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ISSN:1984-9540 DOI: 10.12957/periferia.2021.53499 Periferia, v. 13, n. 1, p. 363-386, jan./abr. 2021 363 A CORRERIA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA NEGRA EM VIDEOCLIPES DO RAP BRASILEIRO Solange Stéfane Santos 1 Cláudio Coração 2 Resumo O presente artigo analisa a produção dos videoclipes “Crime Bárbaro”, de Rincon Sapiência, “Corra”, de Djonga e o curta “Bluesman”, de Baco Exu do Blues, almejando compreender como tais artistas aliam os conceitos de identidade e resistência ao ato de fuga, caracterizado nos clipes pela corrida contínua empreendida pelos personagens principais. Busca-se também investigar como suas narrativas ajudam o espectador a compreender a correlação entre o racismo estrutural e o genocídio de jovens negros no Brasil. Por fim, intui-se estabelecer se o ato de correr empreendido nas narrativas ficcionais do videoclipe pode ser caracterizado através de uma perspectiva estética em torno de fronteiras e frestas culturais. Palavras-chave: correria, videoclipes, genocídio negro, rap. THE RUSH AS A FORM OF BLACK RESISTANCE IN BRAZILIAN RAP MUSIC VIDEOS Abstract This article analyzes the production of the video clips “Crime Bárbaro”, by Rincon Sapiência, “Corra”, by Djonga and the short film “Bluesman”, by Baco Exu do Blues, aiming to understand how such artists combine the concepts of identity and resistance to the act of escaping, characterized in the clips by a continuous race undertaken by the main characters. It also seeks to investigate how their narratives help the viewer to understand the correlation between 1 Bacharel em Publicidade e Propaganda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2018). Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto (2019). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6122-0491. 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor em Comunicação: meios e processos audiovisuais pela ECA/USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa 'Quintais: cultura da mídia, arte e política' (CNPq-UFOP). E-mail: [email protected]. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002- 1402-7787.

A CORRERIA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA NEGRA EM …

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Periferia, v. 13, n. 1, p. 363-386, jan./abr. 2021 363

A CORRERIA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA NEGRA EM

VIDEOCLIPES DO RAP BRASILEIRO

Solange Stéfane Santos1

Cláudio Coração2

Resumo

O presente artigo analisa a produção dos videoclipes “Crime Bárbaro”, de Rincon Sapiência, “Corra”, de Djonga e o curta “Bluesman”, de Baco Exu do Blues, almejando compreender como tais artistas aliam os conceitos de identidade e resistência ao ato de fuga, caracterizado nos clipes pela corrida contínua empreendida pelos personagens principais. Busca-se também investigar como suas narrativas ajudam o espectador a compreender a correlação entre o racismo estrutural e o genocídio de jovens negros no Brasil. Por fim, intui-se estabelecer se o ato de correr empreendido nas narrativas ficcionais do videoclipe pode ser caracterizado através de uma perspectiva estética em torno de fronteiras e frestas culturais.

Palavras-chave: correria, videoclipes, genocídio negro, rap.

THE RUSH AS A FORM OF BLACK RESISTANCE IN BRAZILIAN RAP

MUSIC VIDEOS

Abstract

This article analyzes the production of the video clips “Crime Bárbaro”, by Rincon Sapiência, “Corra”, by Djonga and the short film “Bluesman”, by Baco Exu do Blues, aiming to understand how such artists combine the concepts of identity and resistance to the act of escaping, characterized in the clips by a continuous race undertaken by the main characters. It also seeks to investigate how their narratives help the viewer to understand the correlation between

1 Bacharel em Publicidade e Propaganda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2018). Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto (2019). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6122-0491. 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor em Comunicação: meios e processos audiovisuais pela ECA/USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa 'Quintais: cultura da mídia, arte e política' (CNPq-UFOP). E-mail: [email protected]. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1402-7787.

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structural racism and the genocide of young blacks in Brazil. Finally, we intend to establish whether the act of running undertaken in the fictional narratives of the video clip can be characterized through an aesthetic perspective around cultural cracks and boundaries.

Keywords: rush, video clips, black genocide, rap.

LA PRISA COMO FORMA DE RESISTENCIA NEGRA EN LOS VIDEOS

MUSICALES DE RAP BRASILEÑO

Resumen

Este artículo analiza la producción de los videoclips “Crime Bárbaro”, de Rincon Sapiência, “Corra”, de Djonga y el cortometraje “Bluesman”, de Baco Exu do Blues, con el objetivo de comprender como estos artistas combinan los conceptos de identidad y resistencia al acto escape, caracterizado en los clips por la carrera continua realizada por los personajes principales. También busca investigar cómo sus narraciones ayudan al espectador a comprender la correlación entre el racismo estructural y el genocidio de jóvenes negros en Brasil. Finalmente, tenemos la intención de establecer si el acto de correr emprendido en las narrativas ficticias del video clip puede caracterizarse a través de una perspectiva estética en torno a los límites culturales y las grietas.

Palabras-clave: correr, videoclips, genocidio negro, rap.

Introdução: Por que branco correndo é atleta e preto é ladrão?

Correr é verbo intransitivo na Língua Portuguesa e corresponde à ação

de imprimir grande velocidade contra o solo, pelo contato rápido dos pés ou

patas (MICHAELIS, 2020). Tal ação é executada pelo ser humano como forma de

chegar do ponto A ao ponto B, por motivos diversos, como o exercício ou a fuga.

Voltando nossos olhares para a fuga esta pode ser desencadeada, por exemplo,

pelas ações efetivadas pelo aparato policial, que, ao entrar nas favelas,

acarreta o desarranjo das ações instituídas no local, como foi o caso ocorrido

na favela de Paraisópolis, na qual uma correria desordenada causada pela ação

da polícia levou a morte de nove jovens em um baile funk3.

3 . VEJA, Revista. Veja quem são os nove jovens mortos na favela de Paraisópolis: Vítimas de tumulto ocorrido após ação da PM em um baile funk tinham entre 14 e 23 anos. Revista Veja,

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As favelas existentes no Brasil atuam como uma espécie de fragmento do

período pós-escravidão, uma vez que os negros excluídos da sociedade

migravam para as regiões dos campos e morros e ali construíam barracos, que

se proliferaram e se tornaram a única moradia possível para os grupos

socialmente marginalizados, de forma que, segundo Carmo (2017), a pobreza

nunca foi somente uma questão de classe, uma vez que gênero e raça também

estavam envolvidos. Conforme apresentado pela autora, ao confrontar dados

do IBGE de 2014, foi evidenciado que 76% da população mais pobre do Brasil

era formada por negros e que 70% dos moradores de favela, somente em São

Paulo, também pretos e pardos.

A marginalização e a falta de representatividade desta população

reforçam os ideais ligados a criminalidade e a falta de instrução, visto que

jovens negros entre 15-29 anos são as maiores vítimas de homicídio no país,

representando cerca de quatro em cada cinco das vítimas, o que nos últimos 20

anos caracterizou um aumento de 429% de mortes de jovens, ante 102% de

mortes contra jovens não brancos (PUTTI, 2019).

Mediante tal cenário, o presente artigo visa analisar três videoclipes

propostos por jovens cantores negros, sendo eles: “Corra” de Djonga, “Crime

Bárbaro” de Rincon Sapiência e “Bluesman” de Baco Exu do Blues. Neles é

colocado em plano central o negro que corre da polícia, da morte ou até mesmo

para o encontro com amigos e familiares.

Nosso objetivo é observar como os jovens cantores abordam a questão

do genocídio negro contemporâneo, bem como aliam o ato de correr a uma

atitude de resistência. Por fim, buscaremos analisar se a partir da análise de

tais videoclipes, podemos estabelecer a existência de uma estética da

correria4, e, se sim, responder como esta ocorre dentro do cenário imagético

do videoclipe.

[S. l.], 2 dez. 2019. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/veja-quem-sao-os-nove-jovens-mortos-na-favela-de-paraisopolis/. Acesso em: 6 jan. 2020. 4. O termo correria será empreendido neste trabalho como ato de fuga, não devendo ser confundida com as ações empreendidas para o massacre de índios no Acre nos séculos XIX e XX ou ainda com a gíria utilizada por detentos para atribuir suas relações com o tráfico de drogas. Para compreender melhor a correria enquanto ato de eliminação de povos indígenas, indica-se

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Considerações Iniciais: Deuses presos em casulos, correria como resistência.

As narrativas nas quais escravos tornam-se homens livres não são poucas,

embaladas ou não por uma aura fictícia a noção de sofrimento é afligida aos

afrodescendentes de alguma maneira. Podemos recordar a narrativa de Django

Livre (Django Unchained, 2012), cujo o Django Freeman (Jamie Foxx), um ex-

escravo, trava a aliança com um homem branco, Dr.Schultz (Christoph Waltz),

a fim de resgatar Broomhilda (Kerry Washington), sua esposa de um fazendeiro

(Leonardo DiCaprio), que obriga seus escravos a travarem lutas mortais.

Embalado por um ideal cinematográfico digno de Tarantino, a narrativa conta

com uma violência visceral e sangue por todos os lados. O que nos leva a

questionar se mais sofrimento é necessário para contar sobre este período

histórico tão doloroso para aqueles que foram fortemente brutalizados.

Fugindo da narrativa ficcional dos filmes hollywoodianos, estima-se que

entre os anos de 1500 e 1856 quatro milhões de escravos chegaram ao litoral

brasileiro e trezentos mil morreram a caminho do Rio de Janeiro, vindos

sobretudo da Angola e do Congo, estes foram importados para o trabalho nas

lavouras de café (FRANÇA, 2015).

Os escravos eram tratados socialmente como fantasmas, uma vez que

sua cultura, hábitos e organizações sociais eram suprimidas e em contrapartida

a esses não era ofertada uma entrada ativa na sociedade, sendo-lhes negada a

participação em missas ao lado de seus senhores, bem como da educação formal

ofertada por padres, de modo que a obrigatoriedade do batismo era meramente

formal, por não existir parte da igreja qualquer interesse para uma efetiva

conversão (BORGES, 2017).

Entretanto, esta realidade não era aceita de forma passiva, conforme se

possa pensar, agrupamentos de escravos fugitivos ocorreram em todos os locais

onde houve escravidão e no Brasil estes agrupamentos foram chamados de

quilombos ou mocambos e, por diversas vezes, conseguiam agrupar milhares de

a leitura da dissertação de Ernesto Martinez Rodrigues, intitulada “Correrias: Índios, Gaucheiros e Seringueiros” (Acre 1942/1983).

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pessoas, por serem constituídos por escravos fugidos e seus descendentes, bem

como índios, soldados desertores, perseguidos pela justiça secular e

eclesiásticas, vendedores ou simples aventureiros. Esses agrupamentos se

formavam através de adesões individuais e/ou coletivas de escravos fugitivos,

ou eram resultado de revoltas, como parece ter sido o caso de Palmares.

O próprio termo quilombo derivaria de kilombo, uma sociedade iniciática de jovens guerreiros mbundu adotada pelos invasores jaga (ou imbangala), estes formados por gente de vários grupos étnicos desenraizada de suas comunidades. Esta instituição teria sido reinventada, embora não inteiramente reproduzida, pelos palmarinos para enfrentar um problema semelhante, de perda de raízes, deste lado do Atlântico. Teria sido de fato depois de Palmares que o termo quilombo se consagrou como definição de reduto de escravo fugido (REIS, 1995/96, p. 16).

Por não atuar como uma cultura monolítica, africanos de diferentes

etnias e culturas habitavam o quilombo e necessitavam administrar suas

diferenças e criar laços de solidariedade, para que a manutenção de tais

assentamentos fosse possível.

Cento e trinta anos se passaram desde a assinatura da Lei Áurea, tal

documento foi responsável pela abolição da escravatura no país e consequente

liberação do povo negro cativo aos senhores de engenho, e, no entanto, a

situação desta parcela da população pouco se modificou, de forma que a cultura

da supremacia branca5 continua a guiar o pensamento contemporâneo, e o

assassinato de jovens negros já levanta discussões sobre um possível genocídio

negro no Brasil (MARQUES, 2017).

O lançamento de produtos culturais que denunciam o racismo sofrido por

moradores de periferia, negros ou não negros, não é algo novo no mundo do

rap. No Brasil, a criação dos Racionais Mc’s em 1988 foi essencial para que a

denúncia da violência policial e do desamparo dos moradores da periferia de

São Paulo chegasse a grande mídia (TEPERMAN, 2015). Entretanto, a noção de

uma cultura negra de resistência é algo relativamente novo, segundo hooks

5 . Termo utilizado por bell hooks (2019), para referir-se às circunstâncias relacionadas à ideologia racista e ao colonialismo, em que as narrativas culturais e a produção de conhecimento partem do ponto de vista de pessoas brancas. O que não deve ser, portanto, confundido com os ideais de pureza racial.

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(2019), tendo surgindo no contexto do apartheid e da segregação6, o que abriu

espaço para o tipo de descolonização que torna possível o amor à negritude. No

entanto, a manutenção social do pensamento racista continua a relegar os

negros a um local de não existência e auto-ódio.

A chegada de produtos culturais como o rap de Childish Gambino, em

2018, com “This is América” nos Estados Unidos e “Crime Bárbaro” de Rincon

Sapiência no Brasil, demonstram que, cada vez mais, surge por parte da

juventude o desejo de se discutir sobre o racismo na sociedade.

Isso vem de uma construção histórica e tem a ver com uma tomada de consciência cada vez maior, principalmente por parte da juventude, de que ser negro não é uma coisa ruim. As pessoas negras estão revertendo isso internamente e também colocando para fora, construindo contra narrativas frente a uma sociedade que as diz o contrário. (BUZATTI apud COSTA, 2018).

O lançamento do videoclipe de “Crime Bárbaro” de Rincon Sapiência

ocorreu em 13 de maio de 2018, dia em que é comemorado a Abolição da

Escravatura, no Brasil. Galanga é personagem fictício que empreende a própria

fuga após matar o senhor de engenho. A data de lançamento foi escolhida

propositalmente, uma vez que confronta o ideal da libertação atrelado a

abolição por parte de uma princesa branca. A crítica a datas comemorativas

tais como a da abolição pode ser compreendida através do pensamento de hooks

(2019), que alega que a existência de rituais de afirmação, tais como a

celebração da história dos negros, feriados e slogans como Black is Beautiful

têm pouco ou nenhum efeito quando pensados fora de uma luta antirracista

que atue de forma ativa para a transformação da sociedade, já que sem uma

luta de resistência eficaz pessoas negras continuarão a ser socializadas seguindo

ideais concernentes a supremacia branca.

6 . O apartheid refere-se a um sistema constitucional de segregação racial que abrangeu todas as esferas sociais, econômicas e políticas na África do Sul, por meio das ações praticadas pelo Partido dos Nacionalistas que ascendeu ao poder em 1948. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/disciplinas/sociologia/apartheid-auge-e-declinio-do-regime-do-apartheid-sul-africano.htm>, acesso em: 14 de jan de 2020.

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Galanga é apresentado em fuga em meio a um cenário escuro, o que leva

o leitor da obra a não compreender se este foge ao longo da noite ou para onde

foge e ao correr é perseguido por um policial, que encarna a figura do capitão

do mato.

Capangas armados estão à procura Escravos apoiam meu ato de loucura

Fugido eu tô correndo pela mata Na pele eu levo a marca da tortura

O crime deixa doido o bagulho Carrego um pouco de medo e orgulho

Atrás da orelha deles eu sou a pulga Se eles chegar tô pronto pra dar fuga

Por mim estaria tudo em paz Minha terra, meu povo e ninguém mais

Liberdade por aqui ninguém traz Sim senhor, não senhor, não satisfaz

Arrependimento, isso eu não tenho O meu movimento sempre mantenho

Escravos apoiam meu desempenho Foi eu que matei o senhor de engenho.

(RINCON SAPIÊNCIA – Crime Bárbaro, 2018).

Tal figura repressora atuava como uma milícia especializada na caça dos

escravos fugidos e na destruição dos quilombos e foi criada como forma de

atribuir estratégias repressivas para a supressão da formação de mocambos.

Compreender as atitudes dos capitães do mato nos ajuda a compreender o ato

de fuga de Galanga, tomando a exemplo Minas Gerais no começo do século XVIII

podemos compreender por que a metrópole de Portugal buscou tornar as

torturas mais brandas.

Em Minas Gerais, durante a primeira metade do século XVIII, autoridades locais e os próprios governadores, atormentados com a proliferação dos mocambos, conceberam punições bárbaras contra os quilombolas, como cortar-lhes uma das pernas ou o tendão de Aquiles. Foi a metrópole que controlou a sanha dos mineiros, recomendando a barbaridade menor de imprimir com ferro em brasa a letra “F” sobre a espádua do fujão e o corte de uma orelha no caso de reincidência (REIS, 1995/96, p. 20).

A proposta de Rincon é voltada a descrição, de conto, que remonta o

período escravocrata ao mesmo tempo em que cria um jogo com representações

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atuais, tais como o negro que foge da polícia trajando trajes modernos (tênis e

moletom) e o próprio policial, que é força de repressão maior a serviço do

Estado, mas é visto também como metáfora da figura repressora dos tempos

coloniais.

Em entrevista concedida ao site RedBull (2018), o cantor afirma que

“Crime Bárbaro” atua como alegoria da violência e do genocídio que acomete

negros no país, no qual o racismo institucional atua em função dos resquícios

da escravidão mesmo após sua abolição oficial em 1888.

Figura 1 – Rincon Sapiência: Crime Bárbaro (2018)

Fonte: Uol Entretenimento, 2018.

O ato de fuga, por parte de Galanga, é apontado em diversos momentos

da construção da narrativa. Nos quase quatro minutos de vídeo, Rincon foge

incansavelmente do policial que permanece em seu encalço, portando os mais

diversos tipos de arma de fogo. Frases como: “Nossa senhora, neguinho passou

a mil”, “Canela fina é pra correr”, “Corre nego fujão” e “Boatos correm e eu

também”, embalam o cancioneiro e levam o espectador a torcer pelo narrador,

que mesmo alegando ter matado o senhor de engenho, tem consigo alegações

sobre o porquê de tal ato.

Meu crime a ele eu culpo Bateu em criança, cometeu estupro

Proibiu a dança e a religião Gerou confusão interna entre o grupo

Cana-de-açúcar e sol quente Rachando na cuca, ódio na mente

Lembro do seu braço preso no meu dente (Ah!) Depois não foi um acidente

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Preso e vivo, morto e liberto Logo pensei, um dia te acerto

(Ah!) Ele diz “esse nego é o cão”. (RINCON SAPIÊNCIA – Crime Bárbaro, 2018).

Galanga, no entanto, afirma estar sem esperanças de continuar vivo,

uma vez que tem em mente a perseguição por parte daqueles que “querem sua

cabeça na ponta da lança” que se findará quando for capturado e

consequentemente morto. O videoclipe é finalizado com Galanga e o seu captor

em uma piscina de sangue do escravo fugitivo, o que marca a narrativa com um

aspecto desolador, e atua de forma destoante na construção imagética de um

escravo que chegou a seus limites para conquistar sua liberdade.

Jovens cantores do rap brasileiro como Rincon Sapiência e Djonga

exaltam a construção de uma memória ancestral, que ajuda os jovens negros a

compreenderem suas matrizes originárias e as correlações existentes entre elas

e sua realidade cotidiana. Galanga é representado como escravo, mas também

como um homem comum, tendo em vista suas vestes ao início do clipe; ao

removê-las alterna entre o homem negro atual e o escravo de vestes simples,

enquanto que o policial ora alterna como a figura do capitão do mato, ora como

a repressão cotidiana configurada pelas armas de fogo que buscam acertar o

alvo, que no caso retratado é um corpo negro.

As correlações propostas por Djonga, a partir da canção “Corra”,

remontam também o pensamento ancestral, visto a realidade atualizada do

negro que busca compreender seu lugar no mundo. Com título homônimo a

obra Corra! (Get Out de Jordan Peele 2017)7, a canção inicia-se com a

declamação em suaíli dos versos de Sikiliza Kwa Wahenga, que compõe a trilha

sonora do filme e pode ser lida em português como “Irmão, fuja! Ouça mais

seus ancestrais”.

7 . Com lançamento em 2017, “Corra” (Get Out), retrata a história de Chris, um jovem negro que está prestes a conhecer a família de sua namorada, a caucasiana Rose. A princípio, ele acredita que o comportamento excessivamente amoroso por parte da família dela é uma tentativa de lidar com o relacionamento de Rose com um rapaz de sua etnia, mas, com o tempo, ele percebe que a família esconde algo muito mais perturbador. (Fonte: Adoro Cinema, 2017.)

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Em um cenário de pouca luz, o rapper corre também no escuro como se

fugisse em direção ao espectador, até que é iluminado por um telão onde são

apresentadas imagens de seus olhos perdidos, que alternam com imagens

históricas, como a ascensão do nazismo. Ora perdido dentro do telão, ora

perdido frente a ele, o cantor inicia seus versos como em uma carta para a

mulher amada.

Amor, olha o que fizeram com nosso povo

Amor, esse é o sangue da nossa gente Amor, olha a revolta do nosso povo

Eu vou, juro que hoje eu vou ser diferente (Djonga feat Paige – Corra, 2018).

Figura 2 - Djonga feat Paige – Corra, 2018

Fonte: Polifonia Periférica, 2018.

A participação da cantora Paige atua como ponte melódica da narrativa

grave de Djonga, que aponta a desolação do homem negro, ao figurar-se sem

lugar, uma vez que se vê diante dos aspectos da branquitude desde a

escravidão.

Eles são a resposta pra fome Eles são o revólver que aponta

Vocês são a resposta porque tanto Einstein no morro morre e não desponta

Vocês são o meu medo na noite Vocês são mentira bem contada

Vocês são a porra do sistema que vê mãe sofrendo e faz virar piada, porra Eu vi os menor pegando em arma, pois cês foram

silenciadores Eu vi meu pai chorando o desemprego, desespero

Pra que isso, mano?

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Eu não quero vida de pizzaiolo, e sim ser dono da pizzaria Querem que eu me contente com nada

Sem meu povo o tudo não existiria Eu disse: "Óh como cê chega na minha terra"

Ele responde: "Quem disse que a terra é sua?". (Djonga feat Paige – Corra, 2018).

Aspectos marcantes como a perda da autoestima do jovem negro e a

entrada para a criminalidade são apontados, durante a construção da canção.

No entanto, ela é carregada pela promessa de novos tempos, que segundo o

cantor configuram a retomada de seu mundo. A construção do videoclipe

culmina com o seu apagamento, da frente do telão e a consequente sequência

de disparos de arma de fogo. O telão é novamente iluminado, trazendo consigo

o nome e a data do assassinato de negros no Brasil em consequência de balas

perdidas ou confrontos policiais.

O apagamento de Galanga e Djonga pode ser lido pela dualidade entre a

retomada da autoestima e sua destruição, reflexos da cultura supremacista

branca que observa a retomada da autoestima negra, bem como do amor à

negritude como um crime que abala de formas tão profundas a tessitura social

que deve ser punida com a morte (hooks, 2019).

Os aspectos relacionados ao ato de correr dentro das narrativas

anteriormente analisadas levam o indivíduo à morte, atuando como uma fuga

ineficaz, pois mesmo mobilizando aspectos sensíveis para a luta negra, estas

invariavelmente recaem na extinção do sujeito que busca tornar-se parte do

visível frente ao apagamento socialmente estabelecido por meio da violência.

Portanto, qual seria a saída possível para que outras representações do

jovem negro venham à tona no quadro das reproduções midiáticas? Para hooks

(2019), a mudança das representações deve estar aliada a transformação do

olhar, principalmente quando o foco é voltado para pessoas negras pelos signos

que compõem a negritude, sendo somente através do amor pela negritude

possível romper com as barreiras de negação e auto-ódio que lançam as vidas

negras à morte. Conforme apontado por Malcolm X, citado por hooks (2019),

temos que mudar nossas mentes (...) temos que mudar nossos pensamentos a

respeito uns dos outros. Temos que nos ver com novos olhos. Temos que nos

aproximar de modo caloroso.

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É a partir da análise de “Bluesman” (2019) que se torna possível observar

as relações instituídas entre o negro que corre e a construção do aspecto de

resistência para além da demarcação do corpo negro, enquanto alvo para a

violência. Com título homônimo ao álbum lançado por Baco Exu do Blues. O

curta foi ganhador do prêmio Grand Prix na categoria Entertainment for Music

do Cannes Lion 20198. Com 8 minutos de duração, “Bluesman” narra as relações

instituídas entre negros no país e promove a discussão do racismo enraizado na

sociedade brasileira.

Protagonizado por Kelson Succi e com a participação de Hilton Cobra, o

filme leva o espectador a considerar o personagem principal como um bandido

logo em seus primeiros frames. A causa para tal preconceito? O negro corre.

Figura 3 – Bluesman Filme – 2019

Fonte: O Globo, 2019.

Em meio a um cenário caótico, no qual vemos o personagem principal

atravessar a névoa e em meio às batidas que compõem o álbum, somos

apresentadas a trechos das canções que sobrepõem a corrida do personagem

8 . G1. Clipe de Baco Exu do Blues ganha prêmio no festival de publicidade de Cannes: ‘Bluesman‘ conquistou o Grand Prix – premiação máxima – na categoria "Entertainment for Music" do Cannes Lions.. G1, [S. l.], p. 1-1, 19 jun. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2019/06/19/clipe-de-baco-exu-do-blues-ganha-premio-no-festival-de-publicidade-de-cannes.ghtml. Acesso em: 6 jan. 2020.

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principal. Baco inicia seu discurso, a partir do encontro do jovem que corre com

um idoso em um campo de trigo:

Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos O primeiro ritmo que tornou pretos livres

Anel no dedo em cada um dos cinco Vento na minha cara, eu me sinto vivo A partir de agora considero tudo blues

O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues

Tudo que quando era preto era do demônio E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues

É isso, entenda Jesus é blues

Falei mermo. (Baco Exu do Blues - BLUESMAN, 2019).

Baco afirma que seu ritmo foi o pioneiro frente à libertação dos negros,

quando relaciona seu ritmo ao blues, que caracteriza um gênero formado por

escravos afro-americanos no final do século XIX, e que gradativamente foi sendo

inserido nas músicas brancas estadunidenses. A correlação com o samba

brasileiro também pode ser compreendida através do viés de suas origens

históricas, enquanto uma expressão do grupo de negros marginalizados que

buscavam afirmar os aspectos de sua etnia no quadro da vida urbana brasileira.

Portanto, onde estava o negro estava o samba, como uma demonstração de

resistência ao imperativo social escravagista que buscava reduzir o corpo negro

social e a cultura africana somente a uma máquina produtiva. O samba que

deveria ficar ao fundo das senzalas e quintais só passa a ser socialmente aceito

em 1923, quando obteve o “direito” de penetrar no espaço urbano branco

através dos desfiles das escolas de samba (SODRÉ, 1979).

A produção de Baco também conta com a afirmação do amor à negritude,

por meio da narrativa de Milton Coimbra sobre os aspectos valorativos que ligam

a pele negra à prata.

A prata é um metal com poder de reflexão muito elevado. Do latim argentum, significa brilhante.

Nossa pele é de prata. Ela reflete luz.

Um brilho tão intenso que eu lhe pergunto: ‘por que o ouro é tão querido, e a prata subvalorizada?’

Alguns vão dizer que é porque a prata é encontrada com mais facilidade.

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Reflita. O Brasil tem uma população de negros maior que a de

brancos. Temos menos valor por ser maioria?

A ironia da maioria virar minoria. A prata é um metal puro.

Eu realmente não entendo essa necessidade da procura do ouro. (Baco Exu do Blues - BLUESMAN, 2019).

Correlações entre a prata e a pele evocam a crítica às políticas de

embranquecimento que figuraram no século XIX, a partir das teorias propostas

pelo darwinismo racial que buscavam apagar o passado negro do país, através

da esterilização de afrodescendentes. O que parece ser parte das marcas do

passado de nosso país é ainda presente, uma vez que em 1982 o Grupo de

Assessoria e Participação do Governo do Estado de São Paulo (GAP) propunha,

em relatório, a esterilização de mulheres pretas e pardas, sob o argumento de

que as projeções demográficas demonstravam crescimento da população escura

e que isso resultaria na ocupação do poder político por afrodescendentes

(SODRÉ, 1999).

Narrar sobre a valorização da negritude é um dos eixos que torna

“Bluesman” tão interessante, vide exemplo do corte executado entre o ato de

correr e sua sobreposição por negros, que ocupam a mesa com trajes que até

então só eram utilizados pela burguesia escravocrata, permitindo uma mudança

paradigmática do belo.

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Figura 3 – Bluesman Filme – 2019

Fonte: 999, 2018.

Ao afirmar “eles querem um negro com a arma pra cima num clipe na

favela gritando: Cocaína” ou que “querem que nossa pele seja pele do crime”,

Baco afirma-se ciente do local almejado para as representações de negros e

negras. Entretanto é categórico ao afirmar que não planeja se ater às

representações como a única realidade possível para sua arte, bem como para

os seus semelhantes.

O personagem principal que corre é também recebido em um terreiro e

sua entrada neste local é coroada com as batidas de tambor que compõem a

canção Minotauro de Borges:

Negro correndo da polícia com tênis caro Tipo Usain Bolt de Puma não paro

Correndo mais que os carros Eu não fui feito do barro

Pisando no céu enquanto eles se perguntam Como esse negro não cai?/ Dizem que o céu é o limite

Eles se perguntam Porque esse negro não cai?

(...) Depois que eu morri com um tiro na cabeça Sempre que um preto faz dinheiro grita

BACO VIVE, BACO VIVE (...) Museus estão à procura de mármore negro

Pra fazer uma estátua minha. (Baco Exu do Blues - BLUESMAN, 2019).

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A música, por sua vez, tensiona conceitos opostos, como o ato de correr

e a força repressora do aparato policial, bem como a negação de sua figura e o

barro. Ao fazê-lo, Baco se alça como deus e mesmo morto é saudado em vida:

por negros que como ele alcançam de alguma forma o sucesso.

Ao colocar tais elementos conectados com o filme-conceito de seu

álbum, o cantor demonstra que sua ancestralidade não deverá mais ser vista de

forma segregada, uma vez que também é sagrada.

“Bluesman” perpassa diversos elementos entre a correria do jovem negro

e o frequente desconforto causado ao espectador, que espera o desfecho para

a correria, concretizada quando o personagem principal chega a sua aula de

música e justifica ao professor que corria por estar atrasado.

Considerações Finais: sobre o negro que corre, fronteiras e frestas

No filme “Bróder” (2010), de Jeferson De, em determinado momento da

trama, Francisco (Ailton Graça) faz um gesto a Macu (Caio Blat), reconhecendo

os percalços que o afilhado vem enfrentando nas negociações e nos pactos

firmados com os códigos de violência da periferia do extremo sul da cidade de

São Paulo, mais especificamente o bairro de Capão Redondo. Francisco quer

“presentear” o afilhado com uma arma de fogo, para que Macu a utilize como

objeto de proteção, diante das investidas de um mal exterior, dos agentes da

contravenção e do pequeno tráfico local. Macu não só não aceita o presente

como assevera ao padrasto uma frase emblema, presente no seguinte diálogo:

“Francisco: - pega essa arma, bróder; Macu: - não é bróder, é mano!” A síntese

retórica do linguajar carioca de Francisco, e de um lugar identitário

autorreconhecido, parece permear a produção do hip hop brasileiro a partir do

final dos anos 1980: na distinção, não só geográfica entre São Paulo e Rio de

Janeiro, mas principalmente na proeminência da expressão mano como sentido

de autoconsciência periférica. Isso se dá também na decorrência das influencias

do rap norte-americano, mais marcadamente em artistas e grupos como Public

Enemy, Run DMC e NWA. A utilização e a escalada do termo mano, em

contraposição à irmandade de broder, adquire um sentido de comunhão

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particular, espreitado a partir de um sujeito periférico também internacional.

Em “Bróder”, na parceria e no encontro de Macu com os amigos de infância do

Capão: o agora jogador de futebol Jaiminho (Jonathan Haagensen) e o

“certinho” Pibe (Silvio Guindane). É com eles que Macu terá de fazer a correria.

A geração de Baco Exu do Blues, Djonga e Rincón Sapiência se traveste,

ainda, portanto, da indumentária de uma gênese estética, e reivindica também

a possibilidade de outras aberturas; de frestas, que estão delimitadas,

justamente, no espírito comunitário que a expressão mano carrega e insinua. A

consequente correria atribuída a essa entidade urbana é reinterpretada, então,

à luz de referências comunitárias e na propositura, vamos assim dizer, de uma

embalagem estética, em que o corpo periférico se imbui de urgência, no campo

da arte musical, em duas frentes de sentido, pelo menos: a) a ancestralidade

da diáspora negra incorporada às vivências cotidianas do jovem periférico

contemporâneo, b) a denúncia da prática racista a qual esses atores estão

envolvidos na lida diária.

A título de comparação, o filme “Corra!” (Get Out, 2017), de Jordan

Peele, dialoga com as descrições aqui destacadas, já que Chris (Daniel Kaluuya)

se vê envolto numa trama aterrorizante, em que participantes de uma

sociedade elitizada, branca e “culta” (falsamente progressista) preenchem e

prendem o corpo negro (e simbólico) de Chris, numa espécie de redoma

asfixiante, utilizando-se das mesmas engrenagens do processo de escravização

de pessoas negras no século XIX, no continente americano, ao sul e ao norte.

Resta a Chris, com a ajuda externa do amigo Rod, por meio do dispositivo do

telefone celular, fazer a renúncia do estado de coisas a que foi submetido (o

amor inter-racial com a jovem Rose, a assimilação cordial com a família de

outro estrato social), em que a tensão racial se institui como procedimento a

ser tomado e como demanda para o salto de uma autonomia que lide com os

traumas e fantasmas do passado. No caso, Chris precisa se livrar da ofensiva e

da vilania da família de brancos, especialmente da namorada Rose, assim como

se virar em meio a uma particular correria. Para Wellington dos Santos,

“Corra!” estabelece, com suas alegorias políticas, uma depuração das

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representações identitárias no cinema quando alinhava a reviravolta catártica

ao final:

Pode-se dizer que a identidade de Chris, enquanto processo [...] chega ao final da narrativa diferente do modo como começou. Ele sai de uma situação de extrema passividade diante do mundo dos brancos para construir sua liberdade, seja do passado que o escraviza (suas memórias para com sua mãe), seja dos opressores do presente (SANTOS, 2018, p.289).

Percebe-se com o movimento de personagens como Chris e Macu (cada

um com suas questões pessoais específicas) que a correria é um emblema

revisitado para um ato político de autonomia racial, semelhante em grande

medida à expressividade artística de Baco Exu do Blues, Djonga e Rincón

Sapiência. No cinema de Jeferson De e de Jordan Peele, isso parece lógico e

razoável: há um questionamento da longa tradição do gênero cinematográfico

americano, estabelecido em representações preconcebidas a respeito das

práticas sociais exercidas (e dos deslocamentos espaços-temporais definidos

pelo cinema clássico, cuja principal ordem melodramático-representacional

talvez seja a mão racista de “O nascimento de uma nação” (The Birth of a

Nation, 1915). Spike Lee com, principalmente “Faça a coisa certa” (Do the real

thing, 1989) e A hora do show (Bamboozled, 2000), parece ter dado a pista do

novo jogo da representação, especialmente a racial, na inversão das

proposições tipológicas sociais de personagens afro-americanos. O corpo negro,

desde então, nesta filmografia e nesta iconografia mais recente, está disposto

em várias atribuições, na apreensão crítica da própria indústria dos

espetáculos, em forma e conteúdo temático, como, por exemplo: a) a

incorporação da postura gangsta como marco identitário da performance

juvenil dos guetos, b) o uso das acepções nigga e bitch como atributo positivo,

ou não depreciativo simplesmente, a depender da subjetivação, c) a batida

rítmica dos raps se aproximarem da batida rítmica dos filmes, quase como uma

sintonia poética, d) a edificação de uma ideia de conhecimento baseada na e

sobre as “quebradas”.

Trata-se de marcas decisivas para a construção simbólica do rap no novo

milênio. Elas estão ancoradas, e continuam a reforçar, no emblema das

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correrias, no canto utópico materializado nos filmes acima mencionados. Em

entrevista ao programa Sangue latino, o escritor e jornalista uruguaio Eduardo

Galeano resume a ideia da utopia como o inalcançável: “você caminha e a

utopia está no horizonte, você caminha mais um pouco e a utopia também se

distancia no horizonte. Pra que serve a utopia? Para isso, para caminhar”.

Pois bem. Os trabalhos audiovisuais aqui examinados de Baco Exu do

Blues, Djonga e Rincón Sapiência se investem do semblante utópico e do

atributo próprio da estética do hip-hop contemporâneo, em múltiplos jogos de

referências, a corroer o significado de representações ancestralmente

marcadas pela indústria cultural. Em larga medida, trata-se de um novo

argumento para o sentimento utópico, nos termos de Galeano. Desse modo, a

temática da correria assume um valor que sintetiza a produção dos artistas, em

diálogo íntimo com a guinada estética valorizada pelo pela denúncia dos

processos de pilhagem dos “corpos e almas”, que continuam envolvidos em

torno da morte desse mesmo escopo social e racial: no trânsito do capital, no

trânsito das fronteiras dos países e no trânsito das fronteiras das cidades e

comunidades.

É curioso notar o trânsito (em complemento à noção de correria), se

pensarmos no que salienta Mbembe, quando traduz o sentimento diaspórico

africano na descrição dos movimentos e deslocamentos dos negros no mundo

globalizado e suas respectivas aflições: “O aprisionamento se tornou a

precondição para a exploração do nosso trabalho, e por isso as lutas pela

emancipação racial e por melhoria das condições de vida dos negros são tão

entrelaçadas às lutas pelo direito de circular livremente” [grifo nosso]

(MBEMBE, 2019, p.79).

O que Mbembe resume, neste texto especificamente, quando fala da

permeabilidade das fronteiras e dos fluxos contemporâneos, é o jogo das

distinções, e a quem cabe ou é reservado o direito de viver (ou morrer) nesta

diáspora negra contemporânea. Nesse sentido, os três vídeos aqui examinados,

de três artistas brasileiros jovens contemporâneos, ditam uma materialidade

(complementada em forma metalinguística em Corra!, e em crônica do mundo

periférico em Bróder) do negro prestes a: a) escapar da truculência do controle

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sobre seus corpos, b) expiar a possibilidade de uma nova redenção, c)

transcender o processo ancestral de escravização.

Uma ideia clássica da utopia é empreendida para esses objetivos dos

artistas, na fundamentação teórica de Mbembe, e não seria exagero dizer que

tal geração internacionalizada e educada a uma atividade artística fim (afinal

de contas, “periferia é periferia em qualquer lugar”, como vaticinavam os

Racionais Mc´s, em 1997, na música “Periferia é periferia”) anuncia um discurso

singular sobre a esperança, considerando narrativas envolvendo marcas

internacionalizadas e reinventando, paradoxalmente, as experiências locais.

Isso acontece em Rincón Sapiência, nas possibilidades de danças ancestrais

encenadas no pop universal; com Djonga, na reinvenção do flow característico

da batida do rap, testando os limites da agressividade poética; com Baco Exu

do Blues, na experimentação do crossover musical e poético. Nos três, as

inumeráveis referências eruditas mobilizadas estão a serviço na função da

fresta, da abertura, da possibilidade, e do insumo da correria como ganho

estético e político.

Estamos diante, portanto, de potencialidades que reconfiguram a

tradição de sujeitos da correria ancestral, essa que pode ser vista na

compreensão feita pelas expressões triunfantes do rap nacional: o vida loka e

o preto zica - tematizados simbolicamente pelos Racionais, respectivamente

nos álbuns Nada como um dia após o outro dia (2002) e Cores e valores (2014)),

mas também refletidos em BK, na música “Correria”, e em FEBEM, no álbum

“Running”: uma espécie de apanhado metodológico sobre a modalidade das

correrias, ontem e hoje.

A análise por nós proposta pretendeu-se, no mais, alinhavar

principalmente dois pensadores em um mesmo escopo de discussão sobre os

encontros internacionalizados – hooks e Mbembe – como também articular a

produção audiovisual de três artistas por meio das intensas acumulações,

assimilações e incorporações gestadas por esse pensamento sobre a cultura

contemporânea.

Há, com isso, tanto uma espécie de linha evolutiva de uma produção

entendida como música preta internacional, como a enunciação das

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especificidades da produção marcada por respectivas caracterizações

regionais: Djonga (MG), Baco (BA) e Rincón (SP). Tais marcos fronteiriços e suas

limitações resumem o processo de assimilação das subjetividades como algo

que está fortemente anteposto no rap dos Racionais Mc´s, em “Da ponte pra

cá”: “não adianta querer, tem que ser, tem que pá, o mundo é diferente da

ponte pra cá, não adianta querer ser, tem que ter pra trocar, o mundo é

diferente da ponte pra cá”.

A rotina da correria implica o entendimento daquilo que é referenciação

dos guetos, cafuas, santuários, vilas, dos pequenos espaços carcomidos das

cidades e dos lugares de vivência-limite, especialmente estes que estão

dispostos nas regiões-fronteiriças da urbe incorporada ao jogo do capital global

internacionalizado. O termo gueto estampa o mano de Bróder e o mano de

“Corra!”, em uma tensão associada à ideia de comunhão, este paradoxo que

Francisco tenta empreender em Bróder, quando tenta por em xeque o impasse

da correria de Macu e sua possibilidade de rompimento com a violência.

Além disso, a correria estabelece limites, como em “Da ponte pra cá”,

e prevê que determinadas trevas e luzes estão na linha de frente de limitações

e fronteiras. Tais imagens reinventam a autorreflexão dos atores periféricos:

jovens em percalço, em périplo de provação recorrente, a reafirmarem pela

dança anticelebrativa, no fim das contas, resumida talvez pelo rap “Mandume”,

de Emicida, no verso: “ao ver o Simonal que cês não vão foder”.

É por meio dessa linhagem, que é também ruptura, que o corpo se

encanta em meio ao processo da percepção e da urgência da consolidação de

uma nova correria; a beleza da evidência estética é também a constatação do

horror e da degradação política a que estão inseridos corpos, almas e mentes.

As narrativas propostas pelos três rappers citados neste artigo figuram

entre o desejo de liberdade, frente à opressão cotidiana e os elementos que

marginalizam a negritude quando pensados por um viés supremacista branco.

Rincon Sapiência e Djonga, demonstram que o jovem negro que corre, busca

alcançar de alguma forma a vida, mesmo tendo a morte como única certeza.

Por sua vez, Baco Exu do Blues, expõe o próprio espectador aos aspectos

relativos ao racismo estrutural ao exibir o negro que corre.

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Os três videoclipes atuam como forma de demonstrar o racismo

socialmente instaurado em nossa forma de olhar para corpos negros, que

continuam a ser violentados mesmo após o período de abolição. Analisar o ato

de correr nestes quesitos pode também ser lido como um ato de experiência

estética, concebida segundo Moriceau e Mendonça (2016) como a experiência

proveniente de um momento singular que repleta de significado é dotada da

promessa de descobrir ou compreender algo, uma vez que cessa nossos

movimentos e nos impulsiona a uma série de sensações e pensamentos. A

correria, portanto, desponta não somente como efeito produzido por um corpo

em fuga, mas como potencialidade dos corpos que buscam alcançar um ponto

ainda invisível no horizonte do possível.

Referências

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