A Cultura Desconectada_6

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Cultura desconectada

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  • A cultura desconectada: sitcoms e sries norte-americanas no contexto brasileiro Mrcia Rejane Messa1 - Mestranda PPGCOM/PUCRS

    Resumo: O presente artigo discute a insero das sitcoms e sries norte-americanas no

    contexto brasileiro. Pretendemos problematizar sua insero dentro da TV brasileira

    enquanto fenmeno e manifestao cultural, uma vez que estes produtos so tambm

    meios pelos quais os indivduos vivenciam e assimilam culturas, reafirmam e

    remodelam identidades e integram-se na globalizao.

    Palavras-chave: Sitcoms e Seriados, televiso, cultura.

    Na sociedade contempornea, a televiso um artigo de consumo obrigatrio.

    To obrigatrio quanto a variedade de sua grade de programao, que deve estar sempre

    recheada de atraes para conquistar seu pblico. Televiso, no sculo XXI, sinnimo

    de informao e lazer e os produtos que apresenta precisam cumprir funes: fazer rir,

    chorar, emocionar.

    Longe de um entretenimento descompromissado, sitcoms e sries2 so um

    fenmeno social, onde temas relevantes da sociedade so abordados, tornando mais

    permissivas questes que poderiam ser em um outro contexto - bastante polmicas,

    quando no inaceitveis (BERCIANO, 1999). Entretanto, necessrio ponderar sobre

    sua importao massiva e levar em considerao que estas produes trazem consigo

    referncias culturais distintas das vivenciadas no local onde so exibidas. A cultura

    norte-americana, bero deste tipo de produo, a que mais serve a este propsito. Ao

    ser importada atravs da fico seriada (reality shows, sries e sitcoms), ela

    formalmente inserida em diferentes contextos sociais e se configura como uma forma de

    desconexo com a prpria cultura operante.

    No Brasil, esta desconexo se d principalmente pela televiso a cabo que, ao

    trazer estes programas e, em alguns casos, fazer destes quase que seu nico produto

    (Vide canal Sony, Warner e Fox) acentua desigualdades e recalca valores e identidades,

    tal qual o fizeram no movimento colonizador (BRITO, 2005). Frente a uma

    1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq Brasil. 2 Jos Carlos Aronchi de Souza (2004) adota os termos srie e comdia de costumes/situao para designar os gneros televisivos aqui trabalhados, enquanto seriado seria o seu formato. Segundo ele, Comdia de costumes a nomencaltura em portugus para o gnero sitcom. No entanto, por fins estritamente de estilo de texto, manteremos o uso do termo em ingls.

  • contemporaneidade onde a identidade cultural de um sujeito no mais estvel (HALL,

    2000), estes produtos ficcionais penetram na vida social e familiar produzindo

    deslocamentos e causando novas significaes no cotidiano.

    Uma vez que o assunto dispe de pouca bibliografia a respeito, assim como

    carece de um estudo dentro da cultura brasileira3, as sries e sitcoms norte-americanas

    so nossos objetos aqui. Pretendemos problematizar sua insero dentro da sociedade

    brasileira enquanto fenmeno e manifestao cultural. Nossa inteno despertar o

    interesse por estes produtos da cultura da mdia que ganham cada vez mais espao na

    televiso paga e aberta - e que so tambm meios pelos quais os indivduos vivenciam

    e assimilam culturas, reafirmam e remodelam identidades e integram-se na

    globalizao.

    Sitcoms e seriados: uma diferenciao

    Um dos problemas encontrados ao se estudar a fico televisiva seriada no Brasil, especificamente os objetos deste artigo, a ausncia de uma obra de referncia nesta rea. As tentativas de sua problematizao so ainda tmidas e geralmente ganham distintos contornos em diferentes trabalhos. Tendo isto em vista, alm da importncia desta delimitao e diferenciao para o desenvolvimento de nossa reflexo, norteamos este trabalho a partir de abordagens que elaboramos sobre sries e sitcoms atravs de leituras a respeito4 e a assistncia destas em trs canais da televiso a cabo, Sony, Warner e Fox5. No pretendemos que estas abordagens tornem-se categricas, mas que sirvam ao propsito de nosso estudo.

    3 Alguns trabalhos sobre fico seriada, incluindo sries brasileiras, so desenvolvidos pelo Grupo de Fico Seriada do Reposcom (Repositrios Institucionais em Cincias da Comunicao), do Intercom, disponvel no endereo eletrnico http://reposcom.portcom.intercom.org.br 4 Para mais informaes, consultar referncias no fim deste artigo. 5 Esta assistncia se deu em diferentes dias e horrios, intercalando os canais, de maro dezembro de 2005 e teve como objetivo captar semelhanas entre os programas.

  • As sitcoms so um gnero televisivo dentro da categoria Entretenimento. So histrias curtas centradas na vida e nas atividades de uma determinada famlia ou grupo, em locaes pr-estabelecidas: a casa, o trabalho ou aquelas que gerem as tenses e relaes que servem de base para o programa (CASEY et al, 2002). O termo uma abreviao da expresso situation comedy (comdia de situao/costumes), originalmente utilizado nos programas de rdio dos anos 20, e sua estrutura assemelha-se crnica literria, uma vez que trata de assuntos corriqueiros da sociedade de uma forma aparentemente superficial e cmica. As personagens so estereotipadas, pois, devido a sua durao (em mdia 25 minutos, sem os comerciais), a identificao do espectador precisa ser imediata. Tais personagens tendem a ser fixas, embora estratgias como participaes especiais6 sejam utilizadas. Sua narrativa circular, sendo cada episdio uma histria independente que pode ou no se relacionar com as demais, podendo ser assistido individualmente. Outra caracterstica apontada que algumas personagens tm certos rituais recorrentes (CASEY et al., 2002) como, por exemplo, o How you doin?, de Joey, em Friends, quando este v algum interessante. O programa tem formato seriado e exibido semanalmente, em um mesmo horrio, sem tempo definido para seu encerramento, dependendo da audincia e, conseqentemente, dos contratos publicitrios. Cada ano ou semestre - corresponde a uma nova temporada, onde novos elementos so adicionados

    6 Vide George Clooney e Brad Pitt em Friends, Madonna e Kevin Bacon em Will & Grace, entre outros.

  • trama7. Nos Estados Unidos, at o final dos anos 90, grande parte das sitcoms era encenada em estdio, incorporando as risadas do pblico ao programa final que ia ao ar. Atualmente, isso no mais uma prerrogativa do gnero, podendo haver, inclusive, tomadas externas. As sitcoms Friends e Will & Grace so remanescentes da tradio das risadas as fundo, quando estas tinham como funo fornecer uma sensao mtica de um engajamento do pblico em uma experincia coletiva (CASEY et al., 2002). No Brasil, segundo Jos Carlos Aronchi de Souza (2004), a sitcom tambm considerada um gnero televisivo por mesclar humor com teledramaturgia8.

    As sries so tambm um gnero televisivo da categoria Entretenimento9. Em contrapartida, so programas com uma linha dramtica mais complexa que o sitcom, sustentando, por vezes, um mesmo assunto por vrios segmentos (SOUZA, 2004). Cada episdio tem uma relao com o anterior, embora o compromisso com a continuidade no seja uma premissa. Como o sitcom, a cada nova temporada, novos elementos so adicionados trama10. Sua produo mais esmerada, com um maior nmero de locaes, onde a ao se desenvolve com mais personagens, tendo vrios ncleos de tenso. A srie exibida tambm por temporadas, uma vez na semana e tem durao de 40 a 45 minutos, sem os comerciais. Nela, h uma aproximao com o discurso cinematogrfico (SANTOS, 2003), dando mais espao experimentao. Um 7 Por exemplo: em Friends, o casamento de Mnica e Chandler; em Will & Grace, o casamento e separao de Grace. 8 O Dicionrio da Rede Globo (2003), apesar de considerar programas como A Grande Famlia e Os Normais como comdias de situao, as classificam na categoria Entretenimento e Gnero Humor. 9 No Dicionrio da TV Globo (2003) as sries brasileiras fazem parte da categoria Dramaturgia e so chamadas de seriados. Como exemplos destes esto: Malu Mulher, Carga Pesada, A Justiceira, etc. 10 Por exemplo, em ER, a morte de Dr. Green; em Lost, a abertura da escotilha.

  • exemplo disso a interveno de diretores de cinema nestas produes, como foi o caso de Quentin Tarantino11, que dirigiu o episdio final da 4 temporada de CSI: Crime Scene Investigation, tendo quase duas horas de durao. Enquanto na sitcom a marca a leveza na abordagem dos temas, aqui os assuntos so problematizados. As sries podem ser dramticas, cmicas ou criminais. Na linha dramtica temos como exemplos ER, CSI, e Lost. Na linha cmica, Desperate Housewifes e o j cancelado Ally McBeal. Na criminal, NYPD Blue, The Sopranos, Law & Order entre outros.

    Nos Estados Unidos, a produo de fico seriada movimenta milhes. E, caso alguma tenha repercusso mundial, os nmeros no conhecem limites. Em 1998, Jerry Seinfeld, comediante e criador da sitcom Seinfeld, foi eleito um dos homens mais ricos da indstria do entretenimento pela Revista Forbes12. Em 2005, Jennifer Aniston (Friends), Ray Romano e Patricia Heaton (Everybody Loves Raymond), Jennifer Garner (Alias) e o elenco de Desperate Housewifes apareceram na lista das celebridades mais ricas e poderosas do mundo.

    Sries e sitcoms tm um forte apelo mercadolgico (FLAUSINO, 2001), ditam regras de comportamento e podem alterar, remodelar ou reafirmar identidades (KELLNER, 2001). Jess Martn-Barbero (2004) tambm aborda esta questo ao tratar da deslegitimao causada pela modernizao e insero de instrumentos tecnolgicos em sociedades que at pouco tempo 11 Quentin Tarantino diretor dos filmes Ces de Aluguel(1992), Pulp Fiction (1994) e, mais recentemente, Kill Bill 1 e 2 (2003/2004), entre outros. 12 Fonte: http://www.forbes.com

  • tinham muito bem delimitados seus contextos e culturas, o caso da Amrica Latina. Segundo o autor, isto gera uma perda de referncia e desconfigura o habitat natural (2004, p. 355), nos deixando incapazes de captar os rumos das transformaes vivenciadas. neste momento que a indstria cultural pode causar certos deslocamentos na identidade nacional. O fenmeno Sex and the City, uma sitcom que abre espao para a questo da mulher contempornea e solteira -, pode ser ilustrativo: o tema da mulher solteira com mais de trinta anos passou a ser debatido com maior intensidade na mdia depois de seu surgimento13; os estilistas usados por Carrie Bradshaw, personagem principal da sitcom, antes desconhecidos, viraram cones; os sapatos Manolo Blahnik, sua grande paixo, idem; alm disso, uma jornalista brasileira lanou um livro com um roteiro de Nova Iorque de acordo com os locais visitados pelas personagens14.

    Estes dados mostram o quanto uma produo televisiva seriada, que no a telenovela, pode adquirir importncia dentro de uma sociedade. Da a necessidade de investir em seu desenvolvimento, produzi-las dentro de seu prprio contexto, tematizando assuntos pertinentes ao seu universo cultural. Tentativas deste tipo j foram colocadas em prtica pela Rede Globo, TV Cultura15 e mais recentemente pela FOX e Record, com a produo de

    13 A Revista poca dedicou sua matria de capa s mulheres solteiras na edio de maro de 2003. Trazendo na capa a questo Falta Homem?, o texto escrito por Paula Magestre debatia sobre a dificuldade das mulheres solteiras e independentes encontrarem um companheiro. Segundo a publicao, no Brasil j so mais de 20 milhes de mulheres sozinhas. A sitcom Sex and the City foi citada na matria, juntamente com a sitcom Friends, sob o ttulo o que faz a cabea e traduz os dramas das mulheres contemporneas na televiso. 14 RIBEIRO, TETE. A Nova York de Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda. So Paulo: Arx, 2004. 15 A TV Cultura foi a responsvel, entre outras, pela produo da srie Confisses de Adolescente (1994), baseada na pea teatral homnima, de autoria de Maria Mariana.

  • Avassaladoras, que tem como tema a vida de quatro mulheres solteiras em busca de um relacionamento. Mas, apesar destas tentativas esparsas, a indstria de sries nacional no se consolida. No ramo televisivo de sries e sitcoms h um predomnio mundial das produes norte-americanas. Elas so exportadas para diversos pases com todas suas matizes culturais de origem, tornando conhecidas suas celebridades, marcas, lugares e costumes, enquanto aparentemente apenas servem ao propsito de entreter e divertir. O resultado disto uma internacionalizao da cultura americana de uma forma ainda mais abrangente que o cinema16, j que o espectador est exposto a ela dentro de sua casa, uma vez por semana, durante toda uma temporada e, futuramente, em qualquer horrio, em sua prateleira, quando este o adquirir em DVD. O contexto brasileiro

    Segundo Luciene dos Santos (2003) os primeiros produtos de fico seriada da televiso brasileira foram o teleteatro e as telenovelas, tendo as sries e sitcoms nacionais surgido na dcada de 50, estruturadas no modelo norte-americano e trazendo, assumidamente, seu way of life. Um exemplo foi a sitcom nacional Al Doura (1953), com Eva Wilma e John Herbert, baseado em I Love Lucy (1951). Segundo a autora, somente no final dos anos 70 a fico seriada passou a dar ateno realidade nacional, com produes como A Grande Famlia (1972), Carga Pesada (1979), etc. Dos anos 70 para c, as tecnologias avanaram, mas no cenrio cultural brasileiro, produzir este tipo de programa ainda no uma prtica. Dentro da fico seriada, a telenovela a preferncia nacional e a detentora de todas as atenes nas grandes redes de televiso, nos lares da maioria dos brasileiros e nas produes cientficas17. Informaes sobre este gnero televisivo so escassas ou de difcil acesso, dificultando a pesquisa. Em um pas onde as disparidades culturais e sociais so proporcionais a sua extenso territorial, no de surpreender que a telenovela atue de forma to incisiva no cotidiano dos indivduos e funcione como catalisadora de 16 Nestr Garcia Canclini, em seu livro Diferentes, desiguales e desconectados (2004), dedica um captulo questo cinematogrfica latino-americana. 17 Na pesquisa de LOBO, Narciso Jlio Freire e MALCHER, Maria Atade, intitulada Fico Televisiva Seriada: um olhar sobre a produo acadmica, isto fica evidente. Apesar de centrar-se na produo da ECA/USP, o artigo representativo no que se refere ao crescimento do interesse pela telenovela como objeto cientfico. Disponvel em: http://reposcom.portcom.intercom.org.br/handle/1904/18125.

  • informaes e principal fonte de entretenimento. O que surpreende, sim, o fato das sries e sitcoms brasileiras, configurando-se como programas de fico seriada e tendo quase as mesmas prerrogativas da telenovela (episdios autnomos que se relacionam atravs dos mesmos protagonistas e tm uma mesma linha dramtica), no alcancem a mesma popularidade, sendo cancelados por no obter ndices de audincia suficientes para se manter na programao ou at mesmo por desinteresse de seus produtores e protagonistas, que acabam preterindo a srie em prol de outros compromissos profissionais18.

    A cultura seriada norte-americana tomou fora no Brasil com o advento da televiso a cabo. Entretanto, pode ter sido a televiso aberta atravs, principalmente, da Rede Globo - que deu visibilidade para as sries televisivas norte-americanas a partir dos anos 80 e construiu uma cultura de assisti-las no Brasil. Sob o ttulo de Sesso Aventura, as sries norte-americanas foram formalmente apresentadas ao pblico brasileiro semanalmente, de segunda a sexta-feira, s 16h30, dentro da programao da emissora. Cada dia da semana uma delas era apresentada, tendo sua continuidade na semana seguinte. Fizeram parte desta faixa Magnum, As Panteras, A Ilha da Fantasia, Anjos da Lei, Profisso Perigo, Duro na Queda, entre outros. Desde ento a Rede Globo mantm ao menos uma srie norte-americana em sua programao durante o ano. Em 2006 apresentou Lost, tendo anteriormente exibido 24Horas, ambos sucesso de pblico em seus pases de origem.

    Segundo a grade de programao da publicao Monet, da Net, de maro de 2006, os canais a cabo que tm em sua programao sries e sitcoms so: Sony, Warner, Fox, AXN, Universal e Multishow. Outros, como HBO e GNT, mantm uma mdia de duas ou trs em sua programao19. Na televiso aberta, apenas a Record, a TV Guaba e o SBT mantm sries em sua programao. A TV Guaba a nica que tem uma faixa denominada Sesso Srie, onde diferentes produes so apresentadas, como JAG e, CSI. A Rede Globo, nos finais de ano, produz programas que intitula seriados20. O de

    r

    18Diferentemente do contexto americano, no Brasil este tipo de fico seriada protagonizada por atores consagrados, de projeo nacional, o que dificulta a sua continuidade, vide Mulher (Patrcia Pillar e Eva Wilma), Os Aspones (Selton Mello, Andra Beltro), A Justiceira (Malu Mader), entre outros. Um exemplo pontual foi a sitcom Os Normais, protagonizado por Fernanda Torres e Luis Fernando Guimares, com texto de Fernanda Young e Alexandre Machado, revelaes no humor brasileiro. Previsto para ir ao ar em 12 captulos, no ano de 2001, a Globo decidiu mant-lo na grade de programao por mais dois anos. Sendo a sitcom um dos maiores sucessos da categoria na emissora, a emissora produziu um longa-metragem para o cinema com a dupla de atores, marcando ento o fim do programa. As sries e sitcoms no Brasil tendem a j sair do papel com tempo de vida pr-definido e so feitos em parceria entre a TV Globo e produtoras de cinema. Nomes de cineastas so freqentemente relacionados a estas produes. o caso de Jorge Furtado e Fernando Meirelles com Cidade dos Homens e Jos Alvarenga Jnior com Os No mais e A Diarista. 19 Na GNT, a preferncia pela produo britnica, como No Angels, Weeds e Naked Josh. O canal Telecine Premium, entretanto, tambm entrou na briga no final do mesmo ano com a estria de Over There e Num3ers. 20 Como j apontamos, a TV Globo chama sries de seriados. Seja qual for a utilizao do termo, discordamos desta nomenclatura, uma vez que uma srie ou sitcom obedece a um critrio mnimo de continuidade a fim de facilitar a identificao do espectador. No caso de produes sazonais como Cidade dos Homens e Quem vai ficar com Mrio?, ambas da TV Globo, pensamos no ser apropriado esta categorizao, embora tais produes mantenham caractersticas das sries e sitcoms, como a centralidade na vida de um grupo de personagens, os esteretipos, o formato em captulos (embora reduzidos), etc. Jos Carlos Aronchi de Souza (2004) classifica este tipo de programa como gneros da categoria Outros em sua pesquisa sobre os gneros televisivos no Brasil, onde Especial seria sua denominao mais apropriada. Eles aparecem na grade de programao das emissoras

  • maior longevidade deles Cidade dos Homens, que ganhou cinco episdios em 2005 e, segundo informao da emissora no site oficial do programa21, j foi vendido para 25 pases.

    Na programao da TV paga temos uma predominncia indiscutvel da produo norte-americana. Sua nica concorrente a produo britnica e esta ainda no obteve destaque, sendo veiculada no Brasil por canais como Multishow e GNT, da Globosat. Apesar de serem legendadas para o portugus pelas suas subsidirias nacionais, a cultura operante na televiso paga brasileira a norte-americana. A comear pelo ttulo, que mantido no seu original22. De acordo com o website TeleSries23, especializado no tema, na temporada passada, 2005/2, 26 novas sries, sitcoms e reality shows entraram na programao, 25 programas tiveram novas temporadas e outros 13 permaneceram no ar com episdios inditos. Isso sem levar em conta os programas j encerrados que tiveram reprises como Sex and the City, Friends, Beverly Hills 90210, Melrose Place, Seinfeld, Anos Incrveis, entre outros. Em 30 de maro de 2006, segundo informaes de outro website sobre o assunto, o TV&Cia24, esto ainda no ar e em produo 72 sries e sitcoms, alm de 45 j cancelados ou finalizados que se mantm no ar devido a sua demanda. Ou seja, a TV por assinatura nacional tem, atualmente, 117 produtos deste gnero importados em sua programao.

    O cancelamento de uma fico seriada acontece a cada nova temporada por falta de popularidade ou patrocnio. Um exemplo foi Center of the Universe, estrelado por John Goodman, exibido aqui pela Warner. A sitcom teve apenas uma temporada, no criando identificao com o pblico e mantendo ndices muito baixos de audincia (TeleSries). H ainda aqueles que tm seu final decidido pelos executivos do canal e atores, tendo como estratgia sair do ar enquanto ainda so um sucesso. Este foi o caso de Sex and the City e Friends. Este ltimo reuniu 51 milhes de norte-americanos diante da TV no seu ltimo episdio na quarta maior audincia da histria das comdias, atrs de M*A*S*H, Cheers e Seinfeld25.

    No Brasil estas cifras no so conhecidas. Mas pela quantidade de comunidades

    na rede de relacionamentos Orkut26, assim como de websites relacionados ao tema em

    portugus, temos um vislumbre do alcance e das possibilidades deste mercado cultural.

    Mercado que, depois de um perodo de estagnao, voltou a crescer em 2004 em

    nmero de assinantes e faturamento. Os dados podem ser visualizados na publicao

    Mdia Fatos 2005/2006, da Associao Brasileira de TV por assinatura27. Segundo a

    geralmente em horrio nobre e tem como caracterstica a no-continuidade, principalmente em datas comemorativas como o Natal ou aniversrio da emissora, por exemplo. Os programas especiais podem ser aliados a gneros diversos. Os mais comuns so os musicais, os shows ao vivo, a fico (seriada ou em captulo nico), os documentrios, entrevistas com personalidades e reportagens exclusivas (2004, p.164). A Rede Globo lanou, em abril de 2006, dentro do Fantstico, um quadro chamado Sitcom.br, onde a cada domingo uma diferente comdia de situao apresentada ao espectador. No h uma continuidade da histria anterior, tampouco das personagens, entretanto, h uma forte marcao dos esteretipos. Este seria, assim como Cidade dos Homens e Quem vai ficar com Mrio?, ento, no sitcoms, mas Especiais. 21 http://cidadedoshomens.globo.com/Cidadedoshomens 22 Uma exceo o canal Multishow, da Globosat, que algumas vezes traduz os ttulos: o caso, por exemplo, do sitcom Super Gatas. 23 http://teleseries.com.br 24 http://www.tvecia.com.br/ 25 Segundo a TV Guide, revista especializada em televiso americana. http://www.tvguide.com/default. 26 http://www.orkut.com 27 Disponvel em http://www.abta.com.br Acessado em: 29/03/06.

  • publicao, s no Brasil so atingidos hoje 3,8 milhes de domiclios, cerca de 13

    milhes de pessoas. Este nmero ainda tmido para a indstria levando em

    considerao os 180 milhes de brasileiros28, mas representativo quando estes 13

    milhes atingidos representam cerca de 80% das classes AB e 56% delas dedicam mais

    de 2 horas de seu dia assistindo aos canais pagos. De olho neste nicho de mercado, as

    empresas e os publicitrios passaram a investir nestes canais e, segundo pesquisa feita

    no terceiro trimestre de 2005 junto s operadoras, a ABTA diz ter a TV por assinatura

    gerado um faturamento de 1,2 milhes no ltimo trimestre de 2005 e mais de 8.200

    empregos diretos.

    Como aqui nos centramos nas sries e sitcoms, queremos apontar para o perfil de

    sua audincia. Segundo a mesma publicao, onde 53% so homens e 47% mulheres,

    13% de seus assinantes so categorizados no tipo descoladas 29, que, por sua vez, so

    as espectadoras de sries, sitcoms e minissries. So elas: jovens vidas por consumir

    seja em compras ou se divertindo. (...) So teens (2006).

    Este perfil pode ser questionado ao vermos publicaes nacionais darem destaque discusso deste gnero televisivo. A Revista Veja dedicou, somente nos primeiros trs meses de 2006, na sua seco Televiso, trs edies s sries televisivas: 22 de fevereiro, 8 e 15 de maro de 2006. Nesta ltima matria, trouxe dados de audincia dos trs programas de maior sucesso da televiso americana e indicou como conquistaram pblico e impactaram a sociedade. Segundo a Veja, um deles, Desperate Housewifes, que tem como ponto de partida o suicdio de uma dona de casa aparentemente muito feliz e centrado na vida de mulheres ricas e infelizes do subrbio casadas ou divorciadas - alcanou o pico de audincia 26 milhes de espectadores.

    Culturas em cheque, contextos em choque: um exemplo de desconexo

    Na fico seriada, tanto nas sries e sitcoms, quanto na telenovela, h um comprometimento do espectador com o produto miditico, j que elas so apresentadas em captulos, impondo certo acompanhamento da histria apresentada. E, a partir do momento que h comprometimento, h envolvimento. Ien Ang (1985), em sua obra clssica Watching Dallas: soap opera and melodramatic imagination, nos alerta para o mecanismo de prazer 28 Segundo dados do IBGE. 29 Outros tipos identificados na publicao so: Boa gente (18%), Dedicadas (18%), Bem informados (16%), Mulheres atuais (16%), Ligados (15%) e Absolutos (4%). Um perfil de cada tipo dado a cada um deles de acordo com seus interesses e pode ser verificado em http://www.abta.com.br.

  • que est inserido no ato de assistir uma fico televisiva seriada. Para Ang, uma das condies para que este prazer acontea que o mundo ficcional onde as personagens interagem deve parecer real, mas este real relativo, tendo diferentes percepes em diferentes pessoas, em diferentes contextos. Ela tambm nos aponta para a impossibilidade de saber se um produto cultural ter repercusso quando em sua criao ou produo, j que dependente de diferentes condies scio-culturais e psicolgicas (1985, p.18). No momento em que se assiste no Brasil uma srie como Lost, Desperate Housewifes ou CSI, apesar do prazer envolvido e da realidade ou no que se possa experimentar ali, estamos assimilando situaes e costumes naturais a um outro contexto. Este fato, independentemente de nossa posio em relao ao texto do programa, gera uma desconexo cultural, um conflito entre culturas.

    Para deixar mais transparente esta disparidade, utilizaremos como exemplo uma das produes consideradas pela Revista Veja de maior popularidade nos Estados Unidos, CSI: Crime Scene Investigation. Neste, temos uma equipe de cientistas forenses que desvendam mortes e complicados casos policiais em Las Vegas atravs de percia criminal. Apesar da popularidade no Brasil, CSI pode ser considerado um produto televisivo totalmente desconectado de nossa cultura. No mnimo trs motivos apontam para isso. O primeiro deles a condio financeira do pas: se os recursos para sade e segurana pblica j so escassos, o que dizer ento aos destinados pesquisa cientfica base para as descobertas ali representadas? Outro a disparidade entre as

  • estruturas pblicas dos EUA e Brasil: a estrutura de qualquer rgo pblico, como o IML bastante visualizado na srie -, precria em qualquer cidade do pas e est muito longe de chegar organizao demonstrada no produto televisivo. Por ltimo, a justia: no Brasil, esta lenta e carece tambm de recursos que faam o sistema penitencirio funcionar agilmente, diferentemente da realidade americana.

    Sendo assim, a insero de sitcoms e sries televisivas na grade de programao nacional confronta diferenas e expe desigualdades. As diferenas interculturais so colocadas em cheque a partir do produto miditico e chocam-se dentro de seu contexto, um territrio, no caso do Brasil e Amrica Latina, por si s j intercultural. Martn-Barbero (2004), entretanto, no v isso como totalmente negativo e argumenta que a indstria cultural acelera um movimento de integrao a partir do momento que h uma tentativa de derrubar barreiras e dissolver fronteiras. De acordo com o autor, especificamente no caso da televiso, h uma contradio intrnseca a este processo, natural prpria globalizao: o espao social que este meio ocupa proporcional ausncia de espaos polticos de expresso, onde a pluralidade das identidades culturais possa ser representada. Na falta desta esfera, a televiso tem a ateno das maiorias e tudo que nela aparece adquire importncia (MARTN-BARBERO, 2004). Ratificamos que no julgamos aqui os valores disseminados por estas produes estrangeiras, mas sim a sua tentativa de naturalizao e assimilao de um modo de vida que no atende

  • s realidades scio-culturais brasileiras e, por isso, devem ser vistas com ponderao. Sua assistncia pode, entretanto, servir a um outro projeto e, como tambm aponta Martn-Barbero (2004), seguir uma poltica para um espao audiovisual latino-americano (p. 374). ltimas Palavras

    As sries televisivas so um mercado em expanso mundial. chegada a hora de o

    Brasil dar importncia para a produo nacional e investir de forma mais marcante neste

    mercado que at ento esteve jogado a um segundo plano. O xito da telenovela

    brasileira fez com que esta fosse internacionalizada e, segundo Martn-Barbero (2004),

    uniformizou o formato televisivo e apagou a identidade plural que nela antes

    transparecia. Este no deve ser seu propsito. Atualmente temos apenas duas sitcoms

    nacionais (uma delas em reprise) na programao da TV paga: Avassaladoras, pelo

    canal FOX e Record, e Sai de Baixo, pelo canal Multishow. Ambas, alis, seguidoras de

    modelos norte-americanos. Embora este nmero no represente a produo brasileira30,

    a verdade que dentro da televiso ainda no h espao para a experimentao e para

    nossa prpria diversidade cultural. As produes seriadas brasileiras em vigor so

    sitcoms, programas com teor leve e humorstico, que privilegiam esteretipos da classe

    popular: a dona de casa, a faxineira, o funcionrio pblico, a mecnica, as donas de bar,

    entre outros. Seriados como Mulher, A Justiceira - e o prprio Cidade dos Homens -, da

    Rede Globo que, mais do que somente estereotipar, tematizavam, entre outras questes,

    a condio da mulher na sociedade, a lentido da justia, a vida na favela, so

    preteridos.

    Apesar da resistncia dos canais nacionais com a fico seriada, entenda-se

    sries, queremos destacar a iniciativa do canal norte-americano HBO, que criou uma

    subdiviso na Amrica Latina para suas produes. A inteno fazer com estes

    produtos o caminho inverso, e chegar ao mercado norte-americano. Desta empresa j

    saram produtos como Epitfios, srie de suspense argentina com Cecilia Roth, a srie

    30 A produo de sitcoms e sries nacionais centrada basicamente em uma rede de televiso aberta, a Rede Globo. As temporadas no obedecem a um critrio de freqncia, sendo deciso da emissora continu-la ou no em uma futura ocasio. os caso de os Aspones e Sexo Frgil. Hoje, na Rede Globo, temos quatro sitcoms (A Grande famlia, A Diarista, Sob Nova Direo e Minha Nada Mole Vida) e uma srie na programao (Carga Pesada apesar de ainda no ter estreado, est confirmada na programao pela Rede Globo para 2006).

  • brasileira Mandrake, com Marcos Palmeira e Filhos do carnaval, com Jece Valado.

    Mandrake foi co-produzido pela Conspirao Filmes, enquanto Filhos do Carnaval,

    pela O2, de Fernando Meirelles. Este fato, todavia, tem outro lado: com a insero de

    um conglomerado multimdia deste porte na Amrica Latina, estamos sujeitos, como j

    alertava Martn-Barbero (2004), a seu capricho e convenincia, em alguns casos a

    defesa interessada do protecionismo sobre a produo cultural nacional, e em outros a

    apologia dos fluxos transnacionais (p. 376).

    As duas produes da HBO podem ter dado o pontap inicial para a produo de

    sries no Brasil, mas nenhuma delas teve ainda sua segunda temporada oficialmente

    anunciada. Ficamos na expectativa que, como nos aponta Nestor Garca Canclini

    (2004), estejamos no caminho para uma cooperao de projetos entre naes. No

    cinema isto j acontece e funciona31, resta saber se funcionar na fico televisiva

    seriada e ser capaz de no s gerar interesse do pblico, como tambm mant-lo, trazer

    lucros para a indstria e valorizar a cultura nacional. Quem sabe, assim, possamos dar

    um novo passo em direo a uma poltica de fico seriada alm do circuito da

    telenovela - no Brasil e Amrica Latina. Esta seria, ao menos, uma tentativa para o

    desenvolvimento desta indstria, j que ainda estamos muito distantes de integrar a

    produo de sries e sitcoms a uma poltica nacional, como aconteceu com o rock latino

    (MARTN-BARBERO, 2004), que se consolidou de tal forma como um movimento,

    que gerou um canal para sua expresso, a MTV Latino. Referncias

    ANG, Ien. Watching Dallas: soap opera and the melodramatic imagination. London and New York: Routledge, 1985.

    BERCIANO, Rosa lvarez. La comedia enlatada: de Lucille Ball a los Simpsons. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999. BOSCOV, Isabela. Sries que so Locomotivas. Revista Veja, ed. 1947, ano 39, no 10. 15 de maro de 2006. 31 O Jardineiro Fiel, por exemplo, uma co-produo Inglaterra, Alemanha e Qunia dirigida por um brasileiro, Fernando Meirelles.

  • BRITO, Rosaly de Seixas. Mdia, construo do imaginrio moderno e identidade no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CINCIAS DA COMUNICAO, 28., 2005, Rio de Janeiro/RJ. Anais eletrnicos. So Paulo: Intercom, 2005. Acessado em: 29 mar. 2006. Disponvel em: http://reposcom.portcom.intercom.org.br CANCLINI, Nstor Garca. Diferentes, desiguales y desconectados. Mapas de la interculturalidad. Barcelona: Gedisa Editorial, 2004. CASEY, Bernadette et al. Television Studies: The Key Concepts. London/New York, 2002. FLAUSINO, Mrcia Coelho. Mulher em pedaos: o seriado como gnero televisivo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CINCIAS DA COMUNICAO, 24., Campo Grande/MS, 2001. Anais eletrnicos. So Paulo: Intercom, 2001. Acessado em 28 mar. 2006. Disponvel em http://reposcom.portcom.intercom.org.br HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferena: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrpolis: Editora Vozes, 2000. KELLNER, Douglas. A Cultura da Mdia Estudos Culturais: identidade e poltica entre o moderno e o ps-moderno. Bauru: EDUSC, 2001. MARTN-BARBERO, Jess. Ofcio de Cartgrafo: travessias latino-americanas da comunicao na cultura. So Paulo: Loyola, 2004. REDE GLOBO DE TELEVISO. Dicionrio da TV Globo, vol. 1: Programas de Dramaturgia & Entretenimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. SANTOS, Luciene dos. Os seriados brasileiros, tentativas de apontar o lugar do gnero na produo televisual. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CINCIAS DA INFORMAO, 26., Belo Horizonte/MG, 2003. Anais eletrnicos. So Paulo: Intercom, 2003. Acessado em 28 mar. 2006. Disponvel em http://reposcom.portcom.intercom.org.br SOUZA, Jos Carlos Aronchi de. Gneros e formatos na televiso brasileira. So Paulo: Summus, 2004.