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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018. A IGNORÂNCIA PROPOSITAL E A IMPUTAÇÃO SUBJETIVA EM SITUAÇÕES PROVÁVEIS: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA Gabriela de Aguillar Lima* RESUMO: Com base na doutrina, o trabalho começa por delinear os aspectos pertinentes aos institutos do dolo e da culpa, classificando, categorizando e situando a cegueira deliberada. Analisa as disposições do Model Penal Code, nos Estados Unidos da América, casos emblemáticos no direito internacional e as incipientes aplicações da Cegueira Deliberada no Brasil. Comenta distinções doutrinárias entre ignorância e cegueira deliberadas. Analisa acórdãos em que o instituto é relevantemente considerado em nossos tribunais e conclui pela ineficiência da doutrina clássica para dar conta desse tema e pela necessidade de evolução e parametrização de critérios para a aplicação da Cegueira Deliberada em conjunto com a ideia de dolo normativo. Palavras-chave: Teoria da Cegueira Deliberada. Willfull blindness ou conscious avoidance doctrine. Instruções de avestruz. Ignorância proposital. Ignorância intencional. Dolo normativo. Sumário: 1 Teoria do tipo subjetivo dolo e culpa. 2 Teoria da cegueira deliberada. 2. 1 Histórico. 2.2 Características do Instituto. 3 Aplicação no Direito Brasileiro. 4. Acórdão analisado. 5 Considerações Finais. Referências Bibliográficas. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não veem. (SARAMAGO, 1995) 1 TEORIA DO TIPO SUBJETIVO DOLO E CULPA Como de notório conhecimento, o crime deve ser analisado sob três aspectos: tipicidade, ilicitude e culpabilidade. A tipicidade é composta de conduta (culposa ou dolosa), resultado e nexo causal. Limitarmos à análise dos elementos subjetivos do tipo, cuja compreensão é fundamental para a delimitação do campo de estudo da teoria da cegueira deliberada. * Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Ciências Criminais pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro IEP/MPRJ.

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

A IGNORÂNCIA PROPOSITAL E A IMPUTAÇÃO SUBJETIVA

EM SITUAÇÕES PROVÁVEIS: BREVES CONSIDERAÇÕES

ACERCA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

Gabriela de Aguillar Lima*

RESUMO: Com base na doutrina, o trabalho começa por delinear os aspectos pertinentes aos

institutos do dolo e da culpa, classificando, categorizando e situando a cegueira deliberada.

Analisa as disposições do Model Penal Code, nos Estados Unidos da América, casos

emblemáticos no direito internacional e as incipientes aplicações da Cegueira Deliberada no

Brasil. Comenta distinções doutrinárias entre ignorância e cegueira deliberadas. Analisa

acórdãos em que o instituto é relevantemente considerado em nossos tribunais e conclui pela

ineficiência da doutrina clássica para dar conta desse tema e pela necessidade de evolução e parametrização de critérios para a aplicação da Cegueira Deliberada em conjunto com a ideia

de dolo normativo.

Palavras-chave: Teoria da Cegueira Deliberada. Willfull blindness ou conscious avoidance

doctrine. Instruções de avestruz. Ignorância proposital. Ignorância intencional. Dolo

normativo.

Sumário: 1 Teoria do tipo subjetivo – dolo e culpa. 2 Teoria da cegueira deliberada. 2. 1

Histórico. 2.2 Características do Instituto. 3 Aplicação no Direito Brasileiro. 4. Acórdão

analisado. 5 Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que

vêem, cegos que, vendo, não veem”. (SARAMAGO, 1995)

1 TEORIA DO TIPO SUBJETIVO – DOLO E CULPA

Como de notório conhecimento, o crime deve ser analisado sob três aspectos:

tipicidade, ilicitude e culpabilidade. A tipicidade é composta de conduta (culposa ou dolosa),

resultado e nexo causal. Limitarmos à análise dos elementos subjetivos do tipo, cuja

compreensão é fundamental para a delimitação do campo de estudo da teoria da cegueira

deliberada.

* Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Ciências Criminais

pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – IEP/MPRJ.

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A teoria finalista da ação, preconizada por Hanz Welzel em meados do século XX,

parte da premissa de que toda ação humana é dirigida a uma finalidade. O crime é o

comportamento humano, voluntário, psiquicamente dirigido a uma finalidade, antijurídico e

culpável. O grande marco da teoria finalista foi a alocação dos elementos subjetivos do tipo

(dolo e da culpa) na estrutura do fato típico (especificamente, na conduta), sendo conferida

maior importância ao desvalor da conduta do que ao desvalor do resultado. A culpabilidade

passa a representar meramente um juízo de reprovação.

Os elementos subjetivos do tipo são o dolo e a culpa e é importante delimitar seu

campo de abrangência para que o agente não sofra uma imputação injusta. Os limites do

desconhecimento da lei e das circunstâncias fáticas também devem ser deve ser definidos,

para evitar que o agente não se valha da alegação de desconhecimento para se eximir de sua

responsabilidade.

Importante premissa deve ser esclarecida. Enquanto a doutrina brasileira, cuja teoria

do finalismo se mostra tão arraigada e sedimentada, enaltece a noção de dolo ontológico,

percebe-se que a jurisprudência começa a adotar, ainda que de forma tímida, a idéia de dolo

normativo, no qual se pretende perquirir o elemento subjetivo do agente com base em

elementos objetivos.

O dolo traduz-se na consciência e vontade de praticar os elementos objetivos do tipo e

é composto dos elementos cognitivo (intelectual) e volitivo. O agente, no atuar doloso, tem

conhecimento dos fatos e das circunstâncias e opta por agir de determinada maneira, o que

engloba o domínio sobre os atos praticados (aqui também são inseridos os riscos do

comportamento). Além disso, o agente tem vontade de se comportar daquela maneira e quer a

realização do tipo objetivo.

O dolo pode ser direto, na hipótese em que o agente quer a produção do resultado,

sendo subdividido em dolo direto de primeiro grau (finalidade precípua do agente) ou de

segundo grau (também chamado de dolo de consequências necessárias, pois há aceitação dos

resultados necessários para se atingir o fim desejado).

Já o dolo indireto ou eventual é verificado na hipótese em que o agente, embora não

queira a produção do resultado, anui com essa possibilidade, já que aceita o provável e é

indiferente a sua ocorrência. Ele tem consciência dos riscos de sua conduta, prevê que dela

poderá advir certo resultado, mas se mostra indiferente caso ele aconteça. Há possibilidade de

um segundo resultado não desejado, porém previsível.

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A culpa, por sua vez, traduz-se na violação a um dever objetivo de cuidado. A despeito

de o artigo 18, inciso II, do Código Penal, estabelecer que o atuar será culposo quando o

agente der causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia, não vemos razão

para subsunção apenas nessas formas de agir, sendo mais abrangente e adequada a utilização

da expressão “violação do dever objetivo de cuidado”.

Os elementos do crime culposo são: i) inobservância do dever de cuidado; ii)

previsibilidade objetiva do resultado e iii) resultado advindo de forma involuntária.

O crime culposo traz ínsita a idéia de desvalor da ação (inobservância do dever de

cuidado) e pune o comportamento proibido pelas regras mínimas desse dever. Há

previsibilidade objetiva do resultado, porém esse é involuntário. Some-se a isso o desvalor do

resultado em razão da inobservância do dever de cuidado (desvalor da ação).

As regras de cuidado podem advir da norma ou do comportamento social. Em razão de

o agente ter a possibilidade de não conhecer em que consiste o dever de cuidado e/ou a norma

impositiva desse dever, Claus Roxin sustenta que o crime culposo tem como fundamento

necessário a idéia de risco, sendo a criação ou incremento de um risco juridicamente proibido

a base da famosa Teoria da Imputação Objetiva.

A culpa é dividida em consciente, na hipótese em que o resultado é previsto, e

inconsciente, na situação em que, mesmo previsível e não desejado, o agente acredita que

pode agir e neutralizar as conseqüências do resultado.

Embora não seja o escopo desse trabalho, não poderíamos deixar de consignar nossa

posição, no sentido de que a culpa em sentido estrito, no Direito Penal, deveria ser extinta,

ficando a cargo de outros ramos do Direito a resposta em relação à sanção sobre o atuar

culposo, em homenagem aos Princípios da Intervenção Mínima e da Subsidiariedade.

Entendemos ser mais danoso à sociedade a presença de comportamentos cuja intenção seja

eminentemente criminosa do que aqueles descuidados, razão pela qual as condutas seriam

subsumidas às ideias do dolo eventual e a valoração sobre o grau de culpabilidade seria

levado em conta quando da quantificação da pena.

Embora objeto do trabalho não seja esmiuçar os institutos do dolo e da culpa, faz-se

necessário estabelecer certas diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente, a fim de

situar o espectro de estudo da Teoria da Cegueira Deliberada.

Há dois grupos de teorias para a diferenciação de tais institutos, que serão expostos de

maneira suscinta. As Teorias Volitivas fundamentam-se no dolo, à margem de qualquer

critério normativo. São elas: i) Teoria do Consentimento - o agente sabe que o resultado

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danoso pode ocorrer, esse não é seu objetivo, porém não o desaprova; ii) Teoria da

Indiferença - o agente tem consciência de que a conduta é arriscada, confia na não ocorrência

de resultados indesejados, mas se mostra indiferente caso esses advenham.

Já as Teorias Cognitivas fazem parte do outro grupo que estuda a diferença entre dolo

eventual e culpa consciente. Para tal grupo, interessa se o agente conhecia o perigo que

deveria ter sido levado a sério, mas não foi. Em suma: não importa se o agente levou a sério o

risco, contanto que tivesse prévio conhecimento.

A primeira espécie a ser estudada é a Teoria da Representação, a qual afirma que, se

um agente tem consciência de que sua conduta é adequada para atingir o resultado lesivo, tal

já é suficiente para a caracterização do dolo. Basta provar a representação da possibilidade de

que sua conduta seja adequada para produzir um resultado lesivo para que seja caracterizado o

dolo. É menos problemático provar a consciência com elementos objetivos do que cm

elementos subjetivos intrínsecos, realmente descobrir a real vontade do agente.

A segunda espécie é a Teoria da Probabilidade, que prega estar configurado o dolo

eventual quando o sujeito considera o resultado lesivo provável. O “possível” não é suficiente

para caracterização do dolo e, se o agente assume que o resultado é provável, é porque

reconhece que sua conduta acarreta riscos. Já se o agente confia na inocorrência do elemento

típico, tem-se a culpa consciente.

Para a Teoria da Qualidade do Perigo Conscientemente Criado, preconizada por

Puppe, estar-se-á diante de dolo eventual na hipótese em que o agente sabe que seu

comportamento é idôneo a causar um resultado lesivo e despreza a integridade do bem

jurídico. Caso o agente acredite que sua conduta perigosa é idônea a causar o resultado, a

hipótese será de dolo. Já se o agente acreditar que sua conduta perigosa não é capaz de causar

o resultado, estaremos diante de hipótese de culpa. O perigo será um perigo doloso quando

representar uma forma idônea para provocação do resultado. Além disso, sendo o perigo de

tal magnitude que se apresenta com grande força na visão do agente, sua confiança na

inadequação de sua conduta para causar o resultado induz a uma recusa de se posicionar

diante do perigo e essa indiferença será reprovada. Se o perigo é intenso e se apresenta com

grande evidência diante dos olhos do autor, esta ‘confiança’ nada mais representa que uma

recusa de tomar posição diante do perigo, sendo que é essa indiferença que deverá ser

reprovada no autor doloso.

Por fim, como quarta espécie do gênero ‘teoria cognitiva’, temos a Teoria da Cegueira

Deliberada, objeto precípuo desse estudo e cuja análise será desenvolvida no tópico a seguir.

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2 TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

2.1 HISTÓRICO

Hodiernamente, há situações limítrofes e que não encontram adequação completa nos

conceitos tradicionais de dolo ou culpa. Pode-se até fazer um esforço para enquadrá-las no

dolo eventual ou culpa consciente, porém, em nossa concepção, devem ser analisadas de

forma autônoma e, se for o caso (mas não necessariamente), amoldar-se àqueles conceitos.

A teoria surgiu como tentativa de suprir situações lacunosas, em que o agente se

coloca propositadamente numa situação de ignorância e, caso não se debruçasse sobre os

elementos volitivos que permeiam a ignorância, ensejariam a absolvição.

Não se pode negar que as pessoas praticam condutas e, dependendo do campo de

atuação, há uma responsabilidade especial no atuar, sendo descabida a alegação de ignorância

sobre aspectos que o sujeito tem dever social, moral - quiçá legal -, de conhecimento e

evitação do resultado. O desenvolvimento de atividades econômicas, de gestão, entre outros,

exigem precauções dos responsáveis, que têm o dever de praticá-las sob a égide da boa-fé

(objetiva e subjetiva) e adoção de providências para evitar a ocorrência de resultados lesivos

ao ordenamento jurídico penal, sob pena de servirem de meio de garantia à impunidade e

acobertamento de ilícitos perpetrados por terceiros, oportunidade em que o ilícito poder-lhe-á

ser atribuído.

Não há um consenso doutrinário sobre os elementos que compõem a Teoria da

Cegueira Deliberada (willful blindness ou conscious avoidance doctrine), também conhecida

como “instruções de avestruz”. Por se tratar de construção advinda do common law, por vez

se afigura mais esclarecedora a análise do caso concreto.

Em linhas gerais, a teoria sustenta a equiparação entre o conhecimento efetivo de que

a conduta do sujeito contribui para a prática de um delito a situações em que, estando este

conhecimento acessível, o sujeito opta deliberadamente por não acessá-lo. Segundo Ramón

Ragués Vallés, três são os requisitos para a aplicação da teoria: (i) a falta de representação

total dos elementos típicos; (ii) a decisão do sujeito de permanecer em um estado de

ignorância; e (iii) o propósito de beneficiar-se deste estado de ignorância1.

1 RAGUÉS VALLÉS, Ramón. La Doctrina de la Ignorancia Deliberada y su Aplicación al Derecho Penal

Económico-Empresarial. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MIRÓ LLINARES, Fernando (Org.). La teoria

del delito em la práctica penal económica. España: La Ley, 2013.

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Na lição de Gustavo Badaró e Pierpaolo Bottini:

A cegueira deliberada equiparada ao dolo e ventual exige, em primei ro

lugar, que o agente crie consciente e voluntariamente barrei ras ao seu

conheci mento , com a intenção expressa de deixar de tomar contato

com a atividade ilí cit a, caso ela ocorra (NR. 139). A desídia ou a

negligência na criação de mecanismos de cont role de atos de l avage m

de dinhei ro não é suficiente ao dolo eventual, caracterizando apenas a

ceguei ra imprudente. (.. .) A falt a de percepção da violação da nor ma

de cuidado afasta o dolo e ventual . Por outro l ado, se o mesmo diretor

desati va o setor de cont role i n terno, e suspende os mecanis mos de

regist ro de dados sobre as t ransações de cli entes, com a di reta

intenção de afastar os f iltros de cuidado, pode criar uma situação de

ceguei ra deliberada. Mas, para isso há um segundo requisito: o agente

deve representar que a criação das barrei ras de conheci mento facilit ará

a práti ca de atos infracionais sem sua ciência. (.. .) Co mo afi rma Moro:

‘Desde que presentes os requis itos exigidos pela dout rina da

‘ignorância del iberada’, ou seja, a pro va de que o agente tinha

conheci mento da ele vada probabilidade da natureza e origem

criminosas dos bens, direitos e valores envol vidos, e quiçá de que ele

escolheu agir e permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos,

ou seja, desde que presentes os elementos cognosci vo e voli ti vo, não

se vislumbra objeção jurídica ou moral para reputá -lo responsável pelo

resultado deliti vo . (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 144-145)

A fim de possibilitar uma análise completa do instituto, suas bases

filosóficas e desenvolvimento, passaremos à breve análise histórica sobre o

surgimento e evolução do instituto.

O primeiro julgado que mencionou essa teoria foi em 1861, na Inglaterra, no caso

Regina versus Sleep. Um ferreiro embarcou em um navio com um barril contendo parafusos

de cobre com o símbolo real – e, portanto, de propriedade do Estado. O acusado foi

considerado culpado pelo júri por malversação de bens públicos. Entretanto, acabou absolvido

pelo juiz, que levou em conta que o agente não tinha conhecimento de que os parafusos

estavam marcados como propriedade do Governo (tal conhecimento era elementar do tipo) e

nem que ele propositadamente se absteve de obter tal conhecimento.

A despeito de não ter havido condenação, uma mudança de paradigma começou a ser

aventada, na medida em que se equiparou ao conhecimento real o fato de alguém se abster de

buscar o conhecimento, sendo possível fazê-lo.

Ainda na Inglaterra, em 1875, no caso Bosley versus Davies, a teoria começa a ganhar

força. Davies era proprietário de uma pensão e foi acusado de permitir a realização de jogos

ilegais em suas dependências. O acusado alegou desconhecimento dessa prática mas, ao revés

do primeiro julgado, foi considerado culpado, sob o fundamento de que o conhecimento real

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não era obrigatório para configuração do crime, bastando a existência de circunstancias que

levassem à presunção de que Daves e seus funcionários eram coniventes com tal prática.

Em 1899, os Estados Unidos, no célebre caso Spurr versus United States, passou a

assumir a teoria como válida em seu ordenamento. Spurr, presidente do Commercial National

Bank of Nashville, certificou diversos cheques de uma pessoa jurídica sem verificar, de forma

adequada, a suficiente provisão de fundos. Como mencionado de forma clara por Spencer

Toth Sydow:

A corte, no julgado, apontou que a expressão “deliberada” (willful) exigiria tanto

intenção quanto conhecimento (semelhante ao binômio vontade e consciência), mas

que o propósito malicioso (figura equiparada ao elemento subjetivo do tipo da

doutrina brasileira) do agente poderia ser presumido em situações em que este se

coloca propositadamente em posição de ignorância. (SYDOW, 2017, p. 78-79.)

(sem grifos no original)

De acordo com as conclusões da Suprema Corte no caso específico, a má intenção

seria presumida nas hipóteses em que o agente se mantém deliberadamente na ignorância

acerca da existência de fundos na conta bancária ou quando mostra grande indiferença a

respeito de seu dever de se assegurar acerca desta circunstância. Passou-se a entender que o

acusado poderia ser condenado se tivesse fechado os olhos para algum fato criminalmente

relevante, ou seja, a autocolocação na ignorância.

Apesar de começar a ser difundida e aceita no common law, a Teoria da Cegueira

Deliberada carecia de parâmetros objetivos. A partir da década de 1970, a teoria começa a ser

aplicada em casos de tráfico de drogas.

Antes de prosseguir com a análise dos julgados, faz-se necessária a menção ao Model

Penal Code, normativa criada pelo American Law Institute no ano de 1962. Não se trata de

uma lei propriamente dita (como se fosse um Código Penal, nos modelos de países que

adotam o civil law), mas documento elaborado por juristas que trouxe diversos conceitos, a

fim de uniformizar a interpretação da lei penal – lembre-se que, à época, havia 52 (cinquenta

e dois) Códigos Penais diferentes nos Estados Unidos da América. O Model Penal Code

trouxe mais segurança por ser uma base interpretativa a ser utilizada como fundamentação em

todo o país e foi um marco na história jurídica dos Estados Unidos.

O Código Penal Modelo trouxe pela primeira vez a ideia de culpabilidade (na

concepção de comportamento culpável, reprovável) e foram estabelecidos 4 graus de

subjetividade no direito norteamericano: i) com intencão (purposely); ii) com conhecimento

certo de um resultado delitivo (knowlingly); iii) com irresponsabilidade, sem consideração

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diante dos efeitos de um risco criado (recklessly) e iv) com negligência (negligently), o que

equivale à concepção de culpa em sentido estrito do Direito Penal Brasileiro.

A seção 2.02 trouxe as noções gerais de culpabilidade, conforme a seguir

demonstrado:

MODEL PENAL CODE - 2.02 General Requirements of Culpability2.

(1) Minimum Requirements of Culpability. Except as provided in Section 2.05, a

person is not guilty of an offense unless he acted purposely, knowingly, recklessly

or negligently, as the law may require, with respect to each material element of the

offense.

(2) Kinds of Culpability Defined.

(a) Purposely - A person acts purposely with respect to a material element of an

offense when (i) if the element involves the nature of his conduct or a result thereof,

it is his conscious object to engage in conduct of that nature or to cause such a

result; and (ii)bifbthe element involves the attendant circumstances, he is aware of

the existence of such circumstances or he believes or hopes that they exist.

(b) Knowingly - a person acts knowingly with respect to a material element of an

offense when (I) if the element involves the nature of his conduct or the attendant

circumstances, he is aware that his conduct is of that nature or that such

circumstances exist; and (ii) if the element involves a result of his conduct, he is

aware that it is practically certain that his conduct will cause such a result.

(c) Recklessly - a person acts recklessly with respect to a material element of an

offense when he consciously disregards a substantial and unjustifiable risk that the

material element exists or will result from his conduct. The risk must be of such a

nature and degree that, considering the nature and purpose of the actor's conduct and

the circumstances known to him, its disregard involves a gross deviation from the

standard of conduct that a law-abiding person would observe in the actor's situation.

(d) Negligently - a person acts negligently with respect to a material element of an

offense when he should be aware of a substantial and unjustifiable risk that the

material element exists or will result from his conduct. The risk must be of such a

nature and degree that the actor's failure to perceive it, considering the nature and

purpose of his conduct and the circumstances known to him, involves a gross

deviation from the standard of care that a reasonable person would observe in the

actor's situation.

(3) Culpability Required Unless Otherwise Provided. When the culpability sufficient

to establish a material element of an offense is not prescribed by law, such element

is established if a person acts purposely, knowingly or recklessly with respect

thereto.

(4) Prescribed Culpability Requirement Applies to All Material Elements. When the

law defining an offense prescribes the kind of culpability that is sufficient for the

commission of an offense, without distinguishing among the material elements

thereof, such provision shall apply to all the material elements of the offense, unless

a contrary purpose plainly appears.

(5) Substitutes for Negligence, Recklessness and Knowledge. When the law

provides that negligence suffices to establish an element of an offense, such element

also is established if a person acts purposely, knowingly or recklessly. When

recklessness suffices to establish an element, such element also is established if a

person acts purposely or knowingly. When acting knowingly suffices to establish an

element, such element also is established if a person acts purposely.

2 Disponível em:

<http://www.cs.xu.edu/~osborn/main/lawSchool/criminalHtml/bottomScreens/Briefs/Model%20Penal%20Code

%20Section%202.02.htm>. Acesso em: 18 fev. 2018, 13:30.

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(6) Requirement of Purpose Satisfied if Purpose Is Conditional. When a particular

purpose is an element of an offense, the element is established although such

purpose is conditional, unless the condition negatives the harm or evil sought to be

prevented by the law defining the offense.

(7) Requirement of Knowledge Satisfied by Knowledge of High Probability. When

knowledge of the existence of a particular fact is an element of an offense, such

knowledge is established if a person is aware of a high probability of its existence,

unless he actually believes that it does not exist. (sem grifos no original)

(8) Requirement of Wilfulness Satisfied by Acting Knowingly. A requirement that

an offense be committed willfully is satisfied if a person acts knowingly with respect

to the material elements of the offense, unless a purpose to impose further

requirements appears.

(9) Culpability as to Illegality of Conduct. Neither knowledge nor recklessness or

negligence as to whether conduct constitutes an offense or as to the existence,

meaning or application of the law determining the elements of an offense is an

element of such offense, unless the definition of the offense or the Code so provides.

(10) Culpability as Determinant of Grade of Offense. When the grade or degree of

an offense depends on whether the offense is committed purposely, knowingly,

recklessly or negligently, its grade or degree shall be the lowest for which the

determinative kind of culpability is established with respect to any material element

of the offense.

Importante destaque para a abordagem do tema é a noção de que o conhecimento real

pode ser verificado pela circunstância de conhecimento de alta probabilidade, conforme

estabelecido na seção 2.02(07). Em tradução livre, a norma estabelece que, na hipótese em

que o conhecimento da existência de um fato particular é elementar de um crime, tal

conhecimento se perfaz quando o agente está ciente de uma alta probabilidade da sua

existência, a menos que ele acredite que essa probabilidade não exista.

Uma das críticas a essa idéia de alta probabilidade revela-se no sentido de redução do

campo de atuação da teoria da cegueira deliberada, na medida em que apenas nos casos em

que a suspeita for de tal monta que induza à alta probabilidade de ocorrência do resultado é

que se poderá aplicar a aludida teoria como forma de suprir o dolo ontológico.

As premissas do Model Penal Code foram utilizadas em 1969, no caso Leary versus

United States, que versava sobre o transporte doloso de droga importada e fundamentou-se na

teoria da cegueira deliberada para imputar o conhecimento da posse da droga ao agente, que

foi condenado.

Em 1976, o caso United States versus Jewell passou a ser o marco referencial do tema.

Trata-se de um caso criminal em que o tribunal considerou que ignorância intencional

satisfazia os requisitos de conhecimento de um fato. A exploração do caso deu origem à

instrução do júri conhecida como “instrução de avestruz”.

Jewell foi abordado em um bar ao longo da fronteira entre o México e os Estados

Unidos e, depois de ter sido perguntado sobre a venda de maconha e negado conhecimento,

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uma pessoa perguntou se ele dirigiria um carro pela fronteira por US$ 100,00 (cem dólares), o

que foi aceito. O carro foi parado na fronteira e, após inspeção, foram encontradas 110 (cento

e dez) libras de maconha em um compartimento do carro que Jewell sabia existir, mas não

inspecionou. A lei exigia conhecimento de que a maconha estava no carro e o réu alegava

desconhecimento do que efetivamente transportava, apesar de reconhecer a suspeita de que

era algo ilegal.

O Tribunal de Apelação asseverou que a ignorância deliberada e o conhecimento

positivo são igualmente culposos. Agir com consciência englobaria tanto o agir com

conhecimento positivo quanto o agir com consciência da alta probabilidade do fato em

questão.

A partir desse julgado, a aplicação da teoria da cegueira deliberada começou a ser

norteada pelas noções de probabilidade, de acordo com a regra 2.02(7) do Model Penal Code.

Recentemente, no ano de 2010, outro caso emblemático e que trouxe novo passo para

a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada foi o Globaltech Appliances Inc. Versus SEB

S.A., no qual a teoria foi utilizada em um caso de natureza cível.

Na Espanha, país que adota o sistema do civil law, há diversos casos de aplicação da

teoria ora abordada, que encontrou bastante aceitação naquele ordenamento. O primeiro

julgado foi no ano de 2000, em um julgado do Tribunal Supremo Espanhol, em que o relator

Giménez García afirmou expressamente se tratar de situação em que o agente não quer saber

aquilo que pode e deve conhecer. Tal acarreta, em sua visão, um estado de não representação

de um elemento do tipo, sendo necessárias três características: i) a possibilidade de o agente

abandonar a situação de ignorância, caso queira; ii) o dever de procurar obter o conhecimento

real e iii) o agente, ao se colocar ou manter em situação de ignorância, visa à obtenção de

alguma vantagem.

Em breves linhas, a fim de situar o leitor, consigna-se que o caso versava sobre a

revisão de condenação de sujeito por receptação em razão do transporte de vultosa quantia em

dinheiro oriunda do tráfico de drogas. O réu, como esperado, negou o conhecimento da

origem dos valores, porém a condenação foi mantida levando em conta as premissas acima

mencionadas.

Na Espanha, a partir de determinado momento, passou-se a considerar a cegueira

deliberada como um “princípio”, como uma nova forma de imputação subjetiva além do dolo

e da culpa. Entretanto, as premissas, requisitos e espectro de atuação não estão pacificadas,

talvez até mesmo por se tratar de instituto relativamente recente.

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Ultrapassadas as premissas históricas do instituto, passaremos à análise da teoria da

cegueira deliberada e sua aplicação e desenvolvimento no Direito Brasileiro.

2.2 CARACTERÍSTICAS DO INSTITUTO

Devemos sempre ter em mente que a teoria foi desenvolvida para os casos em que o

agente pratica uma conduta fingindo não estar percebendo a ilicitude, pois seu intuito é não

ser responsabilizado. O agente coloca-se numa posição deliberada de ignorância e pretende

alegar o desconhecimento da situação fática para que não seja alcançado pela norma punitiva

– penal ou cível.

Na verdade, o dolo do agente é realmente não conhecer tal situação, passível de

conhecimento, para que, no futuro, possa se valer desse desconhecimento para se eximir da

responsabilização. Na verdade, pode-se até cogitar que se trata da aplicação do dolo numa

conduta omissiva.

As regras atuais exigem que o órgão acusador prove a existência dos elementos

subjetivos do tipo, o que, muitas vezes, é de difícil caracterização partindo das premissas

clássicas de dolo e culpa. Com o intuito de permitir a comprovação de dolo, conhecimento,

anuência e eventuais elementos subjetivos exigidos como elementares do tipo, foram

preconizadas circunstâncias que, analisadas no contexto fático, levariam à conclusão do atuar

doloso.

Spencer Toth Sydow3, autor brasileiro que mais se debruçou sobre o tema, propõe a

diferenciação entre a ignorância deliberada e cegueira deliberada em sentido estrito.

A ignorância deliberada engloba situações em que o agente tem dúvida sobre algum

elemento do tipo e, de forma proposital, deixa de buscar esclarecer sua dúvida, permanecendo

no estado de desconhecimento justamente em razão das vantagens que isso lhe trará. Na

verdade, haveria um propósito presumido na inércia em realmente conhecer o elemento do

tipo sobre o qual recai a dúvida. Acrescenta que a pessoa que prefere se manter no estado de

desconhecimento real, embora tenha dever e seja possível o esclarecimento, na verdade,

compreende parte do caráter contra legem de sua conduta e seu intuito é garantir salvaguarda

em sua omissão.

3 SYDOW, Spencer Toth. A teor ia da cegueira deliberada. Belo Horizonte: D’Placido, 2017, p.

60-63.

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Situação diversa, segundo construção do autor, seria a cegueira deliberada em sentido

estrito, na qual o agente cria uma estratégia para que mantenha o desconhecimento de sinais

que apontam para a existência de determinados elementos do tipo. Ao alegar

desconhecimento, acredita que não poderá ser responsabilizado – e, até o desenvolvimento e

aperfeiçoamento da teoria, não o era. O agente, de forma premeditada, trabalha seu elemento

de inconsciência sobre possíveis situações futuras, ainda que possíveis, com o intuito de não

ser responsabilizado penalmente. Há autocolocação em um estado de não saber, levada a cabo

pelo sujeito responsabilizável, que daria azo à sua não responsabilização pela ausência de

consciência atual. Há um esforço consciente em não galgar o real conhecimento da situação.

Em nossa opinião, data venia, tal diferenciação não apresenta grandes vantagens,

sendo as situações pelo autor diferenciadas vertentes da análise do desconhecimento

proposital, o que ensejará, segundo a teoria ora estudada, possibilidade de imputação

subjetiva.

A cegueira deliberada é um duelo entre conhecimento e ignorância e propõe a análise

sobre o limite e situações em que o agente, legitimamente, pode alegar o desconhecimento da

situação ou a probabilidade de sua ocorrência para se eximir da responsabilidade penal. Caso

reste demonstrado que ele permaneceu “cego” com o propósito de legitimar seu

comportamento, tal alegação não será válida para excluir o dolo.

Há situações em que o agente, a fim de não agir caso soubesse de algum fato, prefere

colocar-se ou manter-se numa situação de ignorância, na medida em que o conhecimento

acarretaria a obrigação de agir ou impediria a obtenção de determinada vantagem desprovida

de responsabilidade penal.

Pela doutrina clássica, seria impensável atribuir responsabilidade a alguém que não

possua conhecimento sobre o fato, o que ensejaria a exclusão do elemento subjetivo. A partir

do surgimento da Teoria da Cegueira Deliberada, fatores que circundam o simples elemento

cognoscitivo passam a ser valorados para determinar a presença do elemento subjetivo como

um todo, passando a levar em consideração comportamentos que denotam a presença do

elemento volitivo, ainda que se alegue ignorância.

3 APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

As raízes da Teoria da Cegueira Deliberada já foram consagradas pelo folclore

brasileiro, na década de 1980, em “Roque Santeiro”, obra de Dias Gomes. Nela, o

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personagem “Sinhozinho Malta”, ao ouvir de seu capataz Terêncio que resolveria o problema

trazido pelo retorno de Roque Santeiro à cidade de Asa Branca – que dava a entender que

providenciaria sua morte -, era prontamente interrompido pelo Coronel, que tampava os

ouvidos e bradava em alto e bom som: “não me digue nada, eu não quero saber de nada!”.

No Brasil, a primeira aplicação da teoria da cegueira deliberada em um julgamento foi

no processo 0014586-40.2005.4.05.8100 (caso derivado do famoso furto ao Banco Central em

Fortaleza, abaixo analisado), sendo posteriormente aplicada em outros crimes que não o de

lavagem de dinheiro. Ousamos afirmar que a teoria ganhou notoriedade a partir do julgamento

da Ação Penal 470-MG pelo Supremo Tribunal Federal, que aplicou a Teoria da Cegueira

Deliberada para crimes de lavagem de dinheiro, sendo as condenações fundamentadas na

caracterização do elemento subjetivo do tipo por meio de dolo eventual. Recentemente, a

teoria ganhou força e ampla divulgação a partir dos julgamentos da chamada “Operação Lava-

Jato” e outras dela derivadas.

A título de exemplo, no caso da receptação, a expressão “deve saber” como elemento

subjetivo do tipo engloba tanto o dolo eventual como abre espaço para a aplicação da teoria

da cegueira deliberada4. Já no caso do tráfico de drogas, há imputação de dolo a pessoa que

alegava desconhecer levar drogas em sua mochila, porém restou provado que a ignorância foi

proposital com o intuito de garantir proveito para si ou outrem5.

Caso que se revela bastante interessante foi aplicado na Justiça do Trabalho. Como se

sabe, com a crescente terceirização de mão de obra e busca incessante pelo lucro, diversas

marcas consagradas mantêm-se ignorantes em relação às reais circunstâncias da cadeia

produtiva. Essa autocolocação na ignorância também tem como intuito esquivar-se das

obrigações trabalhistas, situação denominada “lucro injusto”. Por mais que tais empresas não

estejam vinculadas diretamente com a exploração de mão de obra escrava, entendemos que

elas têm obrigação de inspecionar as linhas de produção e, ao menos, desconfiar do montante

pago por determinado produto, mormente por ocupar posição hierárquica superior na cadeia

de produção.

No campo do Direito Administrativo, a teoria da cegueira deliberada também foi

reconhecida no campo da improbidade administrativa, também para caracterização do dolo6.

4 Apelação 0000050-56.2013.8.26.0653, TJSP, 7ª Câmara de Direito Criminal, Relator Reinaldo Cintra, julgado

em 04/02/2016 5 AC 1364241-2, TJPR, 4ª Câmara Criminal, Relator Renato Naves Barcellos, julgado em 23/07/2015.

6 Apelação nº 0003527-67.2005.8.26.0136, TJSP, Des. Relator João Batista Morato Rebouças de Carvalho, 9ª

Câmara de Direito Público, DJe 13/11/2013

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A decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (AREesp 845.485/SP,

Relator Min. Herman Benjamin, decisão publicada em dia 13/05/2016, conforme

se demonstra a seguir:

O entendimento do STJ é de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta

do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é

necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os

tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo

10. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que o ato de improbidade

administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92 exige a demonstração de dolo, o

qual, contudo, não necessita ser específico, sendo suficiente o dolo genérico. Assim,

para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é

imprescindível, além da subsunção do fato à norma, caracterizar a presença do

elemento subjetivo. A razão para tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa

não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de

lealdade e boa-fé. Cito precedentes: AgRg no REsp 1.500.812/SE, Rel. Ministro

Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28/5/2015, REsp 1.512.047/PE,

Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30/6/2015, AgRg no REsp

1.397.590/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 5/3/2015,

AgRg no AREsp 532.421/PE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,

DJe 28/8/2014. O Tribunal de origem foi categórico em afirmar a presença do

elemento subjetivo e do dano ao Erário.

Em meados de janeiro do ano de 2018, o Ministério Público do Estado do Rio de

Janeiro, por meio do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, ajuizou Ação

Civil Pública em defesa da probidade administrativa, da qual a autora desse trabalho foi uma

das signatárias. Na referida ação, o fundamento para imputação da responsabilidade de alguns

agentes públicos foi justamente a Teoria da Cegueira Deliberada, conforme pode ser

verificado nos autos do processo nos autos do processo 0010991-03-2018.8.19.0001, em

trâmite na 7ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital.

Durante a colheita de provas, especificamente a partir das declarações dos envolvidos,

pôde-se perceber que era comum a alegação desconhecimento de determinada situação

invocando o não conhecimento da irregularidade apontada, atribuindo a responsabilidade a

setor diverso. Em contrapartida, agentes com posição hierárquica inferior afirmavam que

estavam apenas seguindo ordens, acrescentando terem agido de determinada maneira com o

aval e conhecimento do alto escalão. Ao final, os elementos de convicção demonstraram,

cristalinamente, que um agente “empurrava” a culpa para outro, todos na vã tentativa de

eximirem-se da responsabilidade pelas imoralidades e danos ao erário.

Abaixo, a ementa da ação:

Procedimento MP/RJ nº: 2017.00301238 (ICP nº.: 04/2017 - inquérito principal ) –

procedimentos conexos: MPRJ 2017.01146288 (ICP nº 37/17); 2017.01149674 e

2017.01222304 - Improbidade administrativa – ofensa aos princípios reitores da

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administração pública - regalias conferidas ao preso SÉRGIO DE OLIVEIRA

CABRAL SANTOS FILHO - promoção das regalias pela cúpula da Secretaria

Estadual de Administração Penitenciária (SEAP) em favor de ex-governador preso

cautelarmente por crimes cometidos quando do exercício da governança – escambo

de benefícios em troca de regalias – sistema penitenciário que não se ocupa de

prover tratamento impessoal ao ex-mandatário do Estado. Privilégios

injustificáveis que se protraem no tempo desde o ingresso no sistema

penitenciário passando da segurança à visitação e alimentação – quadro de

permissividade institucional consolidado – ação civil pública – pedido de tutela

de urgência para afastamento cautelar da função pública.

Até a data de conclusão desse trabalho, o MM. Juiz de Direito

competente para o julgamento havia deferido liminar para afastamento da função

pública de alguns réus, decisão sobre a qual há recurso pendente de julgamento.

Ainda que de forma implícita, o magistrado reconheceu a Teoria da Cegueira

Deliberada como fundamento para a responsabilização dos agentes públicos

demandados. Aguardemos o deslinde da ação.

Exemplo não raro na Administração Pública é o caso em que um su perior

hierárquico, ao ind icar um agente de sua confiança para ocupar determinado

cargo, recebe uma quantia periódica que não foi pré-acordada, mas não

questiona a origem desse valor.

Como o trabalho ora desenvolvido tem como foco a seara penal, pensamos

que outras situações podem ocorrer e em quais delas a aplicação da Teoria da

Cegueira Deliberada servirá para imputar o elemento subjetivo a agente que, de

forma proposital, se coloca em situação de ignorância. Cite -se, como exemplo,

um rapaz que conhece uma moça, bem avantajada, e por ela se encanta, mas

percebe haver a probabilidade de ela ter menos que 13 anos, haja vista o

conteúdo de sua conversa e rotina de vida. Ocorre que, de forma proposital, o

enamorado não pergunta a idade da moça com o intuito de se eximir da aplicação

da lei penal, pois caso ela seja menor de 13 anos e porventura haja acusação

formal de estupro de vulnerável, poderá alegar desconhecimento de elementar do

tipo, qual seja, a idade.

Outra hipótese por nós ventilada é do dono do mercado que expõe

produtos à venda e, propositalmente, não confere a data de validade dos

produtos, pois pretende vendê -los e, caso haja fiscalização da Vigilância

Sanitária, poderá alegar desconhecimento sobre o fato de estarem com a validade

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vencida, excluindo o dolo de cometimento do crime previsto no artigo 7º, inciso

IX, da Lei 8137/90.

4 ACORDÃO ANALISADO

No Brasil, a primeira vez que um tribunal tratou da Teoria da Cegueira Deliberada de

maneira explícita foi no julgamento da Apelação Criminal ACR nº 5520/CE pelo Tribunal

Regional Federal da 5ª Região, cuja ementa é abaixo transcrita.

“PROCESSO Nº 0014586-40.2005.4.05.8100/05 (2005.81.00.014586-0/05)

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO (ACR5520/05-CE)

ORGÃO: Segunda Turma –

VARA: 11ª Vara Federal do Ceará (Privativa em Matéria Penal)

ASSUNTO: Crimes de "Lavagem" ou Ocultação de Bens, Direitos ou Valores -

Crimes Previstos na Legislação Extravagante – Penal

JUIZ FEDERAL DANILO FONTENELLE SAMPAIO.

EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO À

CAIXA-FORTE DO BANCO CENTRAL EM FORTALEZA. IMPUTAÇÃO DE

CRIMES CONEXOS DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA, FALSA

IDENTIDADE, USO DE DOCUMENTO FALSO, LAVAGEM DE DINHEIRO E

DE POSSE DE ARMA DE USO PROIBIDO OU RESTRITO. SENTENÇA

CONDENATÓRIA. PRELIMINARES: JUNTADA DE NOVAS RAZÕES

RECURSAIS. IMPOSSIBILIDADE. PRECLUSÃO CONSUMATIVA.

CERCEAMENTO DE DEFESA. OMISSÃO DA SENTENÇA QUANTO À

APRECIAÇÃO DE TODAS AS TESES DA DEFESA. LIVRE

CONVENCIMENTO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE POR FALTA DE

CORRELAÇÃO ENTRE A ACUSAÇÃO (DE LAVAGEM DE DINHEIRO) E A

SENTENÇA CONDENATÓRIA. HIPÓTESE DE EMENDATIO LIBELLI.

INEXISTÊNCIA. MÉRITO: AUTORIA E MATERIALIDADE. PARCIAL

PROCEDÊNCIA DA DENÚNCIA. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO NA

PRÁTICA DE FURTO CONTRA A AUTARQUIA. NÃO CONFIGURAÇÃO.

SENDO O CRIME PRATICADO POR ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA,

DEVIDAMENTE CONFIGURADA, RECONHECE-SE O DELITO

ANTECEDENTE DO CRIME DE BRANQUEAMENTO DE VALORES. TEORIA

DA CEGUEIRA DELIBERADA (WILLFUL BLINDNESS). INEXISTÊNCIA DA

PROVA DE DOLO EVENTUAL POR PARTE DE EMPRESÁRIOS QUE

EFETUAM A VENDA DE VEÍCULOS ANTES DA DESCOBERTA DO FURTO.

ABSOLVIÇÃO EM RELAÇÃO AO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO.

NÃO CONSTITUI CRIME O MERO PORTE DE DOCUMENTO DE TERCEIRO,

MORMENTE QUANDO PARENTE PRÓXIMO. ABSOLVIÇÃO PELO CRIME

DE FALSA IDENTIDADE. ABSOLVE-SE DA IMPUTAÇÃO DE FORMAÇÃO

DE QUADRILHA O ACUSADO DE QUEM NÃO SE DEMONSTROU A

RELAÇÃO ESTÁVEL COM OS INTEGRANTES DO BANDO. FIXAÇÃO DAS

PENAS: CIRCUNSTÂNCIAS DO ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL.

EXACERBAÇÃO EXCESSIVA DA PENA-BASE. REDUÇÃO. ATENUANTE

DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. NÃO INCIDÊNCIA. AFASTAMENTO DA

CIRCUNSTÂNCIA ESPECIAL DE AUMENTO EM RELAÇÃO AO DELITO DE

LAVAGEM. INEXISTÊNCIA DE PROVA QUANTO À HABITUALIDADE DAS

CONDUTAS. REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA.

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I- PRELIMINARES:1.1 Acolhe-se a preliminar arguida pelo BACEN (assistente da

acusação) de não conhecimento da segunda apelação de fls.3999/4000, em face de a

procuração outorgada pelo réu (fls.3997) ao advogado signatário do primeiro

recurso de apelação de fls.3994/3996 ter gerado a revogação de poderes

anteriormente conferidos ao profissional que apresentou a segunda apelação às

fls.3999/4000.-Com a interposição do primeiro apelo operou-se a preclusão

consumativa, sobretudo porque, com a outorga de nova procuração para o exercício

dos mesmos poderes antes conferidos a outro patrono, o primeiro instrumento de

mandato resta revogado.

1.2- Sentença que, ao fazer a soma das penas aplicadas em concurso material,

registra quantidade de anos superior às condenações impostas. O erro meramente

aritmético, na indicação final, não tem o condão de impor aos condenados a

quantidade de pena ao final mencionada, prevalecendo, de qualquer modo, a

condenação concreta por cada um dos crimes cometidos, em concurso material.

Inexistência de nulidade.

1.3- Estando os fatos pormenorizadamente descritos na denúncia, pode o juiz dar ao

crime definição diversa sem prejuízo para o réu, hipótese não configuradora de

mutatio libelli, mas sim de emendatio libelli. Afasta-se o argumento de nulidade da

pena em face da falta de correlação entre a acusação (de lavagem de dinheiro) e a

sentença.

1.4- Não ofendem o princípio da inviolabilidade do domicílio o ingresso na

residência do acusado, bem como a arrecadação do dinheiro lá encontrado, sem o

amparo de mandado de busca e apreensão, em face da incidência da exceção

prevista no art. 5º, XI, da Constituição Federal. Sendo permanente o crime de

ocultação de bens e valores, a situação de flagrância dispensa a ordem judicial.

1.5- A existência de outras provas contra o acusado torna dispensável a perícia, para

comprovação do alegado rompimento dos seus tímpanos, em virtude da suposta

violência da polícia. Mesmo que eliminada a confissão na fase policial,

alegadamente obtida sob tortura, outras provas foram suficientes para embasar o

decreto condenatório, a exemplo dos depoimentos dos demais acusados e o próprio

fato de terem sido encontrados em seu poder mais de doze milhões de reais.

1.6- Não está o juiz sentenciante obrigado a afastar, um por um, todos os

argumentos elencados pela defesa nas alegações finais.- Enfrentando a sentença a

matéria alegada e discutida, valorando as provas e abordando as questões relevantes

trazidas pelas partes, após discorrer sobre os motivos do convencimento do julgador

e apontando no quadro fático e nas provas as causas que o determinaram, não

necessita expressamente analisar todos os argumentos da defesa. Rejeição da

preliminar de nulidade da sentença, por falta de fundamentação.

1.7- Réus condenados pelo crime de contrabando (Código Penal, art. 334) e pelo uso

de documento falso (Código Penal, art. 304), sem que tenha a sentença, contudo,

fixado a pena relativa àqueles delitos. Ausência de oposição de embargos de

declaração nem o manejo de apelação por parte da acusação.- Impossibilidade de

aplicação das penas na fase recursal, à falta de apelação do Ministério Público

Federal. Preclusão do poder punitivo para o Estado, em razão da proibição de

reformatio in pejus.- Não sendo a hipótese de anular a sentença pois, em novo

julgamento, também não teria o julgador monocrático como fixar a pena em patamar

mais elevado, sob pena de se configurar reformatio in pejus indireta, declara-se a

ineficácia da sentença no que tange às condenações sem a fixação da pena

respectiva.

II- MÉRITO- AUTORIA E MATERIALIDADE:

2.1- Confirmando a instrução criminal que os acusados tinham pleno domínio do

fato criminoso, correta a condenação pelos crimes de furto qualificado, formação de

quadrilha, uso de documento falso e pelo crime de ocultação de bens e valores,

previsto na lei de lavagem de dinheiro.

2.2- Configura o crime de furto qualificado a ação perpetrada contra o Banco

Central do Brasil, sede em Fortaleza, na madrugada de 5 para 6 de agosto de 2005 e

que resultou na subtração de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões,

setecentos e cinqüenta e cinco mil, cento e cinquenta de reais) ou cerca de U$

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

71.000.000 ( setenta e um milhões de dólares), em notas de cinquenta reais que já

estiveram em circulação, sendo interessante notar que no interior da caixa-forte

existiam ainda muitos outros milhões de reais em notas seriadas, que não foram

levadas pelos acusados.- Caracterizadas as circunstâncias dos incisos I e II do § 4º

do art. 155 do Código Penal, tendo em vista que o crime foi cometido mediante a

utilização de túnel escavado a partir da casa nº 1071 da Rua 25 de março, região

central da Capital cearense, distante mais de 75 (setenta e cinco) metros da sede da

Autarquia, com o rompimento de laje de concreto de 1,10m de espessura. A

residência de onde partiu a escavação era usada com o subterfúgio de ser sede de

uma empresa de grama sintética, depositando-se em suas dependências, ocultadas

em paredes falsas de gesso, a terra retirada do túnel, que tinha entrada disfarçada

com tampa de tacos, era equipado com sistema de refrigeração, iluminação artificial

e lanternas de segurança, além de contar com 900 (novecentas) escoras de madeira

com preenchimento de argamassa, ventiladores e segmentos de tubos de cimento.

2.3- O enquadramento típico no crime de lavagem de capitais exige que os valores

sobre os quais se empreguem os procedimentos de lavagem tenham sido produto de

um dos crimes antecedentes precisamente definidos na lei. A sentença utilizou os

incisos V e VII do art. 1º da Lei 9613/98 para esse enquadramento: crime contra a

Administração Pública e crime praticado por organização criminosa.- Os crimes

contra a Administração Pública estão bem definidos no Código Penal, sendo certo

dizer que esse rótulo indica um preciso grupo de figuras típicas. Não traduz qualquer

crime que tenha como vítima uma entidade da Administração Pública. É preciso que

o bem jurídico protegido seja a própria Administração Pública brasileira e, por esse

motivo, apenas os delitos previstos nos capítulos com essa nomenclatura (dentro do

Código Penal ou, eventualmente, em legislação esparsa) assim podem ser

considerados.- Inadequação do enquadramento pretendido na sentença de primeiro

grau, de que um crime de furto (crime contra o patrimônio) venha a ser considerado

"crime contra a Administração Pública" apenas pelo fato de que teve uma autarquia

federal como vítima.-A intenção do legislador foi, certamente, restringir os crimes

precursores a um rol definido, não sendo admissível a interpretação extensiva para

enquadrar outros delitos além dos expressamente relacionados. A locução "crime

contra a Administração Pública" está relacionada ao bem jurídico tutelado, e não à

qualidade da vítima.-Correta a sentença recorrida quanto ao enquadramento do

crime antecedente na moldura de "crime praticado por organização criminosa".-

Embora a legislação não defina o que seja uma organização criminosa, a Lei n.

9.034/95, em seu art. 1º, define e regula os meios de prova e procedimentos de

investigação com relação a crimes praticados por "quadrilha ou bando ou

organizações ou associações criminosas de qualquer tipo". A configuração típica da

"quadrilha ou bando" está no art. 288 do Código Penal, mas não existe norma que

defina organização ou associação criminosa.- O teor da Lei n. 9.034/95, em termos

práticos, sugere que haja (ou deva haver) uma diferenciação entre as duas primeiras

figuras (quadrilha ou bando) e as duas últimas (organização criminosa e associação

criminosa), já que, em todos os casos, há uma pluralidade de pessoas em busca da

prática de uma pluralidade de crimes.- De acordo com certa doutrina relevante, a par

da utilização de meios operacionais sofisticados, da padronização de

comportamentos, da utilização de informações privilegiadas, um determinado

critério seria considerado essencial: o envolvimento de agentes do Estado. É verdade

que, no caso relativo ao furto ao Banco Central, não há provas concretas de

ramificações no Estado. Todavia, aquela circunstância não é essencial para a

caracterização da organização criminosa. De qualquer modo, tendo-se em conta que

a utilização de pessoas anteriormente empregadas na segurança do Banco Central e a

profundidade do conhecimento que o grupo demonstrou ter das instalações da

Autarquia sugerem fortemente a infiltração ou mesmo a "contaminação" do aparelho

do Estado, de modo que a quadrilha - dotada de acesso a pessoas ligadas à

Administração Pública de alguma forma - reuniria os elementos que fariam dela uma

organização criminosa, permitindo a subsunção do fato no inciso VII do art. 1º da

Lei n. 9.613/98. A organização criminosa assemelha-se a uma grande sociedade

empresária: não é a realização exitosa de um grande negócio que lhe colocará um

fim. Ao contrário, servirá para reforçar os laços que unem seus integrantes, para

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arregimentar novos membros, para otimizar seus procedimentos. Os recursos assim

obtidos servem à retroalimentação do sistema, tal qual uma sociedade empresária

que reinveste no negócio os lucros auferidos em determinado exercício. São

exatamente a estabilidade e a perenização que caracterizam uma organização

criminosa, e que não é essencial à configuração da quadrilha. A criminalidade

organizada é aquela "que funciona nos moldes de uma genuína empresa comercial,

supondo organização hierarquizada, administração profissional e disponibilidade de

meios materiais e humanos para a execução de tarefas distintas e escalonadas, não se

podendo, contudo, esquecer que a característica que lhe é mais peculiar é a sua (em

maior ou menor grau) clandestinidade" (CASTELLAR, João Carlos. LAVAGEM

DE DINHEIRO-A QUESTÃO DO BEM JURÍDICO-Rio de Janeiro: Revan, 204,

pág. 122). No caso dos autos, o grupo que executou os fatos configura uma

verdadeira organização criminosa, tendo empreendido esforços, recursos financeiros

de monta, inteligências, habilidades e organização de qualidade superior, em uma

empreitada criminosa altamente ousada e arriscada. O grupo dispunha de uma bem

definida hierarquização com nítida separação de funções, apurado senso de

organização, sofisticação nos procedimentos operacionais e nos instrumentos

utilizados, acesso a fontes privilegiadas de informações com ligações atuais ou

pretéritas ao aparelho do Estado (pelo menos a empregados ou ex-empregados

terceirizados) e um bem definido esquema para posterior branqueamento dos

capitais obtidos com a empreitada criminosa antecedente. Reunião de todas as

qualificações necessárias à configuração de uma organização criminosa, ainda que

incipiente.

2.4- Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em

Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da

doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da

sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há

elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados

tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada

ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso II do § 2.º do art. 1.º

dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de

indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso II do §

2º.- Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente

realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à

conduta do art. 1.º, § 1º, inciso II, da mesma lei; na verdade, talvez, pudesse ser

atribuída aos empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave),

mas não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de modo

informal e com base em confiança construída nos contatos entre as partes.- É

relevante a circunstância de que o furto foi realizado na madrugada da sexta para o

sábado; a venda dos veículos ocorreu na manhã do sábado. Ocorre que o crime

somente foi descoberto por ocasião do início do expediente bancário, na segunda-

feira subsequente. Não há, portanto, como fazer a ilação de que os empresários

deveriam supor que a vultosa quantia em cédulas de R$ 50,00 poderia ser parte do

produto do delito cometido contra a autarquia. A empresa que explora a venda de

veículos usados não está sujeita às determinações dos arts. 9 e 10 da Lei 9.613/98,

pois não se trata de comercialização de "bens de luxo ou de alto valor", tampouco

exerce atividade que, em si própria, envolva grande volume de recursos em espécie.-

Ausência de ato normativo que obrigue loja de veículos a comunicar ao COAF, à

Receita, à autoridade policial ou a qualquer órgão público a existência de venda em

espécie. Mesmo que a empresa estivesse obrigada a adotar providências

administrativas tendentes a evitar a lavagem de dinheiro, a omissão na adoção

desses procedimentos implicaria unicamente a aplicação de sanções também

administrativas, e não a imposição de pena criminal por participação na atividade

ilícita de terceiros, exceto quando comprovado que os seus dirigentes estivessem,

mediante atuação dolosa, envolvidos também no processo de lavagem (parágrafo 2º,

incisos I e II).

2.5- Afastamento da dupla condenação em lavagem (ocultar e ter em depósito):

tendo sido encontrados os réus em residência, onde estava ocultada quantia de mais

de 12 milhões de reais, é evidente que não poderiam ser condenados por dois crimes,

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em cúmulo material, como se tivessem infringido dois dispositivos distintos da lei

de lavagem (ocultar os valores e ter em depósito o mesmo numerário). Ofensa ao

princípio que veda o bis in idem. É possível a configuração de mais de um crime de

lavagem, mesmo quando o objeto material (dinheiro) utilizado é oriundo do mesmo

crime antecedente, desde que as ações sejam distintas e com desígnios autônomos.

As atividades de empréstimo de dinheiro a juros, através de interposta pessoa, e de

compra de objetos, imóveis e empresas em nome de terceiros, podem, de acordo

com as circunstâncias, ser consideradas crimes distintos, em concurso material.

2.6- Conflito aparente de normas. Alegações de que os fatos praticados constituiriam

receptação ou favorecimento real. Há, é certo, grande aproximação entre a

receptação e a lavagem de capitais, pois ambas as figuras típicas têm uma mesma

finalidade: assegurar a utilização de bens ou valores obtidos por meio de crime

antecedente. A receptação visa, no entanto, assegurar a manutenção e a consolidação

de bens advindos de crime contra o patrimônio praticado por terceiro, admitindo-se,

ainda, que o crime antecedente atinja outros bens jurídicos, a exemplo do

descaminho ou do peculato, desde que o seu produto seja coisa passível de valoração

econômica, mas sempre ligada à idéia de patrimônio, público ou particular. É crime

parasitário de um delito antecedente praticado, em geral, contra o patrimônio.

Ocorre que a atividade do receptador é periférica em relação aos agentes do crime

patrimonial precedente. No caso do crime de ocultação de bens e valores da lei de

lavagem de dinheiro, as atividades tendentes a assegurar as vantagens materiais

estão imbricadas à própria ação antecedente. O crime de favorecimento real (Código

Penal, artigo 349) exclui quem participou do delito antecedente, ao contrário do que

ocorre com a reciclagem de valores, em que os agentes de ambos os delitos podem

ser os mesmos. O favorecimento real exige especial fim de agir: tornar seguro o

proveito do crime, ao passo em que, na lavagem, a intenção é não apenas tornar

seguro o proveito, mas fazê-lo reingressar na economia, embora de forma segura. Os

acusados não se limitaram a tão-somente adquirir, em proveito próprio, o produto do

crime, ou simplesmente assegurar o proveito do crime de furto, mas também a

conferir às transações de que participaram, aparência regular, lícita, razão pela qual

o conflito aparente de normas deve ser dirimido aplicando-se o princípio da

especialidade.

2.7- Absolvição de Flávio Augusto Maitioli dos crimes de falsa identidade e de

formação de quadrilha. O simples ato de trazer consigo documento de terceiro

(mormente em se tratando de irmão) não configura o tipo do art. 304 do Código

Penal. Sem a demonstração da ligação estável com os integrantes do bando, não há

que se falar em tipificação do crime de quadrilha.

III- FIXAÇÃO DA PENA:

3.1- Não fere o artigo 59 do Código Penal a sentença que fixa a pena-base num

patamar acima do mínimo legal, se devidamente fundamentada, com esteio nas

circunstâncias judiciais do crime.- Parte da doutrina em nosso país tem entendido

que a pena-base deve, salvo situações excepcionais, devidamente justificadas,

aproximar-se do termo ou ponto médio entre a pena mínima e pena máxima (metade

da distância entre a pena mínima e a pena máxima). (SCHMITT, Ricardo Augusto.

Sentença Penal Condenatória, 2.ª Edição. Salvador, Editora JusPodivm, 2007. pp. 78

a 91). Naquelas situações excepcionais, e com a devida fundamentação, a pena-base

poderia aproximar-se do termo ou ponto médio superior (metade da distância entre o

termo ou ponto médio e a pena máxima): A fixação da pena-base na pena máxima,

por impedir a aplicação de agravantes, contrariaria, em tese, a idéia penal quanto à

limitação destas à pena máxima cominada em abstrato e de sua proporcionalidade.

Haveria a necessidade de averiguação objetiva sobre a contribuição de cada uma das

circunstâncias judiciais para a majoração da pena-base, ou seja, deveria haver uma

proporcionalidade entre a valoração de cada circunstância judicial e o incremento da

pena-base. Sustenta-se que a cada circunstância judicial deve corresponder uma

possibilidade de aumento de 1/8 na fixação da pena-base, excetuando-se os

antecedentes, que corresponderiam a 2/8. Por outro lado, há autores que descartam a

precisão aritmética, inclusive em face de pronunciamento do Col. Supremo Tribunal

Federal, no sentido de que "A PONDERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

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JUDICIAIS DO ART. 59 DO CÓDIGO PENAL NÃO É UMA OPERAÇÃO

ARITMÉTICA:POR ISSO, SERIA TEMERÁRIO ASSEVERAR QUE DA

SUBTRAÇÃO DE UM DENTRE DIVERSOS NEGATIVOS, AOS QUAIS

ALUDIU A SENTENÇA, RESULTASSE NECESSARIAMENTE A FIXAÇÃO

DE PENA MENOR" (STF, HC 84120/SP, rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julg.

22.6.04), havendo, ainda, corrente doutrinária segundo a qual não há qualquer

fundamento legal para a adoção do limitador do chamado termo médio, podendo a

pena básica ser aplicada no máximo quando a situação concreta demandar. (NUCCI,

Guilherme de Souza, INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. Revista dos Tribunais,

São Paulo, 2004, pág 343). Posições extremadas que podem ser temperadas,

aproveitando-se adminículos relevantes de cada uma delas: i) a fixação da pena não

pode ter precisão aritmética, mas, por outro lado, as oito circunstâncias devem ser

sopesadas, nada impedindo que uma prepondere ante as demais; ii) é razoável a

adoção do "ponto médio", como limitador à fixação da pena-base, mas nada impede

que aquele marco seja ultrapassado em situações excepcionais; e iii) a fixação da

pena-base no máximo cominado em abstrato atenta contra o princípio da

proporcionalidade, que deve orientar a compreensão e a aplicação do direito penal;

iiii) em face de situações excepcionais, é perfeitamente possível a fixação da pena-

base acima do chamado ponto médio, ou mesmo um pouco acima do ponto médio

superior. No caso concreto, impõe-se a redução das penas-bases fixadas na sentença

recorrida, não obstante as oito circunstâncias previstas no art. 59 do Código Penal

(culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, os motivos, as

circunstâncias e as conseqüências do crime e o comportamento da vítima) sejam

desfavoráveis à grande maioria dos acusados. Por outro lado, a excepcionalidade

daquelas circunstâncias, mesmo que afastados os maus antecedente no que tange a

parte dos réus, autoriza a dosimetria um pouco acima do termo médio superior, em

relação ao delito principal, pois, somente assim, será suficiente para a reprovação e

prevenção do crime. Sentença que valorou negativamente, em relação a todos os

réus, "as suas personalidades desvirtuadas e voltadas para o crime, bem como suas

condutas sociais reprováveis, além do único móvel ter sido o lucro ilícito em

detrimento do patrimônio público, com graves conseqüências sociais". No que tange

ao comportamento da vítima, afasta-se o argumento de que o Banco Central, ao

relaxar nos procedimentos de vigilância e segurança, teria incentivado a prática do

crime. As instalações da Autarquia eram dotadas de vigilância armada, circuito de

TV, com monitoramento humano 24 horas por dia, sensores de presença na caixa-

forte e sensores de impacto nas paredes e no teto. Tanto existia o esquema de

segurança que foi necessária a montagem de organização com sofisticado

planejamento e vultosos investimentos para que a empreitada criminosa tivesse

êxito. É verdade que a sentença, ao apreciar as circunstâncias judiciais, não se

deteve na avaliação dos antecedentes dos réus. Entretanto, em sede de apelação,

mesmo que o recurso tenha sido manejado exclusivamente pela defesa, pode o

Tribunal reavaliar cada um dos aspectos previstos no art. 59 do Código Penal,

atribuindo-lhes valoração diversa ou mesmo considerando circunstâncias não

mencionadas no julgado recorrido, desde que a pena não venha a ser majorada. No

caso, é perfeitamente possível considerar os antecedentes dos acusados, sem que

isso constitua reformatio in pejus, especialmente quando, ao final, a pena-base vem

a ser reduzida.

3.2- É certo que a mera situação de flagrante, por si só, não retira a espontaneidade

da confissão. Entretanto, para justificar a sua natureza de atenuante, é necessário que

a confissão seja feita de forma ampla, geral e irrestrita, o que não é o caso, até

porque, em relação a alguns dos acusados, foi retratada em juízo. A par da ausência

do elemento moral (arrependimento da prática criminosa), não se verificou a

predisposição para colaborar com a Justiça, facilitando a instrução. Nenhum dos

recorrentes forneceu qualquer informação útil à localização dos demais integrantes

da organização criminosa ou ao rastreamento dos milhões de reais ainda ocultados.

3.3- O § 4º do artigo 1º da Lei nº 9613/98 disciplina causa especial de aumento, ao

determinar que a pena será aumentada de 1(um) a 2/3(dois terços), nos casos

previstos nos incisos I a IV, do caput do artigo 1º, se o crime for cometido de forma

habitual ou por intermédio de organização criminosa. A primeira hipótese cuida da

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figura da habitualidade criminosa, ou do criminoso habitual, conceito diferente do

de crime habitual. Como ensina DAMÁSIO DE JESUS "o delito habitual se

distingue da habitualidade no crime. Naquele, o delito é único, constituindo a

habitualidade uma elementar do tipo. Na habitualidade no crime, ao contrário, há

pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma qualidade do autor, não da

infração penal". Ao contrário do crime habitual (onde a reiteração de atos

penalmente indiferentes de per si constitui um delito único, ante a existência de um

todo ilícito) aqui temos uma seqüência de atos típicos que demonstram uma

tendência por parte do autor. No crime habitual a prática de um ato apenas não gera

tipicidade.- O aspecto mais importante é que o parágrafo introduz a figura da

"reiteração criminosa", que nada mais é do que uma característica do criminoso

chamado "profissional" ou "habitual". Não se cuida de um crime continuado

propriamente dito (art. 71 do Código Penal). Tampouco a lei faz referência e exige

uma comunhão de circunstâncias temporais, espaciais e operativas para que se

reconheça uma "unidade" fictícia ou real de delitos. O dispositivo está reservado,

portanto, às situações em que o agente, reiteradamente e de forma habitual, venha se

dedicando ao delito de reciclagem de bens ou valores.- Inexistência de qualquer

prova nos autos, ou ao menos vaga menção, de que os recorrentes reiteradamente se

dedicavam à prática de delitos de lavagem de capitais ou de que tenham

anteriormente, de algum modo, infrigido a Lei 9.613/98. Afastada a habitualidade

criminosa, restaria verificar a presença ou não da outra circunstância especial de

aumento, prevista no mesmo dispositivo legal, ou seja, o fato do crime ter sido

cometido por organização criminosa. Não há qualquer dúvida de que o furto ao

Banco Central em Fortaleza foi cometido por integrantes da criminalidade

organizada. Todavia, a circunstância foi considerada para a própria tipificação do

delito de lavagem de capitais, ao considerar o crime de furto cometido por

organização criminosa como delito antecedente ao de reciclagem. O acréscimo da

pena pelo mesmo motivo implicaria intolerável bis in idem. Reforma da sentença

que aumentara a pena-básica em 2/3(dois terços), para afastar a causa especial de

aumento do § 4º do artigo 1º da Lei nº 9.613/98.

3.4- A fixação da pena pecuniária segue o método bifásico: i) na primeira etapa,

determina-se o número de dias-multa (entre 10 e 360-Código Penal, art. 49),

devendo-se guardar certa proporcionalidade com a pena privativa de liberdade

fixada; ii) na segunda fase, arbitra-se o valor de cada dia-multa (entre um trigésimo e

5 vezes o salário mínimo-Código Penal, art. 49, § 1º), considerando-se a situação

financeira de cada acusado. De acordo com o artigo 60, § 1º, do Código Penal, o

valor da pena pecuniária poderá ser aumentado até o triplo, caso o máximo previsto

apresente-se ineficaz, em razão da condição econômica do réu. Trata-se de regra de

especial elevação do valor da pena de multa, nos moldes das causas especiais de

aumento da pena privativa de liberdade. O critério consagrado no artigo 59 do

Código Penal, qual seja o da suficiência e da necessidade, que norteia o magistrado

na individualização da pena-base proporcional, é o mesmo critério que o orientará na

fixação da pena de multa. Sentença que aplicou penas pecuniárias no patamar

máximo possível, mesmo em relação aos crimes conexos de menor potencial

ofensivo, sem guardar qualquer proporção com a pena privativa de liberdade

concretamente imposta.- A pena de multa deve ser dosada guardando simetria com a

pena privativa de liberdade aplicada cumulativamente.

3.5- O crime perpetrado contra o Banco Central em Fortaleza, com a subtração de

quase 71 milhões de dólares é, muito provavelmente, o maior furto da história da

humanidade. A quadrilha que o executou, por sua vez, demonstrou incrível

organização, planejamento e capacidade de articulação. O fato teve repercussão

internacional e ainda hoje deixa incrédula a população. Merece, assim, punição

adequada, de modo suficiente a reprovar o ilícito cometido e a desestimular a prática

de crimes contra o patrimônio e contra a paz pública, conforme recomenda o art. 59

do Código Penal. A apenação, tanto em relação ao crime principal quanto no que

tange aos crimes conexos, deve, no entanto, ser feita com atenção aos limites da lei.-

Redução das penas de multa e de privação da liberdade.ACÓRDÃO. Vistos, etc.

Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, à

unanimidade, ACOLHER a preliminar de não conhecimento da segunda apelação

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ofertada pelo réu ANTÔNIO EDIMAR; PROCLAMAR DE OFÍCIO a ineficácia da

sentença na parte em que condenou, mas deixou de aplicar a pena respectiva, em

relação aos crimes de uso de documento falso e contrabando imputados aos réus

DAVI SILVANO E ANTÔNIO EDIMAR; DAR PROVIMENTO à apelação dos

réus FRANCISCO DERMIVAL E JOSÉ ELIZOMARTE para, aplicando o

princípio in dubio pro reo, absolvê-los com base no art. 386, inciso VII do Código

de Processo Penal, com a redação da Lei nº 11.690 de 09 de junho de 2008; DAR

PARCIAL PROVIMENTO às apelações de ANTÔNIO EDIMAR BEZERRA,

MARCOS DE FRANÇA e DAVI SILVANO DA SILVA, para excluir a dupla

apenação, em concurso material, por duas supostas condutas de lavagem de ativos;

DAR PARCIAL PROVIMENTO às apelações dos réus MARCOS DE FRANÇA,

DEUSIMAR NEVES QUEIROZ, MARCOS RIBEIRO SUPPI, ANTONIO

EDIMAR BEZERRA, JOSÉ CHARLES MACHADO DE MORAIS, PEDRO JOSÉ

DA CRUZ E DAVI SILVANO DA SILVA para reduzir as penas privativas de

liberdade e as multas aplicadas, nos termos do voto do relator, na forma do relatório

e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do

presente julgado.Recife, 09.09.2008Des. Federal ROGÉRIO FIALHO MOREIRA –

Relator”.

Trata-se de julgamento do recurso dos dois gerentes de concessionária de veículos, na

cidade de Fortaleza, que venderam 11 (onze) carros a pessoas que participaram do furto ao

Banco Central na mesma cidade, sendo a transação paga em espécie.

O furto (a despeito de ser popularmente conhecido como “assalto”) ao Banco Central

foi um dos crimes mais notórios já ocorridos no Brasil. Em síntese, os agentes alugaram um

imóvel a cerca de 100 (cem) metros da agencia do BACEN em Fortaleza, e montaram uma

empresa de grama sintética “de fachada”, para justificar a ocupação no imóvel. O real intuito

era escavar um túnel que levaria ao interior do banco e o material advindo da escavação seria

depositado na loja – o que teria ligação com a atividade supostamente desenvolvida.

Na madrugada de 06 de agosto de 2005, os meliantes usaram o túnel para chegar ao

interior da agência, de onde subtraíram cerca de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro

milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta reais), tudo em notas de R$

50,00 (cinquenta reais) que já haviam sido retiradas de circulação e seriam incineradas – e,

portanto, não eram rastreáveis.

Na manhã do dia 06 de agosto de 2005, um dos agentes foi a uma concessionária de

automóveis e adquiriu 11 (onze) veículos de alto padrão, cujo valor total foi de R$ 980.000,00

(novecentos e oitenta mil reais), pago em notas de R$ 50,00 (cinquenta reais), acondicionadas

em sacos de náilon. Os empresários, mesmo verificando a estranheza da situação, optaram por

não saber da origem do dinheiro, a razão pela qual estava em sacos de náilon e sequer tiveram

a curiosidade de saber quem era aquele próspero comprador. A venda foi concretizada.

Posteriormente, a autoridade policial desconfiou da transação e, com a veiculação do

furto ao Banco Central, os veículos foram apreendidos no Estado de Minas Gerais, dentro dos

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quais havia a quantia de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), que seriam transportados por

caminhão cegonha.

Os empresários donos da concessionária foram condenados em primeiro grau pela

prática de lavagem de dinheiro, adotando como fundamento a Teoria da Cegueira Deliberada.

O magistrado sentenciante entendeu ser evidente a ciência de que o valor pago pelos veículos

era de procedência ilícita, sendo o elemento subjetivo do dolo suprido pela demonstração de

que os empresários, deliberadamente, se autocolocaram numa situação de ignorância. Além

disso, abstiveram-se de comunicar às autoridades responsáveis a movimentação suspeita.

Esse julgamento conferiu à Teoria da Cegueira deliberada, pela primeira vez, destaque

em nosso ordenamento jurídico.

Em primeira instância, o magistrado entendeu – a nosso ver, de forma acertada - que

os gerentes, intencionalmente, cegaram-se sobre o que estava diante de seus olhos. Não é

usual a compra de 11 (onze) veículos de uma só vez e, menos ainda, que tal seja pago em

espécie, com notas de R$ 50,00 (cinquenta reais) em sacos de náilon. Na verdade, não é usual

a compra de um só veículo em dinheiro em espécie, ainda mais da forma em que foi

apresentado. Na esfera de conhecimento do profano, até o tão conhecido “homem médio”

poderia perceber alguma coisa de estranho naquela transação. As pessoas honestas, que

prezam pelo dinheiro obtido com o suor do trabalho, adotam o máximo de cautelas para

preservar a integridade de seu patrimônio e dificilmente andariam com vultosa soma em sacos

de náilon.

Além disso, em se tratando de uma concessionária de veículos, era de se esperar, no

mínimo, que os responsáveis tomassem alguma providência: ou a recusa da venda imediata,

com perquirição sobre a pessoa do comprador e origem dos valores, ou a informação às

autoridades responsáveis. Entretanto, nas considerações do magistrado de primeiro grau, eles

preferiram se beneficiar daquela situação, mantendo-se ignorantes sobre aspectos penalmente

relevantes, razão pela qual foram condenados pelo crime de lavagem de dinheiro.

Como se percebe do acordão acima, a sentença de primeiro grau foi reformada sob o

argumento de caracterização de responsabilidade penal objetiva – entendimento do qual, data

venia, não comungamos. Ainda que não se aceitasse a utilização da Teoria da Cegueira

Deliberada como fundamento para a condenação, poder-se-ia cogitar na subsunção da conduta

dos empresários num dolo eventual, na medida em que, a despeito da suspeita sobre a origem

ilícita do dinheiro e das bizarrices do caso concreto, optaram por manter a venda e, com isso,

em nosso entender, assumiram o risco de participarem da reinserção do dinheiro “sujo” na

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economia do país. Afinal, estar-se-ia buscando o lucro, intuito que legitimaria o recebimento

de valores sem o questionamento da origem.

Além disso, a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região consignou a

impossibilidade de condenação dos agentes por crime de lavagem de dinheiro também em

razão da atipicidade formal, pois o rol dos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro,

previsto no artigo 1º da Lei 9613/98 era taxativo – e o furto não fazia parte desse rol. Com o

advento da Lei 12.683/2012, o legislador, de forma acertada, suprimiu esse rol, sendo a

redação atual do artigo 1º da Lei 9613/98 “Ocultar ou dissimular a natureza, origem,

localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores

provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.” (sem grifos no original).

O julgamento ainda consignou que o crime de lavagem de dinheiro não admite o dolo

eventual, posição atualmente minoritária na jurisprudência, conforme se verifica dos autos da

Ação Penal 470 e corroborado pela Convenção de Varsóvia (2005)7.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Teoria da Cegueira Deliberada, de aplicação incipiente no Direito Brasileiro,

encontra cada vez mais aceitação. Isso porque as noções tradicionais de dolo e culpa já se

mostram insuficientes para imputar o elemento subjetivo do agente em determinadas

situações, dando azo para que determinadas pessoas “se beneficiem da própria torpeza”, o que

se afigura repugnante e merece a suficiente reprimenda na seara penal.

A despeito de controvérsias acerca do elemento a ser considerado para aplicação da

teoria, entendemos que a tradicional figura do dolo eventual, por enquanto, é suficiente, na

maioria dos casos, para se imputar o elemento subjetivo. Sustentamos, como já mencionado, a

extirpação do conceito de culpa do Direito Penal, tal como tradicionalmente estudada, na

medida me que outros ramos do Direito seriam capazes de sancionar o comportamento

culposo de forma mais adequada, conferindo efetividade aos Princípios da Intervenção

Mínima e Subsidiariedade.

7 “A convenção de Varsóvia (2005) indica que os Estados-membros da Comunidade Europeia podem tomar

medidas para entender como crime os casos de lavagem em que o agente suspeitava da origem elícita dos bens

ou deveria conhecer a origem ilícita dos bens, indicando a possibilidade da prática do crime a título de dolo

eventual ou mesmo imprudência (art. 9,3). BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem

de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 140.

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Com a atual tendência em remodelar o conceito ontológico de dolo, a doutrina

encontra campo fértil para começar a desenvolver a parametrização do conceito de dolo

normativo no Direito Penal Brasileiro, aliando a idéia de atividade arriscada (e seus ônus)

com a delimitação (em respeito ao Princípio da Legalidade Estrita) de situações que supririam

a demonstração do dolo, concebido como a vontade em praticar determinada conduta,

assunção voluntária de riscos ou a conclusão, com base em elementos a e circunstâncias

extraídas do caso concreto, sobre a real intenção do agente, a despeito de sua omissão.

A moderna aplicação do Direito Penal, cuja evolução se mostra necessária ante a real

aproximação entre os sistemas do Common Law e do Civil Law, confere espaço ao julgador

para a adequação de uma conduta à norma penal, levando em conta a exteriorização, na

sentença, dos motivos e circunstâncias do caso concreto que o levaram àquele entendimento,

sem prejuízo da aplicação do princípio in dubio pro reo. Assim, casos de verdadeira

ignorância ou estupidez não encontram adequação às premissas da Teoria da Cegueira

Deliberada. Há necessidade de que o princípio da probabilidade seja aplicado de forma

subsidiária aos deveres de cuidado.

Entretanto, determinadas situações, de tão previsíveis e levando e conta as

características pessoais, levam à conclusão de que se trata de dolo propriamente dito, sendo

desnecessário o esforço jurídico em enquadrá-las na teoria da cegueira deliberada.

Sabe-se que um dos grandes problemas do Direito Penal é demonstrar, ao certo, a real

intenção do agente, exigência para caracterização do elemento subjetivo do tipo. A prática

forense demonstra que, na maioria dos casos, os réus, já orientados, alegam que “não queriam

praticar tal conduta”, na vã tentativa de que o dolo seja excluído – e, pela excepcionalidade do

crime culposo, procurar a absolvição por falta de adequação típica. Com o intuito de impedir

que a torpeza prevaleça sobre a Justiça, os magistrados já se valem de institutos e presunções

que levam à afirmação da presença do dolo, o que corrobora a ausência de entraves para que a

Teoria da Cegueira Deliberada seja aplicada em conjunto com a idéia de dolo normativo.

Esperamos a evolução e parametrização dos critérios a serem considerados para

aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada de forma pacífica, o que carece da revisão e

modernização de conceitos arraigados e arcaicos tão sedimentados e repetidos de forma

automática pelos ordenadores do Direito.

Tal permitirá que essa teoria, além de outras que porventura criadas, sejam caminho à

imputação típica em relação a condutas cada vez mais sofisticadas, para as quais a doutrina

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

clássica já se mostra de insuficiente eficácia e que induz a soluções injustas em nome da

preservação desses dogmas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos

penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

BEM, Leonardo Schmitt de; MARTINELLI, João Paulo Orsini. Lições Fundamentais de

Direito Penal - parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2011.

PUPPE, Ingebord. Dolo eventual e culpa consciente. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, 2006.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MIRÓ LLINARES, Fernando (Org.). La teoria del delito

em la práctica penal económica. España: La Ley, 2013.

SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: D’Placido, 2017.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal

Brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.