A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior Tribunal de Justiça

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    1/8

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTO DE HEDGE: BREVEANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE

    JUSTIÇA

    Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 56/2012 | p. 13 | Abr / 2012

    DTR\2012\44732

    Fernando R. Vila MagnoMestre em Direito Empresarial (LL.M.) pela New York University School of Law. Membro da NewYork Bar. Advogado.

    Área do Direito: BancárioResumo: Este artigo discorre sobre a possibilidade de utilização da Cédula de Produtor Rural (CPR)como instrumento de securitização. Examinando o contexto histórico envolvendo seu surgimento, oautor faz uma breve exposição acerca das principais características do referido título de crédito e dosrequisitos legais aplicáveis à sua emissão. Em seguida, é analisada a evolução do entendimento

     jurisprudencial, notadamente do STJ, sobre o tema. Confrontando o entendimento externado em dois julgados emblemáticos, o autor examina os fundamentos jurídicos que levaram ao reconhecimento

    da possibilidade de utilização da CPR não apenas como instrumento de financiamento agrícola, mastambém de securitização, função importante no atual contexto do mercado de commodities.

    Palavras-chave:  CPR - Financiamento - Securitização - Hedge - Antecipação de Recursos.Abstract: This article discusses the possibility of using the Rural Product Bond (CPR) as asecuritization instrument. Examining the historical backdrop against which it was created, the authorprovides a brief summary of the main characteristics of the abovementioned credit instrument and thelegal requirements applying to its issuance. The author then analyzes the evolution of the case lawdealing with the issue, namely of the Superior Court of Justice. Confronting the reasoning that waspresented in two emblematic decisions, the author examines the legal arguments that led to therecognition of the possibility of using the CPR not only as a financing means, but also as asecuritization instrument, an all important function in the current context of the commodities market.

    Keywords:  CPR - Financing - Securitization - Hedge - Advance.Sumário:

    1.INTRODUÇÃO - 2.NATUREZA JURÍDICA E PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA CPR -3.ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA CPRCOMO INSTRUMENTO DE HEDGE - 4.CONCLUSÃO

    1. INTRODUÇÃO

    À medida que o agronegócio vem se firmando como um dos esteios do crescimento da economiabrasileira, a Cédula de Produto Rural – CPR, instituto relativamente recente em nosso ordenamento

     jurídico, vem se tornando um título de crédito cada vez mais utilizado, ganhando importância comoinstrumento de circulação e financiamento da produção rural.

    Efetivamente, como o Prof. Arnoldo Wald já teve a oportunidade de anotar, a CPR hoje “tornou-seum instrumento do direito do desenvolvimento, exercendo a função de facilitar tanto acomercialização como o financiamento dos produtos rurais”,1 sendo utilizada em larga escala pelosagentes econômicos.

    Questão interessante que se coloca no estudo dessa espécie de título diz respeito à possibilidade dea CPR ser utilizada por produtor rural como instrumento de securitização (hedge ), ou seja, como ummecanismo de proteção contra riscos de flutuação de preços no mercado futuro.

    De fato, atualmente, a CPR vem desempenhando importante papel na área do agronegócio, sendousada por muitos produtores rurais não apenas como um instrumento de financiamento, mastambém como uma forma de pré-fixar o preço de venda de uma mercadoria, cuja colheita ou abatese dará somente após o decurso de certo período.

    Em linhas gerais, hoje, o produtor que deseja reduzir sua exposição às variações de preço que

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 1

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    2/8

    podem ocorrer naturalmente na economia de mercado pode, por exemplo, emitir uma CPRestabelecendo como prazo de liquidação, o mês de colheita e obrigando-se a proceder à entrega doproduto rural, por um preço pré-estabelecido que lhe garanta o reembolso dos valores investidos nosinsumos agropecuários e mais uma margem de lucro. Nessa sistemática, aquele que adquire a CPRnão necessariamente precisa pagar o valor referente ao produto rural antecipadamente. Pode o

    detentor da cédula pagar a quantia posteriormente.A utilização da CPR nos termos descritos acima traz um importante benefício para o produtor rural jáque este saberá, de antemão, quanto receberá por sua mercadoria rural, protegendo-se de variaçõesde preço que soem ocorrer no mercado de  commodities .

    Não obstante essa característica vantajosa, a viabilidade jurídica de se utilizar a CPR comomecanismo de   hedge  não é ponto pacífico e vem, já há algum tempo, suscitando debates, tendosido, inclusive, objeto de discussão perante os tribunais brasileiros.

    Essencialmente, a discussão que vem sendo travada versa sobre o papel reservado à CPR no nossoordenamento jurídico e a necessidade de haver uma antecipação do pagamento devido pelosprodutos na emissão de uma cédula desse tipo.

    Partindo da premissa de que a CPR seria um título que se prestaria ao financiamento da atividaderural, objetivando o custeio de insumos agropecuários, em linha com a exposição de motivos dolegislador pátrio, inicialmente, os tribunais, incluindo o STJ, adotaram posicionamento no sentido deque o pagamento antecipado dos produtos seria um requisito essencial ao reconhecimento davalidade de uma CPR.

    Evidentemente, esse entendimento (i.e., da obrigatoriedade de haver um pagamento antecipado naemissão de uma CPR) representa importante entrave à utilização da CPR como instrumento desecuritização, na medida em que se limita a possibilidade de as partes convencionarem entre si umaliquidação futura da obrigação (pagamento a posteriori ).

    Entretanto, o STJ reviu seu entendimento anterior e, em julgado paradigmático, concluiu que “opagamento pela safra representada no título pode se dar antecipadamente, parceladamente oumesmo após a entrega dos produtos”, validando, de forma expressa, o uso da CPR como

    instrumento de hedge .

    A seguir, passaremos a evolução do entendimento jurisprudencial. Antes, porém, de passar àexposição dessa questão específica, para permitir uma melhor compreensão dos argumentoslevantados nos julgados que serão examinados, teceremos algumas breves considerações acercada CPR, detalhando as normas que lhe regem e suas principais características.2. NATUREZA JURÍDICA E PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA CPR

    A CPR, cujo surgimento se deu com o advento da Lei 8.929/1994, é um título de crédito, dotado deliquidez, certeza e exequibilidade (art. 4.º), de natureza cambial (art. 10), representativo demercadoria, por meio do qual seu emitente (produtor rural e suas associações – art. 2.º), assumeuma promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantia (art. 1.º).

    Cabe observar que a promessa de entrega, consubstanciada na CPR, pode abranger qualquer tipode produto rural – agrícola ou pecuário –, já que a lei não estabelece qualquer restrição nessesentido.2

    Os requisitos necessários à emissão de uma CPR válida estão elencados no art. 3.º da Lei8.929/1994, sendo os seguintes: (a) denominação “Cédula de Produto Rural”; (b) data a entrega; (c)nome do credor e cláusula à ordem; (d) promessa pura e simples de entregar o produto, suaindicação e as especificações de qualidade e quantidade; (e) local e condições de entrega; (f)descrição dos bens cedularmente vinculados em garantia; (g) data e lugar de emissão; e (h)assinatura do emitente.

    Assim, conforme se pode verificar, a lei não exige como requisito indispensável à emissão válida deuma CPR que haja antecipação do pagamento do preço correspondente ao produto por ela

    abrangido.

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 2 

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    3/8

    Ao mesmo tempo, o art. 3.º, § 1.º, da Lei 8.929/1994 prevê que “sem caráter de requisito essencial, aCPR poderá conter outras cláusulas lançadas em seu contexto, as quais poderão constar dedocumento à parte, com a assinatura do emitente, fazendo-se, na cédula, menção a essacircunstância”.

    Dessa maneira, respeitados os requisitos indispensáveis elencados acima, nada obsta que as partes(emitente e detentor de uma CPR) convencionem, na própria cédula ou em documento à parte,termos e condições específicos que atendam às peculiaridades e necessidades do negócio jurídicoque pretendam entabular entre si, inclusive no que se refere ao momento da efetivação dopagamento do preço correspondente aos produtos representados pela cédula.

    Apesar de a lei ser silente no que se refere ao momento do pagamento de uma CPR e daautorização concedida no § 1.º do art. 3.º, por muito tempo, se pressupôs que a emissão de umacédula desse gênero exigiria, necessariamente, um pagamento antecipado.

    Essa percepção derivou, em grande parte, do contexto histórico em que surgiu o instituto da CPR,um período caracterizado pela escassez de recursos no Brasil para aplicação em crédito rural e emque se deu uma redução dos investimentos governamentais no setor rural, o que tornava necessárioo desenvolvimento de mecanismos alternativos de captação de recursos.3

    Guiado por esse quadro, quis o legislador pátrio prover os agentes atuantes no setor agropecuáriode um instrumento que pudesse facilitar a captação de recursos que seriam aproveitados nodesenvolvimento da sua atividade.

    Essa conclusão é corroborada pela leitura da Exposição de Motivos Interministerial 334, de08.10.1993, apresentada com o projeto que deu origem à Lei 8.929/1994, que instituiu a CPR.

    De acordo com a referida exposição de motivos, a CPR foi concebida, originalmente, com opropósito de fomentar e simplificar o levantamento de capital de giro necessário ao desenvolvimentodas atividades dos produtores rurais, suprindo, assim, uma carência detectada nas fontestradicionais de crédito rural.

    Na visão dos Ministros da Fazenda e da Agricultura, que subscreveram a referida exposição de

    motivos, a CPR desempenharia papel importante no desenvolvimento da agricultura brasileira,   in verbis :

    “(…) 9. Espera-se, ademais, que o novo título venha a despertar o interesse também de investidoresnão ligados diretamente à comercialização agrícola, inclusive do exterior, que poderia proporcionar acaptação de expressivos recursos para o desenvolvimento de nossa atividade rural.

    10. Por oportuno, observamos que a modalidade de venda para entrega futura constitui importantepasso no sentido da modernização da emancipação da atividade rural, na medida em que permite aoprodutor planejar melhor seus empreendimentos, além de propiciar-lhe capital de giro e de protegê-locontra o risco de queda de preços que normalmente ocorre na época da safra.”

    Logo, tal como idealizada originalmente, a CPR se destinaria ao financiamento do agronegócio,permitindo aos produtores levantar recursos de forma antecipada, valores esses que, do contrário, só

    seriam percebidos futuramente, quando da colheita e entrega dos produtos agrícolas e/ou pecuários.Os montantes adiantados com a emissão da CPR poderiam ser aplicados no reembolso dedespesas incorridas com insumos agropecuários, servindo como capital de giro no processoprodutivo.

    Entretanto, conforme já se expôs, com o passar dos anos, a CPR passou a desempenhar papeldiverso do que lhe fora inicialmente atribuído, funcionando como verdadeiro instrumento desecuritização.3. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DACPR COMO INSTRUMENTO DE HEDGE

    Feitas essas breves considerações acerca do regramento legal da CPR, suas principaiscaracterísticas e seu contexto de surgimento, adiante serão analisados dois julgados emblemáticosdo STJ que tratam da possibilidade de utilização da referida cédula como instrumento de

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 3 

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    4/8

    securitização e bem demonstram a evolução da jurisprudência ao longo dos últimos anos.3.1 A CPR como instrumento de financiamento – REsp 722.130/GO

    Conforme já narrado, quando do seu surgimento, a CPR foi inicialmente utilizada como instrumentode financiamento, permitindo a antecipação dos recursos que, ordinariamente, só seriam percebidospelo produtor rural quando da colheita da safra agrícola (ou da criação e abate do gado).

    Entretanto, lentamente, a CPR passou a assumir finalidades distintas daquelas indicadas naexposição de motivos, surgindo, em alguns casos, controvérsias que foram levadas à apreciação doPoder Judiciário, que foi, assim, instado a se manifestar sobre a legalidade de tais práticas.

    Em 2005, o STJ, por intermédio da sua 3.ª Turma, analisou a questão ao julgar o REsp 722.130/GO,em que se discutia o cabimento da aplicação da teoria da onerosidade excessiva em casoenvolvendo a celebração de um contrato de compra e venda de sacas de soja em grão relativo asafra futura, vinculado a uma CPR.

    No acórdão, ao apreciar a possibilidade de se emitir uma CPR com previsão de pagamento futuro,reportando-se à exposição de motivos apresentada quando da edição da Lei 8.929/1994, o Tribunal

    entendeu, por votação unânime, que tal prática consistiria num desvirtuamento da finalidade dacédula, pois essa estrutura não se prestaria ao financiamento da atividade rural. Restou, assim,acolhido o entendimento de que o pagamento antecipado representativo da operação de créditoseria elemento essencial à correta utilização da CPR,  in verbis :

    “Quanto à questão da Cédula do Produtor Rural, realmente me parece que toda a estrutura montadafoi no sentido de servir como um título de crédito em relação a uma operação de financiamento. Ora,em um contrato de safra futura não há operação de financiamento, de crédito. Na realidade, é umcontrato que não tem nenhuma vinculação de natureza financeira específica, porque está ligado aofornecimento, por parte do vendedor, de uma determinada quantidade de sacas de soja e aopagamento, por parte do comprador, de um preço, que pode variar. E, realmente, se formos admitir apossibilidade de emissão de títulos de crédito dessa natureza, sem que esteja vinculada,necessariamente, a uma operação de crédito, desvirtuaremos a natureza do próprio título; não hánenhuma operação negocial que implique na emissão de título de crédito sem que exista, na base do

    negócio, uma operação financeira.”

    A tese encampada pelo STJ, àquela altura, já vinha sendo defendida por parte da doutrinaespecializada.

    Nesse sentido, Lutero Paiva Pereira, por exemplo, entendeu que “jungida a uma venda e compra, eesta, de produto rural, a Cédula de Produto Rural – CPR – materializa um negócio oneroso, umverdadeiro contrato sinalagmático, onde o exercício do direito do credor de pretender a satisfação daobrigação do devedor assenta-se, necessariamente, na satisfação prévia de sua condição que é opagamento do preço acordado”.4

    O mesmo entendimento já vinha sendo adotado por Arnaldo Rizzardo para quem a CPR “não passade uma antecipação bancária, ou de um adiantamento de fundos para custear as culturas cujassafras ficarão comprometidas na cédula. Identifica-se a operação como uma espécie de compra evenda futura, com pagamento antecipado. Adianta-se o valor, e compromete-se o produtor aentregar a mercadoria que irá colher”.5

    Portanto, embora a Lei 8.929/1994 nada mencionasse a respeito do tema, para parte da doutrina, opagamento antecipado seria requisito indispensável à emissão de uma CPR, na medida em querepresentaria a “operação de financiamento” que serviria de substrato à formação do título de crédito.

    Fazer uso diverso da CPR, inclusive como mecanismo de   hedge , representaria um indevido desvioda finalidade que o legislador pretendeu atribuir a tal título, quando da edição da Lei 8.929/1994.3.2 A CPR como instrumento financeiro multifuncional – REsp 1.023.083/GO

    O debate envolvendo a possibilidade de utilização da CPR para finalidades que não diretamenterelacionadas ao financiamento da atividade agrícola não se encerrou com o julgado acima do STJ eacabou por adquirir novos contornos.

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 4 

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    5/8

    Efetivamente, tornou-se cada vez mais recorrente no mercado a emissão de CPRs desvinculadas deoperações de crédito, como mecanismo de proteção de produtores rurais contra as oscilações depreço que habitualmente se verificam nas  commodities  agrícolas.

    Paralelamente, parte expressiva da doutrina continuou a defender uma utilização mais ampla da

    CPR. Dentre os defensores dessa tese, encontra-se o Prof. Arnoldo Wald, que assim se manifestousobre o tema em artigo voltado ao estudo do tema, intitulado “Da desnecessidade de pagamentoprévio para caracterização da Cédula de Produto Rural”:

    “(…) a lei que criou esse título que representa uma promessa de entrega de produtos rurais não sereportou, em nenhum de seus artigos, ao pagamento prévio do produto a ser entregue. Nessediploma legal, Lei 8.929/1994 devidamente alterada pela Lei 10.200/2001, os seus três primeirosartigos cuidam respectivamente da instituição do título, da legitimidade para sua emissão e dosrequisitos essenciais à sua existência e ou validade. Nenhuma alusão existe ao pagamento dosprodutos que deverão ser entregues ao beneficiário do título.

    Sendo assim, qualquer estipulação quanto ao pagamento dos produtos, à sua forma e local e outraspactuações a ele referentes devem vir lançadas em seu texto ou fora dele, sem caráter de requisitoessencial, na expressa dicção do § 1.º desse mesmo art. 3.º da Lei 8.929/1994. Não sendo requisito

    essencial o pagamento, tal como o reconhece a lei de regência, evidencia-se não poder ser eleexigido como pressuposto de validade da emissão da CPR, justificando-se plenamente a cláusulacontratual que estipule ser o pagamento devido após a entrega da mercadoria.

    Quanto à consideração da possibilidade da Cédula de Produto Rural – CPR poder instrumentalizarpromessa de entrega de produto, mediante compra e venda, com pagamento do preço futuro eentrega do produto também futura, entendemos que nada impede que seja emitida tenho por objetoa promessa de entrega futura de produto. Essa promessa, aliás, é da essência desse título, comoestá expresso no art. 1.º da Lei 8.929/1994.”6

    Assim, na visão do ilustre jurista, tendo em vista que a lei não prevê ser o pagamento antecipado dopreço requisito essencial à validade da CPR, seria perfeitamente admissível a emissão de umacédula desse tipo com previsão de pagamento futuro, mesmo porque o art. 3.º, § 1.º, do referidodiploma legal abre essa possibilidade ao estabelecer que as partes podem estabelecer termos econdições aplicáveis à relação jurídica em documento apartado.

    Igual posicionamento foi adotado por Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa e Nancy Gombossy deMelo Franco, que analisaram a questão relativa à ausência de crédito à vista e seus efeitos notocante à formação do título de crédito, levantada no acórdão do REsp 722.130/GO:

    “43. Sem a CPR, o sistema de venda antecipada perde força. Ao invalidar a CPR nos moldesemitidos, restará às empresas vincular contratos de compra e venda antecipada de   commodities como simples contratos de penhor, que têm algo custo de registro, o que se daria na contramão doprincipal objetivo da CPR: fomentar e baratear os instrumentos de fomento agrícola. A CPR é o títulode crédito que garanta a entrega da  res esperata  e o pagamento do preço ao produtor (crédito futuro,porém certo).

    44. A ausência de crédito à vista, em dinheiro, no momento da emissão de um título de crédito nãotem o condão de nulificá-lo. Os já mencionados   warrants  e conhecimentos de depósito são umexemplo disso. Seu poder creditício está vinculado à riqueza que representam e não à antecipaçãode recursos. O que se busca no título de crédito é o fomento de riquezas.

    45. O fomento na CPR pode ser – e efetivamente é – a certeza que o produtor efetivamente adquiriu,de receber preço certo e ajustado para seu produto, quando o vendeu ainda no campo, sabendo queesse produto está sujeito a uma notável volatilidade de preços por ocasião da colheita, volatilidadeesta que não o alcança, nem para o bem, nem para o mal. Não existe preceito que estabeleça ser ofomento à agricultura apenas a modalidade de adiantamento de recursos financeiros.” 7

    Portanto, de acordo com a manifestação doutrinária transcrita acima, o título de crédito não exigira,obrigatoriamente, uma operação de crédito, conforme se anotou no acórdão do recurso especialsupracitado. Na realidade, o papel do título de crédito seria o de fomentar e incentivar a circulação e

    formação de riquezas, objetivos este que seriam alcançados pela CPR, quando utilizada comoinstrumento representativo de promessa de compra e venda, com previsão de pagamento futuro.

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 5 

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    6/8

    Reconhecendo a utilidade da CPR enquanto instrumento de securitização e amparados na posiçãodesses doutrinadores, alguns tribunais reconheceram a legalidade da prática.8

    Em 2010, a 3.ª Turma do STJ teve nova oportunidade de apreciar a questão, ao julgar o REsp1.023.083/GO, que foi relatado pela ilustre Min. Nancy Andrighi.

    Em acórdão muito bem fundamentado e que analisou a fundo os argumentos favoráveis e contráriosà utilização da CPR como instrumento de  hedge , o STJ reviu seu posicionamento anterior e terminoupor reconhecer que a cédula pode se destinar a finalidade que não diretamente relacionada aofinanciamento da atividade rural.

    A ilustre Ministra reconheceu que a Lei 8.929/1994, de fato, não contém “qualquer dispositivo queimponha, como requisito de validade do título, o pagamento antecipado do preço”. Partindo dessaconstatação fundamental e destacando o importante papel desempenhado pela CPR no fomento aosetor agrícola nos dias de hoje, consignou a ilustre relatora que “não há motivos para que, à mínguade disposições legais que o imponham, restringir a sua aplicação”.

    E, para não dar margem a qualquer tipo de dúvida, concluiu que “o pagamento pela safrarepresentada no título pode se dar antecipadamente, parceladamente ou mesmo após a entrega dos

    produtos. Ele poderá estar disciplinado na própria CPR, mediante inclusão de cláusulas com essefim, como autoriza o art. 9.º (sic ) da Lei 8.929/1994, ou poderá constar de contrato autônomo, emrelação ao qual a CPR funcionará como mera garantia”.

    O acórdão supracitado, portanto, acolheu a tese de que, se a lei nada dispõe acerca da necessidadede pagamento prévio, podem as partes convencionar de forma diversa, conforme lhes é autorizadopelo art. 3.º, § 1.º, da Lei 8.929/1994.

    O julgado também foi expresso ao anotar que “a emissão desse título pode se dar parafinanciamento da safra, com o pagamento antecipado do preço, mas também pode correr numaoperação de   hedge , no qual o agricultor, independentemente do recebimento antecipado dopagamento, pretende apenas de proteger contra os riscos de flutuação de preços no mercadofuturo”.9

    É de se louvar a clareza do julgado ao prever, expressamente, ser possível não só o pagamentoprévio e futuro, mas também aquele feito de maneira parcelada da CPR, assim como o cabimento douso do referido título como instrumento de   hedge . São colocações que, sem dúvida, contribuírampara a segurança jurídica nos negócios envolvendo emissões de CPRs.

    Essa, aliás, foi uma preocupação manifestada pelo Min. Massami Uyeda, em seu voto, que pontuouo desejo de que o julgado mostrasse “um caminho para trazer segurança, tanto para o financiadorcomo para o financiado, em proveito de toda a nação”, e recomendou o acórdão à publicação.

    Ao reconhecer o caráter multifuncional da CPR, admitindo, de modo expresso, o seu uso comoinstrumento de hedge , o STJ, sem dúvida, o fez de uma maneira a privilegiar a segurança jurídica.4. CONCLUSÃO

    A possibilidade de emitir uma CPR sem o pagamento antecipado do preço correspondente aoproduto por ela representado e de tal título ser utilizado como instrumento de  hedge  representa, semsombra de dúvida, um importante avanço para o mercado de agronegócio brasileiro, à medida que oprodutor tem colocado à sua disposição um mecanismo que vem se revelando extremamente útil eeficaz na proteção contra a volatilidade verificada nos preços dos produtos agrícolas.

    Efetivamente, a alegação de que a CPR deveria ser interpretada como um contrato de compra evenda antecipada, com adiantamento do pagamento, servindo como um instrumento definanciamento da produção agrícola parece refletir posicionamento demasiadamente restritivo, quese não amolda às práticas e necessidades do mercado, e cria amarras que acabam por desestimulara circulação de riquezas.

    Nessa medida, vale repisar que a Lei 8.929/1994 não impõe, em seu art. 3.º, que a emissão dareferida cédula depende da antecipação da importância correspondente ao preço da mercadoria.

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 6 

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    7/8

    O silêncio da norma legal supracitada, aliado ao fato de que o § 1.º do art. 3.º da Lei 8.929/1994autoriza, de maneira expressa, que se estabeleçam em documento à parte outras cláusulas, conduzà conclusão de que nada obsta previsão de pagamento futuro de uma CPR, quando da entrega doproduto, por exemplo.

    Assim, reputar que a antecipação do pagamento seria um requisito essencial à formação válida daCPR, quando a lei silencia a respeito do assunto, parece ser uma restrição de direito não prevista emlei, violando o princípio da legalidade estabelecido no art. 5.º, II, da CF/1988 (LGL\1988\3).

    Não se pode perder de vista, conforme bem explicam Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa e NancyGambossy de Melo Franco na lição acima transcrita, que a CPR, enquanto instrumento de   hedge ,exerce importante papel no fomento e incentivo à atividade agrícola, pois que protege o produtor dasoscilações do mercado de   commodities , permitindo-lhe uma melhor programação financeira,cumprindo, assim, o objetivo declarado na exposição de motivos do projeto que deu origem à Lei8.929/1994.

    Privar o produtor rural de um mecanismo que resguarda os seus interesses e lhe permite fazer umplanejamento financeiro, administrando riscos inerentes ao desempenho da sua atividade comercialnão parece ser uma medida razoável, especialmente no cenário competitivo que caracteriza o

    comércio internacional de commodities .Portanto, “não é possível, tampouco conveniente, restringir a utilidade da CPR à mera obtençãoimediata de financiamento em pecúnia. Se a CPR pode desempenhar papel maior no fomento aosetor agrícola, não há motivos para que, à míngua de disposições legais que o imponham, restringira sua aplicação”, como bem explicou a Min. Nancy Andrighi em seu voto condutor no julgamento doREsp 1.023.083/GO.

    Espera-se que esse entendimento do STJ seja seguido pelos demais tribunais brasileiros, de formaque a CPR continue a desempenhar o papel relevante que ela vem assumindo no incentivo e nofomento do agronegócio, com a segurança jurídica necessária.

    1 Wald, Arnoldo. Da desnecessidade de pagamento prévio para caracterização da Cédula doProduto Rural. Revista Forense . n. 374. p. 5. Rio de Janeiro: Forense, jul.-ago. 2004.

    2 Nesse sentido, confira-se o seguinte comentário feito por João Luiz Coelho da Rocha: “Não hárestrições próprias na Lei 8.929/1994, entendendo-se então que qualquer tipo de produto rural –agrícola ou pecuário – pode ser tratado nas CPRs, devendo-se estipular na cártula a quantidade deproduto comprometida, assim como a qualidade do mesmo (tantas sacas de café, ou de açúcar, decerto tipo; tantas cabeças de gado de certa raça etc.)” (ROCHA, João Luiz Coelho da. Um título decrédito recente: a Cédula de Produto Rural.  Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro . n. 117. p. 114. São Paulo: Malheiros, jan.-mar. 2000).

    3 Disponível em: [www.elenyforoni.com.br/cpr.html ].

    4 Pereira, Lutero Paiva.  Comentários à Lei de Cédula de Produto Rural . 3. ed. Cuiabá: Juruá, 2005.p. 13-14.

    5 Rizzardo, Arnaldo. Contratos de crédito bancário . 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2003. p. 242-243.

    6 Wald, Arnoldo. Op. cit., p. 12.

    7 Verçosa, Haroldo Malheiros Duclerc; Franco, Nancy Gombotty de Melo. Crédito e títulos de créditona economia moderna: uma visão focada na Cédula de Produto Rural – CPR.  Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro , n. 141. p. 101. São Paulo: Malheiros, jan.-mar. 2006.

    8 Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente do TJGO: “Apelação cível. Embargos à execução.Cédula de produto rural. Título executivo extrajudicial. Antecipação do pagamento. Inexigibilidade. 1.A CPR é título líquido, certo e exigível, constituindo elemento hábil a embasar a ação de execução.

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 7 

  • 8/18/2019 A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge Breve Análise Da Evolução Do Entendimento Do Superior…

    8/8

    Porquanto, não ha previsão legal de que para a validade da CPR deva haver pagamento antecipadodo produto vendido para entrega futura. Apelação conhecida e provida” (TJGO, Ap. 200802460911,2.ª Câm. Civ., j. 14.10.2008, rel. Des. Gilberto Marques Filho).

    9 O Min. Massami Uyeda discorreu, com bastante clareza, sobre a utilidade do uso que se vemfazendo da CPR como instrumento de securitização para o mercado agrícola. Vale a pena examinaras suas considerações: “O instituto da Cédula de Produto Rural é um instituto relativamente novo. Eu

     já havia até insertado estudos exatamente porque, em contato com o Prof. Lutero Pereira, deMaringá, que, no meu entender, é um dos grandes doutrinadores de direito rural e tem se dedicar aessa área da produção agrícola como verdadeiro instrumento de impulso ao desenvolvimentonacional, e essa cédula é realmente um grande instrumento de fomento, mas não apenas como V.Exma. ressaltou, um empréstimo, mas é uma securitização, porque a atividade agrícola tem umacaracterística própria, que é a sujeição às intempéries. Então, é diferente da cédula industrial, dacédula comercial, que têm outras características. E o produtor rural, até agora, não tinha essapossibilidade de conseguir esse fomento. Na verdade, esse instituto mescla o  leasing  porque, adespeito de ser uma antecipação de crédito, também é uma forma de orientação da administraçãodos negócios”.

    A CÉDULA DE PRODUTO RURAL COMO INSTRUMENTODE HEDGE: BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO

    ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    Página 8