (finis operis). Ao contrrio, a remoo da trompa contendo em si o beb (salpingectomia) no seria feita se a mulher no estivesse grvida. Isso leva James F. Keenan a afirmar que a presena da criana no meramente acidental. O objeto da ao remov-la do tero, o que constitui aborto direto. Em seu artigo, Keenan estuda a aplicao do princpio da ao com duplo efeito em quatro casos: 1: o bombardeio de um alvo militar em uma populao civil; 2: a administrao de analgsicos a pacientes terminais; 3: a remoo de um tero canceroso grvido; 4: a salpingectomia em uma gravidez ectpica. Observemos o seu raciocnio:Voltando ao caso 4, o da gravidez ectpica, poder-se-ia pensar que, se a remoo do tero canceroso durante a gravidez legtima, tambm o a remoo da tuba danificada. A introduo de uma gravidez no caso do tero canceroso no diferente da introduo de civis na instalao militar. No ser a presena do embrio apenas acidental na exciso da tuba de Falpio como naqueles outros casos? No, e veremos por que no. Evidentemente pode-se cortar a tuba de Falpio em ocasies que no sejam a de uma gravidez. Com certeza, exatamente como se podem bombardear instalaes militares ou remover teros quando nenhuma vida inocente posta em risco, assim se podem cortar tubas de Falpio. Mas, no caso da gravidez ectpica, estamos cortando a tuba somente porque o embrio est l. Este caso diverge dos outros trs. Ns no bombardearamos a instalao militar somente porque ela contm civis, nem removeramos o tero canceroso somente porque contm um feto. No entanto, a razo de se cortar a tuba de Falpio inclui a remoo do embrio. O objeto da atividade no pode excluir como acidental o efeito da remoo do embrio, precisamente porque a remoo do embrio no um efeito. Ao contrrio, a remoo do embrio

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intrnseca ao objeto da atividade: a nica parte da tuba a ser removida aquela qual o embrio adere66.

Infelizmente, Keenan, aps criticar Bouscaren e afirmar que a salpingectomia constitui uma remoo direta do embrio, termina seu artigo considerando o embrio ectpico como um injusto agressor material por estar implantado em um lugar onde no deveria estar. Contra esse agressor, a me poderia exercer seu direito de legtima defesa, removendo-o de seu organismo67. Ora, como j vimos no captulo I.1, Pio XI, na encclica Casti Conubii, condenou o argumento de quem considera o a criana concebida um injusto agressor. M. P. Faggioni explica por que nem do ponto de vista meramente material o feto pode ser visto como agressor da me:No nos parece que os chamados conflitos maternofetais possam ser interpretados como uma relao agressor-vtima, onde o feto deveria ser tido como um injusto agressor da me. No caso da craniotomia por dificuldade no parto, olhando bem, o que patolgico, frequentemente, o canal do parto, estreito demais para a cabea fetal de tamanho normal. No caso da gravidez ectpica, da corioamnionite e da pr-eclampsia, o feto , tambm ele, vtima inocente de uma situao patolgica. O risco de morte para ele coincidente com o risco de morte para a me porque a morte da me comporta tambm a morte do feto68.

Recordando o j citado discurso de Pio XII Associao Famlias Numerosas (Famiglie Numerose), feito em 1951 (posterior, portanto, publicao da tese de Bouscaren), o Pontfice fala de um ato cirrgico ou outra aplicao teraputica requerida urgentemente para salvar a vida da me independentemente do seu estado de gravidez. A independncia do estado de gravidez, que clara na histerectomia, no est presente na salpingectomia.66

J. F. KEENAN, The function of the principle of double effect, Theological Studies 54 (1993) 309. Os destaques so nossos. 67 Cf. J. F. KEENAN, The function of the principle of double effect, 314-315. 68 M. P. FAGGIONI, Problemi morali nel trattamento, 509-510.

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Alsem Gnthr percebe a dificuldade que esse texto do Magistrio oferece quanto aceitao da tese de Bouscaren. Eis suas palavras:O texto da alocuo de Pio XII no nos autoriza a pensar que, no caso do aborto indireto, deva tratar-se s de uma doena ou de um perigo de morte que ocorreram independentemente do estado de gravidez. A coisa decisiva que a interveno no vise a suprimir a criana para curar ou tutelar, assim, a me. Sabemos bem que, s vezes, pode ser muito difcil distinguir com clareza se se trata de um aborto direto ou indireto. Isso, porm, no afeta a validade do princpio que expusemos69.

Ainda que, como interpreta Gnthr, o texto de Pio XII no signifique necessariamente uma condenao a procedimentos como a salpingectomia antes da ruptura tubria, certo que no h qualquer declarao do Magistrio apoiando explicitamente a tese de Bouscaren. Ela conta apenas com o apoio da maioria dos moralistas. Antnio Lanza e Pietro Palazzini admitem a histerectomia feita para remover um carcinoma em uma mulher grvida. Segundo eles, a gravidez acidental na mulher afligida por carcinoma no tero e a histerectomia se dirige diretamente a eliminar o tumor, no ao produto da concepo70. Ao contrrio, segundo eles, a interveno cirrgica dirigida a expulsar da trompa o feto ectpico deve ser considerada como aborto direto. Sobre a salpingectomia, assim se pronunciam os autores:Seria diverso, segundo alguns, o juzo moral sobre o corte da mesma trompa que contenha o feto ectpico, tendo em conta o objetivo imediato da interveno cirrgica (a trompa). No entanto, no conseguimos compreender o valor desta distino, j que tal

A. GNTHR, Chiamata e risposta 595. A. LANZA P. PALAZZINI. Princpios de Teologia Moral. II. Las virtudes. Ediciones RIALP, Madrid 1958, 279-280.70

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interveno se dirige diretamente a interromper esta gravidez71.

Um outro crtico de Bouscaren Martin Rhonheimer. Esse autor alemo no aceita a distino (to importante para Bouscaren) entre causa remota e causa prxima da interveno cirrgica. Transcrevamos suas palavras citadas por Giorgio Giovanelli:A argumentao de Bouscaren no respeita um fato basilar: a gravidez ectpica e o estado patolgico da tuba so um fenmeno nico e indivisvel. Bouscaren, ao invs, tenta dividir a doena da tuba do fato da gravidez ectpica e v-los como fenmenos separados para depois dizer que a interveno feita exclusivamente contra a tuba patolgica e no contra o embrio. Porm, o embrio, e s ele, a causa da doena (sem esta gravidez nunca se teria desenvolvido essa doena letal da tuba que agora requer a interveno). A predisposio da tuba somente condio da gravidez tubria e no a causa. A causa a gerao e o crescimento do embrio. A doena letal da tuba e a gravidez ectpica, por isso, devem ser vistas como uma nica e indivisvel patologia72.

Infelizmente, do mesmo modo que Keenan, tambm Rhonheimer decepciona. Depois de ter criticado Bouscaren, ele no conclui como seria de se esperar que a salpingectomia ilcita. Termina dizendo que no apenas a salpingectomia lcita, mas que tambm o a salpingostomia (retirada direta do embrio por meio de uma inciso na tuba):Se a salpingectomia moralmente lcita, deve s-lo tambm a salpingostomia. Em ambos os casos, trata-se de uma terapia do fenmeno patologicamente indivisvel; no caso da salpingostomia, porm, com a vantagem da conservao da tuba73.

71 72

A. LANZA P. PALAZZINI. Princpios de Teologia Moral 280. G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 429 73 G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 430.

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Segundo Rhonheimer, tanto a salpingectomia quanto a salpingostomia se dirigem contra a gravidez, que por si mesma patolgica. Nem uma nem outra, porm, segundo ele, constituiriam um aborto direto, uma vez que apenas encurtariam a vida de um embrio j condenado morte74. Com razo, porm, A. G. Spagnolo e M. L. Di Pietro dizem que no se pode alegar como justificao [da remoo do embrio] a sua inevitvel morte: a morte se pode sofrer, mas no antecipar75. O fato de que crticos de Bouscaren, como Keenan e Rhonheimer, logo em seguida defendam procedimentos diretamente abortivos no seria um indcio de que a tese de Bouscaren seja perigosa quanto s conseqncias que dela se podem derivar?

b. Segunda dificuldade Se o mdico simplesmente matasse a criana, deixando a trompa intacta, salvaria a vida da me. Ao contrrio do caso do tero canceroso, em que a morte da criana em nada contribui para a salvao da vida da me, no caso da gravidez ectpica, se o mdico simplesmente matasse a criana, sem remover a trompa, salvaria a vida da gestante. Isso d a entender que a morte da criana desempenha o papel de meio e no de simples efeito colateral. Bouscaren tenta, com os dados mdicos de sua poca, demonstrar o contrrio:De outro ponto de vista, este parecer confirmado pela experincia mdica. Padre Davis j destacou que onde o mtodo de operao , por assim dizer, invertido quando o prprio feto, em vez da tuba, constitui seu objeto direto, pela inciso da tuba e retirada do ovo, deixando a tuba no lugar , a operao feita comCf. G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 431-432. A. G. SPAGNOLO M. L. DI PIETRO, Quale decisione per lembrione, 306.75 74

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muito menos sucesso. Como disse uma autoridade, tem-se medo de deixar a tuba para trs. Isso no demonstraria que realmente a tuba, e no o feto, que a fonte prxima do problema e que deveria ser o objeto direto da operao? No mesmo sentido o testemunho de Pestalozza e seus associados, de que a morte do feto na tuba no pe fim de uma vez ao perigo da me porque a prpria tuba est to afetada que, mesmo depois que o embrio cessa de crescer, a tuba pode-se romper com um leve choque76.

Atualmente, esse argumento obsoleto pois, como vimos no captulo III.2, h vrias intervenes ditas conservativas, como a salpingostomia linear e o uso do metotrexato, que preservam a integridade da tuba por meio da morte direta do embrio e que so usadas em lugar da salpingectomia.

7. Depois de Bouscaren, outras distines Como vimos no captulo III.4, Bouscaren faz distino entre o objeto direto da salpingectomia (a tuba danificada) e o objeto indireto (o embrio ectpico). Com base nessa distino (sujeita a crticas, como vimos), o autor aplica o princpio da ao com duplo efeito. No faltaram, depois de Bouscaren, outros autores que, com base em outras distines, defenderam procedimentos relativos gravidez ectpica que so manifestamente abortivos, como a aplicao do metotrexato e a salpingostomia. J. F. Tuohey justifica o uso do metotrexato (MTX) alegando que ele no age diretamente sobre o embrio, mas sobre o trofoblasto (que est destinado a constituir a placenta e no o corpo do embrio propriamente dito). Como o trofoblasto que exerce uma atividade erosiva sobre a trompa, seria lcito, por meio do metotrexato, impedir que suas clulas se multipliquem. A destruio76

T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 159.

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do trofoblasto (objeto direto da aplicao do metotrexato) teria como efeito indireto a morte do embrio, por inanio77. O mesmo argumento utilizado por A. Moraczewski:O uso do MTX pode ser moralmente visto como um meio para parar a ao destrutiva das clulas do trofoblasto. O MTX inibe ou para a ulterior atividade da parte trofoblstica do embrio porque tal atividade lesiva para a me e, em definitivo, para o prprio embrio78.

Segundo esses autores, o metotrexato dirige-se diretamente sobre o trofoblasto, cuja implantao na trompa constitui uma patologia que ameaa a vida materna, e s indiretamente sobre o embrio, que morrer em virtude da falta de nutrio. Com razo, Antonio G. Spagnolo e Maria Luisa Di Pietro reagem violentamente a essa distino que, segundo eles, parece ter a conotao de franca hipocrisia (sic). Argumentam: Seria como dizer que deixar um recm-nascido sem alimentao comporta somente a responsabilidade de subtrair-lhe o alimento e no tambm a de causar-lhe a morte por inanio79. Alm disso, como observa Giovanelli, o trofoblasto no uma terceira entidade distinta da me e do feto.Embora o trofoblasto e a futura placenta, no nascimento, sejam separados da criana, neste estgio do desenvolvimento, ele constitui um rgo vital que fornece ao feto o sustento necessrio. Remover ou atacar o trofoblasto significa privar o feto da vida,

Cf. J. F. TUOHEY, The implications of the Ethical and Religious Directives for Catholic Health Care Services on the clinical practice of resolving ectopic pregnancies, Louvain Studies (20) 1995, 55-56, cit. in G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 377-380. 78 A. MORACZEWSKI, Managing tubal pregnancies. Part II, Ethics and Medics, 21, (8) 1996, 3, cit. in G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 387. 79 A. G. SPAGNOLO M. L. DI PIETRO, Quale decisione per lembrione, 302.

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como remover o msculo cardaco de uma pessoa adulta significa mat-la80.

A salpingostomia vista por Tuohey no como uma simples remoo do embrio ectpico, mas como uma separao do trofoblasto da tuba, tendo como efeito a morte da criana. Segundo esse autor,... pode-se formar a opinio provvel de que procedimentos que removem o embrio do stio ectpico tambm podem ser lcitos quando o objeto do procedimento o trofoblasto. Tal procedimento existe. Na salpingostomia, por exemplo, o trofoblasto separado; destelhado da tuba, deixando-a intacta e patente. A consequente perda do feto devida perda do citoblasto um efeito do procedimento que tem um objeto bom e pode ser justificada pelo PDE [princpio do duplo efeito]81.

Moraczewski justifica a salpingostomia considerando-a a remoo do tecido tubrio danificado e do tecido trofoblstico que o danifica. A remoo do embrio seria um efeito indireto:Um par de tesouras (ou outros instrumentos adequados) usado para remover o tecido patolgico de modo tal que a parte da parede tubria permanea, embora afinada pelo procedimento. Tal manobra extrai uma quantidade considervel do tecido tubrio danificado, mas a tuba posteriormente capaz de reparar-se, de modo que a fertilidade da mulher no prejudicada pela cirurgia. Naturalmente e desafortunadamente, junto com a remoo do tecido patolgico, danificado pelas crescentes clulas trofoblsticas do embrio, removido o prprio embrio. Embora prevista, no se escolhe ou seleciona ou deseja a morte do embrio, seja como fim em si mesmo, seja como meio para umG. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 435. J. F. TUOHEY, The implications of the Ethical and Religious Directives for Catholic Health Care Services on the clinical practice of resolving ectopic pregnancies, Louvain Studies (20) 1995, 55, cit. in G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 376.81 80

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posterior fim bom, isto , a sade e a vida da me, incluindo a proteo de sua capacidade de conceber outra criana82.

Giovanelli, criticando os autores acima que defendem a salpingostomia, observa com razo que a remoo do tecido trofoblstico, do qual o embrio dependente, constitui um ataque direto ao prprio embrio. Alm disso, ainda que se desejasse remover somente o tecido danificado, as exigncias prticas da cirurgia no o permitiriam. Pois frequentemente, o embrio sai imediatamente quando praticada a inciso na tuba. Tal interveno feita s porque o embrio est l e no pode excluir a remoo do embrio, que intrnseca ao objeto da ao83. O fato de que adeptos de Bouscaren, como Tuohey e Moraczewski (que aceitam a salpingectomia com base na distino entre o objeto direto e o objeto indireto da interveno), avancem na prtica de distines para defender procedimentos que so diretamente abortivos (como o metotrexato e a salpingostomia) no seria mais um indcio de que a tese de Bouscaren seja perigosa quanto s consequncias que dela se podem derivar?

8. A expectao armada Expectao armada a atitude de esperar a evoluo espontnea da gravidez ectpica, com a gestante hospitalizada, prxima a uma sala de cirurgia e submetida a uma monitorao contnua. Isso permite visualizar dia a dia o batimento cardaco embrionrio e colher os sinais clnicos de uma complicao que exija uma interveno especfica. Em substncia, duas coisas podem acontecer principalmente: 1. a gravidez termina em aborto espontneo, sem ruptura da trompa, ou o embrio morre e reabsorvido sem qualquer ameaa para a me (o que se verifica emA. MORACZEWSKI, Managing tubal pregnancies. Part I, Ethics and Medics, 21, (6) 1996, 3, cit. in G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 384-385. 83 Cf. G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 435-436.82

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mais de 65% dos casos de gravidez ectpica quando se adota essa terapia de espera); 2. a gravidez evolui em direo ruptura tubria, exigindo uma interveno imediata84. Embora raramente, possvel encontrar na literatura mdica casos de gravidez tubria levada a termo85. Sobre isso Bouscaren oferece-nos alguns dados interessantes:Dr. Gragin relatou seis casos de gravidez ectpica avanada que tinham ocorrido no Sloane Hospital for Women antes de 1919, em que o feto havia-se desenvolvido alm de seis meses. Todas as seis pacientes foram operadas e em todos os seis casos a me se recuperou, enquanto em trs deles o beb tambm sobreviveu. Harbeck Halsted relata esses casos e acrescenta cinco seus, que ocorreram no mesmo hospital de 1919 a 1926, nos quais cinco das mes e quatro dos bebs sobreviveram operao. De um total de onze operaes, portanto, dez das mes, ou mais de 90 por cento, e seis dos bebs, mais de cinquenta por cento, sobreviveram. Algumas das crianas, entretanto, ficaram deformadas e algumas morreram logo aps a operao. Baronnet fornece os seguintes dados: De 303 fetos extrados vivos, 58 por cento morreram em 24 horas. Dos 42 por cento que sobreviveram, somente 32 por cento ou cerca de 13 por cento do total viveram alm de cinco anos; e destes, um tero era deformado. Sua concluso que somente oito por cento das crianas vivas geradas por gravidez ectpica avanada desenvolveram-se em indivduos normais. Entretanto, no se deve perder de vista o fato de que todas as 303 crianas extradas vivas pelas operaes que ele relata teriam tido a chance de receber o batismo, que no Cf. A. G. SPAGNOLO M. L. DI PIETRO, Quale decisione per lembrione, 298-299. 85 Cf. A. NISHIKAWA S. TANAKA R. KUDO, Full-term interstitial pregnancy with live birth, International Journal of Gynecology and Obstetrics (63) 1998, 57-58, cit. in G. GIOVANELLI. La gravidanza ectopica nella tradizione, 29.84

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uma vantagem desprezvel, independentemente de quanto tempo elas viveram ou do valor social que suas vidas pudessem ter tido86.

A expectao armada, portanto, alm de ser inatacvel do ponto de vista moral, d ao embrio ectpico a chance, remota mas no inexistente, de chegar maturidade, ser extrado vivo e batizado. Todas as 303 crianas a que se refere Bouscaren no teriam tido essa chance se o mdico, considerando grande o perigo para a vida da me, tivesse resolvido praticar a salpingectomia antes da ruptura da trompa. Bouscaren cita a defesa da expectao armada que faz Dr. Clement de Friburgo:Em uma gestao ectpica, ele escreve, o modo mais seguro de tratamento, moralmente falando, aquele que concilia mais eficazmente os interesses, ou melhor, os absolutos direitos dos dois seres , seguramente, em minha opinio enquanto o cisto fetal testemunhar pelo seu desenvolvimento normal e regular a vitalidade do embrio , o que se costuma chamar em cirurgia para situaes anlogas a expectao armada, esperar at que a criana esteja, se no absolutamente a termo, pelo menos certamente vivel, para proceder a sua extrao abdominal, mantendo-se todo o tempo preparado para uma interveno urgente se uma ruptura prematura acontecer. Isso remove todos os escrpulos de considerao do lado da criana, uma vez que geralmente ela j se separou de suas conexes vitais. A me deve ser devidamente instruda sobre os sintomas que podem indicar o incio de uma provvel ruptura. Se ela puder ser mantida sob observao em um hospital, ou nas suas vizinhanas imediatas, os riscos de uma laparotomia a que ela deva se submeter, mesmo quando tem que ser prematura, no aumentaro 87 notavelmente .

86 87

T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 140-141. T. L. BOUSCAREN, Ethics of ectopic operations, 136-137.

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Antonio Royo Marn, no caso da gestao ectpica, no v outra sada seno a converso tubrio-uterina (de que falaremos no captulo IV), ou a expectao armada, que consiste na interveno imediata do mdico ao produzir-se a ruptura do saco fetal (que pe em grave perigo a vida da me), porque o feto se separa ento de suas conexes vitais (extraia-se e batize-se imediatamente), ou a laparotomia, se o feto j vivel e h grave perigo para a me em prosseguir a gestao at o fim88. Em El Salvador, pas em que todo aborto doloso punido (sem excees) desde abril de 1998, os mdicos espontaneamente resolveram adotar a conduta da expectao armada diante de uma gravidez ectpica. O fato narrado por Jack Hitt em um artigo de 2006 publicado no New York Times. Embora a matria seja altamente tendenciosa, o trecho a seguir verossmil:Uma poltica que incrimina todos os abortos tem outro lado. Ela parece exigir que todo o esforo da equipe mdica se concentre em salvar o feto em qualquer circunstncia. Essa noo pode levar a algumas prticas perigosas. Consideremos uma gravidez ectpica, uma condio que ocorre quando um microscpico ovo fertilizado desce pela trompa de Falpio cujo dimetro no maior que o de um lpis e se fixa l (ou s vezes no abdmen). Se no for atendido, o feto cresce at que o rgo que o contm se rompa. Uma simples operao pode remover o feto antes que o rgo se rompa. Depois da ruptura, entretanto, a situao pode passar a ser a de uma emergncia mdica. Segundo Sara Valds, diretora do Hospital de Maternidade, as mulheres que vm ao seu hospital com gravidez ectpica no podem ser operadas at a morte fetal ou a ruptura da trompa de Falpio. Esta a nossa poltica, disse-me Valds. Evidentemente, ela estava atormentada com o tema. Essa a lei, disse ela. O Ministrio Pblico disse-nos que essa a lei. Valds estimou que seu hospital trata de mais de cem gravidezes ectpicas por ano. Ela descreveu a prtica88

A. R. MARN, Teologia Moral para seglares, 434.

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do hospital: Uma vez que determinamos que elas tm uma gravidez ectpica, asseguramo-nos de que permaneam no hospital, disse ela. As mulheres so enviadas ao dispensrio, onde se faz diariamente uma ultrassonografia para examinar o feto. Se est morto, podemos operar, disse ela. Antes disso, no podemos. Se h um batimento cardaco fetal persistente, ento deve-se esperar que a trompa de Falpio se rompa. Entretanto, se se consegue persuadir a paciente a permanecer, os mdicos podem operar no momento em que se detectam quaisquer sinais de ruptura precoce. At umas poucas gotas de sangue que penetrem pela trompa de Falpio irritam a parede abdominal e causam dor, explicou Valds. Operando aos primeiros sinais de uma possvel ruptura, disse ela, seus mdicos podem minimizar o risco para a mulher89.

Giuseppe Fasanella, Nicola Silvestri e Elio Sgreccia, que no aceitam a salpingectomia precoce, julgam que o princpio da ao com duplo efeito s se aplica quando h uma hemorragia em ato:Ora, alguns autores consideram como aborto indireto tambm aquele praticado em uma poca muito precoce, entendido como uma medida teraputica preventiva, fora, por exemplo, de uma hemorragia em ato do aparelho genital da me, pensando que em todo caso se trata de uma gravidez destinada a falir e que quanto mais se procrastina a interveno, mais a me corre perigo para a prpria sade ou vida. Outros autores, mais rigorosos e ns estamos entre esses julgam que para o aborto indireto devem ser satisfeitas todas as condies acima expostas a propsito do princpio da ao com duplo efeito: em particular, a hemorragia em nvel do aparelho genital da me deve ser atual90.J. HITT, Pro-Life Nation, The New York Times, 9-4-2006, in http://www.nytimes.com/2006/04/09/magazine/09abortion.html?pagewanted=all [11-04-2009]. 90 G. FASANELLA N. SILVESTRI E. SGRECCIA, Gravidanza extrauterina in S. LEONE S. PRIVITERA (ed.), Nuovo dizionario di Bioetica, Citt Nuova, Roma - Istituto Siciliano di Bioetica, Acireale 2004, 556.89

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Paolo Merlo assim comenta essa exigncia da hemorragia atual.Alguns julgam poder legitimar a interveno de remoo do embrio da trompa com base no princpio do duplo efeito, considerando-o como aborto indireto; outros, porm, fazem notar que propriamente as condies de tal princpio so satisfeitas somente no caso em que esteja em ato a hemorragia ameaando a vida da me (a hemorragia em nvel do aparelho genital da me deve ser atual: Fasanella, Silvestri, Sgreccia, 2004: 556). Com base no princpio do duplo efeito, parece-nos de tudo pertinente atribuir a qualidade de aborto indireto somente remoo da trompa com hemorragia em ato: tal princpio, de fato, requer que o efeito negativo (a morte do concebido presente na trompa) possa ser no mximo concomitante com o efeito positivo (e isso se d somente se intervm na trompa em fase de ruptura)91.

Luigi Scremin tem a mesma posio:Em caso de gravidez ectpica, no pode o mdico remover diretamente o ovo, nem praticar meios que tendam diretamente a matar o produto. Para a moralidade dos tratamentos comuns da gravidez ectpica quando o feto no vital92, pode-se dizer que, se a ruptura da trompa aconteceu e a hemorragia, mesmo pequena, est em ato, lcito intervir para estancar a hemorragia na tuba, mesmo que o feto esteja vivo e conserve as conexes placentrias. A morte do feto por uma interveno cujo fim teraputico fazer cessar a hemorragia conseqncia indireta e no P. MERLO, Laborto. Aspetti etici, in E. LARGHERO G. ZEPPEGNO (ed.) Dalla parte della vita. Itinerari di bioetica, Effata Editrice, Cantalupa 2007, 343. O livro tem a apresentao de Mons. Elio Sgreccia. 92 Provavelmente o autor quis dizer no vivel, ou seja, no tem chance de sobrevida extra-uterina.91

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desejada como fim nem como meio. Analogamente para a gravidez ovariana ou em corno uterino rudimentar atrsico. Em qualquer outro caso, necessria a conduta expectante, que d a possibilidade de interveno imediata quando o decurso e as complicaes o indicarem93.

Curiosamente, a aplicao do princpio do duplo efeito no caso de uma ruptura tubria explicada de maneira brilhante pelo prprio Bouscaren:Suponhamos, no exemplo, que a hemorragia seja um perigo mortal presente. O nico meio de remediar a situao a laparotomia, a exciso da tuba rompida e a ligadura dos vasos que sangram. O feto, claro, ter que ser removido com a tuba; e eu creio que nenhum moralista hesitaria em permitir a remoo da tuba sob essas circunstncias, embora esteja ainda aderido a ela, por meio da placenta e do cordo umbilical, um feto vivo no vivel, cuja morte certamente ser acelerada pela remoo. [...] O nico efeito que absolutamente imediato o estancamento do fluxo sanguneo; dele seguem dois efeitos imediatos, que so igualmente prximos entre si, a saber, a conservao da vida da me e a extino da vida do feto. Nenhum desses efeitos mais imediato que o outro. Exatamente a mesma compresso do frceps, o mesmo golpe da tesoura que conserva o suprimento d