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Universidade Católica de Brasília – UCB
Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação
Curso de Letras
Trabalho de Conclusão de Curso
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO NARRADOR DE DOIS IRMÃOS:
RELAÇÕES INTERSÍGNICAS ENTRE O ROMANCE DE HATOUM E A
ADAPTAÇÃO PARA GRAPHIC NOVEL DE MOON E BÁ.1
Kingsley Morais Resplandes de Araujo2
Profª Drª Alessandra Matias Querido3
Resumo: Milton Hatoum é um dos principais nomes do pós-modernismo brasileiro. Dois
Irmãos, seu segundo romance é uma de suas obras mais premiadas e rendeu uma adaptação
para graphic novel pelos renomados quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá. Além do ponto
central da narrativa, que é a relação conflituosa entre Yaqub e Omar, outro aspecto interessante
a se analisar na obra é a evolução da identidade do narrador no decorrer da narrativa. Essa
construção identitária, tanto no romance, quanto na adaptação para graphic novel de Dois
Irmãos é aqui analisada sob as concepções de identidade de Stuart Hall e Zygmunt Bauman,
traçando então um paralelo entre esses teóricos e a evolução da identidade do narrador através
das obras. Além disso, é interessante analisar sob o ponto de vista de Plaza e seus estudos sobre
Tradução Intersemiótica a forma como a obra de Hatoum dialoga com a adaptação de Fábio
Moon e Gabriel Bá.
Palavras-chave:Dois Irmãos. Pós-modernidade. Identidade. Tradução Intersemiótica. Graphic
Novel.
THE CONSTRUCTION OF IDENDITY OF NARRATOR IN TWO BROTHERS:
INTERSIGNAL RELATIONS BETWEEN THE HATOUM’S ROMANCE AND THE
ADAPTATION TO GRAPHIC NOVEL OF MOON AND BÁ. Abstract: Milton Hatoum is one of the most expressive authors of Brazilian postmodernism.
Two Brothers, his second novel is one of his most awarded works and was adapted as graphic
novel by the renowned comic writers Fabio Moon and Gabriel Bá. Besides the central point of
the narrative, that is the conflicting relationship between Yaqub and Omar, another interesting
point is analyzing the work based on the evolution of the narrator's identity in the course of
the narrative. This identity construction, both in the novel and in the adaptation to the graphic
novel of Dois Irmãos, is analyzed at this paper based on the conceptions of identity of Stuart
Hall and Zygmunt Bauman, thus drawing a parallel between these theorists and the evolution
of the identity of the narrator at the works. In addition, it is interesting to analyze by the Plaza
and his studies of Intersemiotic Translation, the dialogue between Hatoum works and the
adaptation of Moon and Bá.
Keywords: Two Brothers. Postmodernity. Identity. Intersemiotic Translation. Graphic Novel.
1 Artigo apresentado ao Curso de graduação em Letras Português da Universidade Católica de Brasília – UCB,
como requisito parcial para obtenção do Título de Licenciado em Língua Portuguesa e respectivas literaturas.
2 Graduando do Curso de Letras Português da Universidade Católica de Brasília – UCB 3 Professora dos Cursos de Letras Inglês e Letras Português da Universidade Católica de Brasília – UCB
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
2
1 INTRODUÇÃO
A obra Dois Irmãos de Milton Hatoum é bastante conceituada e reconhecida no meio
acadêmico. Sua narrativa se perfaz sobre a história de uma família desestruturada pelo
relacionamento conturbado entre os gêmeos Yaqub e Omar. Em meio à narrativa vamos
conhecendo a história de Nael, filho da empregada, que, enquanto narra os eventos passados,
encontra dentro da história da família a sua própria história. A narrativa de Dois Irmãos se
diferencia por trazer, em alguns momentos, memórias que não são de quem as está contando, e
sim memórias ouvidas pelo narrador. A partir da história, Nael começa a construir sua própria
identidade e essa ideia flerta com o que entenderemos sobre Pós-Modernidade em Zygmunt
Bauman, Stuart Hall e Linda Hutcheon.
Dois Irmãos foi, em 2015, objeto de uma adaptação feita por Fábio Moon e Gabriel Bá
para graphic novel. O projeto foi premiado com Eisner Awards4 de Melhor Adaptação no ano
de 2016. Este texto é fruto de um pensamento artístico denominado por Jakobson e Plaza como
Tradução Intersemiótica, e traz um jogo intersígnico entre os recursos textuais do texto original
e os recursos gráficos acrescidos na adaptação. A obra de Moon e Bá traz uma adaptação da
obra de Milton Hatoum, remetendo-se ao texto fonte durante todo o decorrer da construção da
narrativa em arte sequencial.
O objetivo é então compreender de que forma esses aspectos se constroem e dialogam
nas duas obras, trazendo um estudo teórico acerca das questões da identidade na pós-
modernidade e como elas se relacionam como texto fonte e objeto traduzido. Esse diálogo entre
as duas obras é importante para que possamos compreender que as manifestações literárias
dialogam com diversas outras formas de produção artística. Para isso recorremos aos aspectos
linguísticos que regem uma tradução objetivando o diálogo entre a literatura e outras formas de
manifestação artística, aqui os quadrinhos.
2 A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO INDIVÍDUO PÓS-MODERNO.
O pós-modernismo surge na época da segunda grande guerra e das grandes corridas
espaciais. Simbolicamente, o movimento, como propõe Santos, se originou mais precisamente
“às 8 horas e 15 minutos do dia 6 de agosto de 1945, quando a bomba atômica fez boooom
sobre Hiroxima”, tendo sido gerado na década de 50 para dar sua luz ao mundo na década
4 O Eisner Awards é o principal prêmio de quadrinhos dos EUA e acontece anualmente durante a San Diego
Comic-Con. (GAGLIONI, 2016)
3 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
seguinte (SANTOS, 1997, p. 20). A sociedade da informação se via colocada então em meio a
uma guerra de proporções nucleares, que colocaria o relógio do fim do mundo mais próximo
da meia-noite. Já a pós-modernidade se inicia antes, após o fim das revoluções industriais.
Essa proximidade das últimas badaladas do relógio do fim do mundo fez com que o
individualismo do modernismo se tornasse ainda mais ávido dentro das condições pós-
modernas. A busca por uma identidade individual se tornou mais explícita, e deixou de ser
válido viver em sociedade sem se destacar, sem pertencer a uma tribo, sem possuir seu lugar no
mundo. Nesse contexto se estabelece a pós-modernidade. Toda a volatilidade e o
desajustamento das relações humanas se fazem presentes na produção cultural.
O que difere, então, a modernidade da pós-modernidade é que durante os anos em que a
primeira perdurou, foi estabelecida uma nova estética nas produções culturais, por objetivo de
se seguir como um movimento de vanguarda ao que vinha sido produzido até então.
Contrariamente, como defendido por Bauman (1998) em o Mal-Estar da Pós-Modernidade,
essa concepção de movimentos de vanguarda não se aplica à forma como a pós-modernidade
se estabelece como contexto histórico ou cultural.
O movimento não se contrapõe ao que fora produzido por provocação estética, como
ocorrera no modernismo, mas vê a necessidade da construção cultural já posta, como forma de
diálogo ao que se vive contemporaneamente à sua produção. Não se ignora o passado para se
construir um futuro, mas se considera aquilo que fora vivido, dentro de uma sociedade cultural,
para construir identitariamente a figura que se deseja.
E não se considera apenas aquilo que fora vivido pelo protagonista do drama de ações, e
sim se leva em conta tudo o que o circunda, sejam suas próprias memórias, ou memórias que a
ele foram cedidas, ou contadas. Memórias que pertençam aos seus antepassados diretos, ou ao
local em que vivera, colocando o indivíduo sobre um multiperspectivismo cultural que permeia
a construção do seu próprio ser. Esse multiperspectivismo pode provocar certo nível de
ambiguidade ou de subjetividade ao que se atenta a ser contado.
Quando se atenta a analisar as produções narrativas pós-modernas, observa-se que as
perspectivas das narrativas não se limitam à ideia de um único autor para toda a narrativa e a
figura do narrador se dissolve em meio à forma como os fatos são contados.
Outra conseqüencia5 dessa ampla indagação pós-moderna sobre a própria natureza da
subjetividade é o freqüente desafio às noções tradicionais de perspectiva,
especialmente na narrativa e na pintura. Já não se presume que o indivíduo preceptor
seja uma entidade coerente, geradora de significados. Na ficção os narradores passam
5 A obra consultada é anterior à vigência do Novo Acordo Ortográfico.
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
4
a ser perturbadoramente múltiplos e difíceis de localizar (como em The White Hotel
[O Hotel Branco], de D. M. Thomas) ou deliberadamente provisórios e limitados –
muitas vezes enfraquecendo sua própria onisciência aparente [...]. (HUTCHEON,
1991, p. 29)
Entretanto a própria questão da veracidade é posta à prova na pós-modernidade, não
apenas por se tratar de ficção, mas por toda a subjetividade que abrange o movimento. O
movimento é subjetivo por colocar que “o pós-modernismo ensina que todas as práticas
culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de
sua produção ou de seu sentido” (HUTCHEON, 1991, p. 15). A pós-modernidade traz, antes
mesmo da concepção do pós-modernismo, a construção da identidade partindo desses
contextos. Esses subtextos ideológicos vêm sobretudo de experiências vividas ou de imposição
política, essa bastante ambígua devido a polaridade experimentada nos cenários pós-guerra e
são então os responsáveis pela construção da identidade cultural do indivíduo pós-moderno.
A própria construção dessa identidade está diretamente ligada às questões da pós-
modernidade. “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. ” (HALL, 2006,
p. 13). O deslocamento dessas identificações nos faz acreditar que a identidade não é uma ideia
fixa e depende de diversos contextos externos ao indivíduo sobre o qual se quer construir uma
identidade. Tanto Stuart Hall (2006), em Identidade Cultural na Pós-Modernidade, quanto
Zygmunt Bauman (2005) em Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi colocam a identidade
do indivíduo pós-moderno como incerta e variável.
Hall (2006) defende que a ideia da identidade unificada é uma ilusão e que a mesma se
modifica conforme a exposição do indivíduo a fatores sociais, já Bauman (2005) vai além e
coloca que a questão do pertencimento também é oscilante e mostra que tanto as questões da
identidade quanto do pertencimento estão plenamente associadas ao conjunto de escolhas feitas
pelo indivíduo ao longo de sua história.
[...]o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são
garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as
decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age - e a determinação de se manter firme a tudo isso - são fatores cruciais tanto para
o “pertencimento’ quanto para a “identidade”. [...] (BAUMAN, 2005, p. 17)
É importante se passar pela questão do pertencimento, pois ela se faz necessária para
construir a ideia de identidade. A ideia do pertencimento a um lugar, seja uma casa ou nação,
ou a um grupo, núcleo familiar, por exemplo, é primordial para que o indivíduo comece a
construir de um ponto a concepção da sua identidade. Pertencer a uma nação, por exemplo,
5 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
remete ao fato de que aquele país em questão faz parte da identidade, e a cultura daquele povo
é importante para a formação da identidade cultural daquele indivíduo.
Logo perante a uma grande quantidade de novas informações as quais o indivíduo é
subjugado, cabe ao mesmo filtrar o que daquilo é essencial para a construção da sua identidade
pessoal, como defende Bauman:
[...]“a “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto;
como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa
construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-
la lutando ainda mais - mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre
a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser,
suprimida e laboriosamente oculta. [...] (BAUMAN, 2005, p.22)
Por isso a identidade é tão mutável, pois um indivíduo pós-moderno é continuamente
exposto a novos fatores sociais. A própria ideia de cultura nacional tem passado por mudanças
diretamente influenciadas pela variabilidade de informações ao qual uma comunidade é
submetida e toda essa quantidade de informações é definidora para a construção da identidade
do ser social.
3 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDIVIDUAL DO NARRADOR EM DOIS
IRMÃOS
Em seu romance de estreia, Milton Hatoum flerta com ideias pós-modernas, mas é em
Dois Irmãos, que toda a questão da identidade individual se perpetua. Hatoum, arquiteto por
formação, atuou como jornalista cultural e professor universitário, mas foi como escritor que
ganhou reconhecimento no país e através do mundo. Debutou na literatura com Relato de um
Certo Oriente e ganhou reconhecimento com Dois Irmãos, seu segundo romance, publicado no
ano 2000, em meio a virada do milênio.
A obra se enreda na Manaus pós-guerra, sobretudo em torno da história de uma família
desestruturada pelo desafeto entre os gêmeos Yaqub e Omar, entretanto, a narrativa se
desenvolve como um álbum de retratos de família, ou como uma coletânea de lembranças, que
não necessariamente pertencem ao narrador, mas que é apresentada por ele no decorrer da obra.
Estruturada em meio às lembranças de Halim e Domingas, e do próprio narrador, a narrativa de
Dois Irmãos segue distante de abraçar uma cronologia, ainda que mais adiante comece a adotar
uma sequência de fatos.
A obra é introduzida com um breve prólogo mostrando o desfecho da personagem Zana,
mãe dos gêmeos, que a frente vemos que foi uma das que mais teve a vida alterada pelo
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
6
relacionamento dos imãos. O retorno de Yaqub do Líbano é o primeiro fato contado dentro da
história, e até esse ponto é transmitida ao leitor a sensação de onisciência intrusa do narrador,
que sob a conceituação de Friedman (2002), em O ponto de vista na ficção: O desenvolvimento
de um conceito crítico, é o narrador que tem ciência de todos os fatos da história, sob todas as
perspectivas superando o espaço-tempo e que se permite a lançar comentários (intrusos) sobre
o que é contado, gerando ambiguidade sobre a veracidade dos fatos, fator importante para a
narrativa de Dois irmãos.
Entretanto a onisciência do narrador em questão é logo quebrada quando a narrativa
começa a desenvolver indícios do narrador “Eu” como testemunha, quando parte para o relato
de Domingas. No momento em questão fica claro que o narrador é personagem da obra, mas
como parte do relato de outra personagem para prosseguir a narrativa, o mesmo demonstra
indício de não estar totalmente inteirado no que vai ser contado, ainda em Friedman (2002), é
aquele narrador que exerce seu próprio direito como personagem dentro da história, nunca
inteiramente envolvido nos fatos que circundam o núcleo de protagonistas da obra.
A partir desse ponto da história, o narrador que até então se mostrava onisciente, se põe
como personagem da obra, observando, sempre à espreita, a história da família e constituindo
a partir dali memórias que eram suas e não reproduções de memórias ouvidas de Domingas ou
de Halim.
Isso foi Domingas que me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi,
porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas
fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas até o lance final. (HATOUM,
2000)6
Quando o narrador se firma como personagem, apesar de aparentemente não ser
protagonista da narrativa em questão, o narrador passa a se mostrar como narrador protagonista,
apresentando ao leitor um ponto de vista limitado aos seus próprios pensamentos e próprias
conclusões sobre o que é contado, como defendido por Friedman (2002). A figura do narrador
é envolta em certo mistério na narrativa do texto literário de Dois Irmãos, entretanto ao longo
do texto vamos tomando conhecimento de quem é o narrador da obra, e em certo ponto até suas
motivações. É na evolução do narrador então que vemos toda a caracterização de uma
identidade individual.
O narrador se mostra presente nos acontecimentos de Dois Irmãos a partir do terceiro
capítulo da obra. Sempre posposto à existência dos gêmeos, tanto de Omar, que ainda se fazia
6 Obra consultada em formato .mobi no Kindle, justificando assim a ausência de paginação.
7 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
presente na casa da família, quanto do gêmeo mais velho, Yaqub, que foi tocar uma nova vida
em São Paulom, e sempre limitando o leitor ao seu ponto de vista sobre o que é contado. A
ausência do primogênito, entretanto, nunca foi o suficiente para apagar sua existência nas
lembranças daqueles que ainda permaneciam na casa.
Cresci vendo as fotos de Yaqub e ouvindo a mãe dele ler suas cartas. Numa das fotos,
posou com a farda do Exército; outra vez uma espada, só que agora a arma de dois
gumes dava mais poder ao corpo do oficial da reserva. Durante anos, essa imagem do
galã fardado me impressionou. Um oficial do Exército, e futuro engenheiro da Escola
Politécnica…
Já Omar era presente demais: seu corpo estava ali, dormindo no alpendre. O corpo
participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna. Durante
a manhã, ele se esquecia do mundo, era um ser imóvel, embrulhado na rede. No
começo da tarde, rugia faminto, bon-vivant em tempo de penúria. Não participava da
leitura das cartas, ignorava o oficial da reserva e futuro politécnico. No entanto,
mangava das fotografias expostas na sala. “Um lesão com pinta de importante”, ele
dizia, e com voz tão parecida com a do irmão que Domingas, assustada, procurava na
sala um Yaqub de carne e osso. A mesma voz, a mesma inflexão. Na minha mente, a
imagem de Yaqub era desenhada pelo corpo e pela voz de Omar. (HATOUM, 2000)
Assim, o narrador ia acompanhando tudo o que acontecia dentro da casa. Ouvia as cartas
que Yaqub, cada vez menos frequente, enviava à família que permaneceu em Manaus. Via os
escárnios e insultos de Omar aos pais. Via Zana, a mãe dos gêmeos, de certa forma, ainda com
zelo excessivo pelo caçula e com um orgulho demasiado do primogênito. Halim, o pai, já
começava a demonstrar não suportar mais as atitudes de Omar. E Domingas ainda sentia a
ausência de Yaqub na casa.
A identidade do personagem narrador é construída conforme a história evolui. A narrativa
de Hatoum explora bem essa questão da identidade do narrador. Aos poucos, ao longo da obra,
o narrador, enquanto personagem, começa a demonstrar questionamentos acerca que quem ele
é, da origem que até então lhe vinha sendo negada, a ideia do pertencimento, vista em Bauman
(2005) lhe vinha sendo negada, suas origens não eram notadas naquele ambiente, e tampouco
seu único núcleo familiar conhecido até então, que era Domingas, se limitava a figura da criada,
subordinada aos acontecimentos que permeavam a família principal.
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as
origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados,
nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal de origem. É como esquecer
uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens o acolhe.
Anos depois desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu
tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu
pudesse descobrir a verdade. (HATOUM, 2000.)
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
8
Em certo da obra, o relato acerca da vida dos irmãos ganha um novo personagem. A gesta
do narrador passa a se misturar à história dos irmãos que o mesmo se dispôs a relatar. O mesmo
passa a indagar mais sobre sua própria história de vida, e começa a recolher, dentro dos relatos
da história que não era sua, fragmentos que se encaixavam dentro de sua própria história de
vida. Ainda a espreita dos dramas familiares, este sabia, ainda que pouco, que pertencia àquela
casa.
O sentimento de pertencimento é um aspecto importante dentro da construção identitária
do narrador de Dois Irmãos. Bauman (2005), em sua entrevista para Benedetto Vecchi coloca
que a questão do pertencimento, apesar de estar ligada a identidade, não depende
necessariamente dela, o pertencimento está necessariamente vinculado ao ponto em que
questões externas interferem no desenvolvimento do indivíduo como ser social, e nesse aspecto
o sentimento de pertencimento se encaixa bem no desenvolvimento da identidade do narrador
como personagem da obra.
Como aspecto externo ao narrador como personagem da obra, o mesmo então estivera
fadado desde o nascimento a pertencer àquela casa, não só como filho da criada, mas como
fruto daquele local, como Zana entregara a ele em seu leito de morte. “Quando tu nasceste, eu
perguntei: E agora, nós vamos aturar mais um filho de ninguém? Halim se aborreceu, disse que
tu eras alguém, filho da casa…” (HATOUM, 2000). Halim tinha consciência da condição do
filho da criada, de como ele havia sido gerado, isso Domingas contou a ele, condições que por
muito o próprio narrador não viria a saber, àquela casa o garoto pertencia e mesmo que à
margem do restante da família, esse direito não lhe fora negado. O menino, fruto de violência
sexual, era filho de um dos gêmeos.
Ainda que como fato externo, o pertencimento do narrador como personagem àquela casa
ia ganhando seu espaço ao longo do tempo. O garoto que até certa idade dividia com a mãe,
Domingas, um quarto nos fundos da casa, ganhou para si um espaço seu, espaço onde começaria
a construir sua própria identidade. Espaço ao qual ele pertencia, e mesmo que por sob
circunstâncias externas àquele local ele se fez pertencer. O quarto fora designado a ele por
Halim que ao longo de toda a obra demonstra apreço pelo garoto.
A medida que a narrativa vai evoluindo, vamos acompanhando o crescimento do narrador
como personagem da obra, e apesar de estar se tornando um homem, o garoto ainda se via sob
ordens dos donos da casa. Cada morador da casa em questão dava ao narrador uma diferente
perspectiva para a construção de sua identidade, como vimos em Hall (2006) todos os fatores
sociais a que um indíviduo é exposto são essenciais para a sua construção identitária.
Com os habitantes da casa o garoto viveu toda sua vida. Com os habitantes da casa, o
9 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
garoto conheceu duas faces do amor materno. O amor doentio e superprotetor de Zana pelo
caçula Omar e que por vezes se demonstrava relapso pelo primogênito Yaqub, e o amor materno
distante de Domingas, que ora se mostrava preocupada demais com os acontecimentos da casa
e ora demonstrava todo o amor, diálogo e compaixão de mãe pelo próprio narrador.
Com os habitantes da casa, o garoto conheceu o amor paterno e duro que Halim
demonstrava pelos gêmeos e que por vezes se estendia até ele. Com os habitantes da casa, o
garoto conheceu o amor carnal. Com Rânia, o garoto se deixou entregar pelos recíprocos
prazeres carnais, na noite que seria a mais desejada de sua vida.
A identidade do narrador se constrói, então, ao longo da narrativa através de fragmentos
de momentos da história dos habitantes da casa que se cruzava com a sua própria história em
diversos momentos. Essa identidade não é moldada sob a ótica de uma reflexão partindo do
ponto onde a história do narrador chegou regredindo até um momento inicial, e sim o inverso,
são as várias e fragmentadas memórias contadas ao longo da trama da história que direcionam
a imagem final criada dos personagens, sobretudo de Nael, o narrador. Como visto em Bauman
(2005), são as peças recolhidas ao longo da história que são responsáveis pelo que conhecemos
no final.
No caso da identidade [...] o trabalho total é todo direcionado para os meios. Não se
começa pela imagem final, mas por uma série de peças já obtidas ou que pareçam
valer a pena ter, e então se tenta descobrir como é possível agrupá-las e reagrupá-las
para montar imagens (quantas?) agradáveis. (BAUMAN, p. 55, 2004)
No fim, todas as histórias contadas ao longo da trama, sejam anteriores ou posteriores ao
nascimento do narrador, são importantes para a construção da identidade dele, pois o narrador
não era apenas um a figura que habitava a casa como filho da empregada daqueles que
habitavam ali. Durante todo o tempo, o menino que ora era rejeitado pela senhora da casa, ou
visto como sombra dos acontecimentos que ali aconteciam, se descobre, pela boca da mãe
Domingas, fruto daquele lugar, descendente direto dos que lá habitavam.
“Quando tu nasceste”, ela disse, “seu Halim me ajudou, não quis me tirar de casa…
Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi no teu
batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele
me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito, eu
deixei… Seu Halim. Parece que a vida se entortou também para ele… Eu sentia que
o velho gostava muito de ti. Acho que gostava até dos filhos. Mas reclamava do Omar,
dizia que o filho tinha sufocado Zana.” Senti suas mãos no meu braço; estavam
suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a cabeça. Murmurou que
gostava tanto de Yaqub… Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava
enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano.
“Com o Omar eu não queria… Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela
algazarra, bêbado, abrutalhado… Ele me agarrou com força de homem. Nunca me
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
10
pediu perdão.” (HATOUM, 2000)
Ainda que pareça discordante às situações em que se é habitual a apresentação de uma
personagem, só conhecemos o nome do narrador após conhecer quase toda a sua história. Nael,
esse era, então, o nome do garoto que vinha contando uma história que não era a sua até então.
Sob as desestruturadas relações familiares daquela casa, o garoto foi gerado.
Dois Irmãos é uma obra de renome que possui grande destaque desde o seu lançamento.
Bastante premiada, essa é uma das obras de Hatoum que já é vista por alguns como cânone da
Literatura Nacional. Seguindo o exemplo de outras grandes obras, apesar de ser uma produção
recente, Dois Irmãos já foi alvo duas grandes adaptações, uma televisiva e uma com foco na
nona arte, a segunda, veremos a frente.
4 INTERSEMIOSE ENTRE A LITERATURA E A NONA ARTE
Apesar de hoje se demonstrar como um mercado já amplo e estabelecido, as histórias em
quadrinhos passaram por um processo de evolução para se tornarem o que são hoje. Ainda no
fim do século XIX surgiram as primeiras expressões de narrativas gráficas próximas a forma
como se conhece hoje, associando contextos narrativos a imagens. Essas narrativas logo se
tornaram comuns em jornais impressos, e foram responsáveis por dar o pontapé inicial à
produção de narrativas gráficas. Chinen, Vergueiro e Ramos (2013), em Literatura em
Quadrinhos no Brasil: Uma área em expansão, nos trazem um aparato de como foi a evolução
dessa forma de produção artística e como elas passaram a ser resultado final de processos de
adaptação.
As estruturas que hoje conhecemos como tiras foram as primeiras formas de quadrinhos
produzidas graficamente e as primeiras a terem uma ampla difusão em meios de mídia impressa,
como os jornais citados anteriormente. Com a produção de tiras, deu-se início à produção de
novelas gráficas, que eram publicadas de forma semelhantes aos romances de folhetim, onde
em cada edição de um jornal se era publicado um trecho de uma história em tiras, a serem
continuadas na edição seguinte. Esse tipo de publicação era bastante comum na Europa, logo
se popularizou com a chegada à América.
Com a vinda dessa arte para a América, o contexto histórico vivido no começo do século
XX passou a influenciar fortemente nas narrativas abordadas na produção das histórias em
quadrinhos. O contexto da primeira guerra mundial provocou então o boom dos super-heróis e
a popularização de revistas de quadrinhos no mercado editorial, nessa época surgiria então
11 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
grandes personagens como Superman, que debutou na revista ActionComics7 em 1938. A
publicação e o sucesso da ActionComics seria suficiente para impulsionar o mercado e motivar
a publicação de personagens semelhantes, surgiria daí também o emblemático Batman, na
revista Detective Comics8 de 1939, como vemos no artigo de Goida (2011) para a Enciclopédia
dos Quadrinhos. E os considerados os primeiros super-heróis da Marvel, segundo Pires (2013),
Namor e Tocha-Humana, na revista Marvel Comics9, também de 1939.
Também na década de 30 do século XX, foi realizada a primeira adaptação de uma obra
literária para quadrinhos. Essa obra era Tarzan, O Filho das Selvas, originalmente publicada no
formato pulp10 em 1912, pelo autor Edgard Rice Burroughs. A publicação era feita em tiras
através de diversos jornais, estas eram publicadas diariamente e posteriormente passariam a ser
publicadas somente aos domingos, sempre sequenciando a narrativa já iniciada na primeira
publicação, que ocorreu em 1929.
As publicações do personagem Tarzan, serviram de pontapé inicial para o mercado de
adaptações.
Com a consolidação das revistas, formato com o qual os quadrinhos começaram a ser
publicados em meados da década de 1930, as adaptações de obras literárias tornaram-
se mais frequentes no mercado de quadrinhos norte-americano. Transpor para outra
linguagem um texto que já passara pelo crivo do público parecia uma fórmula muito
segura de atrair leitores e agradar aos críticos que acusavam os quadrinhos de afastar os
jovens dos romances em sua versão original. (CHINENN, VERGUEIRO, RAMOS,
2013)
Em termos linguísticos consideramos essas adaptações de obras literárias para quadrinhos
como uma forma de tradução, definida por Jakobson (2007) como tradução inter-semiótica11
ou transmutação, que "consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de
signos não-verbais". Embora os quadrinistas em sua maioria ainda utilizem de signos verbais
para expressar falas ou onomatopeias, essa forma de tradução abre espaço para o profissional
repensar o que fora posto num recurso textual para transpô-lo em um ambiente gráfico.
7 Revista da Editora DC Comics, publicada no Brasil sob a mesma alcunha pela editora Panini Comics. 8 Revista da Editora DC Comics, publicada no Brasil sob a mesma alcunha pela editora Panini Comics. 9 Revista da Editora Marvel Comics fora de circulação no país. 10 As pulp magazines devem o seu nome ao facto de serem impressas em papel de polpa muito barato pois isso
permitia que fossem vendidas a um preço muito baixo e, assim, acessível ao público algo desfavorecido da
sociedade americana da época. Podiam comprar-se nas bancas de jornais e em tabacarias e continham histórias
com enredos simples, plenas de acção e de leitura muito fácil. Em termos gráficos, estas publicações viviam
essencialmente das suas capas com desenhos atraentes, exóticos, sensacionalistas e até chocantes,
frequentemente com imagens de mulheres fatais, donzelas em perigo ou mulheres objecto de desejo, assim como
desenhos de criaturas fantásticas ou cenas de aventuras, dependendo do género de histórias que incluíam. No seu
interior, todo o espaço deixado livre pelas histórias era ocupado por anúncios a todos os tipos de produtos.
(MATEUS, 2007) 11 Em Jakobson (2007) tradução inter-semiótica. Como notaremos a frente, Plaza denominará sem o hífen.
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
12
Sob uma conceituação de Plaza (2003) podemos entender então essas adaptações como
processos, não meramente do pensamento (como a tradução de um pensamento em signos
linguísticos verbais), mas sim como um processo artístico, pois conta com o auxílio de um
recurso visual para a transcrição da ideia colocada no texto ou o inverso.
Nas primeiras décadas do século XX essas adaptações eram bastante populares, sobretudo
no mercado estadunidense. Quando em solo nacional algumas editoras também investiram na
adaptação de obras nacionais, que inicialmente se deram de forma tímida, mas logo foram
ganhando atenção do público.
Obras dos principais cânones da literatura brasileira foram adaptadas para graphic novels
ao longo do último século e nas primeiras décadas do século em questão. Seja por acréscimo
de material gráfico ao texto original, como em O Alienista, de Moon e Bá, ou por adaptação
integral da obra, esse mercado possui uma ampla gama de publicações que vêm ganhando
reconhecimento nacional e internacional. Essas adaptações tiveram investimento do Ministério
da Educação, como forma de incentivo à leitura dos clássicos, como mostram Chinen,
Vergueiro e Ramos (2014).
Para bem compreendermos como se dá a adaptação de Dois Irmãos temos que entender
o jogo instersígnico que se estabelece na construção da adaptação da obra. Júlio Plaza (2003)
não entende a adaptação como um processo que se encaminha por um único meio para se
estabelecer, ele vai além e entende que para entender a teoria de um processo de adaptação, é
essencial se levar em consideração o texto original e o texto que surgiu como fruto da adaptação,
e a forma como ambas se relacionam, o trânsito ocorre simultaneamente entre o material
original e o material adaptado.
O processo de tradução intersemiótica12 é diferenciado de um processo de tradução inter
ou intralingual, pois vai além da relação entre signos linguísticos verbais. O recurso da imagem
é comumente presente quando lidamos com uma adaptação, seja essa imagem cinematográfica,
artística ou gráfica, como no caso das narrativas sequenciais, sobretudo porque Plaza defende
que a tradução intersemiótica se dá entre signos, não havendo a necessidade de um signo
linguístico verbal no texto fonte ou no texto adaptado para que o processo ocorra.
Plaza (2003) trata da tradução intersemiótica sob três tipologias diferentes, a Tradução
Icônica, a Tradução Indicial e a Tradução Simbólica. A Icônica “tende a aumentar a taxa de
informação estética” (PLAZA, 2003, p. 93) e “produzirá significados sob a forma de qualidades
e de aparências entre ela própria e seu original” (PLAZA, 2003, p. 93). A Indicial “terá uma
12 Em Plaza (2003) tradução intersemiótica
13 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
relação de contiguidade por referência que se resolverá na sua singularidade, pois acentuará os
caracteres físicos do meio que acolhe o signo” (PLAZA, 2003, p. 93). A Simbólica “se
relacionará com seu objeto por força de uma convenção, sem o que uma conexão de tal espécie
não poderia existir, pois o símbolo consistirá numa regra que determinará sua significação”
(PLAZA, 2003, p. 93).
A adaptação da obra de Dois Irmãos se dá num jogo entre transcrição, transposição e
transcodificação que pela conceituação de Plaza são os nomes que se dão para os processos de
Tradução Icônica, Indicial e Simbólica, respectivamente. Ou seja, quando vamos analisar o
objeto resultante de um processo de adaptação, não se pode tomar necessariamente a obra como
um todo, pois as diversas tipologias da tradução podem se apresentar no decorrer do texto
adaptado.
O fato de estarmos lidando com uma graphic novel permite que o jogo de signos se torne
ainda mais expressivo que em outros objetos adaptados, pois como no cinema, a relação
intesígnica entre o verbal o não-verbal é constantemente presente, salvo algumas exceções.
Oliveira (2014) nos traz uma ideia de como isso acontece.
(...) no caso da quadrinização de obras da literatura ou o diálogo entre ambos os meios,
ocorre a transformação da informação verbal literária em uma narrativa construída por
meio de uma sequencialidade de imagens, na qual a relação entre as linguagens verbal
e não verbal se torna mais importante do que cada uma considerada separadamente.
(OLIVEIRA, 2014, p. 41).
5 O JOGO INTERSÍGNICO ENTRE A OBRA DE HATOUM E A ADAPTAÇÃO DE
MOON E BÁ.
A adaptação de Dois Irmãos realizada por Fábio Moon e Gabriel Bá, pauta-se diretamente
sobre a obra de Hatoum. A adaptação segue a narrativa de forma semelhante à forma como
ocorre na obra literária, distanciando-se do original em mínimos aspectos, apenas para tornar a
narrativa mais viável dentro da recursividade gráfica na qual é apresentada. Em momentos da
graphic novel, vemos claramente a utilização do recurso de transposição de trechos da obra
literária, que associados a recursividade gráfica trazem uma nova percepção da narrativa
construída por Hatoum.
Recordamos que como foi abordado anteriormente, a figura de Nael, o narrador, é uma
das mais interessantes dentro da narrativa, e assim se segue na adaptação de Moon e Bá. A
estrutura de apresentação do narrador como personagem se segue semelhante à forma como
acontece no original de Hatoum.
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
14
Nos dois primeiros capítulos, não se vê o narrador incluído como personagem na
narrativa, dando ao leitor a sensação de estarmos lidando com um narrador observado. Ao fim
do segundo capítulo, tanto da obra literária, quanto da graphic novel, temos o conhecimento de
que a história vem sendo contada por Halim ao narrador. O terceiro capítulo da obra literária é
onde começamos a ver claramente que o narrador é personagem da história, os traços de
primeira pessoa se tornam explícitos no capítulo em questão da obra literária. Também no
terceiro capítulo da adaptação, a presença de um novo personagem fica explícita logo no
primeiro quadro.
Figura 1. (MOON, BÁ, 2015)13
Na Figura 1 podemos observar um processo de Tradução Simbólica. Ainda que não
tenhamos na obra literária um momento que marque explicitamente, como no quadrinho em
questão, a inclusão do narrador como personagem da obra, mas Moon e Bá optaram por
explicitar, através do recurso gráfico, essa inclusão, que acontece de forma gradativa no
romance. A ideia da figura 1 é transparecer a inclusão da presença do personagem, até então
desconhecido dentro da narrativa.
Ainda no capítulo em questão, começamos a observar o fato de o narrador ser aquele que
observou de dentro, ainda que distante, todos os acontecimentos da casa onde se ambienta a
história. O narrador crescia à sombra da presença dos gêmeos dentro da casa, tanto da presença
física de Omar, quanto da que ele e as cartas e fotos de Yaqub construíam do gêmeo mais velho.
13 A publicação da Quadrinhos na Cia. de Dois Irmãos não possui paginação.
15 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
Figura 2. (MOON, BÁ, 2015)
Figura 3. (ibid., 2015)
Na figura 2, vemos um processo de tradução icônica isomórfica, que é para Plaza (2003)
aquela que busca similaridade entre o material original e o texto adaptado respeitando os
recursos de cada um dos materiais em questão, sem repetir todo o material original. Nesse ponto
os quadrinistas buscam similaridade com a cena descrita no texto fonte, o romance de Hatoum.
Na figura em questão nota-se que os quadrinistas utilizam no recurso gráfico para reproduzir a
cena descrita verbalmente pelo narrador do romance.
Vemos que a figura 2 segue a descrição do parágrafo, o menino Nael, a admirar as fotos
de Yaqub na parede, dentre elas a foto de Yaqub descrita no romance de Hatoum, e ainda usa
de parte do trecho da obra literária como recurso do quadrinho, remetendo a tradução indicial
topológica-metonímica que para Plaza (2013) é aquela que busca contiguidade com o texto
original por vezes optando por repeti-lo no material adaptado. Na figura 3 temos o recurso da
tradução indicial topológica homeomórfica, onde os autores optam por repetir inteiramente no
recurso gráfico aquilo que está sendo repetido do material original.
Nael, dentro da graphic novel, é, na maioria das vezes, representado em segundo plano,
ou como uma figura de menor dimensão ou de menor importância dentro dos enquadramentos
de cena criados por Moon e Bá no começo da história, como é possível observar nas figuras 2
e 3. Sua presença era considerada de menor importância pelos fatos e acontecimentos da
família, demonstrando que por vezes o menino não se sentia parte daquele ambiente, aqui o
texto adaptado remetendo às questões de pertencimento apresentadas anteriormente. O narrador
é sempre representado como uma figura que está sempre observando os fatos que circundam a
família oriunda da casa, como observado na figura 4.
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
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Figura 4. (MOON, BÁ, 2015)
A narrativa da graphic novel, assim como a do romance de Hatoum, acompanha o
crescimento de Nael. Os traços do garoto, apesar de não se destoarem da caracterização feita
pelos autores, mudam a fim de apresentar o crescimento cronológico do personagem narrador.
O narrador deixava de ser um menino e à medida que crescia se tornava uma figura de maior
importância dentro do ambiente onde estava incluso. Deixava de ser o garoto que se permitia
observar de fora e começava a fazer parte daquela história.
O relacionamento dele com Halim e com Yaqub foram importantes para esse
desenvolvimento, os autores nesses trechos, optam por colocar Nael no mesmo plano que os
personagens, deixando transparecer o crescimento do narrador como personagem da obra, como
nas figuras 5 e 6, onde observamos que os dois personagens tratam Nael como iguais. Ainda
que o momento em questão entre Yaqub e Nael não transpareça tal ideia no trecho do romance
de Hatoum, a colocação de ambos no mesmo enquadramento, a ideia dos dois sentados juntos
a mesa, na figura 5, e dos braços de Yaqub, aos ombros de Nael, na figura 6, trazem a sensação
de igualdade entre as personagens, demonstrando a crescente importância do narrador como
personagem através da obra.
Naqueles dias o que mais me impressionou foi a obstinação de Yaqub pelo trabalho.
E também a coragem. Ele passava uma boa parte da noite trabalhando, a mesa da sala
coberta de folhas quadriculadas, cheias de números e desenhos. Levantava-se às
cinco, quando só eu e Domingas estávamos acordados. Às seis, me convidava para
sentar à mesa do café da manhã. (HATOUM, 2000)
17 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
Figura 5. (MOON, BÁ, 2015)
Mesmo assim, Yaqub não se intimidou com os veículos verdes que cercavam as praças
e o Manaus Harbour, com os homens de verde que ocupavam as avenidas e o
aeroporto. Nem mesmo um diabo verde o teria intimidado. Eu não queria sair de casa,
não entendia as razões da quartelada, mas sabia que havia tramas, movimento de
tropas, protestos por toda parte. Violência. Tudo me fez medo. Mas ele insistiu em
que eu o acompanhasse: “Já fui militar, sou oficial da reserva”, me disse orgulhoso.
(HATOUM, 2000)
Figura 6. (MOON, BÁ, 2015)
Em termos, a construção dos trechos trata de uma transposição do texto original, mas a
sensação transparecida no enquadramento do trecho da adaptação é simbólica, o sentimento é
subjetivo, mas através do recurso gráfico, os autores da adaptação conseguem transparecer toda
uma construção de sentidos para tal. Além do recurso de tradução simbólica temos novamente,
em ambos os quadros os processos de tradução indicial topológica metonímica, pois nesses
momentos os autores optam tanto por repetir parte do material original quanto por acrescer
informações no novo material, buscando proximidade ao que é descrito no texto fonte.
A Construção da identidade do Narrador de Dois Irmãos
18
Figura 7. (ibid., 2015)
A exposição de Nael aos às perspectivas dos diversos personagens do material adaptado,
que se repetem do texto original, retomam novamente a construção do ser pós-moderno
apresentado por Hutcheon (1991) que é se constrói sob a várias perspectivas em que é
apresentado. Além disso a diversidade de novos acontecimentos em que Nael é exposto tanto
no material adaptado quanto no texto original tornam sua construção identitária variável e
mutável pois como vimos em Hall (2006), a identidade é passível de mudança conforme o
indivíduo é exposto à novos fatores.
Por fim, por mais que indivíduo pós-moderno recorra aos meios para construir sua própria
identidade, como visto em Bauman (2005), a identidade final é decidida perante ao que fora
construído a partir dos acontecimentos passados. Vários foram os momentos vividos por Nael,
e os mesmos são relatados dentro da obra, mas sua história culmina em um final que ele mesmo
optou por seguir. Distante das lembranças da casa onde viveu. Sozinho.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o presente artigo podemos concluir que a literatura caminha em constante diálogo
com outras formas de manifestações artísticas. As produções literárias se perpetuam por si
próprias ou traduzidas em outras formas de manifestação, seja por analogias ou pela própria
reprodução do texto original, como vimos nas tipologias de Tradução Intersemiótica postas por
Plaza (2003). As adaptações são, então, uma forma de diálogo direto entre o texto literário e
outros meios de produção artística que trazem ao texto literário novos recursos que vão além
das páginas escritas dos livros.
É possível observar que toda a ideia de construção identitária presente na pós-
19 Kingsley Morais Resplandes de Araujo
modernidade é vista em Dois Irmãos de Hatoum, e que todo o conflito de identidade vivido por
Nael na obra literária é posto através dos recursos gráficos na adaptação de Moon e Bá. Mais
que ilustrar, Moon e Bá recontam a história de Dois Irmãos utilizando toda a recursividade
gráfica que narrativas de arte sequencial podem proporcionar. A identidade do narrador vai
sendo construída por ele e sendo descoberta pelo leitor conforme os fatos são contados, e essa
construção de fatos nos remete à ideia de identidade proposta por Bauman em Identidade:
Entrevista a Benetto Vecchi (2005).
Os processos de Tradução Intersemiótica de Jakobson (2007) e Plaza (2003) são
importantes para que possamos compreender como o processo de adaptação se faz em Dois
Irmãos, partindo do original de Hatoum e como ele se relaciona com a graphic novel de Moon
e Bá. Vimos que dentro desse processo algumas ideias se repetem ou se revistas sob um novo
ponto de vista, visto a permissividade dos recursos do objeto traduzido.
Esse diálogo entre literatura e outras produções artísticas se faz interessante pois a partir
dele podemos analisar como uma estilística literária se faz presente em outras manifestações
artísticas, levando sempre em consideração os recursos cabíveis em cada ambiente de produção.
Todos os fatos ocorridos na casa e a relação de Nael com os moradores eram importantes
para a construção da identidade do narrador. Hatoum em seu romance elabora toda uma
construção de sentidos e um jogo de memórias para construir a identidade desse narrador que
apresenta a si mesmo a partir da história de outros. Fábio Moon e Gabriel Bá optam por
direcionar a história por meios semelhantes à construção do texto original, mas o recurso gráfico
visual contribui para essa construção de sentidos no texto adaptado.
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