83
A Democracia Renato Janine Ribeiro

A Democracia - Renato Janine Ribeiro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

otimo livro sobre democracia

Citation preview

  • A Democracia Renato Janine Ribeiro

  • 2001 Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. 200/ Renato Janine Ribeiro

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem permisso expressa e por escrito da Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A.

    Editor Arthur Nestrovski

    Assistncia editorial Paulo Nascimento Verano

    Capa e projeto grfico Silvia Ribeiro

    Coordenao de produo grfica Mareio Soares

    Assistncia de produo grfica Soraia Pauli Scarpa

    Reviso Mrio Vilela

    Editorao eletrnica Picture studio & fotolito

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil]

    Ribeiro, Renato Janine, 1949-A democracia / Renato Janine Ribeiro. - 2 ed. - So Paulo :

    Publifolha, 2005. - (Folha Explica)

    Bibliografia. ISBN 85-7402-292-6

    1. Democracia I. Ttulo. II. Srie.

    01-2909 CDD-321.8

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Democracia : Cincia poltica 321-8

    4 reimpresso

    PUBLIFOLHA Diviso de Publicaes do Grupo Folha

    Al. Baro de Limeira, 401, 6o andar, CEP 01202-001, So Paulo, SP Te l . : (11 ) 3224-2186/2187/2197 www.publifolha.com.br

  • SUMARIO 1. A DEMOCRACIA DIRETA..............................................7

    2. A DEMOCRACIA MODERNA (1): OS DIREITOS HUMANOS.................................13

    3. A DEMOCRACIA MODERNA (2): A REPRESENTAO............................................27

    4. O SOCIAL E O DESEJO..........................................37

    5. ALGUNS PROBLEMAS DA DEMOCRACIA..................53

    6. AINDA PODE HAVER DEMOCRACIA?........................67

    7. A REPBLICA NECESSRIA...................................... 73

    BIBLIOGRAFIA E SITES ..................................................79

  • palavra democracia v e m do g r e g o (demos, p o v o ; kratos, p o d e r ) e significa p o d e r do p o v o . N o q u e r d ize r g o v e r n o p e l o povo . P o d e estar n o g o v e r n o u m a s pessoa, o u

    um g r u p o , e a i n d a t r a t a r - se de u m a d e m o c r a c i a desde q u e o poder, em l t i m a anlise, seja do p o v o . O fundamenta l q u e o p o v o escolha o i n d i v d u o ou g r u p o q u e gove rna , e q u e controle c o m o ele governa .

    O g r a n d e e x e m p l o d e d e m o c r a c i a , n o m u n d o an t igo , A t e n a s , e s p e c i a l m e n t e no scu lo 5 a . C . A Grc ia n o era um pas un i f i cado , e p o r t a n t o Atenas n o era sua capital , o q u e se t o r n o u no scu lo 19 . O m u n d o g rego , o u h e l n i c o , s e c o m p u n h a d e cidades i n d e p e n d e n t e s .

    I n i c i a l m e n t e e r a m g o v e r n a d a s p o r reis assim l e m o s e m H o m e r o . M a s c o m o t e m p o o c o r r e u m a m u -dana significativa. O p o d e r , q u e f icava d e n t r o dos p a -lcios, o c u l t o aos sd i tos , passa p raa pb l ica , vai para t msson,"o m e i o " , o c e n t r o da a g l o m e r a o u rbana .

  • A Democracia Direta 9

    A d q u i r e t r ansparnc ia , v i s ib i l idade . A s s i m c o m e a a d e m o c r a c i a : o p o d e r , de m i s t e r i o s o , se t o r n a p b l i c o , c o m o m o s t r a V e r n a n t . 1 E m A t e n a s s e c o n c e n t r a esse n o v o m o d o de p ra t i ca r e p e n s a r o p o d e r .

    Os gregos d is t inguiam trs reg imes pol t icos: m o -narquia, aristocracia e democrac ia . A diferena era o n -m e r o de pessoas exe rcendo o p o d e r u m , alguns ou mui tos . M o n a r q u i a o p o d e r (no caso, arquia) de um s (mono). Aristocracia o p o d e r dos me lho res , os aristoi, excelentes. So q u e m t e m aret, a excelncia do her i . Assim, a democrac ia se dis t ingue n o apenas do p o d e r de um s, mas t a m b m do p o d e r dos me lhores , q u e se des -t acam p o r sua qual idade. A democrac i a o r e g i m e do povo c o m u m , em q u e todos so iguais. N o p o r q u e um se m o s t r o u mais corajoso na guer ra , mais capaz na cincia ou na arte, q u e ter direi to a m a n d a r nos outros .

    A PRAA DO POVO

    E m A t e n a s e n a s o u t r a s c i d a d e s d e m o c r t i c a s ( n o e r a t o d a a Grc ia : Espar ta era m o n r q u i c a ) , o p o v o exercia o p o d e r , d i r e t a m e n t e , n a p r a a p b l i c a . N o havia assembl ia r ep resen ta t iva : t o d o s o s h o m e n s adu l to s p o d i a m t o m a r p a r t e nas dec i ses . A lei a t en i ense , no scu lo 4 a . C , f i x a 4 0 r e u n i e s o rd in r i a s p o r a n o n a gora, q u e a palavra g r e g a pa ra p raa de dec ises . Isso significa u m a assemblia a cada n o v e dias.

    Essa a maior diferena entre a democrac ia antiga e a m o d e r n a . H o j e e legemos q u e m decidir p o r ns. M e s -mo em cidades pequenas , delegamos p o r vrios anos as

    1 J ean -P ie r r eVernan t , As Origens do Pensamento Grego (So Paulo : Ditei , 1972).

  • decises ao prefeito e aos vereadores. Os gregos, no. Eles i am praa discutir as questes que interessavam a todos.

    O pressupos to da d e m o c r a c i a direta era a l iberda-de. Os gregos se o r g u l h a v a m de ser livres. Isso os dis t in-guia de seus v i z inhos de outras l nguas e culturas. Ser g rego ou h e l n i c o n o era u m a dist ino racial, mas l ingstica e cul tural . Q u e m falasse g rego era grego , n o i m p o r t a n d o o sangue q u e corresse em suas veias. Os gregos consideravam os outros povos, tais c o m o os persas, inferiores, mas ao c o n t r r i o dos racistas m o d e r n o s -n o p o r u m a diferena gen t ica , e s im p o r n o pra t ica-r e m a l iberdade . (Ter a l ibe rdade significava pratic-la.) S eles, q u e d e c i d i a m suas ques tes , e r a m livres.

    D para e n t e n d e r p o r q u e ainda ho je q u e m fala e m d e m o c r a c i a evoca c o m u m suspiro a c idade d e A t e -nas? Sua assemblia r e u n i a p o u c o s milhares de h o m e n s , e sua d e m o c r a c i a d u r o u apenas u n s sculos. R e g i m e s democr t i cos s v o l t a r a m cena em f ins do sculo 18, mais de 2 mi l anos depo is . E , no en tan to , pa rece q u e nada jamais se igualar a Atenas .

    O SORTEIO

    T a l v e z o m a i s e s t r a n h o , n a d e m o c r a c i a a n t i g a , f o s s e q u e ne la m a l havia e le io. Na ve rdade , n o havia car-gos f ixos , ou eles e r a m p o u c o s . H a v i a encargos. U m a assemblia t o m a v a u m a dec iso ; era p rec i so aplic-la; e n t o s e i n c u m b i a disso u m g r u p o d e pessoas. Mas estas n o e r a m eleitas, e s im sor teadas .

    P o r qu? A exp l i cao s imples . A e le io cria d is t ines . S e esco lho , p e l o v o t o , q u e m vai o c u p a r u m cargo p e r m a n e n t e o u exe rce r u m e n c a r g o t e m p o -r r io , m i n h a esco lha se p a u t a pela qua l idade . P r o c u -

  • A Democracia Direta u

    ro e l ege r q u e m a c h o m e l h o r . M a s o luga r do m e l h o r na ar is tocracia! A d e m o c r a c i a um r e g i m e de iguais . P o r t a n t o , t o d o s p o d e m e x e r c e r q u a l q u e r funo .

    Um e x e m p l o o j r i . A f r eqnc i a gora g r a n d e , c h e g a n d o a a lguns mi lha re s , n u m a A t e n a s q u e t e m de 30 m i l a 40 m i l c idados . M a s os p r inc ipa i s j u l g a m e n t o s so a t r ibu dos a um t r i buna l especial, cujos m e m b r o s so s o r t e a d o s , o q u e h o j e c h a m a m o s j r i . T e m o s u m caso c l eb re , h i s t r i c o : o j u l g a m e n t o d e Scra tes . O f i l s o f o j u l g a d o , e m 3 9 9 a . C , p o r 5 0 1 pessoas. C o m o 2 8 1 o c o n d e n a m e 2 2 0 v o t a m pe la absolvio, ele s e n t e n c i a d o m o r t e .

    A m a i o r e x c e o r eg ra da e sco lha p o r so r t e io bvia : os chefes mi l i t a res . D e l e s , e de p o u c o s o u t r o s , se ex ige u m a c o m p e t n c i a t c n i c a q u e n o s e r e q u e r nas tarefas co t id ianas . N e s t a s um n ve l de despe rd c io t o l e r a d o , p o r q u e m a i s i m p o r t a n t e a i g u a l d a d e (isonomia) en t r e os c idados do q u e a pe r fe io na e x e -c u o das tarefas.

    AS FESTAS

    M a s o q u e e s s e s c i d a d o s m a i s d e c i d e m ? A s o c i e d a d e g rega n o c o n h e c e a c o m p l e x i d a d e d a e c o n o m i a m o -d e r n a . Os c i d a d o s t r a t a m da g u e r r a e da paz , de as -s u n t o s p o l t i c o s , m a s p a r t e r a z o v e l das d iscusses p a r e c e g i ra r em t o r n o da r e l i g i o e das festas, t a m -b m re l ig iosas .

    I m a g i n e m o s o q u e u m a polis grega. U m a assem-blia a cada nove dias, sim, mas n o para tratar de assun-tos c o m o os de g r mio estudantil (que o rgo m o d e r n o mais p r x i m o de sua mil i tncia) . E s im, c o m a lguma fre-qncia , para discutir festas e dividir as tarefas nelas.

  • N o fora de p rops i to imaginar q u e o R i o de Janeiro, Salvador, o R e c i f e e O l i n d a da r i am excelentes cidades-estado, se decidissem adotar a democrac ia direta. Fa r iam constantes festas ao deus D i o n i s o (o Baco dos romanos) e, volta disso, o rganizar iam a vida social. E b o m pensar n u m a comparao nada acadmica c o m o esta, p o r q u e a t endnc i a d o m i n a n t e , falando da d e m o -cracia grega, acen tuar sua ser iedade c o m o se fosse um r eg ime feito para tratar das mesmas questes que nos o c u p a m . N o o caso. A poltica era provavelmente mais divertida, at p o r q u e era b e m p r x i m a da vida cotidiana.

    E p o u c o s fo ram aqueles, c o m o Plato e outros cr -t icos da democrac ia , q u e ques t iona ram a compe tnc ia do povo simples para t o m a r as decises polticas, alegando que para governar seria preciso ter cincia. O r a , um p r i n -cpio da democrac ia grega e de t o d o espri to d e m o c r -t ico que , se h ofcios em q u e o fundamenta l a capacitao tcnica, a cidadania n o est ent re eles. Aqu i , na deciso do b e m c o m u m , na aplicao dos valores, t o -dos so iguais n o h f i lsofo-rei n e m tecnocrata .

    OS EXCLUDOS

    E m m e i o a o s e l o g i o s d o s m o d e r n o s d e m o c r a c i a a ten iense , u m a cr t ica r e p o n t a : ela negava pa r t i c ipao na gora s m u l h e r e s , aos m e n o r e s de idade , aos escra-vos e es t rangei ros . H o j e a c e i t a m o s a exc luso dos m e -nores, mas no a das outras categorias. O trabalho manual , considerado degradante , cabia sobre tudo a escravos. Na condio de estrangeiro ( em grego , mateco), incluam-se todos os no-a ten ienses e m e s m o seus descendentes : mui tas pessoas nascidas em Atenas , mas de ancestrais estrangeiros, jamais t e r i am a cidadania ateniense.

  • 2. A DEMOCRACIA MODERNA (1):

    OS DIREITOS HUMANOS

  • ma i m a g e m que nos v e m da Antigidade a da nau do Estado. A polis, na Grcia, ou a civitas, em R o m a , se compara a um navio. O governante o piloto. Mas Paul Veyne, o m e -

    lhor historiador atual da R o m a antiga, l embra que a nau do Estado, antiga, n o leva passageiros. Ela t e m piloto e tripulantes: n i n g u m embarca pagando s a passagem. 2

    N s , m o d e r n o s , s o m o s passageiros d a n a u d o Es tado . P a g a m o s i m p o s t o s , o b e d e c e m o s s leis, c o m o b o n s cl ientes q u e q u i t a m o va lor c o b r a d o - mas n o nos c h a m e m para m e x e r no cordame, ajeitar avela! Se nos p e d e m isso, p r o t e s t a m o s . E d i z e m o s q u e o Es t ado n o c u m p r e sua tarefa ( p o r q u e n o ac red i t amos , n e m nas d e m o c r a c i a s , q u e o E s t a d o s o m o s ns ) .

    Falaremos depois do desinteresse pela poltica. Mas, p o r ora, s u m a nfase: a d e m o c r a c i a ant iga vista, g e -

    2 Paul Veyne, " O s Gregos C o n h e c e r a m a Democrac ia?" . E m : Digenes, n. 6 , 1 9 8 4 .

  • r a l m e n t e , c o m o s u p e r i o r m o d e r n a . Inve j amos o s a tenienses . P e r d e m o s m u i t o d a d i m e n s o pbl ica . A c a -b o u a d e m o c r a c i a direta, c o m e o u a representao. M a s e n t r e m o s n a d e m o c r a c i a m o d e r n a p e l o q u e ela t e m d e m e l h o r . P o r q u e ela n o u m a d e g r a d a o da antiga: traz u m a n o v i d a d e i m p o r t a n t e os direi tos h u m a n o s .

    INGLATERRA, 1689

    O s c u l o 1 7 m a r c a d o , n a I n g l a t e r r a , p o r i n t e n s o s confl i tos e n t r e o re i e o P a r l a m e n t o . Q u a t r o reis da dinast ia S t u a r t t e n t a m a f i rmar seu p o d e r c o n t r a o s d e p u t a d o s q u e o p o v o e lege pa ra a C m a r a dos C o -m u n s . Isso resul tar em duas r e v o l u e s . A p r i m e i r a , q u e vai de 1640 a 1 6 4 9 , c u l n i n a na e x e c u o de Car los I e na p r o c l a m a o da r epb l i ca , q u e d u r a r at 1660 . A s e g u n d a , r p ida e e x p e d i t a , em 1 6 8 8 , expulsa J a i m e II , c o r o a sua filha e seu g e n r o , M a r i a e G u i l h e r m e , c o m o reis c o n s t i t u c i o n a i s e a d o t a o Bill of Rights, q u e t r a d u z i m o s c o m o D e c l a r a o d e D i r e i t o s .

    Nesses conf l i tos se e n f r e n t a m duas idias fortes, a do p o d e r do rei , q u e n o q u e r c o n h e c e r l imi tes , e a dos an t igos d i re i tos do p o v o ingls di re i tos to a n t i -gos q u e se r i am an te r io res invaso n o r m a n d a de 1066. Do p o n t o de vista f i losf ico , a causa do rei b o a . J a i -me I q u e r codif icar a legislao, subs t i t u indo um cipoal d e l e i s , j u l g a m e n t o s , p r e c e d e n t e s . M a s codif ic- la q u e r d izer q u e o rei se t o r n a s u p r e m o legis lador , s e m l i m i -tes a seu p o d e r e isso o P a r l a m e n t o n o acei ta .

    O an t agon i s t a dos p ro j e to s r g io s n o s o P a r -l a m e n t o . E t a m b m o sis tema jud ic i a l . A Ingla ter ra t em , c o m o d i re i to , a common law, q u e t r a d u z i m o s p o r d i r e i -t o c o n s u e t u d i n r i o o u c o s t u m e i r o . E n q u a n t o n a E u -

  • ropa c o n t i n e n t a l se i m p s a m x i m a r o m a n a Quod principi placuit habet vigorem legis ( " A q u i l o q u e agrada ao p r n c i p e t e m fora de l e i " ) , na Ing la te r ra a idia for te a dos c o s t u m e s e t r ad ies . O pas assim parece estar a t rasado, p o r q u e o c o n t i n e n t e j r o m p e u c o m isso no f ina l da I d a d e M d i a e , f o r t a l e c e n d o o m o n a r -ca c o m o legislador, r ac iona l i zou o sistema ju r d i co . Mas e x a t a m e n t e esse a p a r e n t e atraso q u e servir soc i e -dade inglesa pa ra enf ren ta r o rei .

    O g r a n d e t e r i c o c o n t r a as ambies da realeza um ju i z , Sir E d w a r d C o k e , q u e cita p receden tes a to r to e a direi to. A lguns s o a m fantasiosos. E le diz q u e a ilha se c h a m o u B r e t a n h a p o r t e r sido p o v o a d a pe lo r o m a n o B r u t u s e q u e a p r i m e i r a l ngua ali falada foi o grego. N o hesita em citar j u lgados do rei Alfredo, de 800 anos antes , s e m te r n e n h u m a prova deles. C h r i s t o p h e r Hill , o m e l h o r h i s to r i ado r atual da R e v o l u o Inglesa, c h a m o u - o de fabr icante de m i t o s . 3 M a s seus mi tos t m u m a lgica: af i rmar a d ign idade da pol t ica inglesa em face dos proje tos desp t icos dos reis.

    O Pa r l amen to enfrenta os Stuar t a legando os direi-tos do free born Englishman, do ingls q u e nasceu livre. E o pr inc p io , q u e ter g rande impor tnc ia , do direito na tu -ral. " N a t u r a l " v e m do la t im n a t u s ,"nascido". Direi tos n a -turais so os que t e n h o s p o r q u e nasci, sem depende r da von tade de n i n g u m . Os direitos assim p r o t e g e m o cida-do cont ra o rei, mas so direitos s do ingls. Os ingleses no c r e m q u e outras naes t a m b m sejam livres.

    A m o n a r q u i a p e r d e a g u e r r a civil dos anos 1640 , mas a r epb l i ca n o se conso l ida , e em 1 6 6 0 v o l t a m os S tuar t . Eles c o n t i n u a m dese j ando u m p o d e r d e s p t i -

    3 C h r i s t o p h e r Hil l , Origens Intelectuais da Revoluo Inglesa (So Paulo: Mart ins Fon-tes, 1992).

  • co , e J a i m e I I d e p o s t o em 1 6 8 8 . C o m o dessa vez as classes d o m i n a n t e s n o q u e r e m u m a l o n g a g u e r r a c i -vil , q u e levaria rad ica l izao p o p u l a r , e x p u l s a m o rei pela p r o n t a ao d e seu p r p r i o g e n r o , G u i l h e r m e , p r n c i p e d e O r a n g e , g o v e r n a n t e dos Pases Ba ixos .

    N o s e cog i t a ins t i tu i r u m a d e m o c r a c i a . C o n t i -n u a a m o n a r q u i a , m a s c o n s t i t u c i o n a l . A d e m o c r a c i a , alis, s c o m e a r a ser i m p l a n t a d a , a i n d a assim c o m idas e v indas , d e p o i s da R e v o l u o A m e r i c a n a (1776) e da Francesa (1789) e apenas de ixar de t e r c o n o t a o negat iva aps a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l e a d e r r o t a d o nazifascismo, e m 1 9 4 5 . A R e v o l u o G lo r io sa d e 1 6 8 8 n o , e m seu t e m p o , u m m a r c o d a d e m o c r a c i a . S a l o n g o p r a z o ela se t o r n a r um de seus p r inc ipa i s p o n t o s d e pa r t ida .

    Dois comentr ios . Pr imei ro : c o m certa fantasia, daria para dizer q u e J a i m e II , ao fugir de Londres , r e n u n c i o u coroa e que , p o r t a n t o , sua filha M a r i a deve suceder- lhe . Os monarquis tas mais r igorosos q u e r e m essa soluo. G u i l h e r m e deixa claro, p o r m , q u e n o aceita ser m e r o pr nc ipe consor te : q u e r a coroa e t e m o apo io da esposa.

    M a s n o h base legal , he red i t r i a , para ele ser rei . O n i c o m o d o de c h e g a r a isso ser ele se t o r n a r rei , mas n o p o r h e r a n a , e s im p o r v o t a o do Par la -m e n t o . C u r i o s a m e n t e , a s a m b i e s pessoais d e G u i -l h e r m e , m o n a r c a a u t o r i t r i o , d e s t r o e m pe la base a m o n a r q u i a abso lu ta o u d e d i r e i to d iv ino . O s r e p r e -sen tan tes do p o v o o e s c o l h e m re i . E o q u e o Par la -m e n t o d, ele t a m b m p o d e ret irar .

    O s e g u n d o c o m e n t r i o t rata dos d i re i tos h u m a -nos , a inda e n t e n d i d o s c o m o di re i tos do p o v o ingls e n o da h u m a n i d a d e . A lei q u e confe re a c o r o a a G u i -l h e r m e e M a r i a es t ipula p r i n c p i o s q u e a m o n a r q u i a ter de respeitar . So d i re i tos do c i d a d o c o n t r a a a r -b i t r a r i edade do rei . N o s o t t u lo do m o n a r c a passa

  • a te r o r i g e m p o p u l a r , c o m o t a m b m se declara q u e ele n o p o d e c o b r a r i m p o s t o s s e m lei e q u e deve r e u -n i r o P a r l a m e n t o c o m r e g u l a r i d a d e e respei tar as s e n -tenas jud ic i a i s e as leis v igen te s .

    Ass im, os d i re i tos h u m a n o s n o s u r g e m c o m a d e m o c r a c i a m o d e r n a , no scu lo 18 ou 19 , mas antes de la , j no 17 , para l imi ta rem o poder monrquico . So eles q u e c o m e a m a c o n v e r t e r o p o d e r abso lu to dos reis e m p o d e r c o n s t i t u c i o n a l . M a s o p o d e r e x e c u -t ivo c o n t i n u a c o m o m o n a r c a . O q u e o rei p e r d e o p l e n o c o n t r o l e do p o d e r j u d i c i r i o e do legislativo, e m b o r a c o n t i n u e n o m e a n d o o s j u i ze s (s n o p o d e mais d e m i t i - l o s a seu arb t r io) e possa vetar leis (o que , depo i s d e 1 7 0 7 , n e n h u m deles fez). A o l o n g o d o s -cu lo 18 , s im, os reis ingleses , agora b r i t n i cos , p o r q u e a Escc ia se u n i u Ing la te r ra , t e r o um p r i m e i r o -min i s t ro , q u e ser o chefe do p a r t i d o m a j o r i t r i o na C m a r a dos C o m u n s . M a s a inda n o d e m o c r a c i a u m r e g i m e n o qua l o s ar is tocratas , q u e f o r m a m a C -m a r a dos Lordes , e o re i p r e s e r v a m m u i t a inf luncia .

    F i n a l m e n t e , o Bill of Rights declara ilegais vr ios atos d o re i d e p o s t o . N e s s e sen t ido , u m d o c u m e n t o l igado e x p e r i n c i a i m e d i a t a mais q u e a u m a t eo r i a p r e v i a m e n t e e l abo rada de di re i tos h u m a n o s . A p r i -m e i r a e n u n c i a o desses d i re i tos vir, assim, de um ajuste de con tas c o m a c o n j u n t u r a .

    Ma i s ta rde s e buscar u m a lg ica n o s direi tos h u -m a n o s , m a s e m p a r t e essa c o e r n c i a i n t e r n a ser c o n s t r u d a a posteriori e n o se e n c o n t r a na D e c l a r a -o de 1 6 8 9 , t e x t o p r t i c o q u e a lmeja in tervi r , r ap ida -m e n t e , n a soc iedade inglesa. E m 1776, q u a n d o Jefferson red ig i r a D e c l a r a o de I n d e p e n d n c i a dos Estados U n i d o s , a m e s m a l io aparecer : l idar c o m o q u e est a c o n t e c e n d o , de p re fe rnc ia a aplicar m e c a n i c a m e n t e u m a filosofia p r o n t a a u m a rea l idade nova .

  • FRANA, 1789

    E n t r e 1 7 8 9 e 1 7 9 1 , s u r g e m m a i s d u a s i m p o r t a n t e s d e -claraes de direi tos (esse t r i o fecha o q u e h o u v e de mais significativo na rea, at em 1 9 4 8 a Assemblia Gera l das N a e s U n i d a s ter ap rovado a Dec la rao Universa l dos D i re i t o s do H o m e m ) . U m a a francesa, vo tada em 1789 , um m s aps a q u e d a da Bastilha. A ou t r a a dos r e c m - f u n d a d o s Es tados U n i d o s da A m -rica, ratificada e m d e z e m b r o d e 1 7 9 1 .

    Mas, c o m o nosso t ema n o so os direitos h u m a n o s e s im a democracia , n o examinaremos cada u m a delas. O impor tan te que a declarao de 1789 a pr imeira a tratar do ser h u m a n o em geral, e n o de um povo s.Tem alcance mundial . Alis, o t tulo "dec larao" da francesa ( e ser r e tomado em 1948, no d o c u m e n t o da O N U ) .

    U m a assembl ia decreta p e l o v o t o ; n o r m a l m e n t e , a le i d e v e sua e f icc ia a essa a p r o v a o do r g o legislativo. M a s , q u a n d o a assembl ia declara, ela r e c o -n h e c e u m a lei i n d e p e n d e n t e d e sua v o n t a d e . N e s s e caso, o v o t o r e c o n h e c i m e n t o , n o causa, da lei . N e -n h u m a assemblia d d i re i tos h u m a n o s . T u d o o q u e ela p o d e fazer d i z e r q u e eles e x i s t e m , s e n d o ma io res q u e ela e q u e a p r p r i a po l t i ca .

    Se os d i re i tos de 1 7 8 9 so universais, ao dec la r -los a F rana se c o l o c a no d iapaso da h u m a n i d a d e . Isso a p o n t a u m a d i fe rena da po l t i ca a n g l o - s a x n i c a para a francesa ou e u r o p i a c o n t i n e n t a l .

    A Inglaterra, no sculo 17, e suas colnias n o r t e -americanas , c e m anos depois , c o n t a m c o m longa e x p e -r inc ia de a u t o g o v e r n o . D e s d e 1 2 6 5 , os reis ingleses r e n e m Par lamentos . Assim, o p o v o ingls, ou ao m e n o s sua classe md ia , t e m c o n h e c i m e n t o pr t ico do que fazer leis, adminis trar cidades e aldeias, ju lga r suspeitos e

  • querelas .E as colnias da A m r i c a do N o r t e e legem suas assemblias, enf rentando os governadores que o rei n o -meia . A R e v o l u o Inglesa e a A m e r i c a n a so a reao de h o m e n s versados n o s n e g c i o s pb l icos aos esforos d a C o r o a p o r l i q u i d a r seus d i re i tos . O s r e v o l u c i o n -r ios de l ngua inglesa s a b e m lidar c o m a coisa pblica.

    J a Frana , ao c o m e a r a revoluo, carece de u m a classe i lustrada capaz de t o m a r em m o s os assuntos pbl icos . Q u e m se o c u p a deles gravita volta do rei. H t i m o s minis t ros e funcionr ios , mas n o existe nada c o m o a vasta massa crt ica inglesa, q u e nas aldeias fo rma a base pol t ica para os d e p u t a d o s q u e v o t a m as leis, para os ju izes q u e as ap l i cam e para a adminis t rao local.

    O r a , a F r a n a ter u m c o n t i n g e n t e d e i n t e l e c -tuais afastados do p o d e r , v r ios de p r i m e i r a l inha - os Philosophes e R o u s s e a u 4 e m u i t o s de s e g u n d a ou te rce i ra ca t egor i a . U n s g e r a m e o u t r o s d i f u n d e m as novas idias sob re o h o m e m e a soc iedade . E n q u a n t o na Ing la t e r ra a a m p l a pa r t i c ipao pol t ica d e x p e -r inc ia classe m d i a , q u e talvez p o r isso m e s m o n o se intelectual iza t an to q u a n t o a francesa, na Frana o a b -so lu t i smo e a d e c o r r e n t e falta de par t ic ipao polt ica l evam u m a ca tegor ia m d i a da soc iedade a n o ver sada, fora da teor izao , para a v ida social e polt ica.

    A Ing la te r ra t e r u m a po l t i ca pr t ica , a Frana , u m a t e r i ca . Pe lo m e n o s assim q u e analistas c o m o E d m u n d B u r k e , a t a c a n d o a R e v o l u o Francesa e m

    4 Philosophes o n o m e dado aos principais pensadores iluministas franceses Diderot,

    Voltaire, D 'Holbach , D'AJembert e outros - que, especialmente em torno da Enciclopdia, contr iburam decisivamente para a ilustrao dos espritos e para o fim do absolutismo,

    no sculo 18. J Rousseau, que inicialmente fora companheiro dos Philosophes, rompeu com eles, por discordar do papel que atribuam razo (Rousseau dava igual ou maior

    importncia aos sentimentos) e da crena deles no progresso (Rousseau pensava que as cincias e as tcnicas modernas no haviam melhorado a condio humana).

  • seus p r i m r d i o s , o u Tocquev i l l e , e s t u d a n d o - a n a d -cada de 1 8 4 0 , d i s t i n g u e m as duas cu l tu ras pol t icas , a n g l o - s a x n i c a e f rancesa . 5

    P o d e m o s p re fe r i r u m a c u l t u r a o u o u t r a . U l t i m a -m e n t e , c o m a d e r r o t a do c o m u n i s m o q u e de c e r t o m o d o r e t o m a v a o m o d e l o " c o n t i n e n t a l " , d e u m a t e o -ria p u r a apl icada rea l idade , v a l o r i z o u - s e m u i t o o m o d e l o a n g l o - s a x n i c o . E l e m e n o s o t imis ta , p r o -m e t e m e n o s , mas c o n t a c o m a v a n t a g e m d e real izar-se m e l h o r ( d i z e m seus defensores ) .

    Em compensao, a m e n s a g e m da R e v o l u o Fran-cesa teve m a i o r difuso m u n d o afora. A R e v o l u o I n -glesa e a A m e r i c a n a foram m e n o s exportveis a no ser em seus pr imei ros t e m p o s e, sobre tudo , para a Frana. J a Francesa se global izou me lhor . C e r t a m e n t e deve isso a s e basear e m ideais, e m teorias, q u e l evam p o u c o e m conta a exper inc ia his tr ica de cada pas. A histria pas-sada e presente vista c o m o s i n n i m o de injustia; j a revoluo p r o m e t e um futuro jus to , z e r ando o passado. Po r isso, a histria n o serve de m e d i d a . O q u e conta a proposta , a u topia , o p l ano de m u d a r . Frases c o m o a de M a r x , ence r r ando suas Teses Sobre Feuerbach ("os filsofos in te rpre ta ram o m u n d o de vrias manei ras c h e g o u a hora de m u d - l o " ) , v o nessa l inha . 6

    J u s t a m e n t e o q u e d fora aos a n g l o - s a x e s , sua e x p e r i n c i a h i s t r i ca , o q u e a l i nha francesa c o n t e s -ta. A revo luo no est i lo francs ma i s radical q u e no m o d e l o ingls o u n o r t e - a m e r i c a n o .

    Mas os direitos h u m a n o s esto nas trs revolues.

    5 E d n i u n d Burke , Reflexes Sobre a Revoluo eru Frana (Braslia: Editora da U n B , 1982), e Alexis de Tocquevi l le , O Antigo Regime e a Revoluo (Braslia: Edi tora da U n B , 1979). 6 Karl Marx , Teses Sobre Feuerbach. Trata-se de opscu lo ge ra lmen te edi tado j u n t o c o m A Ideologia Alem - en t re out ras edies , ver a da M o r a e s (So Paulo, 1984).

  • LIMITAR O PODER

    A ques t o c ruc i a l dos d i r e i t o s humanos l im i ta r o po -der do governante. Eles c o n s i d e r a m o p o d e r do n g u l o d o sd i to , d o c idado . " S d i t o " v e m d o l a t im subditus e q u e r d ize r q u e m est s u b m e t i d o , sub jugado , s u b o r -d i n a d o a o q u e o u t r o m a n d a . P o r isso falamos e m s -d i t o s de m o n a r q u i a s a b s o l u t a s . J o c i d a d o o e l e m e n t o a t ivo da c idade , da civitas: ele t o m a pa r t e na deciso sobre a coisa pb l i ca .

    O sdito subordinado, o cidado ativo. Ora , os direitos h u m a n o s consideram o pode r do ngulo dos g o -vernados, dos de baixo. E p r o t e g e m essas pessoas dos ca -pr ichos e de smandos de q u e m est em cima, no poder . E n t e n d e - s e q u e os direitos h u m a n o s , e m b o r a acabem sendo um dos grandes traos da democrac ia m o d e r n a , surjam em regimes no -democr t i cos : seu propsi to l imitar o p o d e r do rei, i m p e d i - l o de ser absoluto. Eles expressam a a t i tude de q u e m n o cidado, p o r m quer reduzir ao m n i m o sua sujeio, sua cond io de sdito.

    Mas , se l imitar o p o d e r do rei fundamental para reduzir o carter au tor i t r io dos pr imei ros regimes po l -ticos m o d e r n o s , c o m isso mudar , depois, o sentido do q u e possa ser a democrac ia . N o a m e s m a coisa u m a pessoa con te r o p o d e r do rei, p ro t egendo- se de seu arb-tr io, e con t e r o p o d e r do p r p r i o povo, do demos. E, no entanto , isso vai acontecer . Para ns , m o d e r n o s , a d e m o -cracia n o s a deciso q u e o demos t oma , o resultado das votaes populares . N e m toda deciso da maior ia democr t ica . N o o ser, se violar os direitos h u m a n o s .

    H di re i tos h u m a n o s q u e so inal ienveis , q u e n o p o d e m ser abo l idos . Alis, n o s l t i m o s anos , cada v e z mais C o n s t i t u i e s d e c l a r a m c e r t o s p r i n c p i o s c o m o clusulas p t reas , cuja a l terao n o p o d e n e m

  • s e q u e r ser e x a m i n a d a . N a s C o n s t i t u i e s r epub l i canas do Brasil , e x c e t o na a tual , p r o i b i u - s e s u g e r i r a vol ta da m o n a r q u i a . N a d e 1 9 8 8 , ca iu essa res t r io , m a s d e t e r -m i n o u - s e q u e n o ser c o n s i d e r a d a n e n h u m a p r o p o s -t a d e a b o l i o d o s d i r e i t o s h u m a n o s . So p t r e o s . P o d e m o s ampl i - lo s , n o d i m i n u - l o s .

    Ass im, u m c o n c e i t o q u e nasce pa ra i m p e d i r q u e o p o d e r dos reis desl ize pa ra o a b s o l u t i s m o ou o d e s -p o t i s m o acaba r e s t r i n g i n d o o p r p r i o p o d e r da as-s e m b l i a p o p u l a r . U m c o n c e i t o q u e s u r g e c o m o res t r io m o n a r q u i a t e r m i n a f a z e n d o p a r t e da es -sncia da d e m o c r a c i a .

    E isso fica claro se l e m b r a m o s a dis t ino q u e B e n -j a m i n C o n s t a n t , p o l t i c o e p e n s a d o r l ibera l q u e n a s -c e u na Sua mas v i v e u na F rana , faz e n t r e l i be rdade ant iga e l i be rdade m o d e r n a . A m o d e r n a " para cada um o d i re i to de n o se s u b m e t e r s e n o s leis, de n o p o d e r ser p reso , n e m d e t i d o , n e m c o n d e n a d o , n e m m a l t r a t a d o d e n e n h u m a m a n e i r a , p e l o efe i to d a v o n -tade arb i t rr ia d e u m o u d e v r io s i n d i v d u o s . E para cada um o d i re i to de d i ze r sua o p i n i o , de e sco lhe r seu t r aba lho e de e x e r c - l o ; de d i spo r de sua p r o p r i e -dade , a t de abusar dela; de i r e v i r s e m necess i ta r de p e r m i s s o e s e m te r q u e pres ta r con ta s de seus m o t i -vos ou de seus passos" . J a an t iga "cons i s t i a em e x e r -cer, colet iva mas d i r e t a m e n t e , vrias par tes da soberania in t e i r a" . D a q u e , " e n t r e os an t igos , o i n d i v d u o , quase s e m p r e s o b e r a n o nas q u e s t e s pbl icas , escravo em t o d o s os seus assuntos p r i v a d o s " . 7

    p o r isso q u e a d e m o c r a c i a an t iga t e m p o r s m -b o l o o p o v o na praa , d e c i d i n d o , e a m o d e r n a t e m p o r

    7 Benjamin Cons tan t , "A Liberdade dos Antigos Comparada dos M o d e r n o s " (1819). E m : Filosofia Poltica, n. 2 , 1 9 8 5 .

  • AS TRS GERAES

    N u m a c o n f e r n c i a d e 1 9 4 9 , o s o c i l o g o b r i t n i c o T . H . Marsha l l d i s t i ngu iu o q u e h o j e c h a m a m o s de trs g e -raes de d i re i tos h u m a n o s . A p r i m e i r a p a r t e do c o n -ce i t o d e c i d a d a n i a , seu e l e m e n t o civil (diz e le) , " c o m p o s t a d o s d i re i tos necessr ios l i be rdade i nd iv i -dua l l i b e r d a d e de ir e vir , l i be rdade de imprensa , p e n s a m e n t o e f, o d i r e i to p r o p r i e d a d e e de c o n -cluir c o n t r a t o s v l idos e o d i r e i to jus t ia . As ins t i tu i -es mais i n t i m a m e n t e associadas c o m os direi tos civis so os t r i buna i s de j u s t i a " .

    " P o r e l e m e n t o poltico se deve e n t e n d e r o d i re i to d e pa r t i c ipa r n o exe rc c io d o p o d e r po l t i co , c o m o m e m b r o d e u m o r g a n i s m o inves t ido d a a u t o r i d a d e pol t ica o u c o m o e l e i t o r dos m e m b r o s d e tal o rgan i s -m o . As ins t i tu ies c o r r e s p o n d e n t e s so o p a r l a m e n t o e os conselhos do g o v e r n o local ."

    "O e l e m e n t o social se refere a t u d o o q u e vai desde o d i re i to a um m n i m o de b e m - e s t a r e c o n m i -co e de s egu rana at o d i r e i to de par t ic ipar , p o r c o m -p le to , no p a t r i m n i o social e levar a v ida de um ser c ivi l izado d e a c o r d o c o m o s p a d r e s v igen te s n a s o -c iedade . A s ins t i tu ies ma i s i n t i m a m e n t e ligadas c o m ele so o s i s tema e d u c a c i o n a l e os servios sociais ." 8

    8 "C idadan ia e Classe Social" , p. 6 3 - 4 . E m : Cidadania, Classe Social e Status (R io de Janei ro: Zahar , 1967). O q u e nos interessa do ar t igo vai da p. 63 87 .

    e s s n c i a o s d i r e i t o s h u m a n o s , q u e c o m e a m , n o t e m -p o d e C o n s t a n t , c o m o d i re i tos d o i n d i v d u o . M a s isso t a m b m m u d a , e eles se e x p a n d e m .

  • Marsha l l c o m e n t a q u e o d i v r c i o m o d e r n o e n -tre os trs e l e m e n t o s da c idadan ia foi tal q u e " poss -vel, s e m dis torcer os fatos h i s t r i cos , a t r i bu i r o p e r o d o d e f o r m a o d a v ida d e cada u m a u m s c u l o d i f e ren -te os di re i tos civis ao s c u l o 1 8 , os po l t i cos ao 19 e os sociais ao 2 0 " .

    Vamos agora o u t r a g r a n d e d i fe rena da d e m o -cracia m o d e r n a em face da an t iga : a r e p r e s e n t a o .

  • 3. A DEMOCRACIA M O D E R N A ( 2 ) : A REPRESENTAO

  • q u i est nossa d i m i n u i o e m face d a d e -m o c r a c i a an t iga : e m vez d a g r a n d e as-s e m b l i a p o p u l a r , r e u n i n d o - s e a cada n o v e dias , t e m o s u m r g o r e p r e s e n t a t i -

    vo , de p o l t i c o s ma i s ou m e n o s prof iss ionais - q u e o p o v o e l ege d e q u a t r o e m q u a t r o a n o s , p o r e x e m p l o . A cada vez q u e n s , bras i le i ros , g a s t a m o s na u r n a a l -g u n s m i n u t o s p a r a o " d e v e r c v i c o " , u m a t en i ense t e r i a i d o g o r a o i t e n t a vezes , ne la p a s s a n d o u m t o -tal de c e n t e n a s de h o r a s .

    Essa d i spos io a d i scu t i r a coisa pb l i ca ho je rara. E n c o n t r a - s e e m es tudan tes , e m sindicalistas, e m mi l i t an tes , e mais n o s j o v e n s q u e n o s mais ve lhos . E f r e q e n t e q u e q u e m v s assemblias se que ixe da falta de in teresse dos d e m a i s . O u v e - s e isso em r e u -n ies de c o n d o m n i o , de a lunos , de professores, de s im-pa t i zan tes de c a n d i d a t o s . A q u e i x a expressa o ideal de q u e todos es t ivessem presen tes . R e c l a m a - s e do des in -teresse dos o u t r o s , m a s se e n t e n d e esse descaso: afinal,

  • a pol t ica de h o j e t o falsa, t o afastada das pessoas, q u e elas p e r d e m o e m p e n h o p o r ela.

    T u d o isso t e m seu grau de razo. Seria t i m o a u -m e n t a r a part ic ipao polt ica. M a s o p rob l ema em q u e m idealiza a presena p lena na assemblia q u e pre tenda restaurar a democrac ia antiga n u m a sociedade q u e j n o t e m base para isso. Os atenienses livres t i n h a m mais lazer. cio era um t e r m o d igno , respeitado, q u e indicava a dis-posio de estudar e pensar . Q u e m escapava da cond io de escravo pod ia dedicar-se ao es tudo ou coisa pblica. Havia u m a d ignidade da poltica, assentada na separao ent re o m u n d o da necessidade e o da l iberdade.

    M a s n s v i v e m o s n o e n g a t e desses dois m u n d o s . O m u n d o da n e c e s s i d a d e o da e c o n o m i a . O m u n d o da l ibe rdade , pa ra os g r e g o s , estava na pol t ica . H o j e , a e c o n o m i a m a n d a m u i t o na po l t i ca . U m a pol t ica q u e i g n o r e a e c o n o m i a se t o r n a r i n g n u a e v. Ela precisar lev- la em c o n t a , a t se q u i s e r m o s r eduz i r as des igualdades sociais. Os p r o b l e m a s sociais so e q u a -c i o n a d o s e m l i n g u a g e m e c o n m i c a .

    P o r isso a l i be rdade g rega n o faz sen t ido para ns . Q u a n d o u m a filsofa c o m o H a n n a h A r e n d t a e v o -ca, nos ta lg icamen te , de ixa no ar o o d o r de algo a d m i r -vel, mas invivel. Isso a c o n d u z , alis, a um impasse. Apa ixonada pela l iberdade grega, ela a v pulsar em c o n -selhos revolucionr ios , em assemblias populares , c o m o na H u n g r i a de 1956 . M a s afirma q u e , se esses coletivos l ida rem c o m o e c o n m i c o ou o social, de ixaro de lado a l iberdade, p e r d e r o o e i x o do q u e deve ser a pol t ica d igna . 9 Pode , p o r m , u m m o d e r n o discut i r pol t ica s em

    * H a n n a h Arend t , Da Revoluo (So Paulo/Bras l ia : t i ca /Ed i to ra da U n B , 1988).

    Essa questo discutida em R . J a n i n e R i b e i r o , A ltima Razo dos Reis (So Paulo: C o m p a n h i a das Letras, 1993) , cap tu lo "His t r i a e Soberan ia" .

  • falar em e c o n o m i a ? P o d e r i a m os rebeldes hngaros t o r -nar seu pas i n d e p e n d e n t e dos soviticos s em r o m p e r o m o d e l o c o m u n i s t a d e e c o n o m i a , q u e mandava investir t u d o na inds t r ia pesada?

    A q u i n o se t ra ta de d i scu t i r A r e n d t s de m o s t r a r a imposs ib i l i dade de r e t o r n a r Grc i a ant iga. V i m o s q u e o g r e g o e o m o d e r n o c h a m a m de l ibe rda -de coisas d i ferentes . O des interesse m o d e r n o pela p o -ltica um dos g r andes fatores q u e imposs ib i l i t am a d e m o c r a c i a d i re ta . A l g u n s d i z e m q u e a d e m o c r a c i a d i r e t a h o j e i m p o s s v e l p o r q u e nossos pases so ma io re s q u e as c idades gregas e fica invivel r e u n i r os c idados na p raa . Esse a r g u m e n t o , e m b o r a co r r e to , superf ic ia l . I g n o r a a d i m e n s o do des in teresse pe la po l t i ca . Se o p r o b l e m a fosse s o do t a m a n h o do t e r r i t r i o , a s pessoas v o t a r i a m a n i m a d a s , p a r t i c i p a -r i a m de o r g a n i z a e s v o l u n t r i a s ; en f im , a po l t i ca es tar ia em n o s s o s a n g u e . N o : ela saiu de nossas veias. E p o r isso nossa d e m o c r a c i a representa t iva .

    A REPRESENTAO

    H vr ios s ign i f icados para a pa lavra representao , na pol t ica, na l i n g u a g e m , no teatro. M a s seu sent ido bsi-co o de t o r n a r p re sen te o ausente . Se n o posso ir a u m a assemblia, fao u m a p rocu rao para u m a m i g o m e representar . Ass im eu , ausente , m e t o r n o presente . So duas idias: a p r i m e i r a a ausncia de fato. Toda t eor ia da representao par te do fato de q u e o c o r r e m mui tas ausncias, mais at , da impossibilidade de u m a p r e -sena p lena . A segunda a c o m p e n s a o da ausncia p o r m e i o de p rocu rado re s ou representantes . Assim, se n o posso retirar m e u talo d e cheques n o banco , p e o

  • a a l g u m q u e o faa e l h e d o u u m a p r o c u r a o , m e s -mo q u e seja a s imples requis io impressa no ta lonr io .

    A id ia de r e p r e s e n t a o poltica v e m , em b o a m e d i d a , da r e p r e s e n t a o judicial. Em P o r t u g a l e na E s p a n h a , o legis la t ivo m e d i e v a l t i n h a o n o m e de C o r -tes, e os d e p u t a d o s se c h a m a v a m p r o c u r a d o r e s . Q u a n -d o v o t a m o s , c o m o s e n o m e s s e m o s p r o c u r a d o r e s , q u e d e c i d i r o p o r n s : e s t a r e m o s v i n c u l a d o s pe los a tos q u e eles p r a t i c a r e m .

    Essa idia do r e p r e s e n t a n t e p o l t i c o c o m o p r o -c u r a d o r n o c o m p l i c a d a . I m a g i n e m o s q u e eu e mais pessoas n o m e e m o s u m p rocu rado r . P o d e ser q u e m n o s r ep resen ta r na assembl ia de c o n d o m n i o . N o d i ferente , e m p r i n c p i o , r ep re sen t a r u m a pessoa, dez ou mi l . O p r o c u r a d o r r e p r e s e n t a q u e m confia ne le .

    M a s , se o r e p r e s e n t a n t e e s c o l h i d o em ele ies , a s coisas m u d a m . E l e sai d e u m p r o c e d i m e n t o d o qual p a r t i c i p o u q u e m v o t o u n e l e e t a m b m c o n t r a ele. S e foi e le i to p o r 3 0 m i l v o t o s c o n t r a 2 0 mi l , p o r q u e d i z e m o s q u e ele r e p r e s e n t a t o d o s , is to , m e s m o os q u e v o t a r a m contra ele? A q u i , n o f u n c i o n a mais o m o d e l o s imples d a p r o c u r a o , q u e n o d c o n t a das e le ies e da r eg ra da m a i o r i a .

    Tal q u e s t o se m o s t r a c ruc ia l na I d a d e M d i a -no caso ingls , ao l o n g o dos scu los 13 e 14 . Se n o era fcil ace i tar a r e p r e s e n t a o , o p r o b l e m a m e s m o foi e n t e n d e r c o m o a l g u m r e p r e s e n t a q u e m v o t o u con t r a . Q u a n d o d e s p o n t a a C m a r a d o s C o m u n s , seu car te r e le t ivo susci ta p r o b l e m a s . A so luo p a r e c e te r v i n d o d o clero, e m especia l dos r g o s co l eg i ados q u e havia n o s m o s t e i r o s e ca tedra is .

    E ra p r e c i s o t o m a r dec i ses . Q u a n d o possvel , e r a m u n n i m e s . M a s se n o o fossem? S u r g i u a idia de q u e a de l i be r ao fora t o m a d a pe la maior et sanior pars, pe la p a r t e m a i o r e ma i s s. E c laro q u e tal fico

  • era c o m p l i c a d a , p o r q u e exigia declarar insana, o u p o u -co saudvel , a p a r t e d e r r o t a d a . E p o d e ser q u e , nessa f rmu la , p o r u m b o m t e m p o a nfase estivesse n o n o adjet ivo maior, m a s no mais s.

    E isso l evan ta u m a dv ida : a p a r t e m a i o r m e s -mo a mais s? Se n o o for, a dec iso vl ida dever ser a da p a r t e s, m e s m o q u e m i n o r i t r i a . Q u e m apurar isso? Faci l i ta-se, assim, o r e c u r s o a u m a instncia e x -t e r n a o b ispo , o rei , um p o d e r o s o , em s u m a q u e avaliar a s an idade das par tes em confl i to . P o r m u i t o t e m p o , os rgos represen ta t ivos se s u b o r d i n a r a m as-s im a u m p o d e r supe r io r , d e u m a pessoa s, q u e c h e -cava a regra da m a i o r i a .

    M a s g r a d u a l m e n t e o a c e n t o passa do carter so para o fato n u m r i c o . E mais fcil con ta r votos do q u e apura r a sade, a inda mais q u a n d o esta se e n t e n d e em sent ido mora l , espiritual, e n o f s ico . H o b b e s . p o r e x e m -plo , o a u t o r do Leviat (1651) , far a deciso p o r votos p e r d e r o s en t ido m o r a l q u e t inha na Idade M d i a e a conver te r e m simples p r o c e d i m e n t o . Vo tamos , c o m o p o d e r a m o s sortear. Ele assimila a regra da maior ia regra de q u a l q u e r j o g o . M a s o resul tado vale, p o r q u e foi acei to c o m o leg t imo .

    Essa m u d a n a decisiva: e l imina a i n t e r m i n v e l discusso d e qua l v o t o t e m a m e l h o r qua l idade . R e -solve no p l a n o quan t i t a t ivo , mais fcil de med i r , u m a p o l m i c a q u e seria inf indvel s e con t inuasse no qua l i -ta t ivo: q u e m pres ta mais? C o m o nivelar o ve lho m o n -ge em o d o r de san t idade e seu co lega n o v o e ima tu ro?

    M a s , pa ra a m o d e r n i d a d e d e m o c r t i c a , isso j n o bastar. Na d e m o c r a c i a o v o t o n o m e r o p r o c e d i -m e n t o ( c o m o o so r t e io ) , e s im a expresso da igua lda -de e l i be rdade . S o m o s livres e , p o r t a n t o , d e c i d i m o s nosso d e s t i n o po l t i co . S o m o s iguais , e p o r isso n e -n h u m v o t o vale ma i s q u e o u t r o .

  • N o foi fcil chegar a isso. O sufrgio universal s o -m e n t e se genera l izou no sculo 20 . Antes , trabalhadores e pobres r a ramen te t i n h a m direi to a voto . As mulheres consegu i ram o v o t o n o faz m u i t o t e m p o no Brasil em 1933 , na Frana em 1945 , na Sua na dcada de 1970. Em alguns pases, o v o t o era desigual. Na Blgica, o d i -p l o m a universi tr io p e r m i t i a votar trs vezes, o do co l e -gial, duas. Na Rssia da Revo luo , o sufrgio do operr io valia o de 27 camponeses . M a s a t endnc i a mund ia l foi es tender o vo to c o m o e m b l e m a da igualdade.

    Isso traz mais um p r o b l e m a . Salta aos o lhos q u e h pessoas q u e v o t a m c o m mais consc i nc i a , ref le t in-do sobre os c a n d i d a t o s e seus p r o g r a m a s , e ou t ras q u e f azem da u r n a u m a lo te r i a . O q u e c h a m a m o s de " b o c a de u r n a " sinal de q u e m u i t a g e n t e c h e g a ao dia d e -cisivo s e m saber q u e m escolher . l e g t i m o igualar os vo tos d e q u e m e s c o l h e u c o n s c i e n t e m e n t e e d e q u e m n o o fez?

    A n ica resposta a essa ques to q u e n o h c o m o d is t ingui r vo to s , a t p o r s e r e m secre tos . O d e s c o n f o r -to an t e essa s i tuao leva a lguns a d e f e n d e r o v o t o facultat ivo, q u e em tese r e d u z i r i a o sufrgio d a d o p o r enfado , s c o n s i d e r a n d o o s depos i t ados c o m a l -g u m a conv ico . N o h c o m o saber se isso resolve o p r o b l e m a . M a s c a b e a n o t a r q u e essa u m a das q u e s -tes q u e s u r g e m c o m o v o t o un iversa l .

    A REPRESENTAO POLTICA

    A s s i m , n a r e p r e s e n t a o p o l t i c a , u n e m - s e d o i s t i p o s de r ep resen tao . O p r i m e i r o t i p o s imples : eu r e p r e -sen to v o c , d e c i d o e m seu n o m e , e m seu lugar. ( E claro q u e n e m s e m p r e expressarei e x a t a m e n t e a s suas

  • idias e, se m e u m a n d a t o for l o n g o e fraca a o p i n i o pb l i ca , p o d e r e i me afastar m u i t o das suas conv ices ; mas pa ra nossa discusso isso n o i m p o r t a , p o r q u e , na h o r a da e le io , v o c c o n c o r d a v a comigo . )

    O s e g u n d o t ipo mais c o m p l e x o : fui e le i to p o r u m c o l g i o e m q u e s e inc lu i voc , mas n o qual vr ios (talvez a t voc) n o v o t a r a m e m m i m . Vo to e m seu n o m e , mas a p o i a n d o m e d i d a s c o m a s quais v o c n o concordar ia . E , no en tan to , sou seu representante, p o r -q u e fui eleito pelos cidados da circunscrio tal, de q u e voc faz pa r t e . R e p r e s e n t o t an to q u e m v o t o u e m m i m q u a n t o q u e m pre fe r iu o s m e u s adversr ios .

    Veja-se b e m a di ferena. E fcil e n t e n d e r o p r i -m e i r o t i po de r ep re sen tao , p o r q u e ne le o r e p r e s e n -t an t e c o m o u m d e c a l q u e , u m a expresso, u m reflexo do r e p r e s e n t a d o - p e l o m e n o s i d e a l m e n t e . Se ele n o c o r r e s p o n d e r aos anse ios de seus e le i tores , m e r e c e r ser a cusado de t - los t ra do . M a s o s e g u n d o t ipo mais c o m p l e x o . C o m o dizer q u e tra u m rep resen ta -d o q u e no v o t o u e m m i m ? E c o m o e n t e n d e r u m a r ep re sen tao na qua l o p r o c u r a d o r n o foi esco lh ido p o r a lguns dos q u e ele representa? R e p r e s e n t a r t o r -na r p r e s e n t e o ausen te . M a s c o m o p o d e a l g u m m e representar , se d i sco rdamos? Q u e s t e s fundamenta i s .

    Q u e s t e s f u n d a m e n t a i s e, assim formuladas , i r r espondve i s . S p o d e r e m o s r e s p o n d e r s e m u d a r m o s a p e r g u n t a . P o r q u e , no s e g u n d o t ipo , n o est mais em j o g o r ep re sen ta r o c idado , ou seja, o i n d i v d u o . A q u e s t o a q u i r ep re sen ta r a co le t iv idade . O p r i m e i r o t i p o seria o e le i to levar assemblia um e n o r m e n -m e r o de p r o c u r a e s , pelas quais J o o , Paula e Darc i o a u t o r i z a r i a m a v o t a r em seu n o m e . M a s , c o m isso, ele s represen ta r i a q u e m concordasse c o m ele.

    I m a g i n e m o s a situao. Vr ios depu tados apare-c e m , cada u m deles c o m u m p a c o t e d e p rocuraes (ou

  • A Democracia Moderna (z): a Representao 35

    de votos) . M a s haver , en t r e os d e p u t a d o s , diferenas de op in io . C o m o dec id i r qua l prevalece? A resposta bvia : pela maior ia . C a d a d e p u t a d o ter ia tantos votos quantas p rocu raes l evou , e p r o n t o . Pa rece resolvido.

    M a s est t o p o u c o r e so lv ido q u a n t o a ques t o an te r io r , de ser o d e r r o t a d o r e p r e s e n t a d o p e l o v i t o -r io so . Pois , q u a n d o a assembl ia d e c i d i u p o r ma io r i a , t e m o s o m e s m o p r o b l e m a de an tes . P o r q u e a deciso o b r i g a o s d e p u t a d o s d e r r o t a d o s ? E n t e n d o q u e u m a dec iso o b r i g u e q u e m a a p o i o u . M a s p o r q u e t r u q u e incr vel , m g i c o , a m i n o r i a est o b r i g a d a a apoiar a ma io r i a , o v e n c i d o a segui r as regras d e t e r m i n a d a s pe lo adversr io?

    O q u e est em j o g o na dec i so pe la ma io r i a , e n o s e g u n d o t i p o d e r ep re sen t ao , c o m o f o r m a r u m c o n j u n t o d e pessoas , is to , u m a soc i edade . D e n e -n h u m a soc i edade , n o m u n d o m o d e r n o e d e m o c r t i -co , espera-se q u e seja u n n i m e . M a s q u e r - s e q u e ela c o n t i n u e s e n d o s o c i e d a d e , apesar de suas d ivergncias i n t e rnas . p rec i so q u e t o d o s f a a m p a r t e dela, m e s -mo q u a n d o d i s c o r d a m . esse o s e n t i d o de haver um c o n j u n t o s , q u e r e d u z seus d e s a c o r d o s a u m a v o n t a -d e n ica , atravs d o v o t o .

    Alis, nesse s e g u n d o sent ido , j havia representa-o em Atenas , m e s m o q u e n o l h e de s sem tal n o m e . O q u e a assemblia dec id ia valia c o m o v o n t a d e do povo , m e s m o q u e fosse apenas a da ma io r i a . O q u e n o havia era represen tao n o p r i m e i r o sen t ido , c o m o delega-o. N o havia a ausncia q u e se t o r n a rot ina , o des in-teresse expandido , a separao ent re pol t icos profissionais e eleitores en t ed i ados . C o n t u d o , n u m a soc iedade c o m -plexa, e m q u e n o s d iv id imos en t re i n m e r o s afazeres, q u e m de ns se en tus iasma em i r a assemblias?

    A l m disso, t e r a m o s de d e c i d i r n o s os assun-tos o b v i a m e n t e po l t i cos , m a s q u e s t e s e c o n m i c a s ,

  • das quais eles d e p e n d e m . A pol t i ca se e m b r e n h a em t e c n i c i s m o s , q u e a u m e n t a m seu car te r t ed ioso . p o r isso q u e B e n j a m i n C o n s t a n t , ao falar do d e p u t a d o , c o m p a r a - o s e m usar esse t e r m o a nosso despa -c h a n t e , q u e faz fila em nosso l u g a r . 1 0 cur iosa a c o m -p a r a o , p o r q u e o r e p r e s e n t a n t e p o l t i c o m a i s p o d e r o s o q u e n s , e n o nosso se rv idor . M a s , para a m a i o r par te , i r a assemblias seria to abor rec ido q u a n t o i r ao b a n c o .

    C o n c l u i n d o : a representao, tal c o m o os direitos h u m a n o s , precede o a d v e n t o da democrac i a m o d e r n a . O s d i r e i t o s h u m a n o s s u r g e m n o s c u l o 1 7 , a r e -p resen tao na Idade M d i a , e no final do sculo 18 q u e a p a r e c e m a s p r ime i ras democrac ia s m o d e r n a s , p e -lo m e n o s as de d i m e n s e s razove is .Tempos antes, em 1 7 4 7 , M o n t e s q u i e u dizia q u e a repbl ica , democr t i ca o u n o , era imposs ve l n o m u n d o m o d e r n o . 1 1 Pois ela t o r n o u - s e vivel, mas ao ter ace i tado a representao.

    '" B. Cons tan t , art. cit. " M o n t e s q u i e u , O Esprito dos Leis (So Paulo: Mart ins Fontes, 1993).

  • 4. O SOCIAL E O DESEJO

  • Muito do que se leu at aqui pode ser en- c o n t r a d o e m q u a l q u e r m a n u a l d e c e n t e

    sob re a d e m o c r a c i a . M a s c o m p l i q u e m o s as coisas c o m m a t r i a nova . P o d e - s e for-

    m u l a r essa m a t r i a em f o r m a de teses. A p r i m e i r a tese : o avano da democracia moderna

    (ou do car ter d e m o c r t i c o da pol t ica m o d e r n a ) provocado pelos direitos, no pela representao.

    A r e p r e s e n t a o i m p o r t a n t e , mas ela o a p o r t e negativo da m o d e r n i d a d e d e m o c r a c i a . E o q u e faz a u r n a ser menos d e m o c r t i c a q u e a praa a ten iense . J c o m os d i re i tos , a coisa d i ferente . Eles so o m o t o r das r e iv ind icaes . At ravs deles se e x p r i m e a presso p o p u l a r sobre o p o d e r .

    N a d e m o c r a c i a direta , o p o d e r d o povo . N o r e g i m e m o d e r n o , a r ep re sen tao e os direi tos v m antes da d e m o c r a c i a . B e n j a m i n C o n s t a n t , de f in indo a r ep resen tao , m o s t r a q u e ela existe t a n t o em pases q u e e l e g e m o chefe do p o d e r execu t ivo , c o m o os E s -

  • t ados U n i d o s , q u a n t o n a q u e l e s e m q u e esse p o d e r fica em m o s do rei ( a F r a n a de seu t e m p o ) . 1 2 T a n t o a r ep re sen t ao q u a n t o os d i re i tos s e r v i r a m para l imi tar o p o d e r do rei .

    C o n t u d o , n o s d i re i tos q u e s e e x p r i m e m e l h o r a r e iv ind icao de l im i t e s ao p o d e r do m o n a r c a - e mais tarde, j em r e g i m e s d e m o c r t i c o s , a ex ignc ia de d i re i tos sociais. A e v o l u o da d e m o c r a c i a m o d e r -n a p o d e ser p o n t u a d a pe la q u e s t o d o s d i re i tos , c o n -f o r m e eles v a l o r i z e m a p r i m e i r a , a s e g u n d a ou a terceira ge rao d e d i re i tos h u m a n o s .

    U m e x e m p l o bras i le i ro servi r . C o m p a r e m o s o q u a n t o es to c o n s o l i d a d o s os d i re i tos dos p r o p r i e t -r ios , os d i re i tos po l t i cos e os d i re i tos sociais . Esses l -t i m o s so os mais fracos. J os d i re i tos civis ou dos p r o p r i e t r i o s es to ma i s assegurados .

    V - s e a o j u d i c i r i o . S u p o n h a m o s q u e v o c seja um s e m - t e r r a e invada u m a t e r r a i m p r o d u t i v a . O p r o -p r i e t r i o l o g o o b t e r , d o j u i z , u m a o r d e m d e d e s o -c u p a o . M a s n o b v i o q u e o j u i z deva dar essa o r d e m . v e r d a d e q u e o C d i g o C iv i l assim o r d e n a mas a C o n s t i t u i o de 1 9 8 8 , q u e s u p e r i o r a ele, ex ige q u e a p r o p r i e d a d e p r i v a d a c u m p r a sua funo social. O ju r i s t a F b i o K o n d e r C o m p a r a t o a r g u m e n t a , p o r isso, q u e o pape l do j u i z n o o de um d e s p a c h a n t e q u e assina a o r d e m de d e s o c u p a o - m a s o de a l g u m q u e , l e n d o a legislao de m a n e i r a sistmica e n o c o m o um ar t igo i so lado, d e v e analisar se a p r o p r i e d a d e est r e s p e i t a n d o a C o n s t i t u i o .

    A q u i n o c a b e a p r o f u n d a r essa discusso: basta l e m b r a r q u e nosso j u d i c i r i o est ma i s e q u i p a d o para da r razo ao t i tu lar de d i re i tos civis do q u e ao de d i -

    1 2 B. Cons tan t , art. cit.

  • re i tos sociais . N i n g u m d e f e n d e q u e q u a l q u e r u m i n -vada o q u e quiser . M a s o j u d i c i r i o , a imprensa e pa r t e da o p i n i o p b l i c a r e c o n h e c e m m e l h o r o d i re i to do p r o p r i e t r i o do q u e os d i re i tos sociais. A l imi tao c o n s t i t u c i o n a l q u e esses di re i tos i m p e m p r o p r i e -d a d e n o foi r e g u l a m e n t a d a em lei. A imprensa n o t o m a c o n h e c i m e n t o dela. Nossa d e m o c r a c i a p a d e c e do fato de q u e a q u i os di re i tos sociais so inc ip ien tes .

    Ou os direi tos pol t icos. So fortes, no Brasil? H o j e t e m o s ampla l ibe rdade de organizao part idria e de expresso. M a s a r d io e a TV p e r t e n c e m a g r u p o s empresar ia is q u e as a b r e m p o u c o ao con t rad i t r io , ao di logo. Nossa discusso pol t ica fraca. A m a n i p u l a -o do e le i torado , pe lo p o d e r de Es tado e do capital, f reqente . Os p o d e r e s const i tuc ionais e o qua r to poder , a imprensa , e n t e n d e m m e l h o r os direitos propr ie t r ios do q u e os ou t ros . D a q u e a p r i o r i d a d e de nossa d e m o -crat izao esteja n o s direi tos pol t icos e nos sociais, em q u e mais s o m o s deficitrios.

    A UNIO GREGA DO POLTICO E DO SOCIAL

    Vamos segunda tese. Esta e as seguintes se referem d e m o c r a c i a g rega , mas t m i m p a c t o para a c o m p r e -enso da m o d e r n a . Na m o d e r n i d a d e , a d e m o c r a c i a p r i m e i r o po l t i ca e s depo i s social . A lguns at v e m trs e tapas na d e m o c r a c i a m o d e r n a : p r i m e i r a , o s d i -re i tos p r o p r i e t r i o s o u civis, a inda s e m u m g o v e r n o e le i to p e l o p o v o , q u e r dizer , antes da democrac i a ; s e -g u n d a , a d e m o c r a c i a poltica, em q u e as ins t i tu ies so j u r i d i c a m e n t e d e t e r m i n a d a s p e l o povo , mas n o h d i re i tos sociais; tercei ra , a d e m o c r a c i a social, em q u e

  • r e d u z i r a d e s i g u a l d a d e e e l i m i n a r as injustias sociais se t o r n a p r i o r i d a d e e a t inge razove l x i to .

    Pois a s egunda tese q u e essa seqnc ia n o existe e n t r e os an t igos : para os gregos, a democracia poltica e social. Basta le r os c o m e n t a d o r e s g r e g o s , m e s m o os i n i -m i g o s da d e m o c r a c i a : q u a n d o fa lam de oi polloi (os v r ios , o s m u i t o s ) , s e r e f e r em ao p o v o n o s c o m o e n t i d a d e j u r d i c a , m a s c o m o o g r u p o dos pob re s . P o r isso a g r a n d e cr t ica d e m o c r a c i a q u e ela p o d e c o n -f i s ca r o s b e n s d o s r i cos . D i z e m os seus cr t icos q u e seria in jus to e t i r n i co o p o p u l a c h o valer-se de seu n m e r o pa ra e x p r o p r i a r a s r i q u e z a s dos p o u c o s .

    Os g r e g o s ass im no diferenciam o p o v o e n q u a n -to su j e i t o de d i r e i t o s p o l t i c o s e de d i r e i t o s socia is . o m e s m o s u j e i t o . N o h u m a s e q n c i a h i s t r i -c a p e l a q u a l e l e , p r i m e i r o , a d q u i r e o d i r e i t o d e v o -t a r e , s d e p o i s , o de t e r c o m i d a , casa e t c . T u d o v e m j u n t o . Isso n o q u e r d i z e r q u e t o d o s t i v e s s e m c o m i -da , casa e n f i m o c a m p o i n t e i r o do q u e h o j e c h a -m a m o s d e soc ia l : f a l amos d e d i r e i t o s soc ia is , i s to , d o clamor p o r t e r esses b e n s o u v a n t a g e n s , m a s n o da efet iva p o s s e d e l e s .

    V a m o s a um fato r e c e n t e . A q u e b r a da Bolsa de N o v a York , e m 1 9 2 9 , g e r o u e n o r m e s crises sociais, q u e os g o v e r n o s n o s o u b e r a m ou n o q u i s e r a m enfrentar. S c o m a e le io de F r a n k l i n R o o s e v e l t para a P r e s i d n c i a d o s Es t ados U n i d o s , e m 1 9 3 2 , c o m e - a r a m po l t i ca s socia is . C o m o New Deal, ou n o v o p a c t o , o E s t a d o foi t ra ta r do p r o b l e m a socia l . M a s , ao l o n g o dos a n o s 3 0 , a C o r t e S u p r e m a do pas f u l m i n o u vr ias das n o v a s leis t rabalh is tas , a l e g a n d o q u e v i o l a -v a m a l i b e r d a d e de con t r a t a r .

    Ass im, u m d i r e i t o p r o p r i e t r i o assumia d i g n i d a -de cons t i t uc iona l , e t oda ten ta t iva de r e g u l a m e n t a r as re laes de t r a b a l h o era acusada de inf r ing i r esse d i -

  • r e i to supe r io r . A q u e s t o apenas se resolveu sob p r e s -so pol t ica , q u a n d o R o o s e v e l t a m e a o u a u m e n t a r o n m e r o de j u i z e s da C o r t e a f im de rever te r suas d e -cises. O e x e m p l o esc larecedor . Q u a n d o pela p r i -m e i r a vez na h i s t r ia m o d e r n a se inc lu i na agenda d e m o c r t i c a a ques to social, o j ud i c i r i o n o e n t e n d e n e m acei ta a n o v i d a d e .

    Para os g r egos , p o r m , essa ques t o n e m faria sen t ido . A assembl ia p o d i a t u d o , inclusive vo ta r leis sociais. M a i s q u e isso: na f o r m a grega de viver a d e -m o c r a c i a , i nc lu a - se a ques t o social. N o ter ia cab i -m e n t o separar o p o l t i c o do social. As leis de S lon , q u e p r a t i c a m e n t e f u n d a m a d e m o c r a c i a a teniense , t ra -t a m t a n t o da p a r t i c i p a o na assemblia q u a n t o da p r o p r i e d a d e e sua diviso.

    A SEPARAO MODERNA

    A t e r c e i r a t e s e d e c o r r e d i r e t a m e n t e d e s t a . L - s e a d e -m o c r a c i a m o d e r n a pe la sucesso de suas etapas, p o l t i -ca e depo i s social . C o n s i d e r a m o s n o r m a l q u e t e n h a ela nasc ido c o m o u m a f o r m a j u r d i ca , cons t i tuc iona l , n o a c a r r e t a n d o di re i tos sociais. A n o v i d a d e , difcil d e acei tar pe la C o r t e S u p r e m a dos Estados U n i d o s o u p o r nosso p e n s a m e n t o conse rvador , q u e a pol t ica se espraie pa ra o c a m p o social q u e passe das inst i tuies pol t icas para as re laes de t r aba lho e p r o p r i e d a d e , pa ra o m o d o q u e as pessoas e fe t ivamente v ivem.

    M a s cabe a q u i sus ten ta r o c o n t r r i o dessa c o n -cepo . Se q u a n d o nasce a democrac i a m o d e r n a a n ica e x p e r i n c i a d e m o c r t i c a c o n h e c i d a era a grega, e se ela n o separava d i re i tos pol t i cos e sociais, a novidade moderna a separao.

  • M u d a - s e ass im o e i x o do q u e precisa ser exp l i -cado . U s u a l m e n t e , e x p l i c a m o s c o m o e p o r q u e , n a d e -m o c r a c i a , o t e o r social se a c r e s c e n t o u ao po l t i co - no scu lo 1 9 c o m o r e i v i n d i c a o , n o scu lo 2 0 c o m o real izao (ao m e n o s n o s pases ma i s desenvolv idos) . O r a , o que precisamos explicar exatamente o contrrio: como os primeiros democratas modernos conseguiram extir-par, da democracia, o seu teor social.

    M a i s q u e isso, p r e c i s a m o s exp l i ca r p o r q u e acha -m o s bvio esse r e c o r t e , p o r q u e n o nos e span tamos c o m ele. Insis to: n o se t ra ta ma i s de expl icar c o m o os sculos 19 e 20 t i v e r a m x i t o em unir o social ao p o -l t ico, mas s im de q u e m a n e i r a os sculos 18 e 19 l o -g r a r a m afast-los.

    Se essa tese for co r r e t a , a d i fe rena en t re a d e -m o c r a c i a an t iga e a m o d e r n a n o ser mais " a p e n a s " en t r e d i re ta e represen ta t iva , s e m o u c o m direi tos h u -m a n o s . C o n t i n u a r h a v e n d o essas duas diferenas. M a s se s o m a r u m a te rce i ra , i g u a l m e n t e i m p o r t a n t e : a d e -m o c r a c i a an t iga cons i s te n u m r e g i m e po l t i co e social, e n q u a n t o a m o d e r n a nasce da exc luso do social e depo i s vai r e i n t r o d u z i - l o , m a s s e m p r e c o m o algo e x -t e r n o , ad ic iona l . Na d e m o c r a c i a g rega , o social e o p o l t i c o t m u m v n c u l o , u m a a r t i c u l a o , u m a ind i s t ino q u e d e s a p a r e c e m n a m o d e r n a . N s e n -t e n d e m o s o social e o p o l t i c o c o m o separados .

    A t e r c e i r a t e s e i m p l i c a u m a p e r g u n t a : c o m o o O c i d e n t e m o d e r n o c i n d i u o p o l t i c o d o social? C o m o se p d e c o n v e r t e r a v ida po l t i ca n u m a esfera ju r d ica , n u m espao e m q u e p reva lece o d i re i to , quase s em levar em c o n t a os fatos?

    V e m m e n t e u m a frase c o m u m n o m e i o ju r d ico , "o q u e n o est n o s au tos n o est no m u n d o " : o j u i z deveria cons ide ra r s o q u e cons ta da d o c u m e n t a o

  • q u e e x a m i n a , s e m inc lu i r o c o n h e c i m e n t o q u e t enha do p r p r i o caso ou da soc iedade em q u e ele s e d.

    M a s , para r e s p o n d e r a essa t e s e - p e r g u n t a , p r e c i -samos t e r m i n a r es te cap tu lo .

    O SOCIAL NASCE DO DESEJO

    C h e g a m o s l t i m a t e s e , a q u a r t a . E l a p r e t e n d e r e s -p o n d e r s a n t e r i o r e s . V i m o s q u e o car ter d e m o c r t i -c o d a po l t i ca m o d e r n a d e p e n d e dos direi tos , mais q u e da r e p r e s e n t a o ; q u e esses d i re i tos so de t e o r cada v e z mais social ; q u e na G r c i a o po l t i co e o social es tavam p r x i m o s ou u n i d o s . Falta acrescentar q u e esses direitos remetem a algo que chamaremos de desejo.

    Q u a n d o os cr t icos gregos da d e m o c r a c i a a le r tam para o p e r i g o de q u e o p o v o p o b r e conf i sque os bens dos r i cos , esse p e r i g o a n l o g o ao q u e existe na t i ra -n ia ou na o l igarquia . Para Ar i s t te les , h trs r eg imes p u r o s e trs d e f o r m a e s dos m e s m o s . So p u r o s a m o n a r q u i a , a a r i s tocrac ia e um r e g i m e q u e ele c h a m a de politia, pa lavra q u e q u e r d izer " C o n s t i t u i o " . So suas d e f o r m a e s - r e s p e c t i v a m e n t e a t i rania, a o l i -ga rqu ia e o r e g i m e q u e ele c h a m a de demokratia.

    N o s r e g i m e s p u r o s , o p o d e r exe rc ido d e n t r o da lei . N a s d e f o r m a e s , exe rce - se o p o d e r pe lo ca -p r i c h o , pelas p a i x e s , pe la d e s m e d i d a . P o r isso n o h g r a n d e d i fe rena e n t r e t i rania , o l igarquia e demokratia. N a s trs , q u e m t e m o p o d e r m o v i d o p o r u m desejo d e s g o v e r n a d o . Conf i sca r os b e n s dos r icos to e r r a -do q u a n t o o t i r a n o o p r i m i r os p o b r e s , ou os oligarcas u s a r e m da lei a seu a rb t r io .

    A q u a r t a tese ser q u e a democracia o regime do desejo. E l a ass im vis ta p o r seus c r t i cos , mas t a m b m

  • p o r p a r t e de seus d e f e n s o r e s . O dese jo a m a t r i a -p r i m a d o s d i r e i t o s . S e r i a e r r a d o i m a g i n a r q u e estes su r j am d e u m c u l m p i d o e e s p l n d i d o . E les n a s c e m d o dese jo .

    A s s i m s e r e s p o n d e p e r g u n t a q u e a p a r e c e u n a terce i ra tese: c o m o o O c i d e n t e m o d e r n o a p a r t o u o p o l t i c o do social? C a b e p r o p o r q u e o social , em seu cerne, da ordem do desejo. Os g r e g o s t i n h a m razo, q u a n -do e n t e n d i a m ou t e m i a m q u e o s p o b r e s no p o d e r t i rassem t u d o d o s r i cos . Essa c o n v i c o a inda r e p o n t a e r a nosso t e m p o . Ve jamos duas i lus t raes .

    A p r i m e i r a o m e d o q u e a d i re i ta brasileira d i -funde de q u e os p o b r e s t i r e m as te r ras ou casas n o s dos r i cos , mas de t o d o s os q u e as t m . C o n s t a q u e , nas e le ies de 1 9 8 9 , a l g u m a s pessoas t e r i a m i d o a casas d e classe m d i a , f i n g i n d o fazer u m i n q u r i t o para sa-b e r quan tas famlias s e m t e t o p o d e r i a m dividir o e s -p a o c o m o p r o p r i e t r i o . C o m o isso d e fato a c o n t e c e u n o s pases comunis tas , esse t e m o r parecia te r cab imen to .

    A s e g u n d a p o d e ser c h a m a d a de inveja do tnis.13

    a expl icao q u e cabe para c r i m e s o b v i a m e n t e de te s -tveis, c o m o m a t a r a l g u m para l h e r o u b a r o tnis, mas q u e t o c a m no c e r n e do confl i to social. A m a i o r pa r t e das expl icaes para o conf l i to social e n t e n d e - o c o m o se d a n d o em t o r n o de u m a s c i n c o necessidades bsicas, naquelas coisas q u e so essenciais para a v ida e cuja carncia , pois , insupor tve l : m o r a d i a , sade, a l imenta -o, e d u c a o e t ranspor te . M a s isso n o necessaria-m e n t e o mais i m p o r t a n t e . O n d e o n e r v o se expe , o n d e o confl i to social es toura , mui tas vezes ali o n d e est em

    1 3 Ver R . J a n i n e R i b e i r o , " D e m o c r a c i a Versus R e p b l i c a " . E m : Bigno t to (org.), Pen-sar a Repblica (Belo H o r i z o n t e : Edi tora da U F M G , 2000) .

  • j o g o n o mais a necess idade, a carncia, o essencial, mas o luxo , o suprf luo, o c o n f o r t o em estado pu ro .

    O s c a r W i l d e a c e r t o u ao d izer q u e as coisas es-senciais so as suprf luas . Q u e r e r o necessr io b a s -t an t e bv io . E m o r a l : direi ta e e sque rda c o n c o r d a m q u a n t o s c i n c o necess idades bsicas do h o m e m . D i s -c o r d a m sob re os m e i o s de satisfaz-las, mas p r o j e t a m u m a po l t i ca d a necess idade . C o n t u d o , q u a n d o u m m e n i n o miserve l a taca o u t r o p o r u m par d e tnis , ele ind ica o u t r a coisa. Sua razo p o d e d i ze r - lhe de q u e necessi ta , mas seu dese jo de c o n f o r t o .

    A des igua ldade social , q u a n d o passa pela n e c e s -s idade, mais to le rve l . Para q u e m n o t e m atendidas as necess idades bsicas, o q u e p i o r : a c o m p a r a o c o m q u e m a s t e n h a satisfeitas? O u c o m q u e m , alm disso, e x i b e um c o n f o r t o de alta qua l idade? N o s s o m e n i n o acei tar m e l h o r o p r i m e i r o caso do q u e o s e g u n d o . O desejo p e l o tnis o e s t o p i m q u e faz e x -p l o d i r a t enso social .

    D a , t o d a canal izao do conf l i to social para a necess idade apaz igua a soc iedade . P o d e soar absurdo af irmar q u e os s e m - t e r r a , o c u p a n d o fazendas, a c a l m e m a s o c i e d a d e mas fcil e n t e n d - l o . Ao canalizar o d e s c o n t e n t a m e n t o difuso dos s e m - t u d o para u m a s o -l u o q u e p a r e c e rac iona l , p e r m i t i n d o a m d i o p razo e q u a c i o n a r suas p r inc ipa i s necessidades, u m m o v i m e n -to social o rgan iza o i m a g i n r i o das pessoas e d r u m o a u m d e s c o n t e n t a m e n t o q u e antes n o t i nha n o m e .

    Esse p a p e l a lgo pac i f icador os m o v i m e n t o s m a r -xistas o u c o m u n i s t a s c u m p r i r a m at 1 9 9 0 . O f e r e c i a m u m a sada para a d o r da carnc ia . C o n t u d o , q u a n d o o statu quo capitalista se s en t e assegurado e o capital r e -tira as conces ses q u e antes teve de fazer, a canal iza-o do d e s c o n t e n t a m e n t o desaparece . O miservel , c o n f i n a d o no ins tan te , p e r d e o fu turo c o m o d i m e n s o

  • para m e l h o r a r a v ida . A d i fe rena social se acirra. O tnis e n t o serve de g o t a d ' g u a p r o t e s t a n d o c o n t r a o fato de n o s e n t i r e m as classes altas responsab i l idade pe la des igua ldade social .

    A q u i , dois e s c l a r e c i m e n t o s . P r i m e i r o , ao falar do assalto d e u m m e n i n o mise rve l a u m r i c o p o r u m tnis , o q u e se qu is foi c a p t a r - l h e a significao. M a s n o cabe associar a m i s r i a ao c r i m e , o q u e e r r a d a -m e n t e at u m a p a r t e da e sque rda faz, q u a n d o enfatiza q u e o d e s e m p r e g o a u m e n t a seu n d i c e . Os p iores c r i -m e s d i z e m respe i to c o r r u p o , ao c o l a r i n h o b r a n c o , a u m a d e s t r u i o do t e c i d o social p r o m o v i d a discreta e e f i cazmen te . Os c r i m e s dos p o b r e s t m m a i o r vis i -b i l i d a d e e so b e m e x p l o r a d o s p e l a m d i a . M a s a c o r r u p o , o c o n b i o e n t r e a a d m i n i s t r a o pbl ica e a r i q u e z a p r ivada , causa m a i o r d a n o soc i edade . G e r a m o r t e s , a inda q u e o s c r i m i n o s o s n o a p e r t e m d i re ta -m e n t e o ga t i lho .

    S e g u n d o , c o m esta a r g u m e n t a o q u e r - s e n e g a r u m a le i tu ra da d e m o c r a c i a - e da po l t i ca - q u e p r i v i -legia o rac iona l , a neces s idade , as ca rnc ias bsicas s o -b r e o desejo. N o se cog i t a n e g a r a i m p o r t n c i a das necess idades f u n d a m e n t a i s . M a s a lgo falta nelas. a d i m e n s o d o afeto, d a pa ixo , d o s e n t i m e n t o ; e m suma, d o desejo. Ve jamos p o r q u e a po l t i ca m o d e r n a o c i -den ta l c i n d i u o p o l t i c o do social is to , do desejo.

    OCIDENTE VERSUS ORIENTE

    O O c i d e n t e c o n s t r i , a p a r t i r d o s c u l o 1 6 , d o i s g r a n -des m o d e l o s d e v ida social s e m p r e c e d e n t e s , a o m e n o s na escala q u e lhes d tax. O p r i m e i r o o Estado de direito. As relaes sociais pa s sam a ser m e d i a d a s p o r u m a

  • n o o de d i re i tos , e n o mais p o r p r iv i l g ios ou p e l o c a p r i c h o d e q u e m m a n d a . E m tese, possvel t e r m o s u m E s t a d o d e d i r e i to a t s e m d e m o c r a c i a , b a s t a n d o have r j u i z e s d i g n o s , q u e a p l i q u e m a lei c o r r e t a m e n t e .

    M a s o s e g u n d o m o d e l o , q u e c o m p l e m e n t a o p r i -m e i r o , o da democracia. C o m t o d a a sua possvel in fe -r i o r i d a d e em re lao a A t e n a s , a d e m o c r a c i a m o d e r n a s e a m p l i o u n u m a escala antes impensve l . N a A n t i -g i d a d e , t i v e r a m c i d a d a n i a d e m o c r t i c a dezenas d e mi lha res , n u m m u n d o q u e possua dezenas o u c e n t e -nas de m i l h e s de hab i t an t e s . E h o j e esse o h o r i z o n -te de 2 b i l h e s ou 3 b i l h e s de pessoas, p e r t o de m e i a h u m a n i d a d e .

    C o n t u d o , essa abe r tu ra para o m u n d o do direi to se d e x c l u i n d o da pol t ica a nebulosa do afeto, da pa i -xo , do desejo. O E s t a d o de d i re i to e a democrac i a m o d e r n o s t m u m a fora que se deve sua racionalidade. Eles se e x p a n d e m p o r n o d i s c r i m i n a r e m as pessoas, p o r s e r e m imparciais . difcil imag ina r o u t r o m o d o de func ionarem.

    M a s , e n q u a n t o eles se e s b o a m , o O c i d e n t e i n -v e n t a u m a i m a g e m do O r i e n t e , pa ra a qua l d e p o r t a o desejo na po l t i ca e na v ida social . P o r vol ta de 1570 , q u a n d o os t u r c o s s e t o r n a m os g r andes i n i m i g o s do m u n d o cr is to , c o m e a a se f igurar seu sul to c o m o m o d e l o do q u e se c h a m a r o dspota oriental. Essa fi-gura t i nha p r e c e d e n t e s n a A n t i g i d a d e , n o m o d o c o m o os g r e g o s i m a g i n a v a m o x da Prs ia , seu i n i m i g o ma io r , m a s renasce , c o m v i g o r r e n o v a d o , e m m e a d o s do scu lo 16 . A t e n t o , o sul to o t o m a n o era c o n s i -d e r a d o u m m o n a r c a c o m o q u a l q u e r o u t r o . Q u a n d o M a q u i a v e l fala de le , ou dos reis oc iden ta i s , n ' O Prnci-pe (1513) , a o p o s i o n o radical . M a s , em p o u c o s anos , o G r o - T u r c o se t o r n a r o p a r a d i g m a da in t ruso do dese jo des t ru t i vo na pol t ica .

  • M o n t e s q u i e u , no Esprito das Leis, l ivro de 1747 em q u e busca e n t e n d e r a s leis de cada r e g i m e pol t i co , dar f o r m a definitiva ao dspo ta o r ien ta l . O sul to goza de um h a r m . Se o m o n a r c a c o n s t i t u c i o n a l , q u e o ideal d o O c i d e n t e , t e m min i s t ro s , j u i z e s e talvez u m p a r l a m e n t o , o d s p o t a t e m u m e s t o q u e d e m u l h e r e s , v i g i a d o p o r e u n u c o s . D o O c i d e n t e , M o n t e s q u i e u fala e m t e r m o s d e in s t i t u i es pol t icas , q u e so pbl icas ; o d i scurso r ac iona l ; r e c o n h e c e m - s e d i re i tos . M a s , do O r i e n t e , ele fala e m t e r m o s d e v i d a p r ivada , d e desejo, d e d e s m e d i d a : n o h d i re i tos , ta lvez n e m pr iv i lg ios s c a p r i c h o .

    C o m o , n o O r i e n t e i m a g i n a d o pe lo s oc iden ta i s , r e ina o desejo s do sul to , tal dese jo apenas c a p r i -c h o . E devasta a s o c i e d a d e , p o r q u e vr ias m u l h e r e s so s de le , h o m e n s so cas t rados pa ra se rv i - lo , e t o d o s d e p e n d e m de sua v o n t a d e i r r ac iona l , po i s n a d a n e m n i n g u m a l imi ta . O c u r i o s o , diz M o n t e s q u i e u , q u e a po l i gamia , l o n g e de a u m e n t a r o n m e r o de f i lhos, o r e d u z p o r q u e u m h o m e m v i c i a d o n a sensua l idade s e t o r n a p o u c o in t e re s sado e m suas m u l h e r e s .

    O dspo ta , e c o m ele o O r i e n t e , o avesso exa to da po l t i ca o c i d e n t a l , c o m o E s t a d o de d i re i to e mais t a rde a d e m o c r a c i a . clara a o p o s i o e n t r e os d e s e -j o s , q u e so p e r i g o s o s na po l t i ca e na v ida social, e o m u n d o d o d i re i to , q u e ex ige u m a r ac iona l idade , u m a imparc ia l idade , u m respe i to a o o u t r o q u e n o h n o d e s p o t i s m o o r i e n t a l .

    RAZO VERSUS DESEJO

    O p r e o d a p o l t i c a o c i d e n t a l m o d e r n a , e o d a d e m o -cracia, foi a exc luso do m u n d o afetivo. u m a po l t i -

  • c a c o n c e b i d a e m t e r m o s rac ionais . Seus conce i to s b -sicos l ibe rdade , i gua ldade , a l t e rnnc ia no pode r , res -p e i t o s escolhas do o u t r o - c o n s t i t u e m um esforo r ac iona l n e m s e m p r e fcil d e prat icar .

    N o se trata de c o n d e n a r a racional idade, m e n o s ainda de d izer q u e a pol t ica m o d e r n a t e n h a a ap render c o m as n o - o c i d e n t a i s mas de p e r c e b e r o q u e foi exc lu do da pol t ica m o d e r n a e c o n t r i b u i u para alguns de seus t raos q u e , ho je , p o d e m o s ten ta r superar.

    D e l e s , o p r i n c i p a l q u e a m o d e r n i d a d e est m a r c a d a p o r um n t i d o r e c o r t e en t r e cu l tu ra de elite e cu l tu ra popu la r .Ta l c o m o nas ar tes , esse r e c o r t e apa re -c e n a pol t ica . H u m a c o n c e p o mais p o p u l a r d a pol t ica , e h o u t r a , q u e da t e o r i a pol t ica . Essa l t i -ma p o d e r e s u m i r - s e assim: o m u n d o po l t i co d i fe-r e n t e d o m o r a l . Q u e s t e s m o r a i s so s o b r e t u d o d a esfera p r ivada . Se p e n s a r m o s em g o v e r n a r o espao p o l t i c o pe la ap l icao m e c n i c a dos valores da h o -nes t idade , c ausa remos e n o r m e r u n a .

    Isso, q u e p o d e p a r e c e r blas e m e s m o amora l , o q u e p e r m i t e c o n v i v e r e m valores diferentes n u m a m e s -ma soc i edade . O r e l a x a m e n t o da m o r a l na pol t ica a c o n d i o da l i be rdade . N o fosse assim, q u e m c o n -t ra o sexo p r - c o n j u g a l p r e n d e r i a b o a pa r t e dos j o -vens, q u e m c o n d e n a as drogas perseguir ia os alcolatras, e p o r a vai . M a i s q u e t u d o , a direi ta e x t e r m i n a r i a a e sque rda , e v i ce -ve r sa .

    H o u v e e a inda h lugares em q u e isso o c o r -re. M a s h l i b e r d a d e j u s t a m e n t e q u a n d o q u e m n o aprec ia a b e b e d e i r a , s impat iza c o m a esquerda ou g o s -t a d e s exo c o n v i v e e m paz pb l i ca c o m q u e m ama drogas , de direi ta ou a b o m i n a a sexual idade fora do m a t r i m n i o . O r a , essa to le rnc ia e essa convivnc ia rec procas so f ru to de u m a t eo r i a pol t ica bas tante refinada.

  • P o r isso, tal to le rnc ia c o m a di ferena n o fcil, n e m bvia. E m nosso pas, p o r e x e m p l o , q u e lida m a l c o m a relao e n t r e m o r a l e pol t ica , f reqente c o n -denar , em vez de respeitar, o d i ferente . Em campanhas eleitorais, o u v i m o s cr i t icar pessoas p o r q u e usa ram d r o -gas, a inda q u e h m u i t o t e m p o , o u s i m p l e s m e n t e p o r -q u e v o t a m n o p a r t i d o o p o s t o . 1 4 O p e r i g o dessa perspect iva, q u e s u b m e t e a pol t ica m o r a l , est em castigar o d ive rgen te c o m o se fosse imora l , i ndecen t e .

    Est claro q u e s impa t i za r c o m a po l t i ca da t e o -r ia po l t i ca n o n o s i m p e d e d e p e r c e b e r suas lacunas . Ela t e m p o u c o i m p a c t o p o p u l a r . Pa ra q u e acei tsse-m o s o d i fe ren te is to , a q u e l e de q u e m nossos afetos e s e n t i m e n t o s n o s s e p a r a m , foi p r ec i so reduzir o a l -c a n c e desses afetos e s e n t i m e n t o s . Fo i p rec i so esfriar as re laes n o i n t e r i o r d a s o c i e d a d e .

    R e l a e s a q u e c i d a s p o d e m ser d e a m o r , amizade o u dio .Todas elas i m p l i c a m u m a p r o x i m i d a d e d e c o n -ta to . A m o d e r n i d a d e d e s l o c o u as re laes aquec idas para o m u n d o da v i d a p r i v a d a a m i g o s , aman te s , i n i -m i g o s pessoais ou pa ra m i c r o s s o c i e d a d e s e esfriou as re laes q u e p e r t e n c e m v ida pb l i ca . N o p r o t e g e -rei o s en tes q u e r i d o s , n e m p e r s e g u i r e i o s od i ados . M a s c o m isso as p a i x e s pb l i cas , as q u e n o s f azem apostar na v ida social e po l t i ca , so f re ram um esvaz iamen to .

    E assim s se en tu s i a sma p o r assemblias e r e u -n ies pol t icas a m i n o r i a q u e inves te na v ida pbl ica o ca lor q u e a m a i o r p a r t e reserva p a r a a v ida pr ivada . So os mi l i t an tes de p a r t i d o s , s o b r e t u d o j o v e n s e de e s q u e r d a , q u e , p a s s a d o u m t e m p o , s e c a s a m , s e prof iss ional izam e em b o a p a r t e l e v a m para a v ida p e s -

    1 4 Ver R . Jan ine R i b e i r o , " O R e t o r n o d o B o m G o v e r n o " . E m : Adau to Novaes (org.), tica (So Paulo: C o m p a n h i a das Letras, 1992).

  • soa l , ou e x t i n g u e m , o fogo q u e antes d i r i g i a m para o espao p b l i c o .

    M a s c o n t i n u a o p r o b l e m a . A p o l t i c a d a t e o r i a pol t ica , a q u e est nas leis, de ixa em s e g u n d o p l a n o os s e n t i m e n t o s . O s c o n c o r r e n t e s a u m cargo t m igual l e g i t i m i d a d e pa ra e xe r c - l o , e o d e r r o t a d o deve res -pe i t a r o v e n c e d o r . M a s , se o l h o as coisas e n q u a n t o e le i to r , n o t o q u e m u i t a s vezes , a o votar , sou m e i o manique s t a : o p o n h o m e u candida to , c o m o encarnao do b e m , a seu adversr io , pe rson i f i cao do ma l . E c o m isso t o c a m o s d e n o v o n a fer ida.

    A po l t i c a m o d e r n a r e q u e r q u e eu respei te o o u t r o . M a s m e u e n g a j a m e n t o , m i n h a pa r t i c ipao p o -lt ica, e x i g e q u e m e en tus i a sme , m e a n i m e , o q u e m e faz respe i ta r p o u c o o o u t r o e apos tar m u i t o na m i n h a pos io . Ass im, h u m a c o n t r a d i o en t r e o b o m fun -c i o n a m e n t o da po l t i ca , c o m o respe i to diferena, e o m e s m o b o m f u n c i o n a m e n t o q u a n t o participao dos c idados . P a r e c e q u e o respe i to ao o u t r o a u m e n t a na m e d i d a e m q u e d i m i n u i m e u e n g a j a m e n t o .

    O r e g i m e ser mais d e m o c r t i c o , p o r respei tar m e l h o r as d i ferenas , q u a n d o for menos d e m o c r t i c o , p o r engajar m e n o s o s e le i tores . Q u a n t o mais ele r e s -p e i t a r o s d i re i tos h u m a n o s , m e n o r pa r t i c ipao p o p u -lar ter . E vale o inverso , isto , o r e g i m e ser mais d e m o c r t i c o , p o r e n v o l v e r - n o s mais , q u a n d o for me-nos d e m o c r t i c o , p o r ser i n t o l e r a n t e c o m as d i fe ren-as. P a r a d o x o ? S i m . M a s cons t i t u t ivo de nossa pol t ica .

  • 5. ALGUNS PROBLEMAS DA DEMOCRACIA

  • e r m i n a m o s o cap tu lo a n t e r i o r o p o n d o a d e m o c r a c i a , e n q u a n t o r e g i m e d o p o d e r do povo , q u e impl ica a cons tan te mobi l i za -o de t o d o s e p o r t a n t o a l g u m entus ias -

    mo e ta lvez m a n i q u e s m o , d e m o c r a c i a , c o m o r e g i m e q u e r e c o n h e c e os di re i tos h u m a n o s , os quais p o d e m ser r e s u m i d o s n u m a palavra s: o d i re i to d i -ferena. E x p l o r e m o s agora a lgumas con t r ad i es , o u dif iculdades , da d e m o c r a c i a .

    P o d e m o s c o m e a r p o r u m sinal d e nossos t e m -p o s . H o j e s e fala e m professor d e m o c r t i c o , e m pai o u m e s m o p a t r o d e m o c r t i c o . Isso n o significa q u e o pa i , professor ou p a t r o t e n h a s ido e le i to p o r seus f i -lhos , a lunos ou e m p r e g a d o s . A q u i , o adjet ivo " d e m o -c r t i c o " significa l iberal , a b e r t o ao d i logo, avesso p r e p o t n c i a . M a s o q u e q u e r d izer essa m u d a n a na palavra democracia, q u e m i g r o u d e u m sen t ido p r i m e i -ro - p o d e r do p o v o para ou t ro s , a inda p r x i m o s , c o m o o de d i re i tos h u m a n o s , e h o j e a t define q u a l i -

  • dades pessoais , q u e p o d e m exis t i r m e s m o fora d e u m r e g i m e po l t i co?

    Isso m o s t r a c o m o a d e m o c r a c i a se t o r n o u , no l t i m o m e i o scu lo , u m t e r m o t o pos i t ivo q u e assu-m e sen t idos ad ic iona i s , b e m a l m d e sua r igorosa d e -finio filosfica. (Pode - se d ize r q u e ela func iona c o m o um m semntico, a t r a i n d o ou t ras palavras, c o m as quais se e n r i q u e c e r e c i p r o c a m e n t e . ) Esta n o u m a cr t ica. Se n o v o s sen t idos de d e m o c r a c i a s u r g e m , eles so p r o -d u z i d o s pela sua v i t a l idade . A d e m o c r a c i a se t o r n o u to r ica q u e se amp l i a a r eg ies novas da e x p e r i n c i a h u m a n a .

    A t a P r i m e i r a G u e r r a M u n d i a l , d e m o c r a c i a era um t e r m o n e g a t i v o : as m a i o r e s p o t n c i a s , salvo s a F r ana e os a r red ios Es t ados U n i d o s , e r a m m o n a r -quias - e nelas o re i ou i m p e r a d o r d e s e m p e n h a v a p a -pe l i m p o r t a n t e . A t po l t i co s e le i tos p e l o p o v o , c o m o o l iberal ingls G l a d s t o n e , e x p l i c a v a m q u e n o e r a m d e m o c r a t a s , tal era o p e s o n e g a t i v o q u e se p o d i a p r e n -de r a o t e r m o .

    Fo i depo i s d a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l q u e d e -m o c r a c i a s e t o r n o u t e r m o pos i t ivo . Isso s e v m e s m o na h ipocr i s i a dos d i t ado re s , c o m o os brasi leiros ou o s comun i s t a s , q u e , e n q u a n t o r e p r i m i a m as l iberdades , d i z i a m q u e seus r e g i m e s e r a m " d e m o c r a c i a s " , s vezes c o m