A CONSTITUIÇÃO DE 1933 FUNDOU UM ESTADO CORPORATIVO?

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    A CONSTITUIO DE 1933 FUNDOU UM ESTADOCORPORATIVO?

    A Lei Fundamental aprovada em plebiscito em 1933 fundou um Estado

    corporativo, ainda que mitigado por compromissos vrios, ou o

    corporativismo portugus uma inteno falhada, como afirmaria

    Marcello Caetano em 1950: Portugal um Estado corporativo eminteno: no de facto?

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    Corporativismo mitigado

    Jorge Miranda1

    O sistema interno da Constituio de 1933 traduz um equilbrio emprico de vriasideias-fora, ligado ao compromisso que, apesar de tudo, se estabelece nessa altura

    entre as tradies e as aquisies de cem anos de constitucionalismo liberal e as

    tendncias polticas de Salazar, o seu quase nico autor. H um trplice compromisso

    entre liberalismo e autoritarismo, entre democracia e nacionalismo poltico e entre

    repblica e monarquia.

    Entre liberalismo (direitos, liberdades e garantias dos cidados, regime de

    suspenso das garantias constitucionais, Assembleia Nacional com poderes legislativos

    e de fiscalizao do Governo, fiscalizao da constitucionalidade pelos tribunais) e

    autoritarismo (regulamentao por lei e sujeio das liberdades a regime preventivo,papel do Estado perante a opinio pblica, ordem administrativa autoritria,

    prevalncia do Chefe de Estado sobre a Assembleia Nacional).

    Entre democracia (conceito de Nao do artigo 3., princpio da soberania nacional,

    eleio do Presidente da Repblica e da Assembleia Nacional por sufrgio directo dos

    cidados) e nacionalismo poltico (regime do territrio nacional, papel do Estado

    perante a famlia, a educao e a religio, instituies de adestramento da mocidade

    para os seus deveres militares e patriticos, imprio colonial).

    Entre repblica (formalmente conservada) e monarquia (figura do Chefe de Estado

    decalcada sobre a do Rei na Carta Constitucional).

    O trao que se pretende mais original da Constituio o corporativismo,

    tomado como forma quer de organizao social quer de organizao poltica, e ao

    qual se ajuntam elementos finalsticos por influncia do integralismo lusitano, da

    doutrina social da Igreja, do socialismo catedrtico e ainda da Constituio de Weimar.

    Enquanto forma de organizao social, o corporativismo recorta-se atravs de uma

    ordem econmica e social, que repousa na solidariedade (ou na solidariedade a

    todo o custo) dos interesses das classes sociais e em nome da qual se probem a greve

    e o lock-out (artigo 39.), se afirma a funo social da propriedade do capital e do

    trabalho (artigo 35.) e se admite a associao do trabalho empresa (artigo 36.). A

    integrao corporativa envolve as corporaes morais e econmicas e as associaes

    ou organizaes sindicais, incumbindo ao Estado reconhec -las e promover e auxiliar a

    sua formao (artigo 14.). Como forma de organizao poltica, o corporativismo visa

    a participao das sociedades primrias no poder, pois elementos estruturais da

    1Constitucionalista e Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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    Nao (artigo 5.) no so apenas os indivduos, so tambm essas sociedades

    menores. O sufrgio orgnico, contraposto ou, pelo menos, co mplementar do sufrgio

    individual, tal o instrumento que preconiza. Assim, pertence privativamente s

    famlias, atravs dos respectivos chefes, eleger as juntas de freguesia (artigo 17.); nas

    corporaes morais e econmicas estaro organicamente representados todos os

    elementos da Nao, competindo-lhes tomar parte na eleio das cmaras municipaise na constituio da Cmara Corporativa (artigo 18.); na organizao poltica do

    Estado concorrem as juntas de freguesia para a eleio das cmaras municipais e estas

    para a dos conselhos de provncia, e na Cmara Corporativa haver representao de

    autarquias locais (artigo 19.).

    A traduo do projecto constitucional em normas faz-se atravs de no poucas

    expresses de acentuado cunho ideolgico programtico ou proclamatrio. No nosso

    constitucionalismo, a Constituio de 1933 a primeira Lei Fundamental que as

    ostenta com tal evidncia. As mais significativas so as que qualificam o Estado de

    repblica corporativa (artigo 5.) e a economia de economia nacional corporativa(artigo 34.).

    O Estado promover a formao e desenvolvimento da economia nacional

    corporativa, visando a que os seus elementos no tendam a estabelecer entre si

    concorrncia desregrada e contrria aos justos objectivos da sociedade e deles

    prprios, mas a colaborar mutuamente como membros da mesma colectividade, diz

    o artigo 34..

    A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma funo social, em

    regime de cooperao econmica e solidariedade, podendo a lei determinar as

    condies do seu emprego ou explorao conformes com a finalidade colectiva

    (artigo 35.).

    O decreto-lei n. 23048, de 23 de Setembro de 1933, aprovou um Estatuto do

    Trabalho Nacional. E no tanto na Constituio quanto no Estatuto, bem prximo

    da Carta del Lavoro fascista, que deve perscrutar-se o exacto sentido da economia

    corporativa visada pelo Estado Novo. A Nao Portuguesa constitui uma unidade

    moral, poltica e econmica, cujos fins e interesses dominam os dos indivduos e

    grupos que a compem (artigo 1.). A hierarquia das funes e dos interesses sociais

    condio essencial da organizao da economia nacional (artigo 8.). Sobre o

    capital aplicado em explorao agrcola, industrial ou comercial impende a obrigao

    de conciliar os seus interesses legtimos com os do trabalho e os da economia pblica

    (artigo 14.). A direco das empresas, com todas as suas responsabilidades, pertence

    de direito aos donos do capital social ou aos seus representantes. S por livre

    concesso deles o trabalhador pode participar na gerncia, fiscalizao ou lucros das

    empresas (artigo 15.). O direito de conservao ou amortizao do capital das

    empresas e o do seu justo rendimento so condicionados pela natureza das coisas, no

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    podendo prevalecer contra ele os interesses ou os direitos do trabalho (artigo 16.).

    O trabalhador intelectual ou manual colaborador nato da empresa onde exera a

    sua actividade e associado aos destinos dela pelo vnculo corporativo (artigo 22.).

    O direito ao trabalho tornado efectivo pelos contratos individuais ou colectivos.

    Nunca o pode ser pela imposio do trabalhador, dos organismos corporativos ou do

    Estado, salvo, no que respeita a este ltimo, o direito que lhe assiste, em caso desuspenso concertada de actividades, de usar todos os meios legtimos para compelir

    os delinquentes ao trabalho (artigo 23.).

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    Inteno falhada

    Antnio de Arajo 2

    De um ponto de vista formal, a Constituio de 1933 acolhia indubitavelmente oprojecto corporativo. Alguns autores, como Fernando Rosas, afirmam mesmo que o

    nacionalismo corporativo era o princpio orientador mais marcante e original da Lei

    Fundamental do Estado Novo. No entanto, no desenho institucional dos poderes do

    Estado, a Cmara Corporativa tinha um papel relativamente apagado. A sua funo era

    de estudo e preparao, como acentuar Oliveira Salazar no discurso Problemas da

    organizao corporativa, de Janeiro de 1934.

    A Cmara Corporativa era a nica instituio verdadeiramente nova no quadro

    da tradio constitucional portuguesa e, por isso, a definio do seu perfil suscitava

    particulares dificuldades. Salazar reconhece abertamente, numa i mportante entrevistaa O Sculo de 19-XI-1934, que a organizao da Cmara Corporativa poderia mesmo

    suscitar algum alvoroo. Procura, no entanto, serenar os nimos, mostrando que a

    Cmara mais no era, no fim de contas, do que o culminar de um processo de

    institucionalizao do corporativismo, que comeara na Constituio de 1933 e passou

    pela publicao do Estatuto do Trabalho Nacional e legislao complementar. Mas

    esse culminar no perfeito, admitindo Salazar a existncia de falhas na concretizao

    dos princpios corporativos e reservando para o futuro a possibilidade de introduo

    de melhoramentos.

    Adverte, no entanto, que a Cmara no poderia confundir-se com uma meraunio de interesses econmicos, nem seria um rgo numeroso. E profere

    afirmaes extremamente importantes para a compreenso do perfil institucional da

    Cmara Corporativa: Do que o Pas carece, na Cmara Corporativa, no dessa

    especializao estreita ou antes dessa particularizao de classe ou de grupo, quer sob

    o aspecto tcnico quer sob o aspecto econmico ou social, mas sim dum ncleo de

    pessoas que, sendo conhecedoras, por forma especial, dos problemas que

    directamente lhes dizem respeito, estejam dispostas e preparadas para os encarar no

    plano mais elevado do interesse nacional e geral.

    Por outras palavras, Salazar est consciente do risco de a Cmara Corporativa setransformar num veculo de interesses particulares e num elemento da diviso que se

    pretendera evitar justamente atravs da frmula antipartidria. No fundo, que as

    velhas faces, que Madison tanto temia nos alvores do constitucionalismo norte-

    americano, acabassem por regressar ao interior do aparelho do Estado, o que seria um

    paradoxo tanto maior quanto o que esteve na gnese do corporativismo, n a linha dos

    2Investigador, autor deJesutas e Antijesutas no Portugal Republicano eA Lei de Salazar.

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    ensinamentos de Leo XIII e da Rerum Novarum, fora precisamente exterminar as

    clivagens das sociedades liberais (ex. capital vs. trabalho), como salientou um dos

    obreiros do projecto corporativo, Pedro Theotnio Pereira, aludindo ao fim das

    rivalidades ferozes entre burgueses e proletrios. Por isso, para poder funcionar

    com um elemento de integrao e de unidade, a Cmara Corporativa teria de assentar

    numa base de especializao tcnica mitigada ou, melhor dizendo, a sua composiohaveria de reflectir um compromisso que culminasse na existncia de uma

    representao orgnica concordante com o interesse geral.

    Pelo menos formalmente, o corporativismo sofre, pois, uma dupla menorizao:

    por um lado, no s no obtm o exclusivo de uma representao orgnica, como

    apenas a Assembleia Nacional integra o elenco dos rgos de soberania; por outro, o

    temor de Salazar pelo divisionismo poltico era de tal forma arreigado que Cmara

    no s ficam reservadas apenas incumbncias de estudo e preparao dos diplomas

    como, mesmo no exerccio de tais atribuies, se evidencia o objectivo de no atingir

    uma especializao tcnica excessiva, susceptvel de fazer parte de vista a unidade e osupremo interesse da Nao.

    A prtica do sistema mostraria que o corporativismo foi uma inteno falhada do

    Estado Novo. exemplar que, em 1944, Castro Fernandes se haja indignado por at a

    no ter sido criada uma s corporao! Expressos de forma tmida, os reparos sobre a

    incipincia do corporativismo portugus comearam a surgir. Soares Martnez, por

    exemplo, veio dizer que a atribuio Cmara de funes meramente consultivas s

    pode ajustar-se s condies prprias duma fase pr-corporativa. Teixeira Ribeiro (no

    Boletim da Faculdade de Direito , vol. XVI, 1939-40), mostrava-se mais esperanado:

    no se formou ainda corporao alguma, mas anuncia-se para breve o aparecimentodas primeiras.

    O problema que, entretanto, as corporaes tardavam em sair do papel. Na sua

    edio de 20 de Maro de 1948, The Economist falava do corporativismo portugus

    como um projecto semiacabado. , em 1951, no III Congresso da Unio Nacional,

    Cortez Pinto alertaria: necessrio constituir com a maior brevidade as Corporaes,

    fecho necessrio da abbada corporativa. No IV Congresso da Unio Nacional, ao

    aludir iminente criao das corporaes, Marcello Caetano reconhecia, ainda que de

    forma implcita, no ter o corporativismo conseguido implantar-se e, numa carta a

    Salazar, datada de Dezembro de 1952, desabafava, quanto ao corporativismo, terdeixado de saber o que pensa e o que quer o Governo no o vislumbro sequer.

    Marcello Caetano ser um dos mais desencantados com o fracasso do corporativismo

    portugus. Em 1944, dir a Salazar: Eu, por exemplo, j tenho vergonha de falar de

    corporativismo () a verdade que no h esprito corporativo, est incompleta e

    desacreditada a orgnica corporativa e alienmos de ns a confiana de patres,

    operrios e juventude. Falhano. Falhano puro, por mais que lhe digam outra coisa,

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    por falta de aco contnua e oportuna. Dez anos depois, em Outubro de 1954, ser

    ainda mais custico: Tudo poltica e administrao, parece muito parado e sobretudo

    a inrcia na constituio das corporaes, depois das promessas solenemente feitas,

    descorooadora. No deixa de ser curioso notar que, quando sucedeu a Salazar,

    Marcello Caetano mostrar-se-ia mais optimista: em 1968, j na chefia do Governo, ao

    dirigir-se aos presidentes das Corporaes, daria mostras de alegria por ver completaa arquitectura do Estado concebido pela Constituio de 1933.

    A oposio no deixaria de salientar este insucesso, para o qual contribui, como

    salienta Salgado de Matos, alguma resistncia dos militares em relao ao

    corporativismo e, sobretudo, face s alegadas prticas de corrupo nascidas no seu

    seio. Tambm nos sectores catlicos se notou um afastamento relativamente ao

    corporativismo, sobretudo a partir da dcada de 50, emergindo uma ciso entre trs

    correntes: a mais optimista, que acreditava que o corporativo portugus estava a

    concretizar plenamente a doutrina social da Igreja (Gonalves Proena, Soares

    Martnez); outra, que defendia o reforo do corporativismo de associao (PiresCardoso); uma ltima, mais crtica, encarnada por Adrito Sedas Nunes e D. Antnio

    Ferreira Gomes. No celebrrimo pro memoria ao Presidente do Conselho, o bispo do

    Porto concluiria a sua retrospectiva do corporativismo dizendo: Temos que ser

    francos, talvez brutais: ocorporativismo portugus foi realmente um meio de espoliar

    os operrios do direito natural de associao . E, peremptoriamente, o diplomata

    brasileiro lvaro Lins no hesitaria em escrever: o Corporativismo no s falhou como

    sistema, mas contribuiu para a inorganicidade social dos trabalhadores e o

    depauperamento econmico de Portugal.

    Em suma, o corporativismo representou, indubitavelmente, um desgnio daConstituio de 1933, mas a prtica do sistema, muito mais importante do que o

    enunciado dos textos jurdicos, demonstraria que este foi, porventura, o mais falh ado

    dos projectos do regime salazarista. Por incapacidade de formao das corporaes, o

    corporativismo no passaria do papel realidade: Portugal um Estado corporativo

    em inteno: no de facto, disse Marcello Caetano em 1950. E essa sntese lapidar

    no se alteraria nos anos vindouros, at ao 25 de Abril de 1974.

    IMPORTANTE:O artigo apresentado foi publicado em livro da coleco Os Anos em que Salazar

    governou. Assim, no dispensvel a leitura e anlise do artigo no livro citado.