A Crônica Em Drummond_Maria Helena Da Silva Correa Pinho

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO - PUC-SP

    MARIA HELENA DA SILVA CORRA PINHO

    A Crnica em Drummond: um gnero em trnsito

    MESTRADO EM LITERATURA E CRTICA LITERRIA

    So Paulo

    2011

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    MARIA HELENA DA SILVA CORRA PINHO

    A Crnica em Drummond: um gnero em trnsito

    MESTRADO EM LITERATURA E CRTICA LITERRIA

    Dissertao apresentada Banca Examinadora daPontifcia Universidade Catlicade So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulode MESTRE em Literatura eCrtica Literria, sob aorientao do Prof. DoutorFernando Segolin.

    So Paulo2011

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    Banca Examinadora

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    DEDICATRIA

    Ao meu pai (in memriam), minha me, pelo amor incondicional.

    Aos meus filhos Janana e Thiago, para que nunca recuem diante das

    adversidades.

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus familiares, me, irmos, filhos e ao meu companheiro

    Francisco Luiz, incentivo e compreenso.

    amiga Mrcia Denser, leituras e por partilhar a paixo por Drummond.

    Ao Professor Dr. Fernando Segolin, estmulo pesquisa e orientao

    permanente.

    Professora Dr. Maria Aparecida Junqueira, disponibilidade e

    dedicao Docncia.

    Ana Albertina, apoio tcnico.

    Aos colegas do Centro Cultural So Paulo,

    Muito obrigada!

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    Enquanto discutem com erudio

    os entendidos

    que bicho a crnica--- gnero literrio ou nmero de show,

    mescla de conto e testemunho,

    alienao ou radar ---

    meu amigo Joo Brando

    vive sua vida entre a rotina palpvel

    e a aventura imaginria,

    e eu vou cronicando seu viver

    com a simpatia cmplice que me inspiram

    o ser comum e sua pinta de loucura

    mansa,

    pois na terra alucinada que nos tocou,

    ainda virtude (at quando?)

    cumprir sem violncia

    o mandamento de existir.

    CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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    RESUMO

    PINHO, Maria Helena da Silva Corra. A Crnica em Drummond: um

    gnero em trnsito. Dissertao de Mestrado. Programa de Estudos

    Ps-Graduados em Literatura e Crtica Literria. Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, SP, Brasil, 2011. 98p.

    Esta dissertao de Mestrado analisa a obra de Carlos Drummond

    de Andrade, em particular a crnica - um gnero em trnsito. Para anlise

    do corpus, escolhemos as crnicas: Divagao sobre as ilhas, Carta

    aos nascidos em maio , do livro Passeios na ilha(1962); Lembra-se de

    maio, Caso de escolha e Caso de ceguinho, do livro Cadeira de

    Balano(1966) e Surge o poeta da flor do livro Caminhos de Joo

    Brando(1970).

    Como objetivos especficos procuramos demonstrar a maestria

    com que Drummond transita entre os diversos gneros literrios. Na sua

    obra h um entrelaamento da prosa ficcional, estudos de natureza

    ensastica e critica literria, tudo numa dimenso potica e

    metalingstica.

    Propusemo-nos identificao e exame critico dos fenmenos

    estticos da intertextualidade, da metalinguagem e de elementos da

    oralidade, caractersticos da prosa moderna.

    Como embasamento terico recorremos conceitos da funo

    potica da linguagem de Roman Jakobson, incorporao do meios de

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    comunicao de massa, ruptura dos gneros, fuso entre a prosa e a

    poesia, problematizados por Haroldo de Campos e Otvio Paz.

    Contudo, observamos que a crnica drummondiana cumpre suafuno, pois ao relatar os fatos do cotidiano, o faz de uma forma leve

    aparentemente descompromissada, mas que deixa transparecer uma

    personalidade literria intensa e reflexiva.

    Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade, crnica brasileira,

    gneros literrios, trnsito entre gneros, hibridizao da linguagem.

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    ABSTRACT

    Chronicle in Drummond: a genre in transit.

    This Master's thesis examines the work of Carlos Drummond de

    Andrade, in particular chronic - a genre in transit. For analysis of the

    corpus, we chose the chronicles, "Divagao sobre as ilhas, Carta aos

    nascidos em maio, from the book Passeios na ilha (1962); Lembra-se

    de maio, Caso de escolha and Caso de ceguinho, from the

    book Cadeira de Balano (1966)and Surge o poeta da flor from the

    book Caminhos de Joo Brando(1970).

    The specific objectives sought to demonstrate Drummonds

    skillfulness at moving between the various literary genres. In his work

    there is an intermingling of prose fiction, nature studies, literary criticism

    and essays, all in a poetic and metalinguistic dimension.

    We set out to identify and critically examine the aesthetic

    phenomena of intertextuality, the meta-language and elements of orality,

    characteristic of modern prose.

    As theoretical basis we resort to concepts of the poetic function of

    language of Roman Jakobson, the incorporation of mass media, the

    breakdown of genres, the merger between prose and poetry,

    problematized by Haroldo de Campos and Octavio Paz.

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    However, we found that drummondiana chronic fulfills its function,

    as in reporting the facts of daily life, makes for a seemingly

    uncompromising light, but reveals an intense and thoughtful literary figure.

    Key words: Carlos Drummond de Andrade, brazilian chronicles,

    literary genres, transit between genres, hybridization of language.

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    SUMRIO

    Introduo 13

    Captulo 1: O pensamento moderno como causa da hibridizao

    dos gneros.

    1.1 Dcadas de 1920 e 1930 17

    1.2 Diluio entre prosa e poesia 24

    1.3 Ruptura dos gneros 28

    1.4 Apagamento do limite entre prosa e poesia 31

    Captulo 2: A crnica em seu contexto modernista.

    2.1 O gnero crnica e sua linguagem particular 35

    2.2 A crnica a partir de 1930 39

    2.3 A crnica em Carlos Drummond de Andrade 43

    2.4 Drummond cronista e a crtica 45

    Capitulo 3: Anlise do corpus A hibridizao dos gneros em

    Drummond

    3.1 Metalinguagem e reflexo do fazer potico na crnica

    drummondiana

    3.1.1 Divagao sobre as ilhas: Insularidade como crculo mgico dacriao 48

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    3.1.2 Lembra-se de Maio: Tradio e modernidade - a temporalidade

    drummondiana como fluir contnuo. 55

    3.1.3 Carta aos nascidos em Maio:o sagrado e o profano 59

    3.1.4 Surge o poeta da flor - Metalinguagem e o fazer potico 61

    3.2 Fragmentos narrativos na crnica de Drummond

    3.2.1 Caso de escolha 64

    3.2.2 Caso de ceguinho 66

    Consideraes finais 68

    Referncias Bibliogrficas 73

    ANEXOS 79

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    Introduo

    Neste estudo, enfocamos a obra de Carlos Drummond de Andrade,em particular a crnica, um gnero essencialmente brasileiro, segundo

    Antonio Candido. Partimos, ento, do pressuposto de que sua obra,

    dentro da perspectiva cultural do sculo xx, relevante para a formao

    dos leitores e tambm para a apreciao da arte literria, como um dos

    elementos fundamentais da cultura brasileira.

    Com a diluio das fronteiras entre os gneros, na Modernidade,

    parte considervel das obras literrias no se enquadram na concepo

    tradicional dos gneros, visto haver um entrelaamento entre eles e uma

    constante transformao na maneira de analisar esse assunto. Desse

    modo, propusemo-nos a aprofundar algumas questes sobre essas

    formas de expresso, em especial a crnica drummondiana, no sentido

    de investigar aspectos que caracterizam este gnero e, assim, dar uma

    contribuio cientfica aos estudos da literatura brasileira.

    No universo da educao e da cultura, em especial nas reas de

    literatura e leitura, importante ter em mente a necessidade maior de

    promover a formao de leitores,misso que atualmente torna-se mais e

    mais complexa e difcil devido difuso da internet, criao de apostilas e

    rebaixamento da qualidade do ensino, entre outros fatores. Sem contar

    que a grande parte do povo brasileiro, segundo Candido, passou da

    audio de discursos e poemas recitados no rdio e na tev, isto , da

    oralidade, ao meio eletrnico, sem ter desenvolvido o tempo lento da

    leitura.

    Nesse sentido, as crnicas de Drummond, escritas essencialmente

    para circular na imprensa, embora muitas vezes demandassem

    investigaes documentrias, interpretaes e reflexes sobre a vida,

    sem perder o encanto e a leveza, so atraentes para o leitor, pois trazem

    sempre uma pitada de humor, de lirismo, pois ele precisava ser lido eno ser complexo.( cf. CANDIDO, 1993, p.17)

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    Na obra de Carlos Drummond de Andrade, o que nos interessou

    particularmente foi a seleo feita pelo autor de sua obra em prosa, em

    1982, ano em que completou 80 anos, intituladaProsa Seleta, publicada

    pela Editora Nova Aguilar. Nessa obra, os ttulos dos livros solo e

    antologias de crnicas esto dispostos por ordem cronolgica:

    Confisses de Minas: ensaios e crnicas; Passeios na ilha: ensaios

    e crnicas; Fala, amendoeira; A bolsa e a vida: crnicas; Cadeira de

    balano: crnicas; Caminhos de Joo Brando: crnicas; O poder

    ultrajovem; De notcias & no-notcias faz-se a crnica; Os dias

    lindos; O avesso das coisas; O observador no escritrio; A moa

    deitada na grama; Tempo vida poesia; Boca de luar (pstuma, 1988).

    Mas, em se tratando da vasta obra de Drummond, percebemos ser

    necessrio fazer um recorte, pretendendo lanar um olhar mais

    aprofundado a respeito de parte da obra. Assim, como objeto de estudo,

    destacamos para uma investigao as crnicas : Divagao sobre as

    ilhas, Carta aos nascidos em maio , do livro Passeios na ilha(1962);

    Lembra-se de maio, Caso de escolha e Caso de ceguinho, do livro

    Cadeira de Balano(1966)e Surge o poeta da flordo livro Caminhos

    de Joo Brando(1970).

    Entretanto, ao pesquisar a fortuna crtica de sua obra, deparamo-

    nos com um grande nmero de trabalhos a respeito de sua poesia e de

    sua prosa, ressaltando a leitura do ensaio de Antonio Candido,

    Drummond Prosador (1993), que aponta a livre circulao do escritor

    entre gneros: sendo altssimo poeta e no menos alto prosador, pode

    transitar entre os diversos gneros e acima deles. Assim, Candido nos

    revelou um Drummond uno e mltiplo, quando disse: talvez s haja um

    Drummond, nem poeta, nem ficcionista, nem cronista, instalado na

    posio-chave da sua competncia soberana ... (1993, p.18) . Tais

    afirmaes, em particular, estimulou-nos a elaborar esta dissertao.

    Assim, o objetivo central deste trabalho investigar como

    Drummond transita entre os gneros, rompendo com as tradicionais

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    conceituaes de gnero, na medida em que, na sua poesia, h

    elementos referenciais da prosa e h poeticidade em sua prosa, em

    especial na crnica, vista como prosa de raiz potica , cuja marca

    caracteriza-se pela nfase da mensagem na funo potica, conforme

    terminologia jakobsoniana, ou seja, a nfase da mensagem nela mesma,

    no aspecto material do signo, inclusive quando faz aquilo que

    convencionalmente se chama prosa.

    Como fundamentos tericos a serem utilizados na anlise esttica

    dos arranjos da linguagem em seus elementos sonoros e sintticos

    presentes em nosso objeto de estudo, sero fundamentais os conceitos

    de funo potica, de Roman Jakobson (2003), para a caracterizao da

    poeticidade da linguagem.

    Para uma abordagem discursiva da linguagem, investigando as

    aproximaes da linguagem potica com a linguagem prosaica,

    partiremos de um referencial terico embasado na Anlise do Discurso,

    formulada por Bakhtin, via Irene Machado.

    No primeiro captulo, sero analisadas as conexes e a diluio

    entre prosa e poesia de Carlos Drummond de Andrade na Modernidade,

    a ruptura dos gneros, o apagamento das fronteiras entre a prosa e a

    poesia, sob as perspectivas tericas de Haroldo de Campos (1972),

    Walter Benjamin (1989), talo Moriconi (2004), Davi Arrigucci (1987,2002),

    Antnio Cndido (1983,1993,2002), Octvio Paz (2006), Irene Machado

    (1995), alm de formulaes crticas de Jlio Cortzar(1974).

    No segundo captulo, abordando o tema especfico de nossa

    pesquisa, vamos discorrer sobre o gnero crnica no contexto modernista

    e seu desenvolvimento a partir de 1930 e, particularmente, sobre a

    linguagem da crnica em Drummond, abordando tambm aspectos da

    crtica em relao ao cronista.

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    Com o propsito de adentrarmos de fato nosso objetivo especfico,

    no terceiro captulo realizaremos a anlise do corpus nas crnicas

    escolhidas, em que pretendemos investigar o trnsito entre os gneros e

    a presena de fenmenos estticos, isto , de elementos que

    caracterizam a linguagem de raiz potica na obra prosaica de Drummond.

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    Captulo 1

    ETERNO

    E como ficou chato ser moderno.

    Agora serei eterno.

    Eterno! Eterno!

    O pensamento moderno como causa da hibridizao dos

    gneros.

    1.1 Dcadas de 1920 e 1930

    No cenrio mundial, a Primeira Guerra (1914-1918) influiu no s

    no crescimento da nossa indstria e no conjunto da economia, bem como

    nos costumes e nas relaes polticas. Assim, no apenas surgiu uma

    mentalidade renovadora na educao e nas artes, como se principiou a

    questionar seriamente a legitimidade do sistema poltico, dominado pela

    oligarquia rural. (Cf. CNDIDO, 1983, p.9).

    Foi nesse clima que, na dcada de 1920, iniciou-se um dos mais

    importantes movimentos de renovao da literatura brasileira, o

    Modernismo, que, conforme Cndido (1983, p.9), compreendeu trs

    elementos estreitamente ligados: um movimento, uma esttica e um

    perodo.

    A obra de Carlos Drummond de Andrade principiou-se, justamente,

    nesses anos 20, quando o escritor colaborava como jornalista no Dirio

    de Minas,em Belo Horizonte, mas a conscincia literria se tornou mais

    firme com a publicao de A Revista, em 1925, da qual faziam parte um

    grupo de poetas mineiros, cuja proposta era a renovao potica no

    mbito da literatura brasileira, em sintonia com o que j fazia o grupo

    paulista em A Semana a partir de 1922, editando tambm a revista

    Klaxon,cujo primeiro nmero data de 15 de maio de 1922.

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    impossvel citar Klaxonsem recuar para o movimento surgido em

    So Paulo, em 1922: a Semana de Arte Moderna, que se difundiu a

    seguir por todo o pas, com o propsito de superar os resqucios

    passadistas e artificiosos do Parnasianismo, Simbolismo, incluindo o

    Naturalismo. Tal Semana significou uma teoria esttica em aberto, no

    rgida nem claramente esboada e, muito menos nica, visando

    renovao dos conceitos tradicionais de literatura e de escritor.

    Os modernistas de 1922 no se consideravam integrantes de uma

    escola, porque o que os reunia era a vontade de expressar-se livremente,

    sem os entraves dos modelos acadmicos, instalados no pas entre 1890e 1920. A liberao modernista ocorreu no vocabulrio, sintaxe, escolha

    de temas, viso de mundo. Do ponto de vista estilstico, propunham a

    rejeio dos padres portugueses, instaurando o coloquial ou o modo de

    falar brasileiro, a exemplo de Mrio de Andrade, que comeava os

    perodos pelo pronome oblquo, adotava a funo subjetiva do pronome

    se, eliminava a segunda pessoa do singular, acolhendo expresses da

    prosa corrente e procurando incorporar escrita o ritmo da fala, alm deconsagrar literariamente o vocabulrio usual. Ainda para Cndido: 1922

    um ano simblico do Brasil moderno, coincidindo com o Centenrio da

    Independncia. (1983, p.9)

    Tais fatos culminaram at cerca de 1930 (ano, alis, em que

    Drummond estreou com Alguma Poesia) inaugurando, a partir da, uma

    nova etapa de maturao, cujo trmino ocorreu em 1945. O Modernismo,

    portanto, dizia respeito a certas transformaes da sociedade, em geral

    determinadas pela repercusso local de fenmenos exteriores.

    Alm da subverso da gramtica, os modernistas promoveram uma

    valorizao diferente do lxico paralela renovao dos assuntos. O seu

    desejo principal era atualizar e exprimir o cotidiano, transformar em alta

    literatura os fatos corriqueiros, enfim, revelar o sublime oculto nas

    pequenas coisas. (ARRIGUCCI JR, 1987, p.25).

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    Ainda mais. Inspirados em Marinetti, futurista italiano, os

    modernistas festejavam a mquina, o progresso, combatiam a literatura

    pomposa, o estilo retrico e sonoro, tendendo ao estilo epigramtico,

    conciso elptica, visando justamente corrigir a orientao grandiloquente

    da literatura tradicional. Drummond, por exemplo, escreveu um poema em

    que fez referncia a outro poema de Gonzaga a fim de plasmar um novo

    conceito estilstico. Gonzaga escreveu: Eu tenho um corao maior que o

    mundo. E Drummond replicou. No, meu corao no maior que o

    mundo. muito menor. (CANDIDO, 1983, p.10). Aqui, o poeta confessou

    a sua fragilidade, mas com versos de grande fora potica.

    Em artigo no 1. nmero de A Revista, de julho de 1925, Carlos

    Drummond de Andrade exps a misso que entendia caber ao escritor:

    O excesso de crtica dominante nos anos anteriores de 1914 se resolveu

    no excesso contrrio, de extrema passividade ante os fenmenos do

    mundo exterior ao paroxismo das doutrinas estticas, que chegou a

    DAD; repetiu-se o descalabro da Torre de Babel. Agora, o escritor foge

    de teorias e construes abstratas para trabalhar a realidade com mospuras.(COUTINHO, 2001, p.128). Nesse caso, vale a pena relembrar um

    dos versos mais famosos de Drummond, de Sentimentos do mundo,

    publicado em 1940 : S tenho duas mos e o sentimento do

    mundo(ANDRADE, 2008, p.154), representando o que ele ps em prtica

    em sua teoria ntima sobre o fazer potico.

    Afinal, ainda oscilantes, os modernistas queriam encontrar uma

    espcie de equilbrio entre a poesia clssica e a nova linguagem que

    emergia. Num tempo de reao ao conservadorismo literrio, ideais de

    modernizao predispunham formao de grupos, quase sempre

    representados por revistas, e os moos de Belo Horizonte no fugiam

    regra. (cf. FERRAZ, apud ANDRADE, 2010, p.11).

    Foi assim queA Revista,que contou com apenas trs nmeros, fez

    barulho suficiente para se firmar como primeiro veculo de divulgao do

    iderio modernista em Minas Gerais. Drummond, um de seus fundadores,

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    j apresentava uma produo bastante diversificada: publicou crnicas,

    ensaios, artigos, resenhas e um poema em prosa A estrela e trs

    poemas que viriam a fazer parte de Alguma Poesia: Corao

    numeroso, Msica e Igreja. A reduzida presena da poesia, nesse

    momento, explica-se, talvez, pela prioridade que o poeta atribua ao texto

    jornalstico, o que atendia s necessidades de avaliar o quadro literrio da

    poca, explicitar escolhas e demarcar posies, que ele iria desenvolver,

    mais tarde, escrevendo crnicas.

    Mas, havia um quadro precrio de desenvolvimento da atividade

    literria numa cidade como Belo Horizonte, nos meados de 1920.

    Problemas tcnicos de impresso e necessidades de negociar

    com os passadistas eram, na verdade, conseqncias menos

    graves de um ambiente hostil, que desabonava ou

    simplesmente ignorava as ambies intelectuais dos amigos

    necessitados de Mrio de Andrade. A este coube, por sua

    vez, constituir-se em reserva inesgotvel de opinies e

    conselhos, textos. O pedido que lhe fora feito no se pautava

    por menos: D conselhos, indique, avise, previna. Se,

    portanto, parece no ser possvel falar em autonomia ou

    iseno do grupo mineiro, tambm no h como ajuizar a

    relao estabelecida entre os jovens de Belo Horizonte e a

    figura tutelar de Mrio de Andrade simplesmente como de

    submisso. Tudo era bem mais complexo. (FERRAZ apud

    ANDRADE, 2010, p. 25).

    A convite de Mrio de Andrade, Carlos Drummond participaria de

    O ms modernista, iniciativa do dirio A Noite, do Rio de Janeiro, que,

    de dezembro de 1925 a janeiro de 1926, exibiu uma coluna de primeira

    pgina, com o intuito de mostrar a excntrica produo dos escritores

    nomeados como futuristas. Servindo-se do sensacionalismo que o

    acontecimento aparentava, a edio do dia 12 de dezembro anunciava:

    Futurismo!...Futuristas! Que vem a ser aquilo? No sabemos e

    acreditamos que os leitores tambm no saibam. Para ns, os leigos, o

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    Futurismo tudo quanto extravagante e futurista, todo indivduo que,

    escrevendo, pintando, esculpindo e compondo pratica a extravagncia.

    (2010, p.27)

    Drummond participou com poesia e prosa, alternando-as em quatro

    edies: na primeira, colaborou com um texto de crtica, O homem do

    pau-brasil; na segunda, com os poemas Nota social e Sabar

    (includos em Alguma Poesia, com algumas modificaes); na terceira,

    com outro artigo, Ta; na quarta, com os poemas Buclica no caminho

    do Pontal, Poltica e Itabira (o primeiro permaneceu indito em livro, e

    os outros dois, com pequenas alteraes, foram inseridos em Algumapoesia).

    Em 1928, Drummond publicou na primeira pgina deA Revista de

    Antropofagiao seu poema No meio do caminho. J nesse perodo, o

    poeta demonstrava uma tendncia no muito tradicional de fazer poesia,

    utilizando o verso livre, no metrificado, e a linguagem coloquial.

    Causando polmica durante dcadas entre os conservadores, jamais aliberdade potica incomodou tanto. Mas foi tomado como divisa pelos

    defensores da ousadia modernista. Os novos poetas cultivavam essa

    forma aparentemente elementar de poesia, com a repetio enftica

    como uma descrio fotogrfica, o que se tornou emblemtico na poesia

    brasileira. Diramos mais: buscavam antes o talento puro e simples, pois

    genialidade sempre incomodou. S isso bastaria para abrir atalhos por

    fmbrias insuspeitadas pelos poetas mdios. (cf. FERRAZ, apud

    ANDRADE, 2010, p.35 )

    Drummond era um talento advindo duma tcnica rigorosa, uma

    poesia reflexiva que, segundo Afrnio Coutinho, seguia o seguinte lema:

    Trabalhar a realidade com mos puras. Esta, a diretriz do

    poeta que, inversamente, como pessoa , era um ser complexo:

    da o carter de seu primeiro livro, Alguma poesia (1930),

    composto de 1925 a 1930. Ao lado de simples anotaes, de

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    poemas de quem v e registra o que v, como v, afastado de

    todos os prejuzos literrios anteriores ou como se formulando

    pela primeira vez a poesia, com a ingnua simplicidade das

    descobertas, h tambm peas cujos temas correspondem asentimentos inominados, a canhestrice, a reserva, a timidez, a

    algo que no se resolve ou ento se resolve em humor. (2001,

    p. 129)

    Mas, a partir de 1929, segundo Cndido, com a crise mundial,

    poltica e econmica, instalou-se uma dcada de depresso que permitiu

    a vitria dos liberais na Revoluo de outubro de 1930. No Brasil, o

    panorama histrico, poltico e econmico era propcio s transformaes

    ao descarte dos velhos padres e acolhimento de novas idias,

    costumes e posturas. Um grande alento percorreu o pas, criando um

    clima favorvel s renovaes, arte e literatura, que foram

    reconhecidas como expresso legtima da sociedade da poca. (1983,

    p.9)

    O escritor talo Moriconi (2004) fez uma singular periodizao da

    poesia na modernidade, quando disse

    ... que considera o Modernismo, abrangendo trs fases: o

    primeiro modernismo, dos anos 20, marcado

    emblematicamente pela Paulicia Desvairada de Mrio de

    Andrade, pela Semana de Arte Moderna de 22 e pela

    participao dos vanguardistas paulistas: Oswald de Andrade,

    Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Srgio Milliet, LusAranha, ; no Rio, com Ronald de Carvalho, lvaro Moreira, e a

    participao fundamental de Manuel Bandeira ao novo modo,

    no fundamental Libertinagem; em seguida, o modernismo dos

    anos 30, em que toda uma gerao entra em cena e consolida

    a nova linguagem: Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima,

    Ceclia, Vincius de Moraes, entre muitos outros; finalmente, o

    modernismo cannico, de meados dos anos 40 at fins dos

    60, momento de nosso alto modernismo. ( MORICONI, 2004,p.2-3).

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    Desenvolvendo a exposio acima, observamos que o Modernismo

    desdobrou historicamente uma dialtica que levou o pensamento do

    impulso para a dessacralizao a um processo de progressiva

    ressublimao da linguagem artstica. Nos anos 20, o Modernismo

    emergente era iconoclasta e vanguardista, parodstico e realista. Ao longo

    do processo de ressublimao esttica (a poesia como expresso

    elevada e modelar), as obras modernistas tornaram-se clssicas no

    cnone literrio da lngua brasileira. Tal dialtica histrica inerente ao

    Modernismo no exclusividade brasileira. Pode-se mesmo consider-la

    uma lei geral desse movimento na literatura universal. Onde houve

    Modernismo, ocorreu essa dialtica. A conquista do sublime literriopela potica modernista corresponde sua progressiva pedagogizao,

    oficializao, da porque se usa a palavra cnone e a expresso

    modernismo cannico.(cf. 2004, p. 4)

    O movimento de renovao, em curso a partir de 1922, no chegou

    a ser quebrado pelo regime de fora instaurado no final de 1937, pois a

    Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939 e finda em 1945, forou uma

    tomada de posio poltica de grande parte de artistas e intelectuais do

    pas no que diz respeito defesa da democracia. O ano de 1945

    corresponde ao fim do conflito mundial e se imps como uma nova fase

    poltica, social e cultural brasileira.

    Como ocorrera no perodo entre 1914 e 1918, o ps-guerra influiu

    decisivamente em nossa economia e mentalidade, fazendo-nos entrar na

    era industrial, formando um proletariado numeroso, que passou a exigirsua efetiva participao na vida poltica. Ao voltarem as liberdades

    democrticas, abafadas pelo regime ditatorial de 1937, inclusive as da

    imprensa, o pas ingressou numa fase de industrializao e progresso

    econmico e social acelerado, transformando-se rapidamente em

    potncia moderna, apesar dos graves problemas do subdesenvolvimento.

    Seja como movimento renovador, seja como nova esttica, ousinnimo da literatura dos ltimos quarenta anos, portanto, o Modernismo

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    revelou historicamente uma adeso profunda problemtica do Brasil

    contemporneo. De fato, nenhum outro momento da literatura brasileira

    to vivo sob esse aspecto; nenhum outro reflete, com tamanha fidelidade,

    e ao mesmo tempo com tanta liberdade criadora, os movimentos da alma

    nacional. (Cf. CNDIDO, 1983, p. 11)

    A fase do Modernismo, hoje cannico, j havia se extinguido, mas

    muitos escritores continuaram se renovando e produzindo, tais como

    Murilo Mendes, Carlos Drummond, Jorge Amado, rico Verssimo etc.

    Nessa altura, a crnica se imps como uma forma eminentementebrasileirao fato de se publicar e difundir na imprensa a linguagem dos

    modernos e da alta literatura e a crtica literria se renovou e alcanou

    uma influncia preponderante, que no possua anteriormente. (DENSER,

    2003, p.45)

    1.2 Diluio entre prosa e poesia

    A partir da Modernidade, podemos observar maior liberdade e

    autonomia na literatura, tanto na forma quanto na estrutura da linguagem.

    H o surgimento de obras literrias que no se enquadram na concepo

    tradicional dos gneros, mas revelam uma mistura, podendo ser inseridas

    em um gnero, embora possuam simultaneamente as caractersticas dos

    demais. Num certo momento, os elementos da poesia, como o ritmo e as

    aproximaes pelo som e sentido, so incorporados linguagem daprosa, fundindo-se numa linguagem potica.

    Diversos tericos ocuparam-se deste fenmeno literrio e de sua

    sistematizao em gneros. Nessa perspectiva, Haroldo de Campos, no

    ensaio Rupturas dos gneros na Literatura Latino-Americana, abordou

    questes esclarecedoras referentes crise de normatividade, influncia

    dos meios de comunicao de massa incorporao dos gnerosinfraliterrios grande literatura, ao processo de destruio dos gneros

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    em si, ruptura e correlao dos modernismos na Amrica Hispnica e

    no Brasil, ao apagamento do limite entre prosa e poesia e dimenso

    metalingustica. Tais questes, procuraremos detalhar neste captulo.

    A fuso entre a prosa e a poesia foi tambm problematizada por

    Octvio Paz (2006), que considerava o ritmo como elemento permanente

    e natural da linguagem, anterior fala. Dessa forma, todas as

    expresses verbais eram ritmo, incluindo as da prosa ensastica e didtica

    (discursiva). O ritmo se daria espontaneamente em toda a forma verbal,

    mas s no poema se manifestaria plenamente. Assim, para ele, a

    linguagem tendia a ser ritmo de forma natural, e as palavras tornar-se-iampoesia espontaneamente. O autor ressaltou tambm que,

    ... no fundo de toda prosa, circula, de forma quase invisvel,

    uma corrente rtmica. O pensamento livre, que linguagem,

    tambm tem seu ritmo prprio; as razes se transformam em

    correspondncias, os silogismos em analogias e a marcha

    intelectual em fluir de imagens. (2006, p.12).

    As linguagens da prosa e do poema interpenetram-se, fundindo-se

    numa linguagem potica, isto , so incorporados na prosa os elementos

    constitutivos do poema, conforme Paz:

    (...) o carter artificial da prosa se comprova cada vez que o

    prosador se abandona ao fluir do idioma. Logo que se volta

    sobre seus passos, maneira do poeta ou do msico, e sedeixa seduzir pelas foras de atrao e repulsa do idioma, viola

    as leis do pensamento racional e penetra no mbito de ecos e

    correspondncias do poema. Foi isto o que ocorreu com boa

    parte do romance contemporneo..(2006, p.13).

    Segundo Walter Benjamin (1989), em Baudelaire, h a

    incorporao da linguagem prosaica na literatura, - um dos propsitos

    perseguidos pelo poeta em Spleen de Paris, foi trazer essas

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    experincias prosdicas a seus poemas. Na dedicatria dessa coletnea,

    ao redator-chefe de La Presse,Arsne Houssaye, Baudelaire expressa o

    que realmente fundamentava suas experincias na prosa:

    Quem dentre ns j no ter sonhado, em dias de ambio,

    com a maravilha de uma prosa potica? Deveria ser ainda

    musical, mas sem ritmo ou rima; e resistente para se adaptar

    s emoes lricas da alma, s ondulaes do devaneio, aos

    choques da conscincia. Esse ideal, que se pode tornar idia

    fixa, se apossar, sobretudo, daquele que, nas cidades

    gigantescas, est afeito trama de suas inmeras relaesentrecortantes. (BAUDELAIRE apud BENJAMIN,1989,p.68)

    Para Benjamin, a intimidade de Baudelaire com a linguagem

    prosdica se devia sua experincia de vida, nas ruas e becos das

    cidades:

    (...) Naquela poca aspirava, simbolicamente, conquista da

    rua. Mais tarde, ao abandonar paulatinamente sua existncia

    burguesa, a rua se tornou cada vez mais um refgio. Desde o

    incio, porm, havia na flnerie a conscincia da fragilidade

    dessa existncia. Ela faz da necessidade uma virtude e nisso

    mostra a estrutura que, em todas as partes, caracterstica da

    concepo do heri em Baudelaire. (BENJAMIM, 1989,p.70).

    (...) Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no

    prprio lixo o seu assunto herico .Com isso, no tipo ilustre do

    poeta aparece a cpia de um tipo vulgar. (idem, p.78).

    Ainda conforme Walter Benjamin, a obra As Flores do Mal foi o

    primeiro livro de Baudelaire a usar, na lrica, palavras no s de

    provenincia prosaica, mas tambm da linguagem urbana.

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    O Modernismo abriu, assim, a via de interpenetrao entre prosa e

    verso: a linguagem falada, o vocbulo tcnico e cientfico, a expresso em

    outras lnguas, enfim tudo o que constitui a prosa do mundo. Surgem o

    humor, o monlogo, a conversao, acollageverbal, os chamados fluxode conscincia (Proust) e o fluxo de fala (D.J. Salinger, O Apanhador

    em Campo de Centeio), algo que surgiu como necessidade de fazer da

    representao do pensamento algo distinto da verbalizao. (BAKHTIN

    apudMACHADO, 1995, p.157)

    Da a introduo, na literatura, do stream of consciousness, uma

    tcnica narrativa essencialmente prosaica. Alis, o fluxo de conscincia

    deve abranger todo o mtodo narrativo, no s na esfera da linguagem,

    como de toda conscincia, incluindo pensamentos no verbalizados e

    impresses sensoriais no suscetveis de verbalizao, forma de

    construo lingustica que vai ao encontro da materialidade do signo

    verbal.

    Machado (1995) ressalta ainda que, para Bakhtin, a poeticidade do

    discurso, aps o surgimento do romance, no podia ser pensada fora docontexto da dialogia interna da linguagem, que conta, inclusive, com os

    gneros inferiores da cultura oral iletrada; alis, esta dialogia a

    expresso maior da artisticidade do romance. (MACHADO, 1995, p.157-

    161)

    Mas no caso especfico da literatura brasileira, o crtico Antonio

    Candido fala da competncia dos poetas ao exercitarem a prosa

    ensastica ou crtica, isto , da diferena entre os poetas e osromancistas, quando praticavam a escrita fora da fico.

    ... Quase todos os romancistas ficavam abaixo do que eram

    capazes de fazer no plano do imaginrio, enquanto os poetas

    produziam invariavelmente prosa da melhor qualidade, desde a

    seca de Manuel Bandeira at a mida de Vinicius de Moraes,

    passando pelo alto maneirismo de Mrio de Andrade e a

    limpidez contida de Drummond. (CANDIDO, 1993, p.14).

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    1.3 Ruptura dos gneros

    A classificao rgida das obras literrias em gneros

    caracterstica do Classicismo. Segundo Haroldo de Campos, o

    estruturalista Jan Mukarovsk, nas famosas Teses de 1929, no Crculo

    Lingustico de Praga, fez um importante estudo desse problema, em

    Esttica da Linguagem. Mukarovsk, referindo-se a Buffon, disse:

    aqueles que escrevem como falam escrevem pobremente, embora

    possam estar falando bem. A teoria cannica dos gneros nada mais ,

    ento, do que a projeo dessa atitude na literatura, uma vez que, cadagnero literrio representa tambm um certo ramo funcional da

    linguagem.(CAMPOS, 1972, p.282)

    Mas, j no Romantismo, se configurou uma revoluo contra o

    carter predominante das normas estticas clssicas, que se observa,

    segundo Campos, no campo do lxico, na discriminao entre palavras

    nobres e baixas, sendo estas ltimas excludas da linguagem padro.

    Vitor Hugo rebelou-se contra essa segregao de palavras castas.

    Assim, foram principalmente os romnticos, via simbolismo e a

    poesia moderna, que vo de Novalis a Poe, Nerval, Baudelaire, que

    fizeram da esttica de sua poesia uma esttica de ruptura, que implicava

    a interveno da materialidade da linguagem, quer dizer, a funo potica

    ou configuradora da linguagem, aquela que se volta para o aspecto

    material dos signos lingusticos em si mesmos, como ensina Roman

    Jakobson.

    Superada a rgida tipologia intemporal, com propenses

    absolutistas e prescritivas, a teoria dos gneros passa assim,

    na potica moderna, a constituir um instrumento operacional,

    descritivo, dotado de relatividade histrica, que no tem por

    escopo impor limites s livres manifestaes da produo

    textual em suas inovaes e variantes combinatrias. E onde

    se dissolve a idia de gnero como categoria impositiva, se

    relativiza tambm, concomitantemente, a noo de linguagem

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    que lhe seria exclusiva, que lhe serviria de atributo distintivo.

    Mas as reflexes tericas que hoje podemos fazer munidos de

    novas perspectivas, sobre a teoria dos gneros, outra coisa

    no representam seno o aspecto metalingstico de umarevoluo que se processou longamente no campo da

    linguagem da literatura, na prxis por assim dizer. (CAMPOS,

    1972, p.283)

    Tambm importante ressaltar como a fora e a influncia dos

    meios de comunicao de massa contriburam para tal rarefao dos

    gneros, que se deu, de forma decisiva, com a incorporao poesia dos

    elementos da linguagem prosaica e conversacional, no apenas no

    campo lxico, como tambm na sintaxe. Assim, a linguagem literria

    falada a que mais se aproxima da linguagem popular, embora conserve

    limites ntidos em relao a esta ltima. A linguagem contnua (de

    discursos, conferncias, etc.) se mantm distanciada da linguagem do

    cotidiano. A linguagem alternativa e descontnua (conversao) constitui

    uma transio entre as formas cannicas da lngua literria e a linguagem

    popular.

    A essa altura, cumpre-nos lembrar a importncia que a grande

    imprensa desempenha nos rumos da literatura. Tal linguagem

    descontnua e alternativa, caracterstica da conversao, vai encontrar, na

    simultaneidade e no fragmentarismo do jornal, sua convergncia.

    A grande imprensa, a partir sobretudo da inveno do telgrafoe sua influncia, sob a forma de mosaico de notcias, no estilo

    e na apresentao dos jornais, aproxima-se da cultura oral, que

    no linear, mas sinestsica, tctil, simultnea, tribal. O

    aparente paradoxo explicado por um fenmeno de

    hibridizao de cruzamento. Assim, o principio alfabtico,

    guttenberguiano, como sua unidade de ponto de vista e sua

    cadeia linear, superado exatamente quando, ao culminar no

    jornal cotidiano,, o mdium telegrfico se encontra com ele ede ambos nasce uma forma hbrida. (o hbrido ou o encontro de

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    dois media um encontro de verdade e revelao, do qual

    nasce a forma nova ( CAMPOS, 1972, p.285).

    Ainda na esteira do hibridismo, Campos(1972) remeteu-nos

    questo da relao da literatura com os gneros primitivos. Trata-se de

    uma espcie de elevao dos gneros inferiores ou infraliterrios,

    segundo Warren e Wellek. Ressalta-se aqui o uso dos gneros hbridos,

    tais como memrias, cartas, reportagens, folhetins produtos da cultura

    popular que vivem uma existncia precria na periferia da literatura,

    prprios do jornalismo, vaudeville, cano gitana e da histria policial ,

    podendo-se explicar, atravs deles, as inovaes de autores como

    Pchkin, Dostoivski e Blok. (CAMPOS, 1972, p.284).

    O processo de ruptura dos gneros e abolio dos limites entre

    prosa e poesia se fez presente na poesia vanguardista pau-brasil, de

    Oswald de Andrade. Caracteriza-se tal poesia pela linguagem reduzida,

    pela extrema economia de meios, pela interveno da imagem direta e da

    linguagem coloquial; e tambm pela poesia de Mrio de Andrade,

    polifnica, simultanesta, marcada pelos ritmos desconexos da

    civilizao moderna e pela espontaneidade da lngua falada, o portugus

    do Brasil, com a contribuio milionria de todos os erros, e no na

    lngua portuguesa dos lusitanos. Podemos deste modo inferir que existe,

    em nosso meio, aquilo que se poderia denominar uma congenialidade

    em relao aos novos experimentos, e que se explica apenas em parte

    pelo processo de industrializao desencadeado em So Paulo e Rio de

    Janeiro. Antonio Candido elucidou o fenmeno:

    No Brasil, as culturas primitivas se misturam vida cotidiana ou

    so reminiscncias ainda vivas de um passado recente. As

    terrveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob,

    um Triztan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa

    herana cultural do que com a deles. O hbito em que

    estavam,os do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos,

    da poesia folclrica, nos predispunha a aceitar e assimilar

    processos artsticos que na Europa representavam ruptura

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    profunda com o meio social e as tradies espirituais. Os

    nossos modernistas se informaram, pois, rapidamente da arte

    europia de vanguarda, aprenderam a psicanlise e

    plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal deexpresso, reencontrando a influncia europia por um

    mergulho no detalhe brasileiro. (CANDIDO, apud CAMPOS,

    1972, p.293).

    Para Campos (1972), o que Oswald teorizou sob o nome de

    antropofagia se traduz na aceitao no passiva, mas sob forma de

    devorao crtica, da contribuio europia e a sua transformao em um

    produto novo, dotado de caractersticas prprias, que, por sua vez,

    passava a ter uma nova universalidade, uma nova capacidade de ser

    exportado para o mundo. Tudo isso se configurou na poesia pau-brasil.

    (1972, p.293)

    1.4 Apagamento do limite entre prosa e poesia

    Segundo Campos (1972), o apagamento das fronteiras entre a

    poesia e a prosa, com a introduo, no romance, de tcnicas de

    construo do poema (e vice-versa), apareceu, contemporaneamente, a

    partir de Joyce e Proust.

    Conforme observou Campos, o importante legado que nos deixa

    esta linha de poesia e romance uma clara conscincia da abolio de

    fronteiras falsas, de categorias retricas. No existe mais o romance e o

    poema, mas situaes literrias que se resolvem com uma ordem verbal

    prpria. Estabelecem-se, ento, dois tipos de linguagem: a linguagem de

    raiz potica e a de raiz discursiva. (1972, p. 295)

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    Mais categoricamente, Cortzar (1974), no ensaio A Situao do

    Romance, levantou a questo da prosa de raiz potica como fenmeno

    esttico que surge como uma das conquistas do romance no sculo XX

    (Proust, Joyce). Uma prosa que no conta explicando ou explica

    contando, como a que era feita at o sculo XIX, pois,

    (...) a partir de um certo momento os escritores arremessam

    fora a linguagem mediadora e substituem a frmula pela

    ensalmo, a descrio pela viso, a cincia pela magia, j no

    h fundo e forma: o fundo da forma a forma. Pela primeira

    vez e de maneira explcita, o romance renuncia a utilizar

    valores poticos como meros adornos e complementos daprosa e admite um fato fundamental: que a linguagem esttica

    (ou discursiva) no apta para expressar valores poticos.

    (CORTZAR, 1974, p. 71-3).

    Como um voltar-se incessante do escritor para a materialidade da

    linguagem, a funo potica aquela que se volta para o aspecto material

    dos signos, inclusive quando esteja, aparentemente, fazendo aquilo queconvencionalmente se chamaria prosa. A funo potica, que resulta da

    superposio do paradigma sobre o sintagma, isto , da coincidncia do

    eixo da similaridade (vertical) com o eixo da contigidade (horizontal),

    deriva da operao de submeter o signo verbal a tratamento icnico. (Cf.

    JAKOBSON, 2003, p.130)

    Na literatura brasileira, temos como exemplo a prosa lrica eintrospectiva de Clarice Lispector, em Perto do Corao Selvagem (1943),

    e em Grande Serto: Veredas (1956), de Guimares Rosa, cuja obra

    surge com invenes vocabulares, sintaxe inovadora e hibridismo lxico,

    construes oximorescas de barbrie e refinamento, classificada como

    uma obra neobarroca. (cf. CAMPOS, 1972, p. 295)

    importante assinalar tambm a dimenso metalingustica como

    fenmeno esttico, que contribuiu sobremaneira para a ruptura dos

    gneros na literatura moderna. Como exemplo, recorremos a Mallarm e

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    ao seu poema Um coup de Ds, (Um lance de dados). Trata-se de um

    poema que se questiona a si mesmo sobre a essncia de poetar, mas o

    que est em causa no o modo de como fazer poesia, mas uma

    indagao mais profunda da prpria razo do poema. Dessa forma,

    Mallarm introduziu a dimenso metalingstica do exerccio da

    linguagem, uma dimenso antes reservada esttica e cincia da

    literatura. Mas, para o esprito moderno, a reflexo sobre a arte acabava

    sendo mais interessante do que a prpria arte. (cf.CAMPOS,1972, p. 296)

    Assim, a linguagem do ensaio e da especulao terico-filosfica

    (langage de formulation), conforme terminologia das Teses do Crculo dePraga, passou a integrar-se no poema, que se faz metalinguagem de sua

    prpria linguagem-objeto.

    A incorporao de uma dimenso metalingustica literatura de

    imaginao corresponde, tambm, ao que os formalistas russos

    designavam de desnudamento do processo e, que outra coisa no

    seno um pr a descoberto a arquitetura mesma da obra medida queela vai sendo feita, num permanente circuito auto-crtico.(CAMPOS,

    1972, p. 297 ).

    Na literatura brasileira, a questo da metalinguagem apareceu pela

    primeira vez na obra de Machado de Assis, em especial em Memrias

    Pstumas de Brs Cubas(1881), Quincas Borba (1891) e Dom

    Casmurro (1899).

    Antonio Cndido, durante o I Ciclo de Debates da Cultura

    Contempornea no Rio de Janeiro, em 1975, destacou modificaes

    estruturais da linguagem literria, caractersticas, alis, que

    predominariam em nossa literatura at os dias de hoje:

    A primeira caracterstica que vejo na literatura de nosso tempo,

    no Brasil e em outros lugares, a supresso ou ocultamento

    dos nexos sintticos, quer dizer, a passagem de um discurso

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    contnuo para um discurso descontnuo. Em segundo lugar, a

    busca de uma ordem espao-temporal no linear, a narrativa

    com princpio, meio e fim. A para Z, substituda por uma

    ordem que altera esses nexos, que parece sair do tempo parase projetar no espao. Em terceiro lugar, a substituio da

    metfora pela paronomsia. Tnhamos uma literatura dominada

    em imagem, pela analogia tu s bela como uma rosa ,

    hoje por aquela figura que junta palavras pela sonoridade

    semelhante, mas de significado diferente. Ento, quando Murilo

    Mendes diz: as tmporas da ma, as tmporas da hortel, as

    tmporas da rom, as tmporas do tempo, o tempo tempor,

    ele est fazendo uma srie de paronomsias. Em quarto lugar,eu chamaria a ateno para o cultivo intensivo da ambigidade

    do discurso. At ento a literatura procurava diminu-la, hoje,

    ao contrrio, essa ambiguidade reforada ao mximo.

    Finalmente em quinto, vivemos um tempo de fico no

    mimtica, ou deliberadamente antimimtica, com explorao

    acentuada da pardia. (CANDIDO, 2002, p. 214-6).

    Ele tambm enfatizou que essa ocultao dos nexos sintticos,

    essa descontinuidade do discurso, deveu-se tendncia crescente para a

    fragmentao, na contemporaneidade, revelando um mundo mais

    complexo. A perda do senso de totalidade, que ntida em toda a

    sociedade, no discurso literrio, foi traduzida pela fragmentao. H

    tambm uma busca de signos no verbais, que est ligada ao impacto

    dos novos meios visuais. Nessa era industrial em que vivemos, quando

    se criam objetos sem parar, tendemos literariamente criao de mundosparalelos. Hoje, preciso que a obra seja sobretudo aberta, com a

    criao dos sentidos desmontveis, como em Cortzar, e a invaso pelo

    inslito, como em Guimares Rosa.(2002, p. 216 )

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    Captulo 2

    A crnica em seu contexto modernista

    Na crnica drummondiana, segundo o crtico Arrigucci Jr. (1987),

    comum retornar ao rigor narrativo e preciso de fatos histricos que faz

    lembrar o antigo significado da palavra, como j notou Antonio

    Cndido (Drummond prosador: singularidade no trao). (Cf.

    ARRIGUCCI JR., 1987)

    2.1 O gnero crnica e sua linguagem particular

    Drummond chamou de crnica ao resto dos seus escritos em

    prosa, mas consideremos tal designao demasiado modesta. Talvez ele

    no desse conta, na poca, da grande beleza formal e

    consequentemente absolutade suas prosas menores. A partir de Fala,

    Amendoeira,o cronista foi se decantando para um texto mais complexo,

    comparativamente s iniciais Confisses de Minas e Passeios na Ilha,

    constitudas por uma srie de escritos de natureza meramente variada,

    portanto aparentemente superficial.

    H alguns ensaios com solidez de informao, que o escritor

    atenuou atravs do tom casual. No caso da Carta aos nascidos em maio

    (Passeios na ilha), ele reuniu sabiamente um conhecimento erudito

    gratuidade coloquial. Existe em Drummond uma vocao monogrfica,

    isto , um trabalho de pesquisa aprofundado, encoberto pelo relato

    impressionista. Podemos comprov-lo na longa e admirvel

    Contemplao de Ouro Preto, de Passeios na Ilha, que, segundo

    Antonio Candido, so relatos e investigaes documentrias de sua terra,

    nos aspectos histrico, artstico, social e religioso. Eis um fragmento:

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    (...) onde o leitor dificilmente pensaria noutra coisa alm do

    simples registro de uma excurso, mas que traduz a realidade

    passada e presente, artstica e social, religiosa e ldica da

    velha cidade. Alis, todos os escritos desta parte do livro, a quechamou Provncia, minha sombra, formam um ciclo de

    interpretao da sua terra, com um discernimento lcido e um

    saber que nem sempre consegue ficar latente.

    Na verdade, deve haver lembrana individual, informao de

    terceiros, investigao documentria e interpretao da vida de

    uma comunidade um certo momento do tempo perdido, dando

    a idia de que o escritor parou, consultou papis, verificou

    datas e ocorrncias a fim de elaborar um escrito que vai almda crnica sem perder o encanto da sua leveza.(...) (1993,

    p.17)

    Drummond, como escrevia essencialmente para a imprensa,

    precisava ser lido e no ser complexo. Assim, mesmo em escritos

    rotulados de crnica, muitos textos perderam o toque dominante da

    gratuidade ocasional (que costumamos associar ao gnero ) e

    caminharam para outra coisa: poema, estudo, autobiografia - ou um certo

    tipo de reflexo, em geral disfarada, que deixa para trs o pretexto

    imediato e mostra uma dimenso imprevista. Segundo Candido,

    Esta ltima modalidade leva a pensar que ele pratica ao seu

    modo aquilo que Montaigne chamava ensaio, ou seja, o

    exerccio em profundidade do pensamento, a partir de

    estmulos aparentemente fteis ou desligados do que acabasendo a matria central. Em Drummond, encontramos uma

    prosa que se apresenta como algo irrelevante, que pode

    deslizar do papo para reflexes de um alcance e densidade

    que nos fazem inclu-lo na famlia mental dos que ensaiam o

    pensamento, a pretextos de motivos inesperados; mesmo

    quando ele volta de repente a algo que parece insignificante,

    como se quisesse, por meio desse particular corriqueiro,

    quebrar o ensaio e refazer a crnica, mostrando o livre

    trnsito entre gnerospoesia & prosa. (1993, p.18).

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    Como Drummond, por um lado, Candido tambm considerava a

    crnica um gnero menor, ao qual ningum pensaria atribuir o Prmio

    Nobel. Por outro lado, ele tambm observou, em muitos ensaios, que ela um gnero tipicamente brasileiro de uma sociedade do aberto, do

    jornal, da livre circulao de informaes simples e fugazes.

    Em outras palavras, isso tem a ver com o clima e meio geogrfico

    brasileiros, onde o transeunte, leitor de jornal, se encontra com o outro e

    comenta a crnica dos fatos dirios, entre um caf, um conhaque ou o

    chope nos calades. Afinal, a esttua de Drummond se imortaliza nocalado de Copacabana. A crnica amiga da verdade e da poesia nas

    suas formas mais diretas e tambm nas suas formas mais fantsticas,

    sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. Isto acontece porque

    no tem pretenses a durar, uma vez que filha do jornal e da era da

    mquina, onde tudo acaba to depressa.

    justamente por seu carter efmero que, na crnica, a linguagemse torna mais leve, mais descompromissada e importante -- afasta-se

    da lgica argumentativa ou da crtica poltica, para penetrar poesia

    adentro. que a crnica brasileira bem realizada participa de uma lngua-

    geral lrica, irnica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por um

    dilogo rpido e certeiro, ou por uma espcie de monlogo comunicativo.

    Mas nesse ponto, poderamos tambm pensar num Drummond

    metafsico, a exemplo de poemas como A Folha, e A suposta

    existncia, cuja temtica indica a dissoluo da mitificao da existncia

    tanto do real, quanto do sobrenatural, porm tal estudo exigiria

    elaboraes filosficas a serem objeto de uma outra pesquisa .

    A crnica aparece, inicialmente, ligada ao jornal e, segundo o

    critico Arrigucci Jr.(1987), pode ser considerada um gnero literrioessencialmente brasileiro. A palavra crnica, etimologicamente, implica a

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    noo de tempo, presente no prprio termo, que vem do grego chronos.

    Esse vnculo de origem faz dela um meio de representao temporal dos

    eventos passados, um registro da vida escoada. (1987, p. 51).

    Do ponto de vista histrico, o cronista um narrador da histria.

    Como notou Benjamin, o historiador escreve os fatos, buscando-lhes

    uma explicao, enquanto o cronista, que o precedeu, se limitava a narr-

    los, de uma perspectiva religiosa, tomando-os como modelos da histria

    do mundo e deixando toda explicao na sombra da divindade, com seus

    desgnios insondveis.(BENJAMIN, 1989, p. 209)

    Hoje, a crnica ocupa-se de fatos do dia a dia, dos faits divers,fatos de atualidade que alimentam o noticirio dos jornais. Mas no Brasil,

    ela no se constituiu apenas num apndice do jornal; assumiu um

    desenvolvimento prprio, conquistando uma dimenso esttica com

    relativa autonomia, constituindo um gnero propriamente literrio.

    Compreendida desse modo, a crnica , ela prpria, um fato moderno,

    submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, s

    inquietaes de um desejo sempre insatisfeito, rpida transformao e fugacidade da vida moderna. (ARRIGUCCI JR., 1987, p.52-3)

    A crnica moderna situa-se no cotidiano da cidade moderna e

    escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo

    entre amigos, para tratar das pequenas coisas que formam a vida diria,

    onde s vezes encontra a mais alta poesia. (1987, p.57)

    No Modernismo, grandes escritores ocuparam-se da crnica:

    Mrio de Andrade, Bandeira, Oswald, Alcntara Machado, Carlos

    Drummond de Andrade, Vincius de Moraes e muitos outros. Embora haja

    grandes diferenas de estilo entre eles, o que existe em comum a

    incorporao da fala coloquial brasileira, que se molda observao dos

    fatos da vida cotidiana, espao preferido da crnica, o que a torna cada

    vez mais comunicativa e prxima do leitor.

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    2.2 A crnica a partir de 1930

    Foi no decnio de 1930 que a crnica moderna se consolidou noBrasil, como gnero nosso cultivado por um nmero crescente de

    escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e seus mestres. Nos anos

    30, Mrio de Andrade e Manuel Bandeira se afirmaram tambm como

    cronistas e apareceu aquele que seria, na poca, o principal cultor do

    gnero: Rubem Braga.

    Tanto em Drummond quanto em Rubem Braga, observa-se um

    trao que no raro na configurao da moderna crnica brasileira: a

    confluncia, na maneira de escrever, da tradio, digamos, clssica com

    a prosa modernista. Essa frmula foi bem manipulada em Minas (onde

    Rubem Braga viveu alguns anos decisivos) e dela se beneficiaram os que

    surgiram nos anos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes

    Campos. como se (imaginemos) a linguagem seca e lmpida de Manuel

    Bandeira, coloquial e corretssima, se misturasse ao ritmo falado da de

    Mrio de Andrade, com uma pitada do arcasmo programado pelos

    mineiros. O que foi confirmado por Candido, quando disse:

    Parece s vezes que escrever crnica obriga a uma certa

    comunho, produz um ar de famlia que aproxima os autores

    num nvel acima da sua singularidade e das suas diferenas.

    que a crnica brasileira bem realizada participa de uma lngua-geral lrica, irnica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por

    um dilogo rpido e certeiro, ou por uma espcie de monlogo

    comunicativo. Muito embora houvesse essa conjuno de

    fatores, os cronistas daquele perodo escreviam como se este

    fosse o seu veculo predileto, mas podemos perceber as

    especificidades de cada um : a preciso de Drummond, o

    movimento nervoso de Fernando Sabino, a larga onda lrica de

    Paulo Mendes Campos. Provindos de trs geraes, eles seencontram aqui numa espcie de espetculo fraterno,

    mostrando a fora da crnica brasileira e sugerindo a sua

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    capacidade de traar o perfil do mundo e dos homens. (1993,

    p.29).

    H tambm um trao comum neles todos e nalguns outros, como

    Rachel de Queiroz: deixando de ser comentrio, mais ou menos

    argumentativo e expositivo, vira conversa aparentemente fiada, como se a

    crnica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas.

    curioso como seu texto mantm o ar despreocupado, de quem est

    falando coisas sem a maior consequncia e, no entanto, no apenas

    entra fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, como pode

    levar longe a crtica social.

    Para o crtico Arrigucci Jr. (1987), a linguagem da crnica, mais

    livre, mais flexvel, vem no Modernismo adequar-se necessidade de

    pesquisa da realidade brasileira, que passara a se impor conscincia

    dos intelectuais a partir da revoluo de 30, atingindo tambm a

    conscincia do grande pblico dos jornais. O crtico observou ainda que,

    ...seguindo a tendncia do momento e de outros gneros, a

    crnica se convertia num meio de mapear um pasheterogneo e complexo, caracterizado pelo desenvolvimento

    histrico desigual, desvendando assim um mundo moderno

    que parecia nascer da mistura de velhas estruturas da

    sociedade tradicional.

    E, ao mesmo tempo, ela o registro dos instantneos da vida

    moderna, das novidades avassaladoras, dos rpidos

    acontecimentos, dos encontros casuais, dos estmulos sempre

    chocantes do cotidiano das grandes cidades, frutos da

    acelerao do processo de urbanizao e industrializao da

    dcada de 30. Provinciana e moderna a uma s vez, a crnica

    modernista revela uma tenso continua entre tempos diversos

    e espaos heterogneos. Muitas pginas inesquecveis no

    gnero foram escritas na esteira do movimento modernista,...

    (1987, p.63)

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    Na gerao de 40, apareceram alguns cronistas contumazes, como

    Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. A crnica ainda continua, de

    certo modo, como um gnero lateral em relao poesia e fico. Com

    Rubem Braga, porm, h uma diferena essencial em relao aos outros

    cronistas: para ele, a crnica a forma complexa e nica de uma relao

    do Eu com o mundo, um modo de expresso pessoal e um meio de

    apreender e exprimir certos valores. (idem) Digamos que Braga

    contribuiu para consolidao da linguagem da crnica moderna brasileira,

    fazendo a sntese perfeita da expresso moderna sem desprezar a

    essncia das nossas tradies. Ele se deu conta do desgaste rpido das

    novidades, a matria-prima do jornal e da crnica, ideia por eledesenvolvida num de seus melhores livros, A borboleta amarela. (cf.

    ARRIGUCCI Jr., 1987, p. 66).

    Alm de Arrigucci Jr. e Antonio Candido, muito citados at ento,

    no nos esqueamos do crtico e escritor mineiro Fbio Lucas (1989), que

    tambm se referiu aos nossos grandes cronistas, dizendo que, ao lado do

    conto, a crnica um gnero que teve grande desenvolvimento no Brasil,

    sobretudo pela grande arte de seus cronistas, destacando Rubem Braga,

    Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos,

    Raquel de Queirs e Srgio Porto (Stanislaw Ponte Preta).

    A linguagem da crnica e a leitura dos cronistas, no perodo dos

    anos 40 a 50, foram determinantes e influenciaram toda uma gerao de

    novos escritores, com a formao de uma base comum de dico ou

    estilo das novas linguagens; uma espcie de potica informal e

    irreverente que impregnaria as primeiras obras nascidas deste impulso

    irresistvel, mgico o bastante para que se mantivesse a f nos difceis

    primeiros anos de aprendizado do ofcio.

    Em que consistia a base comum de dico ou estilo? Digamos

    que, de maneira geral, nossos cronistas faziam a literatura valer como

    palavra viva, porque, publicada nos jornais e revistas, eles difundiam a

    moderna linguagem literria caracterizada pela oralidade, pela fala docotidiano, a revelar o sublime oculto nas pequenas coisas(Arrigucci Jr.,

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    1987, p.25) atravs das crnicas que estavam em toda parte e ao alcance

    de todos o que nem sempre ocorre com o livro , contribuindo

    efetivamente para que o padro esttico perdesse a rigidez e

    possibilitasse os avanos posteriores. Segundo Denser,

    Rubem Braga escrevia sereiazinha de todas as copenhagens

    assim, em minsculas, ento pensava-se: pode-se escrever

    assim? permitido? Nossos olhos adolescentes se

    deslumbravam, resistentes que ramos aos pesados, lentos,

    formais, intrincados romances franceses e russos. Isso at ler

    os brasileiros. Porque a fico portuguesa tem outro ritmo,outra temperatura, outra alma, outra dico. As primeiras obras

    de Rubem Fonseca foram como uma lufada de ar fresco na

    fico contempornea; num campo j minado pelos cronistas,

    estas despojam drasticamente a prosa brasileira ps-moderna

    dos pseudo-ornamentos retricos. (2003, p.44).

    No perodo de 1940 a 1950, ocorreu tambm o que se poderiachamar de intensificao dos gneros complementares: a crnica se

    imps e atingiu alto grau de expressividade; a crtica literria se difundiu,

    se renovou e alcanou influncia antes desconhecida; comearam a

    definir-se e atuar os estudos literrios de tipo universitrio. De modo geral,

    ocorreu uma intelectualizao da vida literria, que se ampliou e adquiriu

    padres de maior exigncia. Embora no tenham aparecido tantos

    grandes escritores quanto os anteriormente vistos, a mdia da produo

    melhorou, adquirindo um nvel revelador de consolidao e vitalidade.

    Candido observou ainda que, na crnica, a linguagem se tornou mais

    leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lgica

    argumentativa ou da crtica poltica, para penetrar pela poesia.

    (CANDIDO, 1983, p. 30) Tal como Candido, cremos que a frmula

    moderna, na qual entra um fato mido e um toque humorstico, com seus

    matizes e suas pinceladas de poesia, representa o amadurecimento e o

    encontro mais puro da crnica consigo mesma.

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    2.3 A crnica em Carlos Drummond de Andrade

    Carlos Drummond de Andrade teve suas primeiras publicaes na

    dcada de 1920, em A Revista, as quais foram fundamentais para o

    perodo modernista brasileiro. Atuou tambm como jornalista profissional

    no Correio da Manh,no perodo de 1954 a 1968, escrevendo crnicas

    que aparecem, s vezes, em versos, publicadas depois em livros:

    Versiprosa e Caminhos de Joo Brando. Em 1975, suas crnicas

    foram publicadas no Jornal do Brasil.

    Geralmente, as crnicas no so feitas para serem publicadas de

    pronto em livro; aparecem em primeira mo em jornais e revistas e, s

    depois de um certo nmero, que so reunidas e selecionadas pelo

    escritor para compor um volume. Isso afirmou Drummond, ao publicar

    Passeios na Ilha:

    Este livro, no o escrevi: foi-se escrevendo ao sabor dos

    domingos , no suplemento literrio do Correio da Manh. Sua

    ausncia de pretenso quase insolente. No prova nada,

    seno que continuamos vivendo; poucas iluses resistem, mas

    cabe ao homem descobrir e usar suas razes de viver. Suas

    razes, e no as que lhe sejam inculcadas, como exemplares.

    Em conjunto, estas pginas falam, talvez, de uma tentativa de

    convivncia literria: divagaes e reaes do cronista, no

    exerccio sem mtodo, misturadas ao eco de obras alheias,

    recolhido com a necessria simpatia.... Rio de janeiro, 1952.

    (ANDRADE, 2003, p.231).

    Drummond, ao explicar os ttulos de seus livros, fazia uma

    comparao com o significado da crnica, como nas Notas do editor,

    contidas na obra De Noticias & No Noticias Faz-se a Crnica: Ela

    feita de notcias (o real comentado) e de no-notcias (a livre imaginao

    do cronista). (ANDRADE, 1975). E no prefcio de Cadeira de Balano:

    Cadeira de balano um mvel da tradio brasileira que no fica mal em

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    apartamento moderno. Favorece o repouso e estimula a contemplao

    serena da vida, sem abolir o prazer do movimento. Quem nela se instale

    poder ler estas pginas mais a seu cmodo ... Vamos sentar. ( 1970, p.

    xvi)

    Os dois exemplos abordam situaes do cotidiano, notcias da

    vida urbana do homem moderno, mas, numa linguagem potica,

    preserva a sensibilidade acumulada pela tradio. Entretanto, o que se

    observa que Drummond no deixou nunca de exercitar o pensamento

    crtico com relao ao fazer literrio, e o fez sempre numa dimenso

    metalingstica.

    Em Versiprosa, Drummond narrou, de forma potica, os

    acontecimentos da vida cotidiana no Rio de Janeiro, no perodo de 1956 a

    1959. Na obra, apresentou-se uma ntida mistura de gneros, como ele

    prprio disse: nem verso nem prosa:

    Versiprosa, palavra no encontrada no dicionrio, que qualifica

    matria deste livro. Crnicas que foram publicadas no Correio

    da Manh e em outros jornais do pas, algumas no MundoIlustrado. Crnicas que transferem para o verso comentrios e

    divagaes da prosa. No me anima cham-las de poesia.

    Prosa a rigor, deixaram de ser. Ento Versiprosa. (...)

    (ANDRADE, 2002, p.508)

    Drummond, desde o incio, teve sua vida de escritor e poeta ligada

    crnica do jornal, mas sempre cedendo ao apelo de poetizar a funo

    jornalstica. O que vemos no Poema do jornal, publicado em Alguma

    poesia (1930), no qual revela a sua intimidade com o veculo dirio: Vem

    da sala de linotipos a doce msica mecnica (LUCAS, 2003). Numa

    viso tpica do mundo moderno, o jornal passa a fazer parte essencial do

    estilo de vida burgus, incorporando-se ao consumo dirio.

    Nas crnicas drummondianas, as emoes so presentificadas

    pela imprensa diria, como reflexo dos tempos modernos, como ele

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    expressa em Passagem da noite - Chupar o gosto do dia!/ Clara

    manh, obrigado,? O essencial viver. (ANDRADE apud LUCAS, 2003)

    Segundo, LUCAS (2003) na crnica Ciao, publicada no

    Shopping News-City News Jornal da Semana (1984), Drummond se

    despede aps 64 anos de colaborao:

    A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha

    de pertencero extinto Correio da Manh,de valente memria

    , e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanstico da funo

    da imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro,

    e mais quinze , atuais, no segundo, alimentaro as melhores

    lembranas do velho jornalista. (ANDRADE, 1984, apud

    LUCAS, 2003)

    2.4 Drummond cronista e a crtica

    Consideramos importantes as formulaes levantadas pelo crtico

    Antonio Candido, que aponta um aspecto que o impressionou em

    Drummond: foi a maneira como o autor traduziu sua viso de mundo

    numa linguagem coloquial, cotidiana, oral. A observao atenta de alguns

    textoscomo o poema A folha, ou o conto O prespio, porexemplo ---

    revela-nos o poder que o poeta tem de poetizar a prosa e proisificar o

    verso. Sua matria se constitui num hbrido da linguagem referencial e da

    linguagem figurada. Na poesia de Drummond, h ainda a presena do

    elemento narrativo, como no poema A morte do leiteiro, em que ele

    narrou de forma potica um acontecimento, ou, ainda, no relato de

    projeo pessoal, A morte no avio.

    Tambm no conto Beira-Rio, Drummond apresentou uma

    linguagem hbrida, utilizando o sentido figurado, a metfora da teia: o fio

    do som gera a idia de tecido formado por ele, como se um sentido

    prprio se materializasse a partir do sentido figurado (CANDIDO,1993,

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    p.15) . Mas igualmente forte a referncia ao real, quando utilizou o

    relato de notcia reiterando a nfase na funo potica do signo

    (JAKOBSON, 2003, p.150). Nesse caso, em especial, h a diluio de

    fronteiras e a aproximao dos estilos, do conto-reportagem e da crnica.

    Desde as primeiras publicaes de Drummond, h em sua obra a

    confluncia de diversos estilos, como em Confisses de Minas, o seu

    primeiro livro de prosa, que revela uma elaborao textual de grande

    virtuosidade fora do verso.

    H crtica literria, estudos de personalidade, comentrio lrico

    e anedtico sobre o quotidiano, mostrando que ele no

    cronista no sentido estrito, como Rubem Braga ou Rachel de

    Queiroz e Fernando Sabino quando fazem crnica. O que ele

    prprio chama assim so escritos de latitude maior, e por isso

    no houve espanto quando pouco depois publicou a novela O

    Gerente, que parecia pura fico, mas traz tambm um

    universo de penetrao analtica. (CNDIDO, 1993, p.14)

    Embora a obra do Autor tenha visitado tantos estilos, sua prosa de

    fico parece ter um papel fundamental no conjunto, na medida em que

    constitui o ponto intermedirio entre a poesia, a crnica e o conto, o que

    propicia um trnsito privilegiado entre os diversos gneros literrios.

    Muito de sua obra constituda de uma via de mo dupla, isto , h uma

    mistura de gneros, h a presena do elemento narrativo em sua poesia,

    e sua prosa carregada de linguagem potica. .

    Ao relatar fatos cotidianos ou histricos, apesar da solidez das

    informaes, ele o fez por meio do tom casual, onde o conhecimento

    erudito aparece em forma de linguagem coloquial, que um modo de

    exprimir a viso de si mesmo e do mundo, variando segundo a ocasio e

    os desgnios pessoais. (CANDIDO, 1993, p.18). Em uma entrevista a um

    jornal, ele disse: ... So circunstncias nas quais me parece que a poesia

    pode ser aproveitada; ela tem um certo dom de vibrao, de comunicao

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    intensa pela emoo que, s vezes, a prosa no pode transmitir.

    (LUCAS, 2003, p.21).

    Tais afirmaes nos levam a ratificar o que disse Candido: no h

    um Drummond, nem ficcionista, nem cronista ou poeta, mas uma

    personalidade literria movida por um grande impulso criador, transitando

    entre os diversos gneros.

    Muito embora a crnica de Drummond traga reflexes, elas

    ocorrem de modo leve, carregadas apenas de humor lrico. Quero dizer

    que por serem leves e acessveis talvez elas comuniquem, mais do que

    poderia fazer um estudo intencional, a viso humana do homem na suavida de todo o dia. (CANDIDO, 1993, p.27). Exemplo dessa anlise

    encontra-se no texto Frvolo cronista, em que h a falsa idia de

    seriedade, uma noo duvidosa de que as coisas srias so graves,

    pesadas e que, consequentemente, a leveza superficial. Na verdade,

    aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traos constitutivos da

    crnica so um veculo privilegiado para mostrar de modo persuasivo

    muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visodas coisas. (1993, p.28)

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    Captulo 3

    Anlise do corpus A hibridizao dos gneros emDrummond

    3.1 Metalinguagem e reflexo do fazer potico na crnica

    drummondiana

    3.1.1 Divagao sobre as ilhas: Insularidade como crculo mgico

    da criao

    (...) Assim, a linguagem do ensaio e da especulao

    terico-filosfica (langage de formulation), conforme

    terminologia das Teses do Crculo de Praga, passou a integrar-

    se no poema, que se faz metalinguagem de sua prpria

    linguagem-objeto. (Haroldo de Campos, 1972, pg. 297)

    Ao ler parte considervel da obra em prosa e verso de Carlos

    Drummond de Andrade, deparamo-nos com a recorrncia da metfora da

    ilha em algumas de suas crnicas e poemas, o que aguou nossa

    curiosidade para um exame crtico sobre o assunto. Desse modo,

    escolhemos para anlise, inicialmente, a crnica Divagao sobre as

    ilhas, de Passeios na ilha. (ANDRADE, 2003, p.231-234)

    Na epgrafe do livro, Drummond declara, modestamente, ser

    apenas um tentativa de convivncia literria, divagaes e reaes, mas

    no texto observamos reflexes profundas sobre a criao literria,

    preocupaes que vm de longe, presentes tambm no poema Infncia

    e nas crnicas Mal, obrigado, Opinies de Robinson; enfim o texto se

    constitui num hbrido da linguagem discursiva, ensastica e potica. Alis,como j enfatizamos, os recursos metalingsticos esto presentes nas

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    referncias ao fazer potico, quando a nfase da mensagem sobre ela

    mesma. (cf. JAKOBSON, 2003, p.149 ).

    Em resumo, a crnica, propondo-se a narrar os fatos de forma

    levee explorando a funo potica da linguagem, abre a possibilidade

    de discutir importantes temas da literatura, justamente devido ao uso

    desta linguagem coloquial, supostamente superficial, possibilitando o

    acesso quase imperceptvel aos nveis mais profundos da alma.

    Diferentemente do conto, que narra um acontecimento, com comeo,

    meio e fim, a crnica cumpre a funo de ensaio: no h tenso e o

    cronista divaga, j desde o ttulo.

    Celebrando o fenmeno metalingustico por excelncia ilha

    igual a espao/tempo da criao literria do autor -- o uso da metfora

    (ilha) , sem dvida, um recurso esttico recorrente no texto, contribuindo

    sobremaneira para a sua alta qualidade potica. A ilha, em Drummond,

    como espao de reflexo e interiorizao, necessrio criao literria,

    conforme sugere Arrigucci Jr, uma vez que o pensamento desempenha

    um papel decisivo na sua lrica reflexiva, pois define a atitude bsica dosujeito lrico, interferindo na relao que este mantm com o mundo

    exterior, ao mesmo tempo que cava mais fundo na prpria subjetividade.

    ( 2002,p16).

    QUANDO ME ACONTECER alguma pecnia, passante de ummilho de cruzeiros, compro uma ilha; no muito longe dolitoral que o litoral faz falta; nem to perto, tambm, que de lpossa eu aspirar a fumaa e a graxa do porto. (..). A ilha mesatisfaz por ser uma poro curta de terra(falo de ilhas

    individuais, no me tentam aventuras marajoaras), um resumoprtico, substantivo, dos estires deste vasto mundo, sem osinconvenientes dele, e com a vantagem de ser quase ficosem deixar de constituir uma realidade. (ANDRADE, 2003,p.231/232)

    A metfora da ilha tambm uma forma de buscar sua essncia,

    reafirmada na linguagem figurada, existente nas coisas simples da vida,

    conforme fragmento pgina 231: a gratuidade dos gestos naturais, o

    cultivo das formas espontneas, o gosto de ser um como os bichos,...

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    A construo do texto sugere uma circularidade, pois a repetio

    do vocbulo (ilha) produz um efeito acumulado no leitor: repetio,

    acumulao de analogias, descrio estendida do objeto). O discurso

    apresenta um com contedo reflexivo sobre o ser e estar no mundo. O

    recurso da circularidade, como elemento de diferenciao das linguagens

    da poesia e da prosa, tambm explicitado por Paz:

    (...) A figura geomtrica que simboliza a prosa a linha: reta,sinuosa, espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diantee como uma meta precisa. Da que os arqutipos da prosasejam o discurso e o relato, a especulao e a histria. Opoema, pelo contrrio, apresenta-se como um crculo ou como

    uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente e no qual o fim tambm um princpio que volta, serepete e se recria. E esta constante repetio e recriao no seno ritmo. (2006, 12-13)

    A propsito, considera-se que h uma clara intertextualidade entre

    a iIha de Drummond e a Pasrgada de Bandeira, ambos

    contemporneos, poetas e cronistas. Como Pasrgada, a ilha tambm

    metaforiza o espao/tempo ideal para a criao literria, em que h o

    reencontro do poeta com sua essncia, a exemplo do trecho:

    Resta ainda o argumento da felicidade aqui eu no sou feliz,declara o poeta, para enaltecer , pelo contraste, a suaPasrgada: mas ser que se procura realmente nas ilhas aocasio de ser feliz, ou um modo de s-lo? (ANDRADE, 2003,p. 232)

    Utilizando o recurso da metalinguagem, o autor reafirma a palavra

    enquanto jogo simblico, comparando a ilha idealizada, irreal, como as

    da literatura, ficcional, fruto de sua imaginao e traada pela linguagem

    potica, a ilha mimetiza o texto literrio:

    Nessa ilha to irreal, ao cabo, como as da literatura, eleconstri a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito daimaginao, administra-a, e at mesmo a tiraniza..... A ilha que

    trao agora a lpis neste papel materialmente uma ilha, eorgulha-se de s-lo. Pode ser abordada. (ANDRADE, 2003,p.231)

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    Est tambm presente o fenmeno esttico da visualidade na

    nfase aos elementos da natureza, ao onrico, crtica falsa fantasia

    colorida do cinema, bem s cores do vesturio:

    ....A ilha deve ser um o quantum satis selvagem, sem bichossuperiores fora e ao medo do homem. Mas precisa terbichos, principalmente, os de plumagem gloriosa, com algunsexemplares mais meigos. As cores do cinema enjoam-nos docolorido, e s uma cura de autenticidade nos reconciliar comos nossos olhos doentes. J no h mais vestidos de corespuras e naturais (de que m pintura moderna se vestem asmulheres do nosso tempo?),(ANDRADE, 2003, p. 233)

    H um jogo de contradies, isto , a presena de imagens

    opostas, uma busca do poeta por um ponto de equilbrio, no processo de

    criao, reafirmadas nas figuras de linguagem, que conferem poeticidade

    linguagem :

    Minha ilha(...) ficar no justo ponto de latitude e longitude que,pondo-me a coberto dos ventos, sereias e pestes, nem meafaste demasiado dos homens nem me obrigue a pratic-los

    diuturnamente. Porque esta a cincia e, direi, a arte do bemviver; uma fuga relativa, e uma no muito estouvadaconfraternizao. (ANDRADE, 2003, p.231)

    H referncia intertextual a Baudelaire, em Flores do Mal, ao fazer

    a crtica ao mundo burgus: E, contemptor do mundo burgus, que outra

    coisa faz seno aplicar a tcnica do sonho, que os sensveis dentre os

    burgueses se acomodam realidade, elidindo-a? (cf. BENJAMIN, 1989)

    Para o poeta, fazer literatura nada tem a ver com felicidade ou

    bem-estar, pois, segundo Faulkner(1966), o processo de criao literria

    uma mistura de inquietao, euforia e desespero. A ilha no um

    den, ou paraso, ou musa, a sua palavra potica.

    (...) Emerge do plago (mar) com a graa de uma flor criada

    para reproduzir-se sobre a gua. Marca assim o seu

    isolamento, e... A solido, carrego-a no bolso, e... E a

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    felicidade no em rigor o que eu procuro. No. Procuro uma

    ilha, como j procurei uma noiva. (ANDRADE, 2003, p.231)

    Desse modo, entendemos que o poeta faz uma analogia - o ato

    de criao exige um estado de insularidade ( como estar numa ilha

    espao sagrado) o estar consigo mesmo, totalmente focalizado no

    acima e abaixo do espao literriono fundo do inconsciente e nos altos

    cumes do sublime a pr-condio do processo criativo para o autor.

    Nessa linha de pensamento, Bakhtin(1998) observou que o discurso

    potico pressupe uma voz solitria:

    A polissemia do smbolo potico pressupe a unidade e aidentidade da voz consigo mesma, e a sua total solido nodiscurso. Logo que uma voz alheia, um acento alheio, umponto de vista eventual irrompem nesse jogo do smbolo, oplano potico destrudo e o smbolo transferido para o planoda prosa . Deste modo, todo acontecimento, todo o jogo dossmbolos poticos, depende da relao entre o discurso eobjeto. (1998, p. 130)

    Drummond compara o espao de criao literria a uma pequenailha, que quase fico, sem deixar de constituir uma realidade, no

    sentido da necessidade da unio entre linguagem referencial e potica,

    ambas se interpenetrando e alimentando mutuamente.(cf. CANDIDO,

    1993, p.15-16)

    Contrariamente, faz uma comparao com a casa de campo e a

    ilha de mar. Aqui nos valemos dos conceitos de Jung - (mar como

    sinnimo de inconsciente coletivo, na expresso Mare Nostrum),representando o processo de criao ligado ao universo onrico,

    totalmente oposto casa de campo, que representa o real, posto que

    taxada (por impostos), mesquinha, alheia, etc. Reafirmando tambm a

    idia de coisa possuda, nas imagens poticas abaixo: (JUNG,1984, p.

    149-150).

    A casa de campo diferente. A continuidade do solo torna-aum pobre complemento dessas propriedades, individuais ou

    coletivas, pblicas ou particulares, em que todo o desgosto,toda a execrabilidade, toda a mesquinhez da coisapossuda,taxada, fiscalizada, trafegada, beneficiada, herdada,conspurcada, se nos apresenta antes que a vista repare em

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    qualquer de seus eventuais encantos. (ANDRADE, 2003,p.232)

    Emergindo alguns elementos da sua fase socialista, Drummonddeflagra tambm uma crtica ao progresso devorador, que torna o homem

    escravo e dependente do mesmo, destruindo a possibilidade de amar as

    coisas essenciais da vida, obliterando a capacidade de estar consigo

    mesmo, de buscar a sua essncia:

    O progresso tcnico teve isto de retrgado: esqueceu-secompletamente do fim a que se propusera, ou devia ter-seproposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que

    ele tornou muito confortvel, mais invisvel... (ANDRADE, 2003p.232)

    A casa junto ao mar, que j foi um refgio da natureza, tambm

    invadida pelo progresso, o que podemos visualizar nas aliteraes que

    atribuem poeticidade linguagem: Tudo forma uma cidade s, torpe e

    triste, mais triste talvez do que torpe.

    Em razo do isolamento requerido no espao de criao literria,segundo Drummond, no devem estar presentes elementos da cultura e

    da pesquisa ( s h permisso para os jornais: No vejo inconveniente

    na entrada sub-reptcia de jornais.), pois a pura criao literria precisa

    dispens-los se se quiser inveno:

    Numa referncia intertextual a Plato, que baniu o poeta da

    Repblica ideal, pois considerava a poesia desequilibradora, tomada pela

    emoo. Drummond admite os poetas nesta ilha de recreio, pois para opoeta o ato de criao exige reflexo, meditao, embora aparentemente

    a mente permanea num estado de divagao, livre, sem excessiva

    preocupao literria, para que possa reinar a liberdade de criao:

    Sero admitidos os poetas? (...) Se foram proscritos das repblicas

    ideais e das outras, pareceria cruel bani-los tambm da ilha de recreio.

    No bani-los como Plato.

    Numa aluso aos problemas dos bastidores literrios, tambm nodevem estar presentes os problemas de hegemonia e cime. O poeta

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    traz a idia da literatura como uma realizao, como o fato em si, e a ilha,

    como criao literria, deve representar renncia e despojamento. Assim

    o prprio desejo de influenciar e atrair, significaria a no realizao

    literria, pois, para o poeta, o ato de criao a uma condio vital, em

    que ele comunica seu sentimento de mundo. Por outro lado, h certo

    gosto em pensar sozinho. ato individual, como nascer e morrer. A ilha

    , afinal de contas, o refgio ltimo da liberdade, que em toda a parte se

    busca destruir. Amemos a ilha.

    Sim, amemos nossa voz interior. O recurso da repetio da

    metfora ilha traz o que chamamos de e