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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018. A CONVIVÊNCIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM A FAMÍLIA AMPLIADA: O DIREITO À FORMAÇÃO DE VÍNCULOS DE AFINIDADE E AFETIVIDADE Samanta Almeida de Souza Arrais * RESUMO: Partindo de uma pesquisa teórica e bibliográfica, este artigo aborda o direito fundamental à convivência com a família extensa, assegurado a crianças e adolescentes sem distinção de nenhuma espécie, inclusive os que se encontram sob o exercício regular da autoridade parental e afastados a priori de situações de risco social, bem como as condições para o gozo dessa garantia sob a perspectiva do direito à construção do afeto como expressão do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito ao cuidado, considerando a hipótese de que negá-lo configura ato de alienação parental. Palavras-chave: Infância e Juventude. Família. Convivência Familiar. Família ampliada. Afetividade e afinidade. Direito à Construção do Afeto. Dignidade da Pessoa Humana. Cuidado. Alienação parental. ABSTRACT: Based on a theoretical and bibliographical research, this article addresses the issue of the fundamental right to family conviviality with extended family, which is assigned to children and adolescents without distinction of any kind, including those under the regular exercise of parental authority and a priori taken away from situations of social risk. It also addresses the conditions for the enjoyment of this guarantee under the perspective of the right to the construction of affection as an expression of the principle of the human dignity and the right of care, considering the hypothesis that denying it constitutes an act of parental alienation. Keywords: Childhood and Youth. Family. Family Conviviality. Extended Family. Affectivity and Affinity. Right to the Construction of Affection. Dignity of Human Person. Care. Parental Alienation. Sumário: 1 Introdução. 2 Família ampliada: Conceito, Função Social e Dever de Cuidado. 3 O Direito à Convivência com a Família Ampliada na Legislação Brasileira e na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: Abrangência. Interpretação da Norma Constitucional: Cláusula de inclusão. 4 Afetividade e Afinidade: O Direito à Construção do Afeto com a Família Extensa como Expressão dos Direitos ao Cuidado e à Convivência Familiar Plena. 5 Alienação parental da família extensa. 6 Considerações Finais. Referências Bibliográficas. * Graduada em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Analista Processual do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro desde nov. 2005. Pós-graduada em Direito da Infância e Juventude pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro IEP/MPRJ.

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

A CONVIVÊNCIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM A FAMÍLIA

AMPLIADA: O DIREITO À FORMAÇÃO DE VÍNCULOS

DE AFINIDADE E AFETIVIDADE

Samanta Almeida de Souza Arrais*

RESUMO: Partindo de uma pesquisa teórica e bibliográfica, este artigo aborda o direito fundamental à convivência com a família extensa, assegurado a crianças e adolescentes sem

distinção de nenhuma espécie, inclusive os que se encontram sob o exercício regular da

autoridade parental e afastados a priori de situações de risco social, bem como as condições para o gozo dessa garantia sob a perspectiva do direito à construção do afeto como expressão

do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito ao cuidado, considerando a hipótese

de que negá-lo configura ato de alienação parental.

Palavras-chave: Infância e Juventude. Família. Convivência Familiar. Família ampliada.

Afetividade e afinidade. Direito à Construção do Afeto. Dignidade da Pessoa Humana.

Cuidado. Alienação parental.

ABSTRACT: Based on a theoretical and bibliographical research, this article addresses the

issue of the fundamental right to family conviviality with extended family, which is assigned to

children and adolescents without distinction of any kind, including those under the regular

exercise of parental authority and a priori taken away from situations of social risk. It also

addresses the conditions for the enjoyment of this guarantee under the perspective of the right

to the construction of affection as an expression of the principle of the human dignity and the right of care, considering the hypothesis that denying it constitutes an act of parental

alienation.

Keywords: Childhood and Youth. Family. Family Conviviality. Extended Family. Affectivity and Affinity. Right to the Construction of Affection. Dignity of Human Person. Care. Parental

Alienation.

Sumário: 1 Introdução. 2 Família ampliada: Conceito, Função Social e Dever de Cuidado. 3 O Direito à Convivência com a Família Ampliada na Legislação Brasileira e na

Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: Abrangência. Interpretação da Norma

Constitucional: Cláusula de inclusão. 4 Afetividade e Afinidade: O Direito à Construção do

Afeto com a Família Extensa como Expressão dos Direitos ao Cuidado e à Convivência

Familiar Plena. 5 Alienação parental da família extensa. 6 Considerações Finais. Referências

Bibliográficas.

* Graduada em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Analista Processual do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro desde nov. 2005. Pós-graduada em

Direito da Infância e Juventude pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de

Janeiro – IEP/MPRJ.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

1 INTRODUÇÃO

A convivência familiar é direito fundamental assegurado constitucionalmente às

crianças e aos adolescentes sem distinção de nenhuma espécie, independentemente de se

encontrarem em estado de risco social ou não.

Muito se reflete sobre a importância de promover efetivamente esse direito, havendo

inúmeros e significativos trabalhos doutrinários e acadêmicos a respeito da convivência

familiar e comunitária nas hipóteses de adoção, de institucionalização e de dissolução da

unidade familiar, por separação conjugal ou falecimento de um dos genitores. Também a

jurisprudência é farta em prestigiar a convivência familiar para as crianças e os adolescentes

em tais situações.

Contudo, ante a complexidade das interações humanas e a multiplicidade de fatores

externos que as influenciam, a dinâmica das relações familiares pode gerar ruídos e conflitos

entres os membros de um mesmo grupo com efeitos negativos para a convivência familiar das

crianças e dos adolescentes que se vejam em meio aos desentendimentos dos adultos. Todas

as famílias têm problemas mais ou menos sérios e condições de enfrentamento das situações

críticas da vida, em maior ou menor proporção, de acordo com as suas peculiaridades e os

seus padrões interacionais específicos1.

O objetivo deste trabalho, portanto, é se debruçar, do ponto de vista do Direito de

Infância e Juventude na sua interface com o Direito de Família, sobre o direito à convivência

de crianças e adolescentes com a sua família ampliada nos casos em que embates domésticos

acabem por afastá-los dos parentes, em linha reta, colateral ou afim, que não integrem o

núcleo familiar próximo.

Para alcançar o desiderato proposto, adotou-se a premissa de que mesmo as crianças e

os adolescentes que estejam sob o exercício regular da autoridade parental e, portanto,

afastadas, em princípio, de condições de risco, podem sofrer restrições indevidas e ilegítimas

no seu direito à convivência familiar quando a comunicação falha ou é interrompida entre os

adultos nos intrincados meandros das relações familiares.

Neste cenário, impõe-se investigar o alcance do direito à convivência com a família

extensa, considerando que a legislação de regência requer a presença de liames de afinidade e

de afetividade como pré-requisitos para a sua garantia e partindo da suposição de que o acesso

1 MACEDO, R. M. A família do ponto de vista psicológico: lugar seguro para crescer? Cadernos de Pesquisa

Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 91, p. 68, nov. 1994. Disponível em:

<http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/877/883>. Acesso em: 15 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

à construção do afeto é expressão da dignidade da pessoa humana, desde que atendido o

interesse superior da criança e do adolescente em cada caso.

Excluem-se do escopo deste estudo, assim, situações adversas em que se evidencie

que o convívio com determinado parente não se afigura conveniente ou benéfico para o

infante seja em razão de expressa vedação legal seja em função de características pessoais do

indivíduo que desaconselhem a interação ou representem risco potencial ao menor, como, por

exemplo, os casos de drogadição, alcoolismo, envolvimento em atividades ilícitas,

acometimento de patologias incapacitantes etc.2

De tal modo, questiona-se se, em circunstâncias favoráveis, em que os interesses da

criança e do adulto sejam confluentes, é possível promover de forma efetiva o direito à

convivência familiar sem que, antes, seja oferecida oportunidade concreta às crianças e aos

adolescentes para desenvolver relações de afeto e vínculos com os parentes próximos, além

do pai e da mãe.

Em uma perspectiva mais vasta, indaga-se se dificultar ou impedir o contato regular

que viabiliza a construção dos laços afetivos configuraria ato de alienação parental e

autorizaria a aplicação de medidas para a preservação da dignidade e do melhor interesse da

criança ou do adolescente afastado da sua família extensa.

A análise e a compreensão das teses formuladas se revelam de especial proveito na

medida em que todos os membros da família têm papel indispensável no desenvolvimento das

potencialidades humanas e função social indiscutível na formação de cidadãos plenos,

compartilhando com os pais as obrigações de cuidado dos filhos menores, estabelecidas no

artigo 229 da Constituição da República em prestígio ao princípio da solidariedade familiar3.

Porém, não há disposição normativa específica sobre o tema e pouco se debate sobre

ele. São raros os estudos, inclusive na área da Psicologia, que têm como objeto a família

extensa, sobretudo incluindo membros das gerações anteriores, exceto quando residem na

mesma casa da família nuclear ou quando os avós assumem os cuidados e a educação dos

2 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. Assim como o artigo 29 não

autoriza a colocação de criança ou adolescente em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo,

incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado, as mesmas

circunstâncias devem ser exigidas para a convivência familiar. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em 21 jun. 2017. 3 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,

1988. “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o

dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 17 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

netos em substituição aos genitores4.

Na ausência de legislação especial sobre a convivência das crianças e dos adolescentes

com os parentes da família estendida além dos pais e dos avós5, afigura-se de conveniência

acadêmica pesquisar as relações de causa e efeito entre o exercício (ou não) desse direito e o

desenvolvimento físico e psíquico saudável das crianças e dos adolescentes.

Para conduzir a investigação proposta, esta análise valeu-se de pesquisa teórica,

revisão bibliográfica e raciocínio dedutivo, intentando realizar uma abordagem dialética,

qualitativa e transdisciplinar não limitada aos estatutos legais, mas incluindo aspectos sociais,

culturais e psicológicos que tangenciam o assunto em exame, avaliando-os de maneira

descritiva para, ao final, concluir que a convivência familiar deve ser assegurada da maneira

mais ampla possível sempre que atender ao interesse supremo das crianças e dos adolescentes.

Assim, o estudo aqui situado partiu da trajetória de formação pessoal e profissional da

pesquisadora e procurou elaborar, na interação entre o seu objeto e as fontes de dados

consultadas, a análise de conteúdo e a e sistematização do pensamento a partir de inferências

e interpretações dos dados coletados, tomando como exemplo o exame dos padrões de decisão

do Superior Tribunal de Justiça nos casos em que se busca a regulamentação da convivência

familiar com criança ou adolescente, com base na afetividade.

Os fundamentos examinados foram extraídos de livros da doutrina autorizada em

Direito de Família e Direito da Infância e Juventude, de artigos científicos especializados e de

publicações na área da Psicologia, bem como de consultas à base de jurisprudência eletrônica

do Superior Tribunal de Justiça e de algumas Cortes Estaduais de Justiça. Sobre eles,

empregou-se uma aproximação qualitativa e crítica com o objetivo de compreender o

conhecimento obtido e formular proposições que confirmassem ou não os pressupostos da

investigação.

2 FAMÍLIA AMPLIADA: CONCEITO, FUNÇÃO SOCIAL E DEVER DE CUIDADO

A família ampliada, extensa ou estendida é vertente familiar disciplinada no Direito de

Família, precisamente nos artigos 1.591 a 1.595 do Código Civil, que compõem o capítulo

4 MACEDO, R. M. A família do ponto de vista psicológico: lugar seguro para crescer? Cadernos de Pesquisa

Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 91, pp. 62-68, nov. 1994.

Disponível em: <http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/877/883>. Acesso em: 15 jun. 2017. 5 A Lei n.º 12.398, de 28 mar. 2011, incluiu o parágrafo único no artigo 1.589 do Código Civil, estipulando que o

direito de visitar os descendentes se estende a qualquer dos avós, a critério do juiz e observados os interesses da

criança ou do adolescente.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Das Relações de Parentesco.

Os dispositivos da lei substantiva civil anunciam objetivamente as espécies de

parentes, classificando-os conforme a linhagem e a procedência. Assim, são parentes em linha

reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes e

parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau se consanguíneos, as pessoas

oriundas de um tronco comum, mas que não descendem umas das outras, apenas

compartilham a ancestralidade.

Rolf Madaleno, relembrando Clóvis Beviláqua, registra o parentesco por afinidade, na

relação que aproxima cada cônjuge dos parentes do outro6, o qual se limita aos ascendentes,

aos descendentes e aos irmãos do parceiro, colaterais até o segundo grau, e não se extingue na

linha reta mesmo com a dissolução do casamento ou da união estável.

O parentesco será natural ou civil conforme resulte de consanguinidade ou de outra

origem, aqui incluídos os parentescos decorrentes da adoção e da socioafetividade, conforme

o entendimento consagrado no Enunciado n.º 256 do Conselho da Justiça Federal, aprovado

na III Jornada de Direito Civil7.

Para a Psicologia, a família nuclear é a unidade familiar e econômica em que a ligação

de parentesco se estende a até duas gerações e que consiste em um ou dois genitores e seus

filhos biológicos, adotados ou enteados. A família estendida (ou extensa) é grupo familiar no

qual o grau de parentesco é composto de várias gerações de avós, tias, tios, primos e parentes

mais distantes, na qual os adultos dividem, em geral, as responsabilidades pelo sustento e pela

criação das crianças e as crianças são responsáveis por irmãos e irmãs mais novos8.

Sobre a nova realidade das configurações familiares, Maria Berenice Dias sustentou

que a família constituída por pessoas que têm vínculo de parentesco entre si e pertencem a

gerações distintas configura a família parental, que pode se revelar monoparental quando um

tio assume a responsabilidade por seus sobrinhos ou um dos avós passa a viver com os netos.

6 MADALENO, R. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 480.

7 BRASIL. Conselho da Justiça Federal. III Jornada de Direito Civil. Enunciado n.º 256. “Art. 1.593: A posse do

estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”. Disponível em:

<http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/III JORNADA DE DIREITO CIVIL 2013 ENUNCIADOS

APROVADOS DE NS. 138 A 271.pdf/view>. Acesso em: 15 jun. 2017. 8 PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. O mundo da criança: da infância à adolescência. 11. ed.

Porto Alegre: AMGH, 2010. Disponível em:

<https://books.google.com.br/books?id=Mg_oPFUELcwC&lpg=PR3&ots=EiFCHIb5xh&dq=Cuidado%20F

amiliar%20e%20sa%C3%BAde%20mental%3A%20a%20aten%C3%A7%C3%A3o%20das%20fam%C3%

ADlias%20a%20seus%20filhos%20na%20inf%C3%A2ncia%20e%20na%20adolesc%C3%AAncia&lr&hl= pt-

BR&pg=PA92#v=onepage&q&f=true>. Acesso em: 30 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

A família formada apenas por irmãos chama-se de família anaparental9.

Nesse contexto, a Lei n.º 12.010/2009, que tratou sobre a adoção e convivência

familiar e promoveu alterações normativas no Estatuto da Criança e do Adolescente e em

outros diplomas legais, definiu a família ampliada como “aquela que se estende para além da

unidade pais e filhos ou da unidade do casal”, alcançando os familiares consanguíneos com

graus mais afastados de parentesco, que não integram a família nuclear: avós, tios-avós, netos,

sobrinhos-netos, irmãos, primos, tios, sobrinhos. Explicitou, ainda, o viés subjetivo do

conceito de família extensa ou ampliada, estabelecendo que a entidade é “formada por

parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de

afinidade e afetividade”.

A atualização legislativa realizou a um só tempo dois feitos relevantes. Em primeiro

lugar, incorporou o conceito ampliado que a Constituição da República atribuiu à família e a

orientação que já era adotada pela doutrina10

e pela jurisprudência pátria11

no sentido de

reconhecer o afeto como fator determinante, pressuposto fundamental e base de

sustentação das relações familiares, quer sejam conjugais, parento-filiais ou socioafetivas,

corroborando o entendimento também perfilhado pela Psicologia12

.

Ademais, preferiu a reintegração na família extensa à colocação em família substituta,

em inequívoco reconhecimento da importância daquele grupo familiar no atendimento das

necessidades das suas crianças e adolescentes, pessoas em formação que são, bem como no

cumprimento das práticas atribuídas à família pelo artigo 227 da Constituição da República,

manifestações do dever de cuidar, que o artigo 229 também da Carta Política e o artigo 22 do

Estatuto da Criança e do Adolescente incumbiram, em primeiro lugar, aos progenitores13

.

9 DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 295.

10 LÔBO, P. L. N. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. De acordo com o

autor, as características comuns que configuram as entidades familiares são a afetividade, a estabilidade e a

ostensibilidade. Disponível em:

<http://www.jfgontijo.adv.br/2008/artigos_pdf/Paulo_Luiz_Netto_Lobo/Entidades.pdf>. Acesso em: 15 jun.

2017. 11

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Sétima Câmara Cível. Apelação cível n.º

70002319580. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Porto Alegre, 16 mai. 2001. “[…] a família é vista como

uma união de afetos direcionada à realização plena e à felicidade de seus integrantes, e não mais como mero

núcleo de produção, reprodução e transferência de patrimônio, como o era até o início do século XX [...]”.

Disponível em <http://www.tjrs.jus.br/site/>. Acesso em: 15 jun. 2017. 12

MACEDO, R. M. A família do ponto de vista psicológico: lugar seguro para crescer? Cadernos de Pesquisa

Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 91, pp. 63-64, nov. 1994. “Justamente por sua natureza, a Psicologia

procura definir a família diferenciando-a de outros grupos sociais, pelo fato de os indivíduos que a compõem

estarem ligados por fortes laços de afeição e lealdade, não sendo a afiliação passível de demissão […]. Portanto,

o que caracteriza fundamentalmente a família são as relações de afeto e compromisso e a durabilidade de sua

permanência como membro”. Disponível em:

<http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/877/883>. Acesso em: 15 jun. 2017. 13

LOPES, J. F. O “Melhor Interesse da Criança” e o “Cuidado” na Interface Psicologia e Direito. In: PEREIRA,

T. da S.; DE OLIVEIRA, G. (Coord.). Cuidado e Responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 133. A autora

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Assim disciplinando, a Lei n.º 12.010/2009 fortaleceu o paradigma da proteção

integral e reforçou o valor do status e do papel da família na formação dos seus membros

menores, afirmando-a na responsabilidade parental e na prevalência da família, inseridas no

Estatuto da Criança e do Adolescente dentre os princípios que regem a aplicação das medidas

específicas de proteção dos infantes14

.

A importância da família já fora assentada pela Declaração Universal dos Direitos

Humanos em 194815

e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São

José da Costa Rica) em 196916

, as quais a professaram como a essência “natural e

fundamental da sociedade”, a merecer a proteção dessa mesma sociedade e do Estado. Nessa

toada, o legislador constituinte de 1988 reconheceu a família como base da sociedade,

conferindo-lhe especial proteção por parte do Estado17

.

Esse conjunto de regras protetivas tem por objetivo assegurar à família o exercício das

suas funções estruturantes como célula-mãe da sociedade, dentre elas a formação, a

organização e a manutenção da própria sociedade, conforme enunciado por especialistas em

ciências sociais e humanas18

. No dizer de Ana Rita Coutinho Xavier Naves e Laércia Abreu

Vasconcelos, “a família funciona, dessa forma, como um grupo social de proporções menores

defende que “[...] o melhor interesse da criança tem maior sucesso se organizado e desenvolvido, no ambiente

privado, nas relações interfamiliares, através do diálogo e de acordos voluntários, considerando os aspectos

sociais e psicológicos, objetivos e subjetivos nas relações entre as partes”. 14

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. Art. 100, parágrafo único, IX e

X. 15

NAÇÕES UNIDAS. Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 dez. 1948.

Proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem. “Artigo 16. 3. A família é o núcleo natural e

fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”. Disponível em:

<https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/>. Acesso em: 15 jun. 2017. 16

BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 nov. 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto

de São José da Costa Rica), de 22 nov. 1969. “Artigo 17. 1. A família é o elemento natural e fundamental da

sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm> e

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017. 17

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,

1988. “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017. 18

MACEDO, R. M. A família do ponto de vista psicológico: lugar seguro para crescer? Cadernos de Pesquisa

Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n.º 91, p. 63, nov. 1994. “Entre os especialistas do campo das ciências

sociais e humanas, há igualmente um consenso quanto a conceituar a família de forma genérica. Ela é vista como

unidade social cuja função é a socialização das crianças por meio da educação e da transmissão da cultura,

portanto, um poderoso agente para manutenção da continuidade cultural, isto é, um valor social universal. Desse

ponto de vista, é um dos organizadores da sociedade, na medida em que define os estilos de vida, dando

substância à ação”. […] “A família é, para a Psicologia, revestida de uma importância capital, dado que é o

primeiro ambiente no qual se desenvolve a personalidade nascente de cada ser humano. Assim, a família é vista

como o primeiro espaço psicossocial, protótipo das relações a serem estabelecidas com o mundo. É a matriz da

identidade pessoal e social, uma vez que nela se desenvolve o sentimento de independência e autonomia,

baseado no processo de diferenciação, que permite a consciência de si mesmo como alguém diferente e separado

do outro”. Disponível em: <http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/877/883>. Acesso em: 15

jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

que, ao estabelecer regras e limites, prepara o indivíduo para a comunidade social mais

ampla”19

.

Seres humanos são seres sociais e se desenvolvem, desde o início, dentro de um

contexto social e histórico no qual exercem papel principal a família, a comunidade, o status

socioeconômico, a etnia e a cultura, afetando a maneira como o desenvolvimento ocorre

desde criança e ao longo dos processos universais do amadurecimento humano. Para um bebê,

por exemplo, o contexto imediato normalmente é a família, que, por sua vez, sofre influências

mais amplas e constantes da vizinhança, da comunidade e da sociedade. Em uma perspectiva

contextual, o desenvolvimento só pode ser compreendido em sua conjuntura social, eis que o

indivíduo é parte inseparável do ambiente com que interage20

.

A par da instrumentalização dos indivíduos para a integração na sociedade, a família

configura ambiente de proteção e segurança que supre as necessidades primárias dos seus

membros21

, permite a cada um deles o desenvolvimento da sua personalidade, o

aproveitamento pleno das suas potencialidades, a formação de valores e princípios morais,

éticos e sociais, a experimentação e a elaboração de sentimentos, a aquisição de práticas

culturais, a transmissão de tradições familiares, a preservação das suas origens, a construção

da sua história, o desenvolvimento da sua inteligência emocional, conferindo-lhes sensação de

pertencimento, possibilidade de realização existencial e afetiva e, ainda, equipando-os para

interagir com os demais sistemas sociais, tais como o político, o educacional, o religioso e o

de saúde.

Nas palavras de João Baptista Villela, referidas por Guilherme Calmon Nogueira da

Gama e Leandro dos Santos Guerra:

19

NAVES, A. R. C. X. e VASCONCELOS, L. A. O Estudo da Família: contingências e metacontingências.

Revista Brasileira de Análise do Comportamento. [s.l.], v. 4, n. 1, 2008, pp. 13-25. Disponível em:

<http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/rebac/article/view/841/1199>. Acesso em: 15 jun. 2017. 20

PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. O mundo da criança: da infância à adolescência. 11. ed.

Porto Alegre: AMGH, 2010. Disponível em:

<https://books.google.com.br/books?id=Mg_oPFUELcwC&lpg=PR3&ots=EiFCHIb5xh&dq=Cuidado%20F

amiliar%20e%20sa%C3%BAde%20mental%3A%20a%20aten%C3%A7%C3%A3o%20das%20fam%C3%

ADlias%20a%20seus%20filhos%20na%20inf%C3%A2ncia%20e%20na%20adolesc%C3%AAncia&lr&hl= pt-

BR&pg=PA92#v=onepage&q&f=true>. Acesso em: 30 jun. 2017. 21

MACEDO, R. M. A família do ponto de vista psicológico: lugar seguro para crescer? Cadernos de Pesquisa

Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 91, p. 64, nov. 1994. O propósito da família seria prover um contexto

que supra as necessidades primárias de seus membros, referentes à sobrevivência – segurança, alimentação e um

lar –, ao desenvolvimento – afetivo, cognitivo e social – e ao sentimento de ser aceito, cuidado e amado.

Disponível em <http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/877/883>. Acesso em: 15 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Hoje, ao contrário do que foi no passado, a família expressa, por assim dizer, um

espaço em que cada um busca a realização de si mesmo, através do outro ou de

outros, e não mais uma estrutura em que os indivíduos estejam submetidos a fins do

entorno social que os envolvia, particularmente o Estado e a Igreja22

.

Compreende-se, assim, que a família é o ambiente propício à completa e melhor

formação dos seus membros, tanto do ponto de vista particular como comunitário, devendo

permitir não apenas a sua realização moral e material, mas principalmente a concretização

efetiva dos interesses fundamentais de cada pessoa humana que a integra23

.

No dizer de Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, a família compreende

hodiernamente:

[…] o ambiente de desenvolvimento da personalidade e da promoção da dignidade

de seus membros, sejam adultos ou infantes, o qual pode apresentar uma pluralidade

de formas decorrentes das variadas origens e que possui como elemento nuclear o

afeto24

.

A toda evidência, a família concorre, portanto, para o alcance dos objetivos

individuais e coletivos traçados pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da

Criança para orientar a educação das pessoas menores de dezoito anos, os quais, pela sua

relevância, merecem destaque:

Artigo 29 1. Os Estados Partes reconhecem que a educação da criança deverá estar orientada

no sentido de:

a) desenvolver a personalidade, as aptidões e a capacidade mental e física da

criança em todo o seu potencial;

b) imbuir na criança o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais,

bem como aos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas;

c) imbuir na criança o respeito aos seus pais, à sua própria identidade cultural, ao

seu idioma e seus valores, aos valores nacionais do país em que reside, aos do

eventual país de origem, e aos das civilizações diferentes da sua;

d) preparar a criança para assumir uma vida responsável numa sociedade livre, com

espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos

os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e pessoas de origem indígena;

e) imbuir na criança o respeito ao meio ambiente25

.

22

VILLELA, J. B. apud DA GAMA, G. C. N. e GUERRA, L. dos S. Função Social da Família. In: DA GAMA,

G. C. N. (Coord.). Função Social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007. p. 119. 23

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,

1988. Artigo 226, § 8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,

criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017. 24

MACIEL, K. R. F. L. A. Direito fundamental à convivência familiar. In: MACIEL, K. (Coord.). Curso de

Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 133. 25

BRASIL. Decreto n.º 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da

Criança. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm>. Acesso em: 21

jun. 2017. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das

Nações Unidas, em 20 nov. 1989, foi ratificada pelo Brasil em 26 jan. 1990, aprovada pelo Decreto legislativo

n.º 28, de 14 set. 1990, vindo a ser promulgada pelo Decreto presidencial n.º 99.710, de 21 nov. 1990.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

No panorama traçado, não se pode ignorar o papel específico e o potencial que a

família extensa representa, além do grupo nuclear, na formação plena dos seres humanos que

a compõem, não apenas na condição de parentes próximos, mas ainda como membros da

comunidade e da sociedade, a quem aproveita e incumbe a promoção dos direitos

fundamentais das crianças e dos adolescentes de cada entidade familiar, nos termos do artigo

227 da Constituição da República. Reputar que apenas pai e mãe estão investidos do múnus

de assegurar prioritariamente a proteção integral às crianças e aos adolescentes é limitar

sobremaneira o alcance da obrigação afirmada no dispositivo constitucional e restringir sem

justa causa as possibilidades de promoção do seu interesse maior, estreitando o caminho da

realização do seu projeto de felicidade, na expressão de Giselda Hironaka, referida por Maria

Berenice Dias26

.

Oportuno rememorar que o “melhor interesse da criança”, afirmado pela Convenção

sobre os Direitos da Criança, é paradigma que considera, sobretudo, “as necessidades da

criança em detrimento dos interesses dos pais, devendo realizar-se sempre uma análise do

caso concreto” 27

. Nesse sentido, constitui-se em expressão dos direitos humanos e da

dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito

Brasileiro.

Na aplicação desse princípio jurídico, com foco nos interesses da criança e do

adolescente, os operadores do Direito sugerem critérios norteadores experimentados na sua

prática profissional, tais como a idade da criança ou do adolescente, o seu estágio de

desenvolvimento, os vínculos estabelecidos, a preferência manifestada, o cuidado e o afeto28

.

A partir da adoção da doutrina da proteção integral no Brasil em 1988, a aplicação do

princípio do superior interesse ganhou amplitude, alcançando todo o público infantojuvenil,

inclusive e principalmente no âmbito familiar, consoante Andréa Rodrigues Amin. A autora

ressalta que o melhor interesse não é o que o julgador ou o aplicador da lei entendem como o

mais apropriado para a criança e o adolescente, mas aquilo que promove, de forma objetiva e

efetiva, a sua dignidade como pessoa em desenvolvimento e os seus direitos fundamentais na

maior amplitude possível29

.

26

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 29. 27

PEREIRA, T. da S. O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

p. 3.

28 LOPES, J. F. “O Melhor Interesse da Criança” e o “Cuidado” na Interface Psicologia e Direito. In: PEREIRA,

T. da S.; OLIVEIRA, G de. (Coord.). Cuidado e Responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 119. 29

AMIN, A. R. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, K. R. F. L. A.

(Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva,

2016. pp. 71-73.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Sendo assim, a convivência com a família ampliada se mostra como questão de

especial interesse público, na medida em que se reveste de verdadeira função social e deriva

dos fundamentos da República, particularmente o princípio da dignidade da pessoa humana.

Os cientistas do desenvolvimento da criança compreendem que, além da

hereditariedade e da maturação, o ambiente, interno e externo, influi no desenvolvimento que

ocorre na infância. Logo, o aprendizado, inclusive a socialização, que é a indução da criança

em direção ao sistema de valores da cultura, decorre da experiência compartilhada.

Dentre as perspectivas que influenciam teorias e pesquisas sobre o desenvolvimento

da criança, destacam-se a teoria da aprendizagem social e a teoria sociocultural de Lev

Vygotsky. De acordo com a primeira tese, as pessoas aprendem o comportamento social

apropriado pela observação de outras pessoas e pela imitação de modelos, em um processo

denominado modelagem ou aprendizagem observacional que é o elemento mais importante

no modo como as crianças aprendem uma língua, lidam com a agressividade, desenvolvem a

noção de moral e aprendem os comportamentos adequados ao sexo. O comportamento

específico que as pessoas imitam depende do que elas percebem como valorizado em suas

culturas. Do ponto de vista contextual ou cognitivo, tem-se que as crianças aprendem por

meio da interação social. Os adultos e os colegas mais avançados fornecem suporte

temporário e ajudam a dirigir e organizar a aprendizagem do infante para que ele possa

dominá-la, internalizá-la e, enfim, executá-la por conta própria30

.

No âmbito familiar, todos os parentes têm a possibilidade de funcionar como modelos

a serem observados e seguidos, ou não, e de oferecer a orientação e o apoio material e

emocional de que os pequenos necessitam para a execução das suas tarefas, quando ainda não

possuem o domínio completo das formas de realizar as atividades inerentes a cada período do

seu desenvolvimento, desde a primeira infância até a adolescência.

Os avós oferecem contribuição rica e complexa aos netos, dependendo da relação

estabelecida entre eles e das suas características individuais. Na dimensão social da influência

que exercem, os avós são os principais agentes socializadores das crianças após os pais e

oferecem informação sobre a sua criação. Em qualquer caso, os avós são relevantes para

minimizar ou prevenir o sofrimento e o desamparo dos filhos e netos em diversas situações,

30

PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. O mundo da criança: da infância à adolescência. 11. ed.

Porto Alegre: AMGH, 2010. Disponível em:

<https://books.google.com.br/books?id=Mg_oPFUELcwC&lpg=PR3&ots=EiFCHIb5xh&dq=Cuidado%20F

amiliar%20e%20sa%C3%BAde%20mental%3A%20a%20aten%C3%A7%C3%A3o%20das%20fam%C3%

ADlias%20a%20seus%20filhos%20na%20inf%C3%A2ncia%20e%20na%20adolesc%C3%AAncia&lr&hl= pt-

BR&pg=PA92#v=onepage&q&f=true>. Acesso em: 30 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

funcionando como exemplos e mentores da nova geração, compartilhando a sua experiência

de vida, assumindo a criação dos netos em hipóteses de impedimento dos pais por qualquer

razão, oferecendo suporte material e amparo emocional no caso de separação ou recasamento

dos pais ou, ainda, quando houver uma criança incapacitada na família etc.31

Porém, não há óbice, em princípio, a que os familiares na linha reta além dos avós, os

transversais e mesmo os afins também se façam presentes nas ocorrências familiares e

contribuam para a construção da identidade pessoal e social da criança, salvo se houver a

comprovação inequívoca de malefícios neste contato. A título de exemplo, comentando

especificamente o papel dos tios na trajetória de desenvolvimento das crianças, a psicóloga

Daniela Bisorde pondera que o tio pode representar uma válvula de escape para pais e filhos,

refúgio para os momentos de conflito ou simples ouvinte quando o sobrinho quiser ou

precisar conversar com alguém, razão pela qual encoraja a construção e o fortalecimento

diários dessa relação32

.

O avigoramento dos vínculos interpessoais no âmbito da família extensa, afora do

âmago da família nuclear, conserva, assim, o potencial de estabelecer uma rede de assistência

que pode amparar a criança e o adolescente durante todo o seu evolver e suprir a falta

eventual ou definitiva dos seus pais, provendo continuamente o cuidado de que o ser humano

necessita por toda a sua vida. Uma rede familiar sólida atua na prevenção de riscos para a

criança e o adolescente e a sua formação deve ser fomentada desde a chegada do pequeno

membro à família, não havendo sentido em se aguardar a ocorrência de uma situação de

ameaça ou mesmo a violação dos seus direitos infantojuvenis para só então acionar a família

estendida a assumir o seu papel verdadeiramente insubstituível na plena proteção e efetivação

de tais prerrogativas.

Em voto proferido no julgamento do Recurso Especial n.º 1.159.242-SP, no qual

discorreu sobre o cuidado como valor jurídico apreciável, a Ministra Nancy Andrighi

consignou que o ser humano precisa, além do básico para a sua manutenção e sobrevivência –

alimento, abrigo e saúde –, também de outros elementos, normalmente imateriais, igualmente

necessários para a sua adequada formação e de relevante impacto na higidez psicológica do

futuro adulto – educação, lazer, regras de conduta etc.33

31

DIAS, C. M. de S. B. A influência dos avós nas dimensões familiar e social. Revista Symposium, v. 6, n. 1/2,

jan.-dez. 2012, pp. 34-38. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/5743/5743.PDF>. Acesso em:

22 jun. 2017. 32

BISORDE, D. apud DOS ANJOS, J. Tio pode tudo! Quanto mais legal você for, melhor vai ser para o seu

sobrinho. Pais & Filhos, 29 mai. 2016. Disponível em: <http://www.paisefilhos.com.br/familia/tio-pode- tudo-

quanto-mais-legal-voce-for-melhor-vai-ser-para-o-seu-sobrinho/?offset=1188>. Acesso em: 1 jun. 2017. 33

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Civil e Processual Civil. Família. Recurso Especial n.º 1.159.242-SP,

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

O cuidado é a expressão concreta do afeto que, em situações ideais, permeia e orienta

as relações familiares. Enquanto o afeto encerra dimensão subjetiva relacionada aos

sentimentos e ao foro íntimo das pessoas envolvidas, não podendo, portanto, ser cobrado ou

exigido, o cuidado se desvela a partir de uma diversidade de atos e práticas direcionados ao

alcance do bem-estar do sujeito de quem se cuida, sendo aferível objetivamente. Um não se

dissocia do outro, porém, porque a simples prática mecânica de atos de cuidar sem a

existência real de afetividade não subsiste.

As ações concretas do cuidar acompanham o ser humano ao longo de toda a vida e a

sua própria sobrevivência depende do recebimento de cuidados básicos desde o nascimento.

Assim, o cuidado é a um só tempo uma incontingência orgânica e um dever jurídico imposto

pela Carta Maior e regulado pela legislação infraconstitucional, com especial proteção para os

grupos que, por suas qualidades, sejam mais vulneráveis, como as crianças e os adolescentes.

Assim, a obrigação de cuidado está incorporada como valor jurídico no ordenamento pátrio,

embora o regramento não se exprima nestes precisos termos, havendo quem defenda na

doutrina a sua elevação ao patamar de princípio jurídico, por representar vetor interpretativo

que conforma a aplicação da lei34

.

Sob a perspectiva do cuidado como manifestação do afeto, é possível reafirmar que o

bom trato das crianças e adolescentes de cada família compete a todos os seus membros –

pais, parentes em linha reta, colaterais e afins. Indo adiante, também o cuidado que a família

nuclear deve oferecer à sua prole no exercício da parentalidade responsável inclui,

incontestavelmente, a obrigação de viabilizar a convivência com a família extensa sempre que

o interesse específico do menor envolvido assim o recomendar.

Sendo o cuidado fator crucial à subsistência e à formação do indivíduo, o desvelo

oferecido pela família ampliada se soma aos préstimos dos pais na busca pelo

desenvolvimento sadio e pleno das suas crianças e adolescentes, para que cresçam cidadãos

habilitados ao convívio social pacífico, capazes de respeitar as regras, cumprir com as suas

obrigações e exigir os seus direitos, exercendo de forma consciente a sua cidadania.

Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 24 abr. 2012. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 18 jun. 2017. 34

Posicionamento esboçado por Sávio Renato Bittencourt Soares na palestra “O cuidado como princípio

jurídico; suas repercussões no ordenamento jurídico brasileiro”. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do

Estado do Rio de Janeiro, mai. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

3 O DIREITO À CONVIVÊNCIA COM A FAMÍLIA AMPLIADA NA LEGISLAÇÃO

BRASILEIRA E NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE

JUSTIÇA: ABRANGÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DA NORMA

CONSTITUCIONAL: CLÁUSULA DE INCLUSÃO.

Assentadas a influência positiva da família no desenvolvimento das potencialidades

humanas e a relevância do seu apoio nas vicissitudes da vida, que podem atingir a todos

indistintamente, sejam crianças, jovens ou adultos, entende-se a proteção conferida à unidade

familiar e a elevação da prerrogativa de convivência familiar ao patamar de garantia

constitucional.

A convivência familiar outorgada constitucionalmente às crianças e aos adolescentes

insere-se, assim, no seu bloco de direitos fundamentais especiais por decorrer da própria

dignidade da pessoa humana. A esse direito, contrapõe-se o dever da família, da sociedade e

do Estado de promover a convivência familiar prioritariamente às crianças e aos adolescentes.

Maria Berenice Dias, citando Paulo Lôbo, esclarece que o membro da família é titular de

direitos fundamentais oponíveis a qualquer desses três grupos, devedores, por sua vez, de

obrigações fundamentais35

. O direito da criança ou do adolescente integrante da família goza

da proteção constitucional com primazia absoluta, inclusive na hipótese de colisão com o

direito da própria entidade familiar e dos adultos que a compõem36

37

.

Apercebe-se a importância da convivência familiar e comunitária no tratamento

especial que lhe é dado quando se trata de crianças e adolescentes institucionalizados ou de

adolescentes em cumprimento de medida de internação, sendo indispensável a influência da

família para a sua ressocialização, e na garantia de convívio com os pais que estejam privados

de liberdade enquanto durar a medida, mesmo nas hipóteses de acolhimento institucional da

criança ou adolescente38

.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, na sua atual dicção, regula o direito à

convivência familiar e comunitária voltado ao desenvolvimento integral dos indivíduos em

formação, preferindo a sua permanência na família de origem a qualquer outra medida e

ressaltando a necessidade de existência e de comprovação da fixação de laços de afinidade e

35

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 40. 36

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. Art. 4º. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 23 jun. 2017. 37

AMIN, A. R. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, K. (Coord.). Curso

de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 63-71. 38

MACIEL, K. R. F. L. A. Direito fundamental à convivência familiar. In: MACIEL, K. (Coord.). Curso de

Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 146.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

afetividade como condição sine qua non para o gozo desta e de outras garantias39

. Ao dispor

sobre a adoção e a sistemática de promoção do direito à convivência familiar a todas as

crianças e adolescentes, foi a Lei n.º 12.010/2009 que promoveu as alterações substanciais no

diploma estatutário e introduziu inovações ao conjunto legislativo, como o conceito expresso

de família extensa ou ampliada, já mencionado40

.

Tecendo comentários sobre a Lei Nacional de Adoção, Murillo José Digiácomo

sublinhou:

As novas regras relativas à adoção, na verdade, surgem num contexto mais amplo,

que procura enfatizar a excepcionalidade da medida em detrimento da permanência

da criança ou adolescente em sua família de origem ou de outras formas de

acolhimento familiar que não importem no rompimento dos vínculos com sua

família natural41

.

A Lei n.º 12.318/2010, a seu turno, reputa como atos de alienação parental os

subterfúgios adotados pelo genitor alienador para dificultar ou obstaculizar a convivência de

criança ou adolescente com o outro genitor, com os seus familiares e com os avós, afirmando

que práticas desta espécie ferem o direito fundamental à convivência familiar saudável e

prejudicam a realização do afeto nas relações com o genitor alienado e o seu grupo de

parentes, constituindo abuso moral e implicando descumprimento dos deveres inerentes à

autoridade parental. Terá preferência na atribuição da guarda aquele que viabilizar a efetiva

convivência do filho com o outro genitor nas hipóteses em que não for possível ou

recomendável a guarda compartilhada42

.

Ao tratar sobre a proteção da pessoa dos filhos, o Código Civil, com a redação que lhe

foi dada pela Lei n.º 13.058/2014, regulou o convívio equilibrado da prole com a mãe e o pai,

devendo a distribuição do tempo de contato proteger e prestigiar os interesses dos filhos.

Observados os direitos da criança ou do adolescente, o direito de visitas será estendido aos

avós. Caso o juiz identifique que a criança não deve continuar em companhia dos pais ou de

qualquer deles, deferirá a sua guarda a pessoa que tenha condições de exercê-la,

considerando, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade43

44

39

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. Artigos 19 a 24. Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 22 jun. 2017. 40

BRASIL. Lei Nacional de Adoção. Lei n.º 12.010, de 3 ago. 2009. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm>. Acesso em: 22 jun. 2017. 41

DIGIÁCOMO, M. J. Breves considerações sobre a nova “Lei Nacional de Adoção”. Disponível em:

<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/infanciahome_c/adocao/Doutrina_adocao/Lei de Adoção-breves

considerações - Dr. Murillo Digiácomo.doc>. Acesso em: 22 jun. 2017. 42

BRASIL. Lei de Alienação Parental. Lei n.º 12.318, de 26 ago. 2010. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm>. Acesso em: 22 jun. 2017. 43

BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 jan. 2002. Artigos 1.583 a 1.590. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 22 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

45.

A Lei n.º 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, estabeleceu

princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a

primeira idade, afirmando a convivência familiar como área prioritária para investimento pelo

poder público46

.

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e

Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, elaborado a partir do esforço conjunto

de representantes de todos os poderes e esferas de governo, da sociedade civil organizada e de

organismos internacionais e aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e

Adolescentes – CONANDA e pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS após as

contribuições recebidas em consulta pública, fortalece os paradigmas da proteção integral e da

preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo Estatuto da Criança e

do Adolescente, reconhecendo que a manutenção de tais elos, prioritariamente na família de

origem, é fundamental para a estruturação das crianças e adolescentes como sujeitos e

cidadãos. Assinala que “a família, enquanto estrutura vital, lugar essencial à humanização e à

socialização da criança e do adolescente, é espaço ideal e privilegiado para o desenvolvimento

integral dos indivíduos”. Não à toa, propõe estratégias de atendimento que deverão esgotar as

possibilidades de preservação dos laços familiares nas situações de risco e enfraquecimento

das relações, aliando o apoio socioeconômico à elaboração de novas formas de interação e

referências afetivas no grupo familiar47

.

A despeito do vasto arcabouço protetivo conferido à família, indiscutivelmente o

núcleo instituidor da sociedade, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro disposição legal

expressa que discipline de modo específico o direito de convivência das crianças e dos

adolescentes com os parentes da sua família extensa, além dos avós.

44

BRASIL. Lei n.º 13.058, de 22 dez. 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

2014/2014/lei/l13058.htm>. Acesso em: 22 jun. 2017. 45

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 699/2011, com o objetivo de alterar o Código Civil.

Dentre as modificações propostas, está a mudança na redação do parágrafo único do artigo 1.589 e a inclusão de

um segundo parágrafo ao dispositivo: “Art.1.589. [...]. § 1º Aos avós e outros parentes, inclusive afins, do menor

é assegurado o direito de visitá-lo, com vistas à preservação dos respectivos laços de afetividade; § 2º O juiz,

havendo justo motivo, poderá modificar as regras da visitação, com observância do princípio da prevalência dos

interesses dos filhos”.

Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=494551>. Acesso

em: 4 jul. 2017. 46

BRASIL. Marco Legal da Primeira Infância. Lei n.º 13.257, de 8 mar. 2016. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 24 jun. 2017. 47

BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à

Convivência Familiar e Comunitária. Resolução Conjunta CNAS/CONANDA n.º 1, de 13 dez. 2006. Brasília,

DF: 2006. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e- adolescentes/programas/pdf/plano-

nacional-de-convivencia-familiar-e.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

A carência de previsão normativa acerca de situações singulares, contudo, não implica

a ausência de tutela nem consubstancia escusa para que o juiz se isente de decidir a

controvérsia porventura a ele apresentada, devendo o operador do Direito se socorrer da

analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito, expressos ou implícitos, para suprir

a lacuna ou a obscuridade da lei48

-49

. Na eventualidade de conflito entre princípios ou direitos

fundamentais, a ponderação de interesses orientará a sua harmonização, tendo como norte o

princípio absoluto da dignidade da pessoa humana e, nas questões afetas ao Direito de

Família, os princípios que regem a matéria: gerais – dignidade, igualdade, liberdade,

proibição do retrocesso social, proteção integral e prioritária aos superiores interesses de

crianças e adolescentes – e especiais, em destaque a solidariedade e a afetividade50

.

À míngua de regras, não se pode conceber, de igual modo, a restrição de direito

fundamental constitucionalmente assegurado, sendo certo que, na forma do artigo 5º, §§ 1º e

2º, da Carta Maior, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais são

exemplificativas e têm aplicação imediata, sendo dotadas de eficácia plena, independentes,

portanto, de regulamentação legislativa51

.

Em face dos critérios de exegese constitucional, notadamente do princípio da

concretização constitucional, é imperioso considerar que, ao enunciar o direito à convivência

familiar sem fazer referência específica a este ou aquele parente, o artigo 227 da Carta

Política encerrou verdadeira cláusula geral de inclusão, não se podendo excluir da sua

abrangência nenhum familiar dos graus subsequentes aos avós na linha reta, da linha

transversal e até mesmo os afins com quem a criança ou o adolescente compartilhe laços de

afetividade e afinidade incontroversos. Não pode o legislador infraconstitucional nem o

intérprete da norma limitar a abrangência do texto constitucional para “suprimir de seus

48

BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 set. 1942. “Art. 4º.

Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de

direito”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso

em: 17 jun. 2017. 49

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei n.º 13.105, de 16 mar. 2015. “Art. 140. O juiz não se exime de decidir

sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Parágrafo único. O juiz só decidirá por

equidade nos casos previstos em lei”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 17 jun. 2017. 50

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. pp. 43-44. 51

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,

1988. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: […]. § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm

aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do

regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil

seja parte [...]”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos”, consoante a lição de Paulo

Luiz Netto Lôbo52

.

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e

Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária lembra, ainda, que, em respeito à

hierarquia das normas, deve ser dada prevalência às convenções internacionais reguladoras da

promoção e proteção dos direitos humanos, ratificadas em caráter especial pelo Brasil e

àquelas estabelecidas por força de resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas53

.

A partir dessa concepção é que se deve fazer a leitura dos artigos 19, caput, e 25 da

Lei n.º 8.069/1990 e do artigo 1.589 do Código Civil, com as alterações introduzidas pelas

Leis n.º 12.010/2009 e n.º 12.398/2011 respectivamente, para inferir que o direito da criança e

do adolescente de ser criado e educado, cuidado, portanto, preferencialmente no seio da sua

família de origem, bem como o direito de ser visitado, ou melhor, de conviver, abrange não

apenas a família natural, mas também a família ampliada, desde que os interesses sejam

convergentes, preponderando em qualquer caso o superior interesse dos petizes54

55

.

Os dispositivos não podem ser interpretados de modo constritivo para conceder o

direito de visitas somente aos ascendentes de segundo grau, quando, a bem da verdade, o

direito é da criança ou do adolescente de ser visitado por todos os parentes com quem tenha

laços estreitos, independentemente da origem ou da espécie do vínculo de parentesco.

Restando preservado em cada caso o interesse superior da criança ou do adolescente, os

familiares na linha reta além dos avós, os colaterais e até mesmo os afins estarão legitimados

a pleitear e a exercer o privilégio da convivência com os seus descendentes.

52

LÔBO, P. L. N. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Disponível em:

<http://www.jfgontijo.adv.br/2008/artigos_pdf/Paulo_Luiz_Netto_Lobo/Entidades.pdf>. Acesso em: 22 jun.

2017. 53

BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à

Convivência Familiar e Comunitária. Resolução Conjunta CNAS/CONANDA n.º 1, de 13 dez. 2006. Brasília,

DF: 2006. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e- adolescentes/programas/pdf/plano-

nacional-de-convivencia-familiar-e.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2017. 54

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. “Art. 19, caput. É direito da

criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta,

assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. “Art.

25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e

filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e

mantém vínculos de afinidade e afetividade”.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017. 55

BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 jan. 2012. “Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não

estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou

for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. Parágrafo único. O direito de visita

estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente”.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 22 jun.

2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Pode-se argumentar que o afastamento da família extensa não acarretaria prejuízo para

a criança ou o adolescente, porque, sem o contato regular, não seriam formados os laços de

afetividade. De imediato, talvez, não se identifiquem as perdas para o pequeno, porém, por

outro ângulo, são inegáveis os benefícios que a convivência pacífica traria à sua formação

psicológica e ao seu desenvolvimento emocional, preparando terreno firme e seguro para as

incertezas do futuro, que pode surpreender com situações inesperadas, quiçá de risco, em que

a acolhida dos parentes do grupo ampliado seja um diferencial.

Comentando a novidade trazida pela Lei n.º 12.398/2011 ao artigo 1.589, parágrafo

único, do Código Civil, consistente na previsão de que o direito de visita da família natural se

estende a qualquer dos avós, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel acrescentou:

Se os parentes da linha ascendente, colateral e os afins podem assumir a guarda ou a

tutela dos netos, sobrinhos, irmãos ou enteados menores de idade, consoante dicção

do § 2º do art. 28 do ECA [sic], não há óbices legais para que detenham o direito de

convivência familiar por meio de visitas, direito este de menor amplitude. Em sendo

assim, parentes próximos ao infante, ancorados na solidariedade familiar, poderão

postular o direito de participar diretamente de sua vida por meio de visitas, inclusive

de criança e de adolescente abrigados ou internados por prática de ato infracional56

.

O entendimento esposado se coaduna com os fins sociais e o bem comum almejados

pela legislação infantojuvenil e com os objetivos de proteção integral de todas as crianças e

adolescentes, considerada a sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, bem como

com a proteção conferida não apenas à família como agremiação social, mas a todas as

pessoas humanas que a formam, abonando individualmente a sua dignidade e proporcionando

as bases para a plena efetivação dos seus direitos imateriais mais caros, dentre eles o direito

ao afeto, à felicidade, ao cuidado, ao respeito57

58

.

Posicionamento idêntico foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em diversas

ocasiões, conforme recomendou o caso concreto. A Quarta Turma da Corte teve a

56

MACIEL, K. R. F. L. A. Poder familiar. In: MACIEL, K. R. F. L. A. (Coord.). Curso de Direito da Criança e

do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Parte I, pp. 204-205. Embora o

trecho transcrito se refira ao § 2º do artigo 28 do ECA, acredita-se, em razão do tema comentado, que a autora

tenha pretendido mencionar o § 3º, incluído no dispostivo pela Lei n.º 12.010/2009. 57

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,

1988. “Art. 226, § 8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,

criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 23 jun. 2017. 58

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. “Art. 6º. Na interpretação desta

Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres

individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Artigo 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e

do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças,

dos espaços e objetos pessoais”.

Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 23 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

oportunidade de se pronunciar sobre pedido de guarda compartilhada de menor formulado por

tio e avó paternos, deitando por terra as teorias de impossibilidade jurídica e inadequação do

pedido. Demonstrados os bons cuidados que a criança já recebia e verificado o atendimento

ao seu melhor interesse e ao seu bem-estar ante a peculiaridade da situação daquela família, o

colegiado deferiu o pleito59

.

Proclamando a prevalência do melhor interesse da criança, a Terceira Turma registrou

que é dever dos pais pensar de forma conjugada o bem-estar dos filhos, sem intenções

egoísticas, caprichosas, ou ainda, de vindita entre si, para que a prole usufrua harmonicamente

da família que possui, materna e paterna, sob a premissa de que toda criança ou adolescente

ostenta o direito de ter amplamente assegurada a convivência familiar, conforme as

linhas do artigo 19 da Lei n.º 8.069/1990, e de nutrir afeto não só no universo genitor-filho,

mas também no do grupo familiar e social em que está inserido60

61

.

Atenta ao princípio do superior interesse e à obrigação dos pais naturais e

socioafetivos na promoção da harmonia familiar, também a Terceira Turma reconheceu a

legitimidade ativa e o interesse de agir de padrasto para postular em juízo a destituição do

poder familiar, pressuposto lógico da medida principal de adoção por ele requerida, em face

do pai biológico62

.

A possibilidade de concessão da guarda de criança à tia com preferência sobre o pai e

apesar da sua oposição, com afastamento da ordem hierárquica de presunção de maior bem-

estar para a criança e o adolescente em relação ao ambiente em que devem conviver –

representado pela sequência família natural, família natural estendida e família substituta –,

também foi assentada pela Terceira Turma a partir da afirmação de que a convivência familiar

em sentido estrito é, primariamente, um direito do próprio infante63

.

Pela perspectiva de proteção integral estipulada pelo ordenamento constitucional e

normativo, portanto, a criança tem o direito à convivência familiar sob o espectro mais amplo,

59

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Civil e Processual Civil. Família. Recurso Especial n.º 1.147.138-SP,

Quarta Turma, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, julgamento em 11 mai. 2010, DJe 27 mai. 2010.

Disponível em:<http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 23 jun. 2017. 60

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Direito Civil e processual civil. Família. Recurso Especial n.º

1.032.875-DF, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 28 abr. 2009, DJe 11 mai.

2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 23 jun. 2017. 61

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Direito da criança e do adolescente. Recurso Especial n.º 964.836- BA,

Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 2 abr. 2009, DJe 4 ago. 2009. Disponível

em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 23 jun. 2017. 62

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Direito Civil. Família. Criança e Adolescente. Recurso Especial n.º

1.106.637-SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 1 jun. 2010, DJe 1 jul. 2010.

Disponível em <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 23 jun. 2017. 63

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Civil e Processual Civil. Recurso Especial n.º 1.388.966-RS, Terceira

Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 22 mai. 2014, DJe 13 jun. 2014. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 23 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

aí incluídos todos os parentes da família estendida, desde que tal convívio não ofereça riscos

nem provoque ao menor transtornos de ordem emocional, que prejudiquem o seu pleno e

normal desenvolvimento.

4 AFETIVIDADE E AFINIDADE: O DIREITO À CONSTRUÇÃO DO AFETO COM

A FAMÍLIA EXTENSA COMO EXPRESSÃO DOS DIREITOS AO CUIDADO E À

CONVIVÊNCIA FAMILIAR PLENA

A família natural é o primeiro local de vivência do amor pelo ser humano, da criação

de vínculos, da superação de obstáculos, da troca de experiências e da busca pelo atendimento

das suas necessidades básicas e dos seus interesses mais preciosos. Não se pode conceber hoje

o ambiente familiar sem que se identifiquem sólidos laços de afeição, a despeito de os seus

membros se interligarem biologicamente ou não. Paulo Lôbo, referido por Maria Berenice

Dias, assentou que o afeto e a solidariedade não são fruto da Biologia, não derivam do

sangue, mas da convivência familiar64

.

O afeto é a base de sustentação da família e pré-requisito indispensável para a garantia

do direito à convivência familiar conferido às crianças e aos adolescentes, estando

intimamente conectado ao direito fundamental à felicidade assegurado a todos os indivíduos

sem distinção, porquanto, ao abraçar a dignidade da pessoa humana como um dos alicerces da

República, o Estado assumiu o compromisso de garantir o direito à vida não apenas “como

mero substantivo, mas vida de forma adjetivada: vida digna, vida feliz”65

66

!

A Psicologia ensina que a afetividade é um dos quatro vetores do desenvolvimento

humano, ao lado da psicomotricidade, da cognição e da linguagem, e interage com todos eles,

promovendo ou obstruindo as aquisições de cada área específica. A sua ausência compromete

a sobrevivência psíquica do bebê. A formação da personalidade humana ocorre através de um

processo longo e gradual, que se inicia em tenra idade, ainda na fase de dependência absoluta

e insuficiência de autonomia, perpassa a infância e alcança a organização e o bom

funcionamento do pensamento por volta dos quinze, dezesseis anos de idade se o

desenvolvimento foi saudável. Na falta de segurança afetiva, aliada a outras condições, o

desenvolvimento não se completa67

.

64

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 53. 65

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 27. 66

MADALENO, R. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 29. “O Direito de Família não

mais se restringe aos valores destacados de ser e ter, porque, ao menos entre nós, desde o advento da Carta

Política de 1988 prevalece a busca e o direito pela conquista da felicidade a partir da afetividade”. 67

IENCARELLI, A. M. B. Cuidado, Responsabilidade e Alienação Parental: Benefícios e Prejuízos. Interfaces

com o Desenvolvimento Saudável e a Patologia. In: PEREIRA, T. da S.; DE OLIVEIRA, G. (Coord.). Cuidado e

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Embora não haja menção expressa ao afeto no seu texto, a Constituição da República

deslocou o enfoque principal da família do instituto do casamento e dos laços simplesmente

consanguíneos para os elos socioafetivos, em prestígio da verdade afetiva sobre a realidade

biológica68

. Paulo Lôbo aponta dispositivos constitucionais que contêm referências das quais

se extraem, a partir de uma interpretação sistemática, as bases do princípio da afetividade: a

igualdade de todos os filhos, com preferência do afeto como elemento definidor da relação

paterno-filial sobre a sua origem (artigo 227, § 6º); a consagração da adoção como escolha

afetiva com igualdade de direitos (artigo 227, §§ 5º e 6º); a proteção conferida à união estável

e à comunidade formada por qualquer dos pais e os seus descendentes, incluindo-se os

adotivos, ambas reconhecidas como unidades familiares (artigo 226, §§ 3º e 4º); a liberdade

atribuída ao casal para extinguir o casamento ou a união estável sempre que a afetividade

desaparecer (artigo 226, §§ 3º e 6º); o direito à convivência familiar como prioridade absoluta

da criança, do adolescente e do jovem (artigo 227)69

70

.

Na mesma esteira, a Lei n.º 11.340/2006, conhecida popularmente como Lei Maria da

Penha, ampliou a compreensão de entidade familiar para abranger “a comunidade formada

por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade

ou por vontade expressa”, atribuindo valor jurídico ao afeto e admitindo-o como princípio

norteador do Direito das Famílias71

.

Este panorama encerra um dilema de causalidade inevitável tal qual aquele que

motivou os filósofos antigos a pensarem a criação original e debaterem o início da vida e do

universo a partir da consideração de que a galinha nasceu do ovo e o ovo foi colocado pela

galinha. Considerando que o afeto é uma construção cultural que decorre da convivência

familiar em ambiente de solidariedade e responsabilidade e que não pode haver convivência

familiar sem afeto, infere-se que somente é possível afiançar o direito essencial da criança ou

do adolescente à convivência familiar se antes lhe for permitido desenvolver e construir a

afinidade e a afetividade que devem pautar o relacionamento com os seus parentes, inclusive

os da família estendida, conceituada no artigo 25, parágrafo único, do estatuto infantojuvenil.

A convivência familiar provém de princípios elementares de direito natural, da

necessidade de cultivar o afeto e de firmar os vínculos familiares que permitem a subsistência

Responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2011. pp. 18-24. 68

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 379. 69

LÔBO, P. L. N. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Disponível em:

<http://www.jfgontijo.adv.br/2008/artigos_pdf/Paulo_Luiz_Netto_Lobo/Entidades.pdf>. Acesso em: 15 jun.

2017. 70

LÔBO, P. apud DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

pp. 52-53. 71

BRASIL. Lei n.º 11.340, de 7 ago. 2006. Art. 5º, II.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

real e eficaz do ser humano, sendo uma necessidade vital da criança antes mesmo de

configurar um direito e ostentando o mesmo patamar de importância do direito fundamental à

vida72

. Acomoda-se dentre os direitos da personalidade, na categoria do direito à liberdade,

através do qual o indivíduo recebe as pessoas com quem deseja conviver73

. Ponderando que

crianças e adolescentes nem sempre terão condição de efetuar a livre escolha, tendo em vista a

sua singular condição de pessoas em formação, os responsáveis que as tenham sob guarda

deverão lhes proporcionar ocasião para conviverem com os membros da família extensa no

afã de edificarem um relacionamento sólido ou de ampliarem a sua aproximação, com base

em valores comuns, experiências compartilhadas e afeição mútua, salvo quando o próprio

interesse do infante assim não o autorizar, como se argumentou alhures.

Nesta linha de raciocínio, negar a possibilidade de convívio da criança ou do

adolescente com a sua família ampliada inviabiliza o desenvolvimento da cumplicidade e a

construção dos laços de afetividade. Significa negar amparo afetivo, moral e psíquico, mais

ainda, implica recusar o direito ao cuidado e à convivência familiar na sua gênese, o que

acarreta a violação de direitos próprios da personalidade humana e, por todas estas razões,

importa forma de negligência74

.

O impedimento pode decorrer não apenas de uma ação concreta, como a realização de

campanha desqualificadora, a proibição ou a criação de obstáculos ao contato, mas também

de uma postura passiva do guardião, ou seja, da omissão em fomentar o conviver regular,

particularmente para os mais novos e para os portadores de necessidades especiais que não

sejam capazes de fazê-lo por conta própria, devendo ser, de qualquer modo, rechaçado.

Não por outra razão Maria Berenice Dias, entendendo o afeto como traço identificador

dos laços familiares e a convivência familiar como elemento favorável ao bom

desenvolvimento e ao bem-estar de crianças e adolescentes, advoga que, apesar da

inexistência de previsão legal explícita, o direito de convivência entre tios e sobrinhos não

deve ser vetado, preconizando, ao revés, que se assegure o convívio quando a interação com o

familiar com quem o infante mantém laços de afeição atender aos seus interesses. A autora

identifica que o direito de visita se desdobra a parentes outros conforme se reconhece a

importância da preservação dos vínculos afetivos. Assim, além dos avós, também os tios,

padrastos, padrinhos, irmãos etc. podem perseguir o direito de conviver com crianças e

72

MACIEL, K. R. F. L. A. Direito fundamental à convivência familiar. In: MACIEL, K. (Coord.). Curso de

Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 143. 73

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 532. 74

CARVALHO, D. M. de. Adoção, Guarda e Convivência Familiar. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. p.

85.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

adolescentes quando os elos existentes entre eles forem dignos de resguardo75

.

A crítica que convém deduzir sobre o tema reside no fato de que a legislação é silente

tanto a respeito da família formada pela união de parentes colaterais, como grupo de irmãos,

por exemplo, como no que diz com a regulamentação do direito de convivência a partir do

critério socioafetivo, gerando insegurança e dificultando a resolução de conflitos no âmbito

familiar.

A carência de normas regulamentadoras sobre a matéria, no entanto, não tem o condão

de restringir o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes, fincado pela Carta

Magna e pela Lei n.º 8.069/1990 com eficácia plena e executoriedade imediata, exceto em

casos excepcionais, por motivos justificados a partir do superior interesse do menor, o qual

possui sentido extenso, inclusive nas questões familiares, devendo orientar as decisões de

modo a efetivar e preservar o que melhor atende ao desenvolvimento sadio da pessoa em

formação, sob todos os aspectos76

.

Na ausência de elementos concretos que demonstrem o prejuízo efetivo que o convívio

com determinado parente da família extensa pode trazer à criança ou ao adolescente com

quem compartilhe ancestralidade ou tenha a afinidade definida no artigo 1.595 do Código

Civil, não se deve admitir o seu afastamento em razão da eventual existência de rixas ou da

falta de paz no ambiente familiar. Espera-se, afinal, que os indivíduos na idade madura sejam

capazes de elaborar as suas frustrações e os seus sentimentos e tenham competência para

solucionar as disputas a que qualquer relacionamento está sujeito, distinguindo entre as suas

necessidades pessoais e os interesses das crianças ou adolescentes que façam parte do núcleo

familiar. Consentir com o distanciamento de criança ou adolescente da sua família ampliada

tão somente por conta da ocorrência de desencontros e desavenças entre os parentes mais

velhos implicaria esvaziar a proteção integral que lhes enaltece e reduzi-los a meros objetos

dos desejos dos adultos, o que não se admite em hipótese alguma77

.

O princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto base do ordenamento jurídico,

erigiu a criança e o adolescente à condição de pessoas de direitos, beneficiários de um sistema

75

DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. pp. 385 e 532.

Apesar de se referir a “direito de visitas”, a autora rejeita a expressão por reputá-la inadequada na medida em

que remete a uma “relação de índole protocolar, mecânica, como uma tarefa a ser executada entre ascendente e

filho, com as limitações de um encontro de horário rígido e de tenaz fiscalização”. 76

CARVALHO, D. M. de. Adoção, Guarda e Convivência Familiar. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. p. 7. 77

CARVALHO, D. M. de. Adoção, Guarda e Convivência Familiar. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. p.

74. Dissertando sobre os direitos fundamentais, o autor sentencia que não se admite qualquer ocorrência que

coisifique o ser humano e, citando Ingo Sarlet, assevera que “com fundamento na própria dignidade da pessoa

humana, poder-se-á falar também em um direito fundamental de toda pessoa humana a ser titular de direitos

fundamentais que reconhecem, assegurem e promovam justamente a sua condição de pessoa (com dignidade) no

âmbito de uma comunidade”.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

que privilegia a titularidade de direitos subjetivos na ótica familiar e pública com absoluta

prioridade. Os institutos que lhes tocam devem ser interpretados a partir de um enfoque

garantista, resguardando os seus vínculos de afeto e o seu direito de conviver com a família

nuclear e com a família estendida, direito este que deve ser respeitado e viabilizado pelo

guardião78

.

O direito à convivência alcança a família, reitera-se, não apenas no sentido restrito,

composta por pai, mãe, irmãos ou qualquer deles e os filhos, mas na concepção mais ampla

possível, considerando nela incluídos todos os que se conectam pela afetividade, pela

solidariedade e pelo respeito, vivendo em comunhão de sentimentos e valores, estimadas as

semelhanças e as diferenças nas formas de enxergar o mundo e de nele se posicionar, sujeitos

a quem se deve reconhecer e assegurar o direito à construção do afeto como manifestação

concreta do direito ao cuidado.

5 ALIENAÇÃO PARENTAL DA FAMÍLIA EXTENSA

A garantia de convivência familiar plena consulta a dignidade da pessoa humana e

preserva o melhor interesse da criança e do adolescente em consonância com a doutrina da

proteção integral e prioritária, vislumbrando-se indícios de alienação parental na resistência

injustificada dos genitores ou guardiões ao contato regular dessa população com os

ascendentes, os parentes colaterais e os afins. Com fundamento em seu direito de

personalidade, o infante tem direito de ser visitado, melhor dizendo, de conviver e

experimentar o afeto, não apenas com os pais e os avós, mas igualmente com bisavós, irmãos,

tios, primos, padrinhos, padrasto e madrasta e todos que lhe tenham estima79

.

A alienação parental é um fenômeno das relações familiares e se caracteriza

usualmente pela conduta do genitor alienador de afastar, alijar, destruir a imagem do outro

genitor ou de seus parentes para o filho por motivos de vingança relacionados às questões

conjugais, em total desrespeito ao direito fundamental da criança de conviver com seus

familiares de modo amplo, garantido na norma constitucional no artigo 22780

. Assim, a

78

BRAZIL, G. B. de M. Efetivação da decisão de Inversão de Guarda com fundamento na Alienação Parental.

Disponível em:

<http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/rcursodeespecializacao_latosensu/direito_processual_civil/edicoes/n1_

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DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 666. 80

BRAZIL, G. B. de M. Efetivação da decisão de Inversão de Guarda com fundamento na Alienação Parental.

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<http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/rcursodeespecializacao_latosensu/direito_processual_civil/edicoes/n1_

2013/pdf/GliciaBarbosadeMattoBrazil.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

síndrome da alienação parental desponta quase exclusivamente nos casos envolvendo a

disputa de guarda/custódia de filhos, o que não significa que não ocorra em relação à família

ampliada de um ou outro genitor no contexto em que ainda se mantenha a união do casal.

As regras de experiência comum demonstram que a natureza delicada dos

relacionamentos humanos, com maior intensidade no âmbito familiar, pode gerar contendas

intransponíveis entre os próprios consanguíneos que levem à alienação de determinado

parente por razões ilegítimas do ponto de vista do melhor interesse do sujeito vulnerável que

integre a relação. Assim, a mãe que tenha rompido com a sua genitora ou com o seu irmão

pode promover a alienação da avó materna ou do tio materno, repelindo o seu contato com o

neto/sobrinho, dentre inúmeros exemplos cogitáveis.

O artigo 2º da Lei n.º 12.318/2010 conceitua o ato de alienação parental, atribuindo-

lhe o objetivo de promover o repúdio da criança ou adolescente por um dos genitores, o

alienado, ou de prejudicar o estabelecimento ou a manutenção de vínculos com ele,

exemplificando as suas formas no parágrafo único. O dispositivo se refere expressamente à

alienação de membros da família extensa nos incisos VI e VII do seu parágrafo único, ao

dispor que a apresentação de falsa denúncia contra familiares do genitor alienado ou contra os

avós ou a mudança injustificada de domicílio para local distante, com o intento de obstar ou

dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente, configura ato de alienação

parental. O rol do referido artigo não é exaustivo, de modo que condutas não listadas podem

se enquadrar dentre as práticas da alienação parental, a depender do caso concreto.

A alienação parental desmerece a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e

os reduz a objetos da vontade do alienador, ferindo o seu direito fundamental à convivência

familiar saudável, prejudicando a realização do afeto nas relações com o genitor e o grupo

familiar e, ainda, constituindo abuso moral e descumprimento dos deveres inerentes à

autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda81

.

Embora tenha evidentemente buscado proteger o direito à convivência familiar da

criança e do adolescente, mais uma vez pecou o legislador infraconstitucional, deixando

escapar a oportunidade de disciplinar de modo expresso e específico os atos de alienação

direcionados aos parentes que integram a família extensa e as consequências deles advindas,

inclusive as medidas de proteção ao infante. Todavia, também neste particular, o silêncio do

poder legiferante não pode ser considerado eloquente de modo a excluir da abrangência da

81

BRASIL. Lei de Alienação Parental. Lei n.º 12.318, de 26 ago. 2010. Artigos 2º, caput e parágrafo único,

incisos IV e VII, e 3º.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2010/lei/l12318.htm>. Acesso em 22 jun.

2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

norma qualquer integrante do grupo familiar.

A Constituição da República e o Estatuto da Criança e do Adolescente não estipularam

limites ao direito à convivência familiar, como já se viu, de modo que o diploma legal em

comento não pode ser interpretado de forma restritiva, sob pena de esvaziamento da sua

agenda de prevenção do abuso no exercício do poder parental e de garantia do direito

fundamental à convivência familiar. Ao contrário, deve-se emprestar à sua interpretação a

máxima amplitude possível para admitir a ocorrência de alienação em desfavor de familiares

outros que não os pais, ainda que não ocorra propriamente uma campanha de desqualificação

por parte do genitor a quem estão relacionados, bem como a possibilidade de atuação judicial

para impedi-la, a teor do disposto no artigo 208, § 1º, da Lei n.º 8.069/199082

.

A alienação provoca o distanciamento afetivo da criança ou adolescente em face do

adulto alienado, podendo ser irreversível ou de difícil reconstrução, razão pela qual, uma vez

identificada, deve ser coibida com rigor. Beatrice Marinho Paulo, invocando Rosana Cipriano,

assevera que o combate à alienação parental é questão de interesse público:

[...] ante ao interesse social na formação de indivíduos plenos, providos em suas

necessidades psíquicas e a salvo de abusos morais, para o que se faz necessário

exigir uma paternidade/maternidade responsável, compromissada com as imposições

constitucionais, e com a higidez mental das crianças83

.

A prevenção esbarra na dificuldade de detectar a ocorrência da alienação parental

precocemente, uma vez que os seus atos são executados dentro dos lares, no âmbito privado

das relações familiares, e não geram efeitos imediatos. Em se tratando do rechaço de parentes

da família estendida, dificilmente os conflitos chegam a ser levados ao Poder Judiciário para

apreciação. É o que revela uma rápida pesquisa nos sítios eletrônicos dos principais Tribunais

de Justiça do nosso país, disponíveis na rede mundial de computadores84

.

No âmbito familiar, caberá aos dois genitores e a cada parente a fiscalização do

cumprimento do dever de incentivar o convívio familiar, uma vez que a materialização do

82

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Artigo 208. [...]. § 1º.

As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses individuais, difusos ou

coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela Lei. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 29 jun. 2017. 83

PAULO, B. M. Alienação Parental: diagnosticar, prevenir e tratar. In: Revista do Ministério Público. Rio de

Janeiro: Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 49, jul./set. 2013. p. 47. 84

Realizou-se pesquisa nas bases eletrônicas de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e

dos três maiores tribunais locais brasileiros, o Tribunal de Justiça de São Paulo, o Tribunal de Justiça do Rio de

Janeiro e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que concentravam mais de 50% das ações da Justiça estadual

em 2013, de acordo com levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/59864-tres-maiores-tribunais-concentram-mais-de-50-das-acoes-da- justica-

estadual>. Acesso em: 4 jul. 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

princípio do interesse superior é dever de todos85

. Qualquer parente ou o Ministério Público

poderá requerer em juízo as providências pertinentes para promover a segurança de criança ou

adolescente quando o pai ou a mãe abusar da sua autoridade e faltar com os seus deveres86

.

Na seara jurisdicional, competirá aos aplicadores da lei coibir as práticas abusivas verificadas

e dar efetividade às garantias constitucionais, protegendo os direitos infantojuvenis.

Convém registrar que, em regra, os operadores do Direito consideram fora de risco as

crianças e os adolescentes que se encontram sob o exercício regular do poder parental.

Favorecidos pela proteção dos pais, a estes incumbiria a defesa do seu direito à convivência

familiar, sendo desnecessária a interferência de qualquer outro ator social para garantia da

prerrogativa. A toda evidência, será preciso revisitar essa postura quando a vontade dos

genitores colidir com o interesse dos filhos na fruição do convívio com a família ampliada. O

Estado deverá, então, remediar a falha do poder familiar colocar a criança ou o adolescente no

seu lugar de sujeito de direitos, assegurando a sua integridade física e emocional, a exemplo

do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça nos casos em que o Ministério

Público reclama alimentos em proveito de menor87

.

A Lei n.º 12.318/2010 enuncia as medidas cabíveis para a repressão da prática da

alienação parental, havendo que se proceder à leitura da providência prevista no artigo 6º,

inciso II, de forma a que a possibilidade de ampliação da convivência familiar alcance não

apenas o genitor alienado, mas todo e qualquer parente vítima da alienação. O guardião que

inadimplir o dever de garantir o desenvolvimento emocional harmônico da sua cria poderá ser

punido e compelido a permitir a ampla convivência familiar por decisão judicial pautada na

razoabilidade, sopesadas as variáveis da hipótese – condições pessoais do guardião, vínculos

de afeto da criança ou adolescente com os adultos envolvidos na demanda, meios que melhor

assegurem o primado dos direitos do infante, tendo em conta, ainda, a gravidade do caso e o

85

AMIN, A. R. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, K. (Coord.). Curso

de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 73. 86

BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 jan. 2002. “Art. 1.637, caput. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua

autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo

algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e

seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha”. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 22 jun. 2017. 87

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Criança e Adolescente. Recurso Especial n.º 1.265.821-BA, Segunda

Seção, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgamento em 14 mai. 2014, DJe 4 set. 2014. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 7 jul. 2017. “DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.

AÇÃO DE ALIMENTOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO INDIVIDUAL

INDISPONÍVEL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC.

1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, aprovam-se as seguintes teses: 1.1. O Ministério Público tem legitimidade

ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente. 1.2. A legitimidade do Ministério

Público independe do exercício do poder familiar dos pais, ou de o menor se encontrar nas situações de risco

descritas no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou de quaisquer outros questionamentos acerca da

existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca. 2. Recurso especial provido”.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

nível da alienação88

. Ao se tratar do afeto com a família ampliada, serão considerados graves

a ameaça à continuidade do vínculo, a sua ruptura ou o impedimento injustificado à sua

construção.

A legislação que rege a convivência familiar e a alienação parental deve ser tomada,

portanto, por norma aberta, cujo conteúdo comporta um mínimo legal e consente com uma

interpretação extensiva a fim de possibilitar o respeito, a materialização de direitos e a

primazia no atendimento do interesse supremo dos menores de dezoito anos. Segundo a

sentença de Andréa Rodrigues Amin em discurso sobre o princípio da prioridade absoluta, a

qual se amolda perfeitamente à presente discussão, “não é lícito que por preciosismo e apego

à norma se renuncie ao bom senso”89

.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O escopo geral deste trabalho foi analisar a legislação que dispõe sobre as relações de

parentesco e a convivência familiar assegurada a crianças e adolescentes, sob o foco do

melhor interesse e da proteção integral e prioritária, confrontando-a com os princípios que

regem a matéria, o posicionamento da doutrina e o entendimento firmado pela jurisprudência

nacional, em busca da compreensão do significado e da abrangência real deste direito ante as

diferentes constelações familiares possíveis.

A evolução da pesquisa atendeu às expectativas e cumpriu os objetivos propostos, na

medida em que permitiu demonstrar que a família ampliada têm papel relevante e

indispensável em todas as etapas do percurso do desenvolvimento humano, oferecendo

segurança e estabilidade às suas crianças e adolescentes, mormente se o referencial da família

nuclear tiver se perdido por qualquer motivo.

Com efeito, a maturação do ser humano é processo complexo e contínuo que se inicia

com o nascimento e perdura por toda a vida. Suas etapas ocorrem de modo particular, de

acordo com o ritmo de cada pessoa, e compreendem não apenas as fases de evolução

fisiológica do organismo, mas também o crescimento emocional e o desenvolvimento de

aptidões sociais.

88

BRAZIL, G. B. de M. Efetivação da decisão de Inversão de Guarda com fundamento na Alienação Parental.

Disponível em :

<http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/rcursodeespecializacao_latosensu/direito_processual_civil/edicoes/n1_

2013/pdf/GliciaBarbosadeMattoBrazil.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2017. 89

AMIN, A. R. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, K. (Coord.). Curso

de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 68.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Estes caminhos serão trilhados com maior sucesso conforme o indivíduo tenha as suas

necessidades básicas suficientemente supridas ao nascer e durante a primeira infância e receba

os cuidados, materiais e imateriais, adequados a cada estágio do seu aperfeiçoamento humano

em um ambiente de amor, respeito e proteção.

O sujeito amparado com carinho desenvolverá as suas potencialidades inatas e

adquirirá habilidades que o capacitarão a caminhar com segurança para o seu futuro, agir com

ética em sociedade e exercer a sua cidadania com plenitude. Interessa a toda a comunidade

que as suas crianças e os seus adolescentes sejam educados em meio que lhes proporcione

essas conquistas.

A família biológica costuma se apresentar como o primeiro acesso do bebê aos

cuidados essenciais dos quais depende a sua sobrevivência física e psíquica, exercendo papel

fundamental no desenvolvimento dos seres humanos que a integram e na construção da

felicidade de cada um. Todos os seus membros, sejam da unidade nuclear ou do grupo

estendido, têm responsabilidade pela promoção do bem-estar dos descendentes comuns e pela

prestação de cuidado, que é dever natural e jurídico acometido solidariamente à família, à

sociedade e ao Estado.

De tal modo, a convivência familiar afetuosa é a ferramenta que, permeada pelos

aspectos sociais, culturais, econômicos e psicológicos, proporciona à população

infantojuvenil, no decurso da formação da sua personalidade, a realização espiritual, a

construção da sua identidade individual e a tomada de lugar no mundo.

Assim, a família obteve proteção na comunidade internacional e no ordenamento

constitucional pátrio e a convivência familiar foi erigida à categoria de direito fundamental,

outorgada com prioridade absoluta às crianças e aos adolescentes, qualquer que seja a sua

situação jurídica, se inserida no seio da família natural ou de família substituta, residente em

instituição de acolhimento ou em conflito com a lei, desde que, em toda hipótese, estejam

assegurados a sua condição de sujeitos de direitos, a sua proteção integral e o seu superior

interesse.

Em circunstâncias nas quais se identifique que o bem-estar da criança ou do

adolescente está preservado, quiçá favorecido, o direito à convivência abrange o convívio

com todos os familiares – pais, ascendentes, colaterais e afins – e a sua promoção deve

principiar pelo distanciamento do infante dos conflitos porventura existentes entre os adultos

e pela oferta de oportunidade para que conheça os seus parentes e com eles estabeleça laços

saudáveis de afetividade e afinidade na forma da lei.

A afeição é uma via de mão dupla. As crianças e os adolescentes terão apreço por

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

quem tratar deles com ternura, assentando relações de cuidados mútuos que, cada qual na sua

proporção, contribuirão para o seu desenvolvimento psíquico pleno. Quanto mais extensa for

a rede afetiva do indivíduo em formação, melhores serão as suas chances de superar os

desafios cotidianos e maiores as possibilidades de concretizar os seus ideais e os seus

projetos.

Mesmo as eventuais frustrações vivenciadas no ambiente familiar têm participação

significativa no processo de amadurecimento do sujeito e, como fatos próprios da vida,

preparam as crianças e os adolescentes para as adversidades e as decepções que enfrentarão

no mundo exterior.

A interpretação e a aplicação das normas de regência da matéria devem ser efetuadas,

portanto, de modo a promover a integração dos direitos constitucionalmente assegurados e

dos princípios que orientam a efetivação desses direitos a todas as crianças e adolescentes,

prestigiando os vínculos de amor e afeto que unem cada membro da entidade familiar.

Diante dessas considerações, é imperativo que se compreenda que nenhuma iniciativa

poderá restringir a abrangência do direito à convivência familiar, sob pena de ser reputada

inconstitucional quando confrontada com o superior interesse da criança e do adolescente e,

ainda, que se reconheça que recusar a oportunidade para que crianças e adolescentes

construam o afeto com os familiares do seu núcleo estendido configura abuso da autoridade

familiar e pode conformar condenável prática de ato de alienação parental.

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