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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO ANA CAROLINA CHERMAN PERDIGÃO DE OLIVEIRA A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO DIGITAL: As possibilidades e desafios da transição tecnológica Niterói 2014

A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO … · trabalho do diretor de fotografia no cinema. ... O estudo mais aprofundado desta passagem tecnológica na práxis cinematográfica

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL

DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO

ANA CAROLINA CHERMAN PERDIGÃO DE OLIVEIRA

A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO DIGITAL:

As possibilidades e desafios da transição tecnológica

Niterói

2014

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ANA CAROLINA CHERMAN PERDIGÃO DE OLIVEIRA

A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO DIGITAL:

As possibilidades e desafios da transição tecnológica

Projeto Experimental apresentado por Ana Carolina Cherman Perdigão de Oliveira, matrícula 109.57.025, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Cinema e Audiovisual.

Orientadora: Prof. Marina Tedesco

Niterói

2014

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RESUMO

Este trabalho visa analisar as principais mudanças ocorridas na direção de fotografia brasileira

a partir do advento da intermediação digital. Através de uma reflexão história acerca das

manipulações fotográficas no processo fotoquímico, da descrição das ferramentas de

finalização digital disponíveis hoje, assim como de entrevistas com fotógrafos e coloristas,

esta monografia pretende compreender os avanços e retrocessos da nova tecnologia nos

campos metodológico, estético e das relações profissionais.

Palavras-chave: direção de fotografia, cinematografia, correção de cor, intermediação digital

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AGRADECIMENTOS

À Nina Tedesco, pela orientação e carinho. Por acreditar em mim apesar das idas e vindas,

entre as inúmeras filmagens e projetos que me afastavam de escrever.

Aos entrevistados Mauro Pinheiro Jr, Affonso Beato, Ricardo Della Rosa e Fábio Souza pela

disponibilidade e gentileza em dedicar parte de seu tempo livre a essa troca de conhecimento

e experiências.

Ao João Luiz Vieira, Cezar Migliorin, Maurício Bragança, Mariana Baltar, Simplício Neto,

Fred Benevides, e demais professores da UFF, pelas aulas inesquecíveis que faziam a

travessia da ponte valer a pena. Um agradecimento especial a banca, Fernando Morais e

Elianne Ivo, pelo apoio e disponibilidade em plena Copa do Mundo.

Aos companheiros da UFF, pela inspiração, amizade e troca; que me ensinaram que

felizmente não se faz cinema sem grandes parceiros.

Ao meu irmão, por me respeitar e me incentivar sempre, apesar das nossas (grandes)

diferenças.

Ao meu pai, que me inspira a escrever, pelos conselhos e calma nos meus momentos de crise;

à Flávia, por reservar com carinho uma escrivaninha nesse lar de escritores.

À minha mãe, por ser mãe, amiga e leitora atenciosa. Por me amar acima de tudo, vibrar

sempre com minha felicidade e nunca me deixar desistir.

À todos os meus amigos, que são os melhores do mundo : pelo apoio, pelo carinho, pelas

risadas, pelo amor.

“Até mais, e obrigada pelos peixes!”

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................................6

1. A FINALIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA NA ERA PRÉ-INTERMEDIAÇÃO DIGITAL

1.1 A cadeia fotoquímica ...............................................................................................9

1.2 As intervenções do fotógrafo na cadeia fotoquímica .............................................10

2. A FINALIZAÇÃO DIGITAL NO SÉCULO XXI : NOVAS FERRAMENTAS E POSSIBILIDADES

2.1 Breve Histórico ......................................................................................................17

2.2 Primeiras experiências no Brasil ............................................................................19

2.3 As ferramentas de correção de cor .........................................................................21

3. O FOTOGRAFO E A FINALIZAÇÃO DIGITAL :

NOVOS AGENTES, NOVAS FORMAS DE TRABALHAR …………………………...….33

CONSIDERAÇÕES FINAIS ………………………………………..………………...……..47

BIBLIOGRAFIA ………………………………………………………………...…………..49

ANEXO – Entrevistas ………………………...………………...……………………………50

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INTRODUÇÃO

A indústria cinematográfica passa, atualmente, por um progressivo processo de

digitalização. Ao longo dos anos 90, desde as primeiras experiências em intermediação

digital1, o processo fotoquímico foi pouco a pouco sendo substituído pelo digital nas etapas de

produção, pós-produção e exibição cinematográfica.

Mas antes mesmo que a película fosse majoritariamente substituída por câmeras e

projetores digitais, o processo de intermediação digital se tornou padrão, ampliando

consideravelmente as possibilidades de criação e transformação da luz e cor no cinema. Este

processo teve repercussões no trabalho de quase todos os profissionais envolvidos com a

produção de filmes, sendo os fotógrafos especialmente afetados.

Ainda que o trabalho do diretor de fotografia nunca tenha se limitado a captação das

imagens durante as filmagens, e os processos laboratoriais de revelação e marcação de luz

ótica sempre tenham feito parte do processo criativo fotográfico, a correção de cor digital

ampliou em muito as possibilidades de manipulação da imagem, abrindo caminho para novas

formas de fotografar.

O interesse para o estudo deste tema surgiu a partir do questionamento de como as

novas tecnologias digitais, recentes e já tão paradigmáticas na indústria, influenciam o

trabalho do diretor de fotografia no cinema. Este trabalho se justifica pela importância de

analisar a influência da finalização digital, como uma nova etapa histórica marcada por

mudanças no modo de produção, assim como na estética dos filmes contemporâneos.

A intenção de focar nas repercussões desta tecnologia no trabalho do fotógrafo, à

partir das relações estabelecidas desde a pré-produção até a finalização, pretende preencher

uma lacuna no campo do estudo cinematográfico brasileiro de investigação das suas próprias

experiências práticas de produção.

Percebemos, no estudo e ensino da fotografia cinematográfica contemporânea, uma

ausência do retorno do conhecimento prático adquirido a cada nova produção audiovisual,

principalmente no que diz respeito às novas tecnologias. Para uma nova geração de fotógrafos

e aspirantes, já formados em meio aos processos de correção de cor e finalização digital,

torna-se ainda mais importante entender as mudanças propiciadas por esses processos, as

novas possibilidades estéticas, assim como abandono de algumas práticas fotográficas (e suas

possíveis consequências a curto e longo prazo).

1 Processo pelo qual a película cinematográfica passa por um scanner de alta definição para digitalização e tratamento digital, posteriormente sendo impressa de volta em negativo para a reprodução e projeção.

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O estudo mais aprofundado desta passagem tecnológica na práxis cinematográfica

também se justifica por permitir ir além de uma visão generalista da tecnologia, para entender

que sua influência repercute de formas diferentes de acordo com o contexto econômico-

cultural de cada produção e com as influências técnicas-estéticas de cada fotógrafo.

Para esta monografia, resolvi abordar a questão através do caso cinematográfico

brasileiro, ainda que o processo tenha se dado de forma semelhante em diversos outros países

do mundo. Me concentrei também no contexto de longa–metragens, exibidos em salas

comerciais, onde acredito que as possibilidades fotográficas das novas tecnologias sejam

apropriadas pelos fotógrafos com menor limitações orçamentárias (ainda que alguns filmes de

baixo-orçamento possam ser citados).

No primeiro capítulo do trabalho, apresento uma breve retrospectiva histórica de como

era feita a finalização fotoquímica no cinema pré-intermediação digital. Neste capítulo

identifico como se dava a intervenção do fotógrafo durante todo o processo de produção, da

escolha da película à revelação, no método que prevaleceu no cinema por quase todo o século

XX.

No segundo, introduzo o processo de intermediação digital, das primeiras experiências

à chegada no Brasil, assim como o processo atual. Farei também um breve resumo das

ferramentas de correção de cor disponíveis, como elas são operadas, e até onde podem atuar

na imagem. Partindo de um workflow híbrido2, comum a maioria dos filmes produzidos hoje,

busco explicar como a intervenção do fotógrafo e colorista ocorre no momento da pós-

produção. Para isso, utilizarei o programa Da Vinci Resolve, disponível hoje tanto como

plataforma para suítes de correção quanto como software para uso doméstico 3 , para

exemplificar as ferramentas mais utilizadas na maioria dos programas.

Finalmente, no terceiro capítulo, discuto as principais mudanças no trabalho do

fotógrafo com a nova tecnologia. Investigo aqui as diferenças no processo de fotografar um

longa-metragem utilizando as ferramentas de finalização digital. O que mudou nas diversas

fases de um filme – preparação, filmagem, finalização ? Quais as novas possibilidades

estéticas e desafios técnicos oferecidos ao fotógrafo pelas novas ferramentas ? Qual a relação

que se estabelece entre fotógrafo, colorista e produtor ? Houve uma migração de

investimentos (de tempo e orçamento) da filmagem para a finalização? Existe perda de

importância ou de status do fotógrafo no processo atual? 2 Workflow híbrido: Cadeia cinematográfica em que se utiliza tanto a película (seja na captação ou na cópia final), quanto o digital (na captação, intermediação e/ou exibição). 3 Para exemplificação neste trabalho uso a versão Da Vinci Lite, disponível gratuitamente para download no site da Black Magic (http://www.blackmagicdesign.com/products/davinciresolve).

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Fundamento essas respostas à partir de entrevistas realizadas com fotógrafos e

coloristas que vivenciaram em suas carreiras essa mudança de paradigma, aprendendo a lidar

com as novas possibilidades e desafios de forma construtiva e colaborativa. Através da análise

destas entrevistas, busco finalizar este capítulo com reflexões mais amplas sobre este novo

momento tecnológico, analisando também as tendências no trabalho do diretor de fotografia

no futuro próximo.

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1. A FINALIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA NA ERA PRÉ-INTERMEDIAÇÃO DIGITAL

1.1 A cadeia fotoquímica

Até que as primeiras experiências com manipulação digital se tornassem viáveis e

tecnicamente equivalentes à qualidade exigida pela indústria cinematográfica, a finalização

fotoquímica permaneceu como o padrão ao longo de todo o final do século XX. As principais

etapas na cadeia de produção pouco mudaram inicialmente com o advento da intermediação

digital, que apenas acrescentaria uma etapa de manipulação digital no meio do processo, e

ainda servem como base conceitual mesmo para as cadeias totalmente digitais.

A cadeia fotoquímica se iniciava com a filmagem, ou seja, com a exposição da

película à luz através de uma câmera cinematográfica. A maioria dos longa-metragem de

ficção, à partir da década de 50, era filmada em negativos coloridos tripack, de diferentes

sensibilidades, que ofereciam uma grande latitude de exposição e boa reprodução das cores4.

O filme exposto era então levado ao laboratório onde seria revelado de acordo com as

recomendações do fotógrafo.

Após revelado o negativo, o laboratório gerava, inicialmente, o chamado copião,

primeira cópia utilizada para visualização do material captado pelo diretor, diretor de

fotografia, diretor de arte, e demais membros da equipe. Era à partir desta cópia que o filme

seria montado, enquanto o negativo original era arquivado no laboratório. A montagem era

feita na mesa de montagem (que ficou popularmente conhecida pelo nome de sua principal

marca Moviola), onde os montadores manipulavam fisicamente a película, cortando e

emendando os planos do filme.

A edição manual na mesa de montagem foi substituída nos anos 90 pela digital em

computadores. Podemos considerar, a princípio, a montagem não-linear digital como a

precursora da intermediação digital, ainda que ela fosse neste momento incompleta. O digital

era apenas um meio facilitador, já que a película era digitalizada em telecines de baixa

qualidade, que serviam apenas como referência para montagem. Após montado o filme

digitalmente, o copião era conformado através de uma EDL (Edit Decision List, ou Lista de

Decisão de Edição), para finalmente o negativo original ser montado. 4 Era possível também filmar em películas positivas (reversíveis) e em películas preto-e-branco, mais utilizadas para televisão ou documentário. Ainda que desde a década de 30, já fosse possível filmar em negativos coloridos Technicolor, o preto-e-branco perdeu realmente a importância após a introdução dos negativos tripack de única emulsão, muito mais sensíveis, mais práticos e com cores mais fiéis do que o processo Technicolor. À partir das décadas de 50/60, o uso do preto-e-branco se restrigiu à documentários, alguns programas de televisão e filmes de arte.

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Imagem 1 - Moviola Prevost

Fonte: Site Cinema Web5

Seja no método tradicional da moviola ou no método digital, o produto ao final da

montagem era a película original montada6, que daria origem à todas as cópias do filme.

Neste momento era realizado o processo de marcação de luz ótica, onde o negativo passava

por uma máquina com vidro despolido iluminado e o fotógrafo escolhia junto ao colorista o

ajuste da luz de copiagem (entre os componentes vermelho, verde e azul) para cada plano ou

cena. Este ajuste era anotado e utilizado para gerar a cópia zero, e sendo esta aprovada,

serviria de base para todas as cópias do filme.

1.2 As intervenções do fotógrafo na cadeia fotoquímica

1.2.1 A escolha do negativo

A escolha do negativo talvez fosse na cadeia fotoquímica a primeira escolha estética

do fotógrafo. Antes do surgimento da intermediação digital, havia uma maior diversidade de

5 Disponível em: http://cinema.web-libero.it. Acesso em abril/2014. 6 O processo mais seguro contaria também com a fabricação de um interpositivo e de um internegativo, à partir do qual seriam feitas as cópias. Apesar de recomendável para a preservação da película original, no Brasil alguns filmes pulavam esta etapa por limitações orçamentárias.

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películas no mercado. Na década de 90, o fotógrafo tinha a sua disponibilidade negativos

Kodak, Fuji e Agfa, de diferentes sensibilidades, cada um com suas particularidades.

Normalmente, antes da escolha final da emulsão, o fotógrafo realizava diversos testes

com as possíveis películas a serem utilizadas em diferentes condições de luz, cenário, figurino

e maquiagem do filme. Cada emulsão possui características específicas de latitude, contraste,

cor, além de serem preparadas para o uso em luz do dia (Daylight) ou fontes de luz

Tungstênio. Elas também podem reagir de forma diferente a diferentes tipos de revelação e

manipulação.

Ricardo Della Rosa (2014) explica que isso perdeu o interesse à partir do DI7: Porque a película tem uma etapa a mais, mesmo que seja a finalização digital. (…) você não faz isso numa Alexa, você só tem o Log C, sempre vai ter aquela latitude. Tem negativo, sei lá, que a latitude é mínima. Então já vem contrastado pra caramba. Apesar que a evolução do negativo também foi voltada pra isso, mais latitude, mais latitude. Tem isso. É muito mais interessante pra todo mundo, você ter a informação do todo e decidir o que você quer depois.

1.2.3 Tratamentos especiais no laboratório

O processo de revelação dos negativos e cópias também tem na cadeia inteiramente

analógica uma função importante na impressão do estilo fotográfico do filme. Cada emulsão

possui como base as químicas e procedimentos de revelação recomendados para garantir seu

melhor aproveitamento. Ao modificar esse procedimento padrão, é possível, entretanto, obter

uma alteração considerável de contraste, apresentação de cores e textura (grão).

7 DI: Digital Intermediate, termo inglês para Intermediação Digital.

Imagem 2 – Exemplo de processamento usual da película na cadeia fotoquímica.

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Fonte: Kodak Education8

Por conta disso, os fotógrafos sempre se interessaram em pesquisar, em conjunto com

os laboratórios, o uso de procedimentos especiais de revelação que permitissem desenvolver

novos looks, indo de encontro com o estilo de cada projeto. Para Mauro Pinheiro Jr., essa era

a principal ferramenta do fotógrafo para não “ficar na mão da Kodak”, principalmente no caso

das filmagens em exterior. (PINHEIRO, 2014). Ele cita em entrevista, o processo de

experimentação laboratorial de seu primeiro longa-metragem Cinema, Aspirinas e Urubus

(Marcelo Gomes, 2005): Eu fui pro Sertão, com o Marcelo, a gente foi ver locação, aí eu levei minha Bolex, com reversível e negativo, levei uns 30 rolos de negativo, sei lá, na época era um 250 ASA e um 50 ASA rebobinados nas bobinas de câmera fotográfica. Aí tirei 4 filmes na viagem inteira, com 3 exposições cada foto. E tirei 20 filmes, de menos 4 até mais 4, de 3 situações, que eu parei na viagem pra fotografar, e comecei a fazer essa pesquisa. Mandei pro laboratório e falei “um revela normal, um revela puxando, um sub-revela”. Aí a gente via esse material e eu falava “Marcelo, gostei muito desse contraste, mas gostei da saturação daquele, que que a gente faz? Você gosta assim também?” e ele “É, acho que pode ser bacana isso”. Aí a gente ligava pra Marta Reis, na Mega, e falava “Marta, é o seguinte: o contraste do puxado foi legal, mas ele ficou muito saturado, a dessaturação do revelado é boa, então vamos tentar um bleach de 2/3?”, “Aonde? Na revelação ou no internegativo?” Aí a gente revelou 10, 15 rolos, cada rolo de uma maneira diferente.até a gente chegar em um e falar “esse a gente gostou”. E o que a gente gostou era exposição +2, e um internegativo de 2/3 de bleach. E aí a gente pegou aqueles 4 rolos que eu tinha feito da viagem inteira, das casas, das pessoas, e revelou neste processo que a gente escolheu.

Dentro dos processos laboratoriais mais utilizados estão:

a) Revelação Puxada ou Rebaixada

A revelação puxada é uma técnica muito utilizada quando se precisa expor um

negativo de determinada ISO a uma condição de luz inferior à recomendada. Podemos, por

exemplo, expor um negativo ISO 500 à ISO 1000 ou 2000. Para isso, o laboratório super-

revela o filme, aumentando o tempo do banho revelador. Este processo, além de compensar a

subexposição, altera as características normais do filme, diminuindo a latitude e aumentando

o grão e o contraste consideravelmente. Ele pode ser usado em apenas alguns rolos do filme,

quando o fotógrafo não dispõe da emulsão de sensibilidade necessária, mas também como

uma opção estilística, no filme inteiro ou em sequências pré-determinas.

O inverso desse processo, ou seja, a revelação rebaixada é utilizada para aumentar a

latitude da película, diminuir o contraste e obter um resultado mais limpo, menos granulado.

8 Disponível em: http://motion.kodak.com/motion/Education/. Acesso em abril/2014.

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Com a evolução na qualidade e definição das películas mais modernas, esta revelação passou

a ser muito pouco utilizada.

Ambos os processos, apesar de simples, alteram o fluxo automático de revelação no

laboratório, e aumentam os riscos de erros, apresentando portanto um custo maior do que o da

revelação comum. Por conta disso, foram praticamente abandonados à partir da intermediação

digital.

b) Revelação Bleach Bypass (ou sem branqueamento)

O bleach bypass consiste em pular o banho branqueador do processamento, fazendo

com que o filme mantenha o grão de prata acoplado ao pigmento cromógeno da película.

Como resultado, se obtém um filme muito mais contrastado e granulado, com um aumento da

saturação das cores primárias e desaturação dos meio-tons. O resultado final pode ser bem

intenso, e por isso o fotógrafo realiza vários testes com o negativo, nas condições de luz e

exposição que se pretende utilizar.

Na década de 90 este procedimento se popularizou bastante e os laboratórios

desenvolveram técnicas para realizar o branqueamento parcial, já que o bleach bypass por

completo era muitas vezes bastante radical. Outros procedimentos de retenção da prata

também foram desenvolvidos, como o ENR9, que acrescentava uma segunda revelação com

químicos para película preto-e-branco na cópia positiva. O resultado era parecido com o

bleach bypass, porém era possível obter resultados mais sutis e controlados, e com maiores

nuances nas áreas de sombra. Como a retenção da prata era feita nas cópias, isso gerava um

aumento considerável nos custos de laboratório, indesejável na maioria das produções. Outro

problema era que mesmo buscando uma escala gradativa e comparativa do sistema, muitas

vezes uma cópia ficava diferente da outra (ainda mais cópias realizadas em laboratórios de

regiões diferentes), comprometendo a coerência estilística do filme.

As cópias em processo bleach bypass também apresentam uma questão para a

preservação cinematográfica. A não retensão da prata diminui bastante o tempo de vida do

material sensível. Essa particularidade se torna ainda mais grave no caso de filmes em que o

processo é utilizado diretamente no negativo original.

Um grande exemplo de bleach bypass utilizado no Brasil foi o filme Madame Satã

(Karim Ainouz, Brasil, 2002) fotografado por Walter Carvalho. Foram realizados uma série

9 ENR: iniciais do laboratorista Ernesto Novelli Rimo, da Technicolor Rome, responsável pela criação deste processo de retenção de prata à pedido de Vittorio Storaro.

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de testes para descobrir qual seria o melhor processo de revelação a ser utilizado. Walter

ousou ao adotar o bleach bypass integral no negativo, mesmo que por conta disso tivesse que

refilmar algumas cenas (SOUZA, 2014). Dessa forma, ele garantia uma fotografia com pretos

profundos e cores desaturadas, de forma mais vibrante do que quando feito na revelação das

cópias10.

Imagem 3 - Frame de Madame Satã, com revelação bleach bypass em todo o negativo.

Fonte: Print screen elaborado pela autora.

c) Flashagem

A flashagem ou pre-flashing é o processo pelo qual se expõe a película a uma

quantidade homogênea de luz, anteriormente a sua exposição normal na câmera. Esta pré-

exposição da película faz com que o filme ganhe mais informação nas áreas de preto e reduz o

contraste geral da imagem (os pretos se tornam menos pretos, mais leitosos, acinzentados).

Como o contraste tem uma forte influência na percepção de definição da imagem, este

processo cria uma imagem mais doce, suavizada. Pode ser realizado com luz branca ou

colorida. Enquanto a branca só produz o efeito de diminuição do contraste e saturação, a luz

colorida pode dar uma tonalidade à imagem, em especial às zonas de sombra.

O pre-flashing pode ser realizado tanto em câmera (tanto a Arri quanto a Panavision

deselvolveram ao longo dos anos 80 e 90 acessórios para tal função), quanto em laboratório,

em ambiente controlado. De ambas as formas, sempre foi um procedimento arriscado, pois

10 AINOUZ, Karim. Entrevista concedida à Allen Frame, 2003.

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nem todos os filmes reagiam da mesma forma e o risco só poderia ser avaliado após a

filmagem e revelação do filme. O processo foi especialmente utilizado em conjunto com o

bleach bypassing, que compensava seu efeito de diminuição do contraste, mantendo a

tonalidade diferenciada das sombras.

d) Revelação Cruzada

A revelação cruzada talvez seja o mais radical desses processos, tendo sido portanto

menos utilizada na cinematografia comercial. Ela consiste em revelar um película positiva

(como por exemplo o Kodak Ektachrome) pelo processo ECN-2, desenvolvido para a

revelação de negativos. O resultado é o aumento considerável do contraste e saturação da

imagem, assim como a distorção de algumas cores, que podem variar de acordo com a

temperatura de luz e exposição utilizadas. É muito comum a intensificação dos tons magentas

e cianos nas áreas de altas e baixas luzes.

Esta técnica, por ser bastante arriscada e muitas vezes apresentar efeitos inesperados,

exige uma série de testes de laboratório anteriores a filmagem e tem um alto custo de

produção. Seu efeito diferenciado e impactante, entretanto, fizeram que ela fosse bastante

copiada digitalmente com o advento da correção de cor digital.

Imagem 4 - Exemplo de negativo Kodak com revelação cruzada.

Fonte: Kodak11

11 Disponível em: http://www.kodak.com/global/en/service/tib/tib5200.shtml. Acesso em abril/2014.

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c) A marcação de luz ótica

A marcação de luz ótica tem papel equivalente no processo inteiramente fotoquímico à

correção de cor no digital. Antes do advento da intermediação digital, era a única forma que o

fotógrafo possuía de equilibrar ou alterar as diversas condições de luz reveladas do negativo

para a cópia final.

No processo de marcação de luz tradicional, só é possível alterar o balanço de cores e

densidade da imagem através dos três canais primários de luz: vermelho, verde e azul. Não é

possível modificar uma região específica, cor ou mesmo alterar separadamente altas e baixas

luzes. Essa correção de base ficou posteriormente conhecida nas ferramentas digitais como

correção primária.

Os aparelhos de marcação, chamados de Color Analyzer possuem uma regulagem em

pontos, que vão de 1 a 50, e definem a percentagem de luz em cada canal de cor a ser

utilizado na copiadora. A cada 6 pontos, corrige-se o equivalente a um stop de luz. Após

alguns testes de marcação, quando a copia é finalmente aprovada pelo fotógrafo, o colorista

imprime uma lista com a pontuação de copiagem, que será utilizada para reproduzir todas as

cópias do filme.

Como a marcação de luz ótica oferece bem menos liberdade ao fotógrafo do que a

digital, menos elementos estéticos eram deixados para serem definidos na finalização. Ainda

assim, não podemos diminuir a importância desta ferramenta de manipulação fotográfica, já

que muitos filmes de estética inovadora foram realizados no passado servindo-se apenas desse

processo.

Até hoje, os filmes que são transferidos do digital para a película passam na hora da

cópia pelo processo de marcação de luz ótica. Como as imagens já foram tratadas

digitalmente, entretanto, a marcação é neutra, apenas garantindo a coerência das cópias.

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Imagem 5 - Color Analyser da Filmstate

Fonte: Elaborada pela autora (Labocine, Rio de Janeiro).

2. A FINALIZAÇÃO DIGITAL NO SÉCULO XXI : NOVAS FERRAMENTAS E POSSIBILIDADES

2.1 Breve Histórico

Podemos considerar o advento do telecine, na década de 70, como precursor da

finalização digital e manipulação de cor cinematográfica. Neste primeiro momento, as

máquinas de telecine eram utilizadas para transformar o negativo filmado em sinais

eletrônicos de vídeo, e serviam apenas a produção de produtos comerciais e de teledifusão.

Era possível realizar pequenos ajustes de densidade de luz e temperatura de cor na máquina,

em tempo real. Ainda que a perda de qualidade no processo fosse grande, e as possibilidades

restritas a manipulação linear, algumas experiências criativas de alteração de cores no ramo

dos videoclipes e comerciais, instigaram diretores e fotógrafos ao seu futuro uso na cadeia

cinematográfica.

Com o surgimento dos programas de edição não-linear, no final da década de 80 e

início de 90, o telecine passou a servir a cadeia fílmica como intermediário. Os filmes eram

digitalizados e montados em softwares de edição, que geravam uma Edit Decision List (EDL).

Essa lista servia como guia para a montagem na moviola do negativo original. A correção de

cor no telecine, entretanto, continuava servindo apenas aos produtores de vídeo ou televisão.

Jack James (2005) comenta sobre este período: “Você via aqueles comerciais e clipes

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absolutamente incríveis e isso deixava os caras do cinema, que não podiam fazer aquilo,

bastante invejosos”12.

Ao longo da década de 90, o desenvolvimento dos softwares de efeitos especiais e

CGI13 impulsionou a busca por um sistema de escaneamento do negativo que garantisse

qualidade para uma posterior reimpressão em película. Alguns filmes passariam a utilizar o

transfer em película apenas na sequências de efeitos, já que sua qualidade não era suficiente

ou era um processo caro demais para ser usado em todo o filme.

O lançamento da Cineon, da Kodak, em 1993 marcou uma nova fase na intermediação

digital. O sistema que englobava do scanner a máquina de transfer14, e já trabalhava com

resoluções de 2K15 e RGB 10 bit-log16, definiria por um bom tempo o padrão de qualidade em

intermediação digital. Ele havia sido resultado de uma ampla pesquisa da Kodak tanto na área

de scanner em CCD (charged-coupled devide) e gravação a laser em película, quanto no

desenvolvimento de espaços de cor compatíveis com o armazenamento da informação da

ampla latitude dos negativos17.

Em paralelo à Cineon, o aperfeiçoamento das máquinas de telecine apresentava

sistemas cada vez mais complexos de correção de cor. No final da década de 90, mesas de

correção como a Da Vinci e Pogol já eram acopladas às maquinas de telecine. Os telecines

também se desenvolviam chegando a produzir arquivos HD em tempo real. Faltava apenas a

combinação do processo de escaneamento logaritmo de negativos e o transfer com a

manipulação de cores já realizada nos telecines.

Em 1998, A vida em preto e branco (Pleasantville, de Gary Ross, Estados Unidos,

1998) foi o primeiro filme a ser inteiramente escaneado, processado digitalmente e reimpresso

em película. O filme, que narra a história de dois garotos que entram no mundo da televisão,

construía uma narrativa pautada na transformação do preto-e-branco em colorido, em apenas

algumas regiões da imagem. O processo entretanto, foi realizado plano a plano por artistas de

efeitos especiais, pois o workflow de DI por completo não estava perfeitamente amadurecido.

12 “You would see these absolutely incredible commercials and music vídeos and this made the film guys that couldn’t do this very jealous” , JAMES, 2005. (Tradução da autora.) 13 Sigla para Computer Generated Imagery, ou imagens geradas por computador. 14 Transfer: Impressão do arquivo digital para película. 15 2K: Termo genérico usado para resolução horizontal de imagem da ordem de 2 mil pixels. 16 Neste espaço de cor, cada canal (R, G e B) possui 10 bits log por pixel, ou seja, 1024 níveis de cor, ao invés de 256 no espaço de 8 bits. 17 As pesquisas da época indicaram que o negativo não deveria ser codificado em bits lineares, já que assim precisaria de 12 a 16 bits de cor, mas em bits logarítmicos, que respeitavam a curva sensitométrica natural da película.

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19

O longa-metragem E aí, meu irmão, cadê você? (O Brother, Where Art Thou?, Irmãos

Cohen, Estados Unidos, 2000), foi finalmente o primeiro filme de Hollywood a ser tratado

inteiramente em DI. Ele utilizou o recém-desenvolvido scanner 2K Spirit Datacine e a estação

Pandora Mega-Def para a correção de cor.

O impacto de suas imagens causou uma verdadeira revolução na cinematografia

mundial. Diferente de outros casos, em que a manipulação digital havia sido utilizada como

ferramenta para os efeitos visuais, o filme possuía pouquíssimos efeitos, sendo o DI focado

essencialmente no tratamento de cor. Sua palheta de cores bem definida, trabalhava a pele

alaranjada em contraste com o céu azulado de uma forma nunca antes vista. O visual

marcante do filme incentivou diretores e fotógrafos pelo mundo a experimentar as novas

tecnologia.

Imagem 6 - Frame de E aí, meu irmão, cadê você? (Irmãos Cohen, 2000)

Fonte: Print screen elaborado pela autora.

Ao longo da primeira década dos anos 2000, houve uma imensa evolução nos

softwares de correção de cor. Em 2001, a Da Vinci lança em seu sistema o Power Grade e um

sistema de galeria que permitia arquivar stills de referência para correção de cor. Essas

ferramentas facilitavam muito a comparação de planos e estilos, agilizando a pós-produção.

Ainda em 2001, a empresa 5D desenvolve o software Colossus, especialmente para a

correção de cor da trilogia do Senhor dos Anéis. Esse software apresentava um sistema

inovador de correção de primárias e secundárias e foi posteriormente renomeado Lustre

(licenciado pela Autodesk). À partir de 2003, a Da Vinci correu atrás aprimorando seu

software Resolve e a Quantel lançando o Pablo. Os três sistemas citados, em conjunto com o

Assimilate Scratch e o Baselight, permaneceram como as principais suítes de correção de cor

no mercado cinematográfico.

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20

2.2 Primeiras experiências no Brasil

A primeira experiência de longa-metragem com pós-produção inteiramente digital no

Brasil foi O Invasor (Beto Brant, Brasil, 2002). Devido ao baixo orçamento do filme, o

fotógrafo Toca Seabra optou por filmá-lo em Super 16mm e finalizá-lo em HD, para transfer

em 35mm. O digital lhe proporcionava uma melhor qualidade que a ampliação ótica em

35mm e permitia trabalhar com menos luz e criar os efeitos de cor desejados na finalização.

O filme foi todo telecinado em HD, em espaço de cor linear18. Na época, já se

reconhecia que este não era o workflow ideal para um filme com cópia final em película, mas

ainda era inviável no Brasil fazer de outra forma. José Augusto de Blasis, supervisor de

finalização na Mega, disse em entrevista à Sessão ABC (2002): “Nos EUA eles têm uma coisa que é o DATACINE - um telecine que converte a

imagem da película em dados, não em vídeo como o HD. Agora, fazer um longa

inteiro no Brasil com essa tecnologia é economicamente inviável. Eu acho que o HD

é o tamanho da possibilidade do Brasil e a gente tem que trabalhar com ele, pelo

menos por enquanto.”

Imagens 7a e 7b – Frames de O Invasor: Noturnas saturadas e esverdeadas e diurnas contrastadas e desaturadas (inspiradas no bleach by pass).

Fonte: Print screens elaborado pela autora.

O primeiro longa com finalização 2K no Brasil foi Casa de Areia (Andrucha

Waddington, Brasil, 2005), fotografado por Ricardo Della Rosa. Antes disso, ele já havia

finalizado Olga (Jayme Monjardim, Brasil, 2004) digitalmente, mas em HD. Ricardo comenta

que nesta época, o processo ainda estava numa fase de transição, em que se buscavam

resultados muito próximos do processo ótico:

18 Espaço de cor linear é o espaço de cor utilizado em vídeo e televisão, com curva de gama retilínea. Em cinema, é recomendável a utilização de um espaço de cor logarítimo, que respeite as características sensitométricas da película sem perda de informação.

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Então, eu lembro que o desafio inicial na finalização digital era assim : “como é que a gente vai fazer um bleach by pass ?”, o processo sem branqueador... Como é que a gente simula isso digitalmente ? E aí a gente pensava, vamos fazer isso na película, e ai depois a gente vê aquilo que a gente quer. Eu cheguei a fazer testes, rodados em película, finalizados em película e depois filmados de novo e finalizados em digital para tentar reproduzir aquilo digitalmente. Então eu acho que o digital veio para simular tudo aquilo que o filme fazia : todo tipo de revelação, a alquimia toda que você tinha no laboratório, […] ai aparecerão novos técnicos, com ferramentas diferentes. Eram pessoas que vieram do photoshop, do mundo digital, com pouco conhecimento da parte química. Então esse início foi bem delicado. Porque você falava termos tipo « mais dois pontos de verde », que é uma linguagem do laboratório, « menos um de magenta » […] Você ia colocando gelatininha ponto a ponto no laboratório. Então quando você falava assim “põe quatro, menos dois” eles não entendiam… a velha geração muito mais do que eu já estava acostumada, mas eu também tinha alguma experiência com laboratório. O que acontece, quando a fotografia passou para o território digital, teoricamente, todo mundo acreditava que facilitou a fotografia. Que você faria a fotografia no telecine. Que você só tinha que imprimir ok, com informação, que depois você fazia tudo na marcação de cor. Porque até os coloristas vendiam isso… O que não era uma verdade. Cada vez mais é uma verdade, mas na época tinha muitas limitações, pelo menos no início aqui no Brasil. (DELLA ROSA, 2014)

Ainda que se acreditasse que era possível fazer de tudo com as novas ferramentas, os

softwares eram muito novos e as técnicas de correção pouco desenvolvidas. Ao longo da

década, a correção de cor evoluiu bastante, permitindo aos fotógrafos deixarem para a

finalização muitas manipulações de luz e cor que antes eram feitas na filmagem e revelação.

2.3 As ferramentas de correção de cor

Vivemos atualmente um momento verdadeiramente híbrido na produção

cinematográfica. Um longa-metragem, independente se foi captado em película ou câmeras

digitais, possui quase sempre um workflow híbrido, já que passa pela intermediação digital

(em que montagem e correção de cor serão feitas digitalmente) e é posteriormente distribuído

tanto em digital, quanto em película19.

Existe hoje uma série de ferramentas de correção de cor disponíveis, que se adaptam

aos mais variados workflows. Eles vão desde suítes completas de correção, presente nos

laboratórios, aos softwares mais leves de computador, para uso independente e doméstico.

Com tantos programas disponíveis (ex: Assilate Scratch, Lustre, Baselight, Da Vinci, etc),

fica a critério do colorista e da casa de finalização com quais eles preferem trabalhar e quais

se adaptam ao seu orçamento e equipamento.

19 Há uma tendência mundial de digitalização de toda a cadeia, já que cada vez menos filmes são rodados em película. Entretanto, ainda que captados digitalmente, muitos filmes são ainda transferidos para película, visto que o parque exibidor brasileiro ainda possui muitas salas sem projeção digital (ou com projeção de baixa qualidade).

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Nos últimos anos, ocorreu um progressivo barateamento dos programas de correção de

cor. Hoje, fotógrafos e estudantes podem trabalhar suas imagens em softwares gratuitos em

seu computador pessoal, desde que esse possua alguns requisitos básicos de processamento, o

que facilitou o aprendizado e a entrada de novos profissionais autodidatas no mercado.

O grande diferencial das suítes de correção de cor das casas de finalização é que

possuem máquinas muito mais potentes, permitindo o trabalho com arquivos pesados (em

Raw, em 2K e 4K) em tempo real. Além disso possuem monitores e projetores calibrados e

hardwares de scopes profissionais (waveform 20 , vectorscope 21 e parade 22 ) ferramentas

essenciais para uma correção fidedigna e constante durante todo o processo.

Neste capítulo, utilizarei o software Da Vinci Resolve Lite, versão gratuita da Black

Magic, para exemplificar a maioria das ferramentas básicas utilizadas pelos coloristas, nos

principais softwares de color grading. Tenho como objetivo não a exposição e explicação

detalhada dessas ferramentas, mas a forma como são utilizadas cotidianamente e as

possibilidades oferecidas por elas aos coloristas e fotógrafos na manipulação criativa de suas

imagens.

2.3.1 Monitoração

Imagem 8 - Exemplo de sala de correção de cor: software de correção de cor, scopes e projetor de alta definição calibrado.

Fonte: Site do Twitch Post23

20 Gráfico de luminância usado para monitorar todas as partes do sinal de vídeo - amplitude (voltagem) no eixo vertical e tempo no eixo horizontal. 21 Gráfico circular de monitoração que exibe somente informações sobre a porção de crominância (cor) do sinal. 22 Gráfico semelhante ao waveform de luminância, porém divido entre os três canais de cor RGB. 23 Disponível em: http://www.twitchpost.com/2010/04/twitch-launches-new-grading-suite/. Acesso em maio/2014.

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Antes mesmo de começar a correção de cor é preciso garantir que podemos confiar no

material visualizado na sala de correção. A sala de correção deve conter pintura e iluminação

neutra, e ficar o mais escura possível, simulando uma sala de exibição. As imagens devem ser

exibidas em monitores de vídeo ou projetores calibrados de acordo com o formato do produto

final desejado. No caso de obras a serem veiculadas no cinema, é essencial um projetor que

trabalhe em alta resolução (2K ou 4K) e em um espaço de cor compatível com o espaço CIE

XYZ do DCP (Digital Cinema Package)24.

As imagens brutas, sejam em formato DPX25 (vindas do escaneamento do negativo)

ou nos formatos RAW/Log C/etc (vindas de câmeras digitais profissionais) precisam passar

por um LUT26, antes de serem manipuladas. Ele é responsável pela conversão de espaços de

cor, necessária para monitorar da maneira correta, em um projetor digital (de espaço de cor

linear), a imagem que será impressa na película (logarítmica) ou empacotada para o cinema

digital (DCP).

Além de monitores calibrados, os coloristas utilizam os scopes para checar a correção

das imagens de forma objetiva. Eles são fundamentais para garantir, por exemplo, que o sinal

do material está dentro dos limites legais de preto, branco e saturação, definidos pelas

emissoras de TV. Além disso, servem como referência para garantir que o colorista não está

“acostumando o olhar” com certa estética e manipulando as imagens de forma cada vez mais

radical.

Apesar dos programas como o Da Vinci já possuirem scopes integrados, a maioria dos

coloristas prefere utilisar scopes externos de marcas confiáveis (ex: Tektronix, VideoTek,

OmniTek, etc) para análise. A vantagem dos scopes externos é que eles possuem processador

próprio e analisam a imagem em alta definição. Como os internos consomem muita energia

da máquina de correção, eles são quase sempre simplificados, ou seja, analisam uma a cada

duas ou quarto linhas da imagem. Além de serem imprecisos, eles podem apresentar atrasos

de visualização em relação ao playback, e não possibilitam a seleção de linhas específicas ou

zoom partes da imagem.

24 DCP: Formato padrão definido pelo DCI (Digital Cinema Initiatives) para empacotamento dos arquivos de imagem, som e data para exibição de Cinema Digital. 25 DPX: Formato de imagem, derivado do sistema Cineon da Kodak, utilizado hoje para intermediação digital e efeitos especiais. Ele representa a densidade de cada canal de cor de um negativo escaneado em modelo logarítimo sem compressão, preservando as características originais do negativo, e garantindo a flexibilidade necessária para o tratamento de cores. 26 LUT: Abreviação para o inglês Look-Up Table, ou tabela de visualização.

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Imagem 9 - Exemplos de monitores de vídeo scopes Tektronix, com diversas funções de análise embutidas.

Fonte: Site Tektronix27

Para os fotógrafos, essas ferramentas garantem que seu produto está dentro dos limites

corretos para a exibição, mas são pouco relevantes do ponto de vista criativo. Na criação de

um estilo para o filme, eles precisam poder confiar na imagem visualizada na projeção. As

variações sutis de luminância, contraste, e saturação, e os limites subjetivos desses ajustes

muitas vezes só podem ser medidos visualmente, instintivamente, e variam muito de projeto

para projeto.

2.3.2 Correções Primárias

Correções primárias são aquelas que afetam a imagem por completo. São as correções

mais básicas de exposição, contraste, saturação, etc. Em geral, são os primeiros ajustes feitos

há uma imagem, visando corrigir possíveis erros de exposição e balanço de branco, equilibrar

planos dentro de uma sequência, ajustar o contraste etc.

No caso do Da Vinci Resolve, as ferramentas de correção primária ficam do lado

esquerdo da tela, dentro da aba Color, sendo a principal delas as Color Wheels.

27 Disponível em: http://www.tek.com/. Acesso em maio/2014.

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Imagem 10 a e 10 b - Da Vinci Resolve 10 – aba Color - Color Wheels

Fonte: Elaborado pela autora.

Dentro das Color Wheels é possível fazer ajustes separadamente em três zonas: Lift

(baixas luzes), Gamma (médias) e Gain (altas luzes). No gráfico circular, Color Balance,

podemos corrigir desvios de cor presentes em qualquer uma dessas zonas, como por exemplo

no caso de um filme (ou preset digital) calibrado para luz tungstênio exposto a luz daylight

(azulada). Também é possível criar desvios propositais, como por exemplo dar um tom

azulado às baixas luzes, ao mesmo tempo que esquentamos (puxando para o amarelo) as altas.

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O botão de rolamento horizontal, chamado de Master Wheel, é onde aumentamos ou

baixamos a luminância de cada uma dessas zonas. Um ajuste comum, principalmente quando

a tendência atual é de captar imagens com menos contraste (garantindo informação em todas

as zonas da imagem), é o aumento de contraste através da diminuição das baixas luzes e o

aumento das altas.

Imagem 11 - Imagem antes e depois ajuste de contraste.

Fonte: Elaborado pela autora.

Embora as correções primárias sejam uma primeira etapa de balanceamento das

imagens, elas também podem ser usadas para definir como base um “look” estilizado para o

filme todo ou determinada sequência, e então partir para os ajustes finos, realizados através de

correções secundárias. Um exemplo é no caso de um filme que opte por uma estética bleach

bypass, com forte contraste e cores dessaturadas.

Imagem 12 - Exemplo de correção primária utilizada para criar efeito bleach bypass.

Fonte: Elaborado pela autora.

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2.2.3 Correções Secundárias

Correções secundárias são correções que afetam apenas uma parte selecionada da

imagem. Elas são o principal diferencial da correção de cor digital e foi através delas que os

softwares de correção de cor se desenvolveram ao longo dos anos. Hoje em dia, é possível

selecionar de forma bem precisa uma zona de cor ou área geométrica da imagem, em apenas

alguns cliques. Isso agiliza muito o trabalho do colorista e possibilita a criação de diversos

efeitos que antes só seriam possíveis com muito tempo (e investimento) de pós-produção.

O Da Vinci, assim como a maioria dos outros softwares modernos , trabalha com duas

formas de seleção de máscaras. A primeira delas é a seleção HSL (Hue/Saturation/Luminance,

ou Matiz/Saturação/Luminância). Através dessa ferramenta, é possível selecionar zonas de

cor especificas e aplicar ajustes somente a elas. É muito usada para aplicar ajustes específicos

às tonalidades de pele, ou alterar a cor do céu, vegetação, etc.

Imagem 13 - HSL Qualifier: seleção de máscaras através da matiz, saturação e luminância.

Fonte: Elaborado pela autora.

No exemplo abaixo, o colorista utiliza a ferramenta de seleção para dar vida aos tons

de pele, deixando-os mais rosados, enquanto mantém o fundo mais frio e dessaturado como

na imagem original.

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Imagem 14 - Correção de tons de pele.

Fonte: Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual28

Outra forma de delimitar máscaras de atuação é através de Power Windows, máscaras

vetoriais, com formas geométricas pré-definidas ou desenhadas livremente através de pontos

de contorno. As Power Windows funcionam muito bem quando é preciso selecionar uma área

como o céu, uma janela, um rosto, e aplicar efeitos apenas a ela ou seu exterior. Elas também

podem ser utilizadas para criar efeitos de vinhetagem ou degradês, que desviam sutilmente o

olhar do espectador para áreas de interesse da imagem.

28 Disponível em: http://www.blackmagicdesign.com/support. Acesso em abril/2014.

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Imagem 15 - Windows: criação de máscaras por formas vetoriais, degradês, inversões e combinações.

Imagem 16 - Máscara para selecionar personagem, criada através da aba Windows.

Fonte (15 e 16): Elaboradas pela autora.

É possível ainda misturar esses dois tipos de seleção. Ao criar uma máscara para o

azul do céu, e ainda assim delimitar uma área retangular de atuação na imagem, o colorista

garante que apenas o céu será afetado, nada irá atingir as nuvens ou o azul do mar.

No exemplo abaixo, através da seleção HSL não seria possível isolar apenas o rosto da

personagem, já que o mesmo alaranjado da pele estava presente em outros objetos do fundo.

Neste caso, adicionamos uma máscara oval delimitando a área de seleção do qualificador

anterior, e obtemos apenas a pele da personagem. Ao optar pela combinação de Power

Windows é preciso ficar atento, pois no caso de movimentação de personagens ou câmera, a

máscara deverá ser trackeada, deslocada ao longo do tempo.

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Imagem 17 - Máscara por qualificação de cor HSL Imagem 18 – Adição de máscara Power Window

Fonte (17 e 18): Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual29

Toda correção secundária pode ser animada ao longo de sua duração através de

keyframes. Keyframes são frames-chave escolhidos na linha do tempo de um clipe, onde o

colorista determina uma mudança de correção. O software calcula então todos os frames

intermediários, criando rapidamente animações e transições de correções.

No caso das máscaras, a maioria dos softwares como o Da Vinci disponibiliza uma

ferramenta de tracking de objetos em movimento. Para que a máscara acompanhe um

personagem em movimento, ele identifica pontos característicos contidos dentro da máscara

(ou selecionados manualmente pelo colorista) e segue-os durante o playback.

Imagem 19 - Pontos de tracking são automaticamente posicionados pelo software para acompanhar um personagem.

Fonte: Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual30

A ferramenta de tracking representou um grande avanço nos softwares de correção de

cor ao longo dos anos. Hoje é possível rapidamente realizar ajustes tão finos quanto alterar a

cor de um figurino e garantir que a máscara se mantenha precisa ao longo de toda uma

29 Disponível em: http://www.blackmagicdesign.com/support. Acesso em abril/2014. 30 Idem

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sequência. Esta mesma ferramenta também pode ser usada para acompanhar movimentações

de câmera e estabilizar vibrações na imagem.

2.2.4 Galeria

Outra ferramenta importantíssima dos softwares de correção e aliada do colorista na

manutenção de uma estética coerente pro filme é galeria de stills. O colorista pode adicionar

diversos frames na galeria de stills, organizando e catalogando as correções já feitas ao longo

do trabalho. Essas stills servem de referência na hora de corrigir novos planos e podem ser

visualizadas lado a lado com o frame atual sendo corrigido. No caso abaixo, vemos dois

planos sequenciais sendo postos lado a lado para comparar a continuidade de cor do azul do

céu. Podemos imaginar a dificuldade de fazer determinado ajuste sem a referencia visual de

comparação proposta pela galeria.

Imagem 20 - Galeria de Stills usada como referência para a comparação de planos lado a lado.

Fonte: Elaborada pela autora.

Através da galeria também é possível copiar e colar looks básicos já utilizados em

outras sequências do filme. Ao identificar uma sequência com características semelhantes à

outra já salva na galeria, o colorista pode visualisar os nodes de correção aplicados ao clip

salvo e copiá-lo para na imagem a ser corrigida. Essa ferramenta agiliza muito o processo de

correção, permitindo que o investimento de tempo do colorista e do laboratório seja melhor

empregado nas correções mais específicas e detalhadas.

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2.2.5 Organização por nodes

Uma das principais diferenças dos softwares de correção profissionais é que a maioria

deles trabalha com nodes. O sistema de nodes é uma forma de organizar diversas correções

em um fluxograma de transformação da imagem. Cada node pode conter uma ou várias

correções primárias e secundárias, mas quanto mais especifico é um node, mas se torna fácil a

visualização e organização do colorista.

Os nodes podem ser encadeados em série, em paralelo ou no sistema de camadas

(mais usado em composição). Os nodes em série são a forma mais simples de trabalhar uma

imagem. A imagem alterada em um node passa ao próximo node e é sucessivamente alterada

de forma linear.

Imagem 21 - Exemplo de organização de nodes em série

Fonte: Blog do colorista Alexis Van Hurkman31

Em alguns casos, entretanto, é mais interessante organizar os nodes de forma paralela.

O caso mais recorrente é quando queremos fazer dois ou mais ajustes na imagem que partam

de uma primeira imagem comum como base. Um exemplo seria caso o fotógrafo desejasse

esquentar a tonalidade da pele dos personagens, ao mesmo tempo em que diminui a saturação

de toda a imagem. Se então, o colorista diminuísse a saturação do plano em um node anterior

ao ajuste de pele, ficaria mais difícil selecionar a cor de pele por HSL, já que a pele estaria

dessaturada. Organizando os nodes de correção em paralelo, entretanto, tanto o ajuste de pele

quanto o ajuste geral de saturação tomam como ponto de partida a mesma imagem inicial

saturada. O resultado final é uma combinação balanceada desses dois ajustes.

31 Disponível em: http://vanhurkman.com/wordpress/. Acesso em abril de 2014.

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Imagem 21 - Exemplo de fluxograma de nodes em paralelo

Fonte: Blog do colorista Alexis Van Hurkman32

Cada colorista desenvolve, ao longo de seu trabalho, uma forma específica de utilizar

essas ferramentas e organizar suas correções por nodes. A maioria trabalha das correções mais

gerais às mais especificas, voltando a correções gerais de ajuste fino ou de suavização de

ajustes no final do processo. Ao longo do caminhar do filme e das discussões com o fotógrafo,

essa organização lhes permite voltar a alterar antigos ajustes, ou criar novos ajustes de forma

gradual e não destrutiva.

32 Disponível em: http://vanhurkman.com/wordpress/. Acesso em abril de 2014.

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3. O FOTOGRAFO E A FINALIZAÇÃO DIGITAL : NOVOS AGENTES, NOVAS

FORMAS DE TRABALHAR

O começo dos anos 2000, marcado pelo lançamento do filme E aí, meu irmão, cadê

você? (O Brother, Where Art Thou?, Irmãos Cohen, Estados Unidos, 2000), deu início a era

em que a finalização digital, especificamente a correção de cor, tomou frente, na indústria

cinematográfica, ao tradicional processo de finalização ótica. Era uma questão de tempo para

que mesmo os mais resistentes fotógrafos passassem a utilizar essa ferramenta como parte

fundamental no seu processo criação cinematográfica.

É importante notar que o início da correção de cor foi marcada por incertezas e falsas

promessas. Os softwares ainda eram muito básicos e os técnicos pouco experientes. Além

disso, a intermediação digital não apresentava resultados fidedignos no momento das cópias,

o que decepcionava muitos fotógrafos que optavam por adotá-la. Fábio Souza, colorista da

Labocine, lembra desta fase inicial: As primeiras experiências foram trágicas. Porque você estava acostumado a trabalhar com a película...Aqui na Labocine, demorou um pouco o investimento na parte digital. Então eu via material chegando de transfer de outros laboratórios. E a imagem...eu sempre via os diretores e os diretores de fotografia muito frustrados. E como eu já tinha uma bagagem legal com a parte ótica, conhecendo todo mundo, com uma bagagem bacana, eles começaram a trazer os filmes pra cá, achando que eu poderia resolver. [...] Então eu tive que começar a usar, nessa época, os positivos que eu tinha na mão pra tentar solucionar certos problemas. Tinham materiais que eram pra ser copiados em Kodak, que quando a copia chegava ela estava extremamente contrastada, muito contrastada, e eu não conseguia eliminar esse contraste. A cópia ficava lavada e não se chegava a um resultado legal. Então pra esses casos eu começava a usar o Fuji, porque tinha um contraste baixo, dessaturava mais os tons, embora ele priorizasse o verde, características mesmo do negativo que a gente já conhecia. Isso nos primórdios... Aconteceu com Zuzu Angel, foram vários filmes... (SOUZA, 2014)

A principal razão para este problema era a falta de experiência dos laboratórios

brasileiros na criação de LUTs (Look Up Tables), tabelas responsáveis por converter a curva

logarítmica do negativo para a curva de gama impressa na cópia positiva. O resultado

observado nos monitores e projetores das salas de marcação eram, portanto, muito diferentes

do que era obtido na cópia em película. E aí a gente ia olhando a tela no monitor, e muitas coisas que nós marcávamos a luz, por mais que tivesse calibrado e tentando se fazer o misterioso LUT, as imagens não saiam exatamente quando eram “printadas”. Então foram sendo necessários anos de pesquisa, de ajuste, de investimento, até a gente conseguir chegar e ter um ambiente como esse que você tá vendo aqui, de você olhar na tela e você marcar com segurança o que você tá vendo, e isso responder na cópia. (SOUZA, 2014)

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Além da inconsistência do processo, os diretores de fotografia conheciam mal as

ferramentas, e portanto arriscavam pouco no que poderia ser feito na finalização. Ricardo

Della Rosa conta como em seu primeiro filme finalizado digitalmente, Olga (Jayme

Monjardim, Brasil, 2004), o uso da correção de cor era praticamente dispensável: O Olga tinha umas coisas assim, tinha uma parte de neve na Alemanha. Tinha campos de concentração na Polônia. Tinha umas coisas que foi tudo filmado no Rio, no verão. Só que eu não tinha o conhecimento nessa época, desse mundo digital, o quão profundo poderia ser, como tenho hoje. Então isso aí seria muito mais fácil. Então o que que fazia? Filmamos tudo, para que se finalizasse ótico ou digital funcionasse. Eu não sabia o recurso. Então a neve, eu cobria tudo, azulava as luzes, fazia o que eu queria. Hoje, tá muito mais fácil...talvez não cobrisse, deixasse o sol porque depois eu sabia que podia baixar o brilho. Ah, Rio de Janeiro no verão, meio quente, sem nada pra esfriar, muda a temperatura. [...) Só que era um filme que a gente filmou em 14 semanas. Hoje, provavelmente, só em função disso levaria 8 semanas. Isso em termo de dinheiro é um absurdo. Pensando nessa evolução, hoje eu entendi muito mais as ferramentas da pós e entendi quão longe dá pra chegar. Então hoje eu acredito mais na filmagem...” (DELLA ROSA, 2014)

Alguns fotógrafos, experientes nos processos de experimentação laboratorial,

resistiram alguns anos a adotar a intermediação digital. Mas fatores econômicos (os

processos especiais em laboratório eram caros e muitas vezes arriscados), assim como

práticos (já que alguns laboratórios deixaram de oferecer serviços óticos como o de ampliação

e trucagem), fizeram com que o processo digital fosse quase integralmente adotado pela

indústria.

No caso específico da captação em película 16mm para ampliação ótica em 35mm, a

perda de qualidade no processo tradicional era notável. A ampliação através do digital não

apresentava perdas, preservando a definição do negativo original. Eu gosto sempre de citar o Waltinho, porque ele experimenta muito e eu acabo passando por essas situações com ele. Ele estava muito resistente em relação digital. Então na época a gente ia fazer o Baixio das Bestas. Ele ia ser fotografado em 16mm e fazer a ampliação ótica. E você tinha truca, porque você tinha que fazer alguns efeitos. Então quando você fazia a marcação de luz, além da truca, você tinha que fazer pra um máster e depois fazer o internegativo. Quando você fazia a imagem já perdia a qualidade. Toda vez que você fazia um máster pra gerar um internegativo, a qualidade caía. [...] E quando tinha truca então, você pegava uma luz, marcada pra determinada situação e pegava uma outra situação, com outra luz marcada. [...] A truca gerava um internegativo dessa junção, e nisso já tinha uma perda de definição. E isso era encaixado antes de se fazer um máster, pra que ele não tivesse emenda. Então nas suas imagens normais você perdia definição, digamos que uns 30%...As imagens de truca, já tinham menos definição, então quando eram finalizadas perdiam 50%...Então nunca ficava perfeito. Depois que nós pegamos esse material, escaneamos e printamos, nós vimos que não perdia definição. Foi quando o Waltinho viu que valia mais a pena printar no internegativo, só nisso já se ganhava muito. (SOUZA, 2014)

Outra vantagem do DI em relação aos procedimentos laboratoriais tradicionais era que,

mesmo quando usado apenas imitando o resultado desses processos, ele garantia a

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fidedignidade das cópias através de um sistema de processamento e transfer totalmente

calibrado, que gerava um internegativo a ser copiado de forma padrão em qualquer

laboratório. No caso de filmes que obtinham resultados semelhantes através do bleach bypass

de cópias, por exemplo, o resultado poderia variar levemente de acordo com o laboratório em

que fosse feita a cópia e químicas utilizadas.

Além disso, quando se fotografava em película, a intermediação digital permitia

aproveitar toda a latitude do negativo. Ainda que as películas negativas tivessem evoluído

muito nas últimas décadas, o processo ótico obrigava o fotógrafo a dar preferência a apenas

uma parte da curva de exposição na hora da cópia, pois o positivo possuía menos latitude.

Fábio Souza explica como ficou mais fácil de se trabalhar com essa questão à partir do digital: Pra você trabalhar com a película, ficou muito mais fácil de você trabalhar agora, você tem muito mais facilidade agora do que com o processo totalmente ótico. Porque no laboratório, você tem de 1 ponto de luz até 50 pontos de luz na marcação ótica. Então se o seu material, se ele vinha dentro de uma casa no interior e lá fora você tinham pessoas conversando na varanda...Você tinha que optar pra onde você ia marcar. Se era aqui pra dentro ou lá pra fora [...] Embora o negativo tivesse um curva bem redondinha, o positivo não. O positivo tem uma curva mais brusca, ele enxerga menos. Então você tinha que pegar o que você queria nesse negativo e encaixar aqui, ou a parte de baixo ou a de cima. Hoje em dia, que que acontece, esse material é escaneado em 4K (ou em 2K, depende do projeto). E o scanner pega todo esse negativo aqui, mais uma margem nas baixas e outra nas altas. E ele traz tudo pra você fazer a correção de cor. Então eu tenho toda essa informação. [...] E depois quando você volta e printa o seu material que está no computador, ele volta ao internegativo, já na curva do internegativo e com essa latitude toda ajustadinha aqui dentro. E daí quando ele passa para o positivo, ele passa já na curva do positivo, porque estava tudo previsto antes. Então eu não preciso mais escolher qual parte que eu quero. Eu posso colocar tudo junto. Eu posso querer ver você aqui, e as pessoas que tão lá fora, trazendo tudo de altas luzes, tudo de baixas luzes, e a gente pode ir buscando um contraste entre elas, isso que é bacana de se trabalhar... (SOUZA, 2014)

Mas a principal vantagem da intermediação digital foram as possibilidades ampliadas

de manipulação da imagem, antes apenas experimentadas na marcação em máquinas de

telecine pelos diretores de clipes e comerciais. Affonso Beato destaca a capacidade dessas

ferramentas de trabalharem cada cor ou região da imagem de forma isolada: Os sistemas anteriores, sistemas fotoquímicos, a marcação de luz ou a criação do teu máster negativo era muito limitado. No sentido de que você só tinha filtros, na hora de copiar o negativo pro positivo, você tinha filtros em que você cancelava os vermelhos, você aumentava os vermelhos, abaixava, enfim… Você tinha uma possibilidade em RGB e densidade. Hoje num DI, você pode ter isso em cima do quadro que você está operando, em cima de uma janela...ou então você pode ter um controle muito maior, você pode separar as cores, você pode contrastar as cores, você pode dessaturar uma cor. Você pode trabalhar em cima de cada canal. (BEATO, 2014)

Como resultado, houve uma progressiva mudança na forma desses profissionais

planejarem e trabalharem a fotografia. No caso da correção de cor secundária, a precisão com

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que essas ferramentas possibilitavam selecionar zonas específicas da imagem permitiu que

algumas intervenções visuais do fotógrafo deixem de ser feitas na filmagem e passassem a ser

feitas na pós. Um exemplo bem comum é o recorte de luz em cenários: Você tem uma cena, aí você vê a parede lá atrás de linha, ela tá muito clara. Então, se eu fosse cortar isso no fotoquímico, eu teria que por bandeiras nas janelas pra escurecer aquela parede e tal. Isso aí levava muito mais tempo. Então, o que eu posso fazer? Eu sei que eu tenho um controle dessas coisas no DI, então eu não faço na hora da filmagem. Ganho tempo, me dedico a outras coisas. Por exemplo uma luz melhor pro rosto dos atores, … Então isso faz com que a fotografia moderna ou a cinematografia moderna fique muito mais livre pra uma série de outras coisas… (BEATO, 2014)

A economia de tempo e recursos na filmagem são ainda mais significativas se

considerarmos as cenas que dependem de luz natural e de horários específicos do dia.

Podemos citar aqui o caso das “noites americanas”, cenas noturnas filmadas à luz do dia. Por

mais que este processo tenha sido bastante utilizado historicamente na finalização

fotoquímica, o digital permitiu realizar essas conversões com muito mais facilidade e

realismo. Isso sem considerar o caso crítico das cenas de entardecer. Por mais bela e

dramática que seja a luz rosa alaranjada desse momento do dia, sua curta duração fazia com

que cenas neste horário precisassem ser rodadas ao longo de vários dias, alongando o plano de

filmagem. As possibilidades de manipulação do DI ampliaram o tempo passível de gravação

dessas sequências, e a continuidade pode ser preservada com ajustes finos de finalização.

O filme A Deriva (Heitor Dhalia, Brasil, 2009), fotografado por Ricardo Della Rosa,

possui belas cenas à beira-mar, que seriam praticamente impossíveis de serem realizadas sem

o recurso dessas ferramentas: Tem uma cena do A Deriva...Se fosse em outros tempos, acho que nem iluminada eu conseguiria fazer. Na praia, uma menina correndo durante 4 minutos. Menina correndo na praia, noite. Chega no mar, você tem que ver o mar, tem que ver o olho dela. Como é que você faz isso? Ou você faz na hora mágica e você tem um take pra fazer... 4 minutos e é isso... Ou você fala pro diretor, vamos fazer esse plano dia, muda muito? Ou então vamos fazer uma coisa assim, ela tá correndo com um lampião. Você ia ter que interferir mais na história. Esse daí eu achei que não ia dar certo. Era de dia, fim de tarde mas com tempo pra rodar pelo menos uns 5 takes, com folga. Achei que o céu tava muito mais claro, achei que não ia dar tempo. Mandei pro Serginho...Falei pra produção que tinha que ser o primeiro plano do filme, que dá tempo dos caras testarem isso, qualquer coisa a gente refilma. Tava preocupado. Senão ia fazer isso, uma solução tipo ela correr com uma lanterna na cara...ou filmar de dia...aí o Sérgio começou a me mandar uns vídeos, eu falei “opa, isso aqui tá bonito pra caramba, funcionou”. Então essa foi uma cena que não faria de outro jeito.

Outro exemplo significativo das possibilidades da intermediação digital são as

alterações de nuances de cores específicas, em objetos que podem estar em movimento e

serem trackeados pelo software ao longo do plano. Ricardo cita um exemplo, dessa vez na

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publicidade, em que através da manipulação exclusiva da cor de pele foi possível em alguns

cliques fazer o que através da maquiagem e iluminação demoraria muito mais tempo: Você consegue cores hoje que antes você não conseguia. Você consegue nuances. […] Você quer uma pele super branquinha, num ambiente sei lá...é mais fácil falar de um trabalho… eu fiz uma campanha da Sky com Gisele Bundchen, que tava meio bronzeada. Só que no filme ela tinha que ser uma mafiosa, branca, tal. Antigamente, sem ter essa finalização, era ou uma maquiagem animal, que não teria tempo hoje. Ou você não teria como fazer, não teria como selecionar só a pele dela... Chegou na hora todo mundo ficou preocupado. Aí cheguei pro DIT: “faz uma máscara nela, separa do chroma, tira o tom, deixa ela branquinha. E todo o resto mantém”. […] Isso a gente não conseguia antes. Conseguia no tempo, hoje você consegue com menos tempo. (DELLA ROSA, 2014)

Fica evidente, portanto, que a redução do tempo de filmagem foi uma mudança

considerável nas produções cinematográficas da última década. O set ficou mais dinâmico, e é

possível investir o tempo ganho em outras prioridades. A agilidade em set é mais do que

valorizada, é exigida aos profissionais contemporâneos. O deslocamento para a pós de

algumas decisões, que antes eram tomadas de forma definitiva na filmagem, pode, entretanto,

apresentar alguns riscos ao fotógrafo.

O risco principal seria a criação de uma mentalidade de adiamento de decisões

criativas, um movimento que tende a prejudicar boa parte dos departamentos. A escolha por

manipular um elemento da imagem na correção de cor não significa deixar de refletir sobre o

resultado final no momento da pré-produção. A reflexão pode e deve ser seguida de testes

criteriosos, para definir os melhores caminhos a seguir durante o filme. Infelizmente, algumas

produções, por entenderem os testes como menos necessários neste novo momento

tecnológico, abrem mão de tempo e investimento na fase de preparação dos filmes,

inviabilizando a pesquisa artística. Eu acho que muita gente entendia que os testes que eram feitos em película, era pra ver se aquilo ia dar certo, se ia imprimir, se ia sei lá o que... Enquanto não é uma questão de insegurança... É uma questão de pesquisa, que imagem que aquilo vai ter mesmo... (PINHEIRO, 2014)

Uma forma de justificar esses testes diante da equipe seria explicar que eles possuem

extrema importância para todos os departamento do filme. Para Mauro Pinheiro, o diretor de

arte é possivelmente um dos mais afetados nesses casos, já que seu trabalho depende muito de

como os materiais e cores serão impressos no produto final: “Porque eventualmente ele fez

um trabalho se preparando pra alguma coisa, mas aí chega na pós e transforma tudo em outra,

e pra ele não era tão bom. Ou ele poderia ter feito diferente se soubesse que era assim”

(PINHEIRO, 2014).

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Felizmente, depois de mais de uma década de intermediação digital, as produções

amadureceram e, na maioria dos casos, respeitam a importância de visualizar a imagem bruta

transformada em resultado final antes do início das filmagens. Mesmo no caso de filmes

captados em câmeras digitais, com brutos em formatos RAW ou Log, altamente manipuláveis,

os sensores oferecem diferentes sensibilidades, latitudes e definição, podendo reagir melhor

ou pior de acordo com o look desejado. Fábio Souza explica a importância da parceria com o

colorista desde o início do processo, assegurando ao fotógrafo que suas escolhas de

iluminação e exposição reagirão como desejado na suíte de correção: Tive com o Ivo Lopes, há duas semanas atrás. E ele veio trazer um teste de fotografia pro look que ele queria seguir, junto com a Sandra Kogut. E aí ficamos aqui trabalhando e chegamos a um resultado bacana, “pronto, é isso que a gente quer seguir”. Porque eles estavam testando entre duas câmeras e escolheram a câmera que deu o resultado melhor. Então eles pegaram essa câmera pra fotografar o filme. No meio do segundo dia de filmagem, o Ivo pede pra vir aqui na sala, porque ele estava inseguro com algumas coisas que ele estava fazendo, porque ele achava que não estava reagindo bem. Então ele pegou essas cenas que ele achava mais complicadas, pegou as outras que ele fotografou que ele achava que estavam num caminho melhor, e quando ele chegou aqui ele ficou apaixonado, viu que ele estava no caminho certo... (SOUZA, 2014)

Outro risco corrido pelo fotógrafo ao captar uma imagem mais flat33 é que essa

imagem possa ser reinterpretada de formas indesejadas na pós-produção. Por conta disso, a

questão da autoria vem sendo largamente discutida nos debates acerca da direção de

fotografia contemporânea.

Embora menos comum no nicho de um cinema mais autoral, onde o fotógrafo

continua tendo a palavra final sobre os resultados fotográficos do filme, o mesmo pode não

ocorrer em produções mais comerciais, em que a identidade fotográfica se configura como

menos prioritária do que a aparição de um elenco popular ou de uma marca comercial. Para

Ricardo Della Rosa, mais do que nunca é importante que o fotógrafo reconheça as pessoas

com que trabalha e forme verdadeiras parcerias profissionais. Eu fiz um filme lá [nos Estados Unidos], um filme de ação, que no meu contrato eu tinha que marcar cor. Chegou na hora da marcação de cor, o diretor falou “não, não quero você aqui dentro”. “Não, mas eu queria dar uma olhada pelo menos”, “não, não, não”. Não fui, ficou uma merda, ficou totalmente diferente do que eu tinha feito. [...] Eu levo muito em consideração, pra pegar um projeto, quem tá envolvido. Porque eu sei que se o diretor quiser e acreditar naquilo, vai ser daquele jeito. Mas se o diretor, como na maioria das comédias, por exemplo... pouco tempo pra filmar, elenco global... a fotografia não tá nem na lista das 20 primeiras prioridades. As prioridades são outras. Então vai ficar daquele jeito, mais ou menos... (DELLA ROSA, 2014)

33 Termo muito usado para definir a captação de imagens menos contrastadas e menos saturadas, visando garantir o máximo de informação das baixas às altas luzes, proporcionando a seguir maior liberdade para na correção de cor.

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Uma relação fundamental neste novo momento vai ser a parceria entre diretor de

fotografia e colorista. Se a relação com o laboratório e com o marcador de luz sempre fora

importante para garantir os resultados almejados na cópia final, com a migração de parte da

criação estética para pós-produção, a escolha deste profissional, e sua participação ao longo

do processo, se tornou um elemento fundamental à criação artística. Sobre esta relação,

Ricardo comenta: Eu tenho os meus dois finalizadores digitais, que eu não consigo fazer filme mais sem os caras. Faço questão que eles estejam em todas reuniões de conceito. Porque eles que vão segurar minha onda lá. Então acho que tem isso agora, mudou um pouco a maneira de se chegar a isso. Porque eu acho assim, no nosso caso aqui, que é o que faz a diferença hoje num filme. Às vezes, se tiver que abrir mão de uma luz, pra ter o colorista que eu quero, finalizar onde eu quero, é uma vantagem. Eu fico sem luz, mas preciso ter esses caras. Entendeu? É uma coisa que não se dispensa mais. (DELLA ROSA, 2014)

A profissão do colorista certamente evoluiu nos últimos anos. Ele deixou de ser

apenas um técnico operando máquinas com agilidade para se tornar um colaborador artístico

do filme. Se alguns afirmam que o fotógrafo perdeu um pouco do controle sobre a imagem,

sobre sua autoria, podemos dizer que o colorista é responsável por resguardá-la, e contribuir

com seu olhar. Por conta disso, é importante que ambos estejam em sintonia, para que o

colorista possa inclusive defender o conceito fotográfico do filme frente a um produtor que

pergunte “este plano não está muito escuro?”.

Fábio Souza, colorista da Labocine, discorda da ideia de que ele tornou-se também

“autor” da imagem. Para ele, ainda hoje, “o mérito é todo do diretor de fotografia”: “Eu posso

ficar duas horas corrigindo uma cena, mudando tudo, mas se ele não gostar, tira-se tudo. Tem

mérito sim, mas ele sabe onde ele está chegando e ele sabe quem ele usa” (SOUZA, 2014).

Fábio não nega, entretanto, que a sensibilidade deste profissional pode contribuir muito com o

filme: Eu vejo como uma questão de sensibilidade. Eu tenho uma sensibilidade. Então você vai fazer um filme comigo ele vai ficar de um jeito, se for fazer com outro colorista, ele vai ficar de outro jeito. Então a equipe que você trabalhou torna o filme único. Um diretor de fotografia se adapta melhor a um, ou a outro, ele prefere trabalhar com um ou outro, ele vê os resultados na tela. A meu modo de ver, a subjetividade é de cada um. Porque além de técnicos, quando você passa acima da técnica, você alcança a arte. [...] Porque às vezes você domina a técnica, mas você põe uma imagem na tela e ela não fica plástica. E os diretores olham assim...e acham que a imagem talvez ainda não esteja lá. Mas ele não sabe dizer o que que é o lá. Então você que tem que saber o que que é o lá. E tem que saber chegar lá. Às vezes um toque, 20% de saturação a mais ou a menos, é a diferença entre estar maravilhoso, estar bom ou estar ruim. (SOUZA, 2014)

Outra mudança possibilitada pelos softwares de correção de cor que vem sendo

utilizada pelos diretores de fotografia em filmagens com captação digital foi a criação de

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looks de visualização. Durante a pré-produção, o fotógrafo leva algumas imagens testes para o

colorista, que cria um look para o filme, ou alguns looks, no caso de grande variação de estilo

entre as sequências. Esses looks são gravados em um cartão e podem ser usados para

monitoração do material bruto no set. Isso evita que o diretor, assim como os outros membros

da equipe, se acostumem com a imagem flat, que na maioria dos casos está muito longe do

resultado final.

No caso dos filmes que pretendem trabalhar ainda mais as imagens no set, para que o

diretor já chegue à montagem com uma versão mais próxima do resultado final, existe hoje

laboratórios digitais portáteis, como o White Gorila34. Esse sistema oferece um kit de

logagem e correção de cor para criação de dailies digitais35, além de conversão do material

off-line para o formato desejado na montagem. Essa pré-marcação também pode ser usada

como referência na hora de realizar a correção de cor final, meses depois. Ricardo Della Rosa

explica o diferencial dessa ferramenta: Em processos mais longos, diferente da publicidade, o diretor convive tanto tempo com aquele material na montagem, na filmagem, que ele acaba se apaixonando pelo todo. E depois você não consegue reverter. Por isso o White Gorila...por isso no “Penetras”, eu trouxe o Serginho, porque eu queria que o Andrucha montasse o filme bem próximo do que ficaria. Porque depois seria quase que impossível mudar. (DELLA ROSA, 2014)

Fábio Souza concorda que chegar à finalização com um look base para o filme agiliza

o processo e garante coerência do início ao fim do projeto. É importante lembrar, entretanto,

que assim como os copiões em película, esses looks ainda estão muito longe do trabalho final,

e diretor e fotógrafo sempre podem mudar de ideia durante o processo.

Para Mauro Pinheiro, esse trabalho reduz um problema muito enfrentado em película

na era pré-intermediação digital, já que os copiões eram quase sempre revelados de forma

rápida e pouco minuciosa e os telecines feitos nas madrugadas entre filmagens. Como a

marcação de luz final só viria meses depois, era necessário confiar no fotógrafo e na unidade

conceitual estabelecida nas reuniões de pré-produção. Normalmente vem um telecine off-line mais ou menos, de um colorista menos experiente de madrugada, então não dá pra confiar muito. No Aspirinas por exemplo, eu mandei uma série de fotos do nosso teste e o cara todo dia olhava praquelas fotos antes de trabalhar no telecine. E eu tinha que defender o material, porque eu estava sobrepondo dois stops, já era uma coisa arriscada. Eu tinha muita pouca tolerância pro erro, porque eu já estava trabalhando no limite da latitude. E daí eu tinha que

34 White Gorila é a principal empresa que oferece serviços de gerenciamento de arquivos digitais no Brasil, entre eles o pequeno laboratório de correção de cor e logagem chamado Snow Flake. Informações no site: http://www.whitegorilla.com.br. Acessado em abril de 2014. 35 Dailies digitais são o equivalente hoje de um copião eletrônico pré-corrigido para revisão do material no fim do dia.

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defender: “não é assim, esse telecine veio errado, acredita em mim...” E o Marcelo acreditava. Mas não é confortável essa posição. [...] E isso que você falou...do material de edição...é ruim mesmo quando o material de trabalho tem um distanciamento do trabalho final, porque as pessoas se acostumam com aquela imagem. Pro bem e pro mal né... Mas pra mim isso só tem um jeito de resolver. Muita conversa antes.

Se concluirmos que o método de trabalho evidentemente se modificou à partir da

evolução da intermediação digital, o que dizer sobre a estética, os resultados fotográficos

dessa nova fase? O que foi feito com as possibilidades ampliadas de manipulação de cores?

Há uma tendência a produzir resultados que sigam uma linha menos naturalista do que com o

processo fotoquímico?

Primeiramente, é importante falar que assim como toda grande revolução tecnológica

no cinema, houve inicialmente um deslumbre com as ferramentas de correção de cor. Mauro

Pinheiro explica que esse deslumbre inicial possivelmente teve como consequência filmes

“esquizofrênicos” e pouco coerentes, mas foi progressivamente dissipado e a correção de cor

é hoje usada de forma mais madura e justificada: Você começou a ter coloristas de publicidade, marcando cor dos longas, claramente você tinha a junção de duas coisas. Você tinha diretores e fotógrafos que trabalhavam com RGB na marcação de luz e de repente podiam tudo. Você vai do Analyser no RGB e passa a dividir a cor em milhões. Então acho que rolou um deslumbre por um tempo. Dos longas começarem a ter uma estética meio esquizofrênica. Porque você perdia o controle da própria ferramenta que estava ali na tua frente né...Talvez isso sendo maior que a sua conversa conceitual anterior...Acho que teve isso sim. Agora acho que a coisa se normalizou. Acho que tá normal e você pode fazer um filme sem tanta interferência sem achar que está sendo careta. (PINHEIRO, 2014)

A intermediação digital possibilita hoje que o fotógrafo pense a palheta de cor de cada

filme de forma específica e com todo controle sobre a variação de nuances. Affonso Beato

compara a correção de cor atualmente com um processo quase de pintura: A intermediação do digital abriu um campo artístico, uma possibilidade artística muito grande de intervenção. O diretor de fotografia chega até um ponto quase de pintura, quer dizer, você tem um controle artístico da imagem no final quase na área da pintura. Você pode interferir em tudo que você quiser. Você tá entendendo? Quase beirando o “visual effect”. Tanto é que os primeiros filmes que foram feitos...aquele primeiro filme que foi feito dos irmãos Coen, “Oh Brother...”? Então, […] houve uma revolução assim de visualização. Porque ele pegou as árvores, todas as árvores que eram verdes, as árvores ficam todas amarelas. Então o filme tem um negócio de pintura maravilhoso. Eu fiz isso um pouco em “Deus é brasileiro”, filme do Cacá, eu mudei tudo. Assim, você podia passar de uma coisa altamente realista para uma coisa totalmente surrealista ou não realista, como o pintor pode fazer. Pode interpretar as cores. Então, eu acho que essa capacidade...fez com que a cinematografia mudasse, que aliás é uma coisa que eu ensino. Que hoje em dia, a cinematografia é design. (BEATO, 2014)

Se por um lado, a liberdade de criação abre portas para uma variedade gigantesca de

looks singulares, quando analisamos os filmes dentro de uma filmografia comercial como a de

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Hollywood, há uma tendência notável para a homogeneização das cores e estilos. Essa é uma

possível consequência da perda de autoria dos fotógrafos frente ao paradigma de captar flat e

nem sempre possuir o controle da etapa de finalização, onde a imagem será verdadeiramente

trabalhada.

Outra possível causa desse predomínio estético é a rápida entrada de novos coloristas

autodidatas no mercado, impulsionada pelo barateamento dos softwares de correção, trazendo

profissionais muito técnicos e com pouco refinamento artístico. A maioria deles acaba

reproduzindo a estética dominante e funcional da palheta de cor laranja (pele) / azul-petróleo

(fundo, céu, sombras) sem grandes questionamentos.

Essa combinação parte do princípio de cores complementares, que ao serem

justapostas se realçam. No caso da cinematografia, como a maioria dos planos possuem o tom

de pele em quadro, essa cor é reforçada e contraposta com o azul esverdeado do fundo. Não à

toa vemos um verdadeiro boom de tutoriais na internet que ensinam como chegar ao “summer

blockbuster look” presente na grande maioria dos filmes de ação americanos, como

Transformers (Michael Bay, Estados Unidos, 2007), Iron Man (Jon Favreau, Estados Unidos,

2008), entre outros.

Imagem 22 e 24 - Frames de Transformers 2 (Michael Bay, Estados Unidos, 2009), onde o uso da palheta laranja-azul é

levado ao exagero.

Fonte (23 e 24): Blog Into The Abyss36

36 Disponível em: <http://theabyssgazes.blogspot.com.br/2010/03/teal-and-orange-hollywood-please-stop.html>. Acesso em maio de 2014.

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Imagem 25 – Print do site kuler demonstra a complementariedade direta do laranja pele com o azul-petróleo.

Fonte: Fonte: Blog Into The Abyss37

Apesar de visualmente agradável à primeira vista, a hegemonia (e muitas vezes

exagero) desse look empobrecem a cinematografia contemporânea. Felizmente, apesar de

sofrermos a influência da palheta de cores hollywoodiana, o cinema brasileiro, por ser

relativamente menos industrial, consegue apostar mais em estilos que vão ao encontro da

proposta conceitual do filme.

Mauro Pinheiro comenta a importância de se buscar a estética subjetiva do filme à

partir do próprio roteiro e das conversas com o diretor: Quando você tenta se posicionar tanto seguindo uma estética corrente, quanto se opondo a ela, você olha pro lado né...Você não tá olhando pra dentro, pro seu projeto, pro seu roteiro...E acho que isso é meio louco. Porque as vezes eu leio um roteiro e penso “esse filme é pra ser amarelo amarelo, verde verde, sem interferência, o mais clássico possível”. E isso não é ser careta, não mexer não é ser careta, é simplesmente uma opção que você escolheu... O Aspirinas não foi feito daquele jeito porque era pra ser diferente, porque era pra ser inovador não. Ele foi feito por que tinham razões no roteiro que a gente pensava daquele jeito.” (PINHEIRO, 2014)

Para ele, o cinema autoral está livre de algumas das obrigações do cinema comercial e

publicidade, de seguir uma tendência, ou inovar. Sendo assim, ele ganha muito ao trabalhar

sua estética das próprias discussões conceituais. Pra alguns lugares do audiovisual, ineditismo é muito importante. Ou pelo menos estar ali atualizado. Eu acho que no caso do cinema, algum cinema mais comercial passa por isso também, mas eu acho que a maior parte dos filmes que eu faço não tem um compromisso de ser diferente, de ser inédito, de nada. Tem um compromisso com o roteiro. Então você lê o roteiro e sai de dentro dele, o que que esse roteiro tá me dizendo...Então eu acho que esse assunto é um assunto pra 3, 4 pessoas: diretor, diretor de arte, fotógrafo e produtor. (PINHEIRO, 2014)

37 Disponível em: <http://theabyssgazes.blogspot.com.br/2010/03/teal-and-orange-hollywood-please-stop.html>. Acessado em maio de 2014.

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Podemos concluir então, que quanto mais consistente é o conceito de um filme,

discutido nas reuniões de pré-produção, e mais em sintonia estiverem os cabeças de equipe,

menos se corre o risco da maioria dos inconvenientes de “perda de autoria” e

“homogeneização estética” resultados da má utilização da intermediação digital. Enquanto a

nova tecnologia, em poucos anos de existência, revolucionou os métodos de se fotografar e

ampliou as possibilidades de manipulação da imagem, é preciso tomar muito cuidado para

não cair nas armadilhas que alguns elementos facilitadores proporcionam a fotógrafos menos

experientes.

Um risco grande, por exemplo, de compartilhar parte das ferramentas de construção da

imagem com o colorista, é que o fotógrafo fique mais relaxado, menos atento ao seu papel

artístico durante a filmagem. Então eu acho que ao mesmo tempo que teve tudo isso. Facilidades, caminhos que você pode ir mais longe de cor, contraste. As pessoas hoje precisam se aprofundar menos. O fotógrafo não precisa se aprofundar tanto. Eu me incluo nisso. Você sabe que você divide essa autoria com muita gente agora. Então não tem aquele negócio do cara que desenvolveu uma lâmpada, usou uma gelatina que virou uma coisa única só pra aquele cara. (PINHEIRO, 2014)

É importante lembrar que apesar do interesse em captar as imagens em um formato

mais flat para garantir a flexibilidade de manipulação na pós, “você capta flat, mas tem que

fotografar com consistência” (PINHEIRO, 2014). Fatores importantíssimos na construção dos

planos como direção e natureza da luz dificilmente são modificados através da correção de

cor.

Finalmente, a revolução tecnológica obriga os profissionais do cinema a repensarem

seu papel nos filmes, se recolocarem enquanto novos agentes diante de um mundo em

transição. A mudança às vezes assusta, e alguns fotógrafos temem perder seu poder de

influência, frente a um mundo digital onde as informações são muito mais difundidas, e

diretores e produtores conhecem bem as amplas possibilidades proporcionadas pelo DI. Esse

medo, entretanto, é herdado de um momento em que os diretores de fotografia se

beneficiavam do poder um tanto autoritário de dominar uma tecnologia tida como “mágica”

para a maioria das pessoas. Por um bom tempo, na película, não tinha uma certa relação de transparência, entre o fotógrafo e o produtor. Então, por exemplo,...por que que você ilumina uma sequência? Tem vários motivos pra você iluminar...Você pode iluminar porque um lugar simplesmente não tem luz suficiente, você pode iluminar porque você não gosta da luz que existe (ela é suficiente, mas você não acha adequada pra sequência), ou você pode iluminar porque a luz é linda, ela tem intensidade suficiente, mas ela vai durar 15 minutos (porque o sol vai entrar atrás da árvore e aí acabou)... Então são vários motivos que te fazem iluminar. O segundo motivo que falei agora é o mais difícil de defender...Porque ela implica numa subjetividade que gera custos e

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tempo. Então muitas vezes um produtor, ou um diretor-produtor, pode falar assim: “Me desculpas, eu te entendo, até acho que essa luz que você propôs é melhor. Mas não vai dar tempo, a gente precisa filmar agora, porque se não, não vai dar pra parar os caminhões por mais tempo, etc...”. Então o motivo “não tem luz suficiente”, ele é o mais fácil. Eu via muitas vezes quando eu era assistente de câmera o fotógrafo falar “vou ter que iluminar, não tem jeito!” E hoje em dia esse discurso, ele não existe, ele não pode existir mais. Porque todo mundo tem uma câmera, um Iphone, e a pessoa sabe que imprime. Então esses acordos tem que ser mais transparentes...” “Eu acho que nunca foi tão fácil de ser compreendido enquanto fotógrafo nesse sentido. O lado ruim é que você vai ter defesas consistentes contrárias ao que você queria...E você vai ter que dar argumentos...Eu acho que a coisa fica mais equilibrada e as decisões passam a ser de grupo, e nem sempre a que você queria. Se você for pensar de forma egoísta é ruim, se for pensar no projeto maior, é bom. (PINHEIRO, 2014)

Se olharmos pelo lado positivo, o fotógrafo contemporâneo não se sustenta mais

apenas pelo acúmulo de conhecimentos e de sua superioridade técnica. Para ser capaz de

produzir uma fotografia forte e que colabore genuinamente com o filme, ele deve ser capaz de

ir além, de trabalhar como um verdadeiro parceiro criativo do diretor e diretor de arte. Mauro

Pinheiro fala sobre a importância da subjetividade nas relações profissionais no cinema: O poder está muito relacionado à insegurança e segurança. Por exemplo, pessoas que têm formações diferentes. Nem todo diretor tem a mesma formação, nem todo fotógrafo tem a mesma formação. Isso faz com que cada relação profissional seja diferente. Muitas vezes eu demoro pra saber qual é a minha posição do filme. Eu faço isso há muitos anos, mas eu não sei o que se espera de mim a cada filme. Tem filme que o diretor decupa e fala direto com o câmera. Tem filme que o diretor não decupa. Tem filme que o diretor quer decupar junto. Tem filme que o diretor descreve uma luz e quer aquilo. Tem filme que o diretor mesmo que ele não goste da luz ele não vai criticar sua luz, por respeito. [...] Então qual é a função do diretor de fotografia? Eu não sei, cada filme eu tento entender qual é a minha função ali naquele filme. (PINHEIRO, 2014)

Podemos concluir que toda mudança tecnológica introduz uma série de novas

possibilidades e incertezas, que vão desde o aspecto técnico ao artístico e as relações entre

equipe. Sendo o cinema possivelmente a mais colaborativa das artes, não é estranho observar

como esse último aspecto tão pessoal e subjetivo exerça tamanha influência no processo de

criação cinematográfica.

Finalmente, a importância histórica de estudar essas mudanças hoje, quando a

intermediação digital já se consolidou como padrão de finalização, é conhecer os riscos e

possibilidades deste novo processo, para que os fotógrafos que estão começando se

aproximem com consciência e os experientes se adaptem de forma construtiva. Adaptar-se,

entretanto, não deve significar abandonar completamente as práticas e a experiência do

modelo anterior, mas entender qual a sua importância na construção artística e processual da

cinematografia hoje, para abrir-se à nova tecnologia de forma madura e sem medo das

armadilhas anunciadas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando optei inicialmente por limitar o objeto deste trabalho às mudanças

fotográficas impulsionadas pela intermediação digital, deixando de lado as outras facetas da

digitalização cinematográfica, como a captação digital, meu interesse principal era reduzir o

campo de estudo abordado, permitindo uma análise mais aprofundada da importância deste

processo. Não poderia a princípio afirmar que essa mudança tecnológica havia sido mais

significativa, no campo das transformações artísticas, do que a evolução das câmeras digitais.

Ao longo desde trabalho, entretanto, me surpreendi ao perceber que ainda hoje as inovações

propulsionadas pelo advento do DI foram muito mais revolucionárias, na visão dos diretores

de fotografia, do que a evolução das câmeras digitais.

Enquanto a captação com câmeras digitais não apresentou até hoje uma grande

melhoria em termos de qualidade de imagem38, não há dúvida que a correção de cor trouxe

avanços significativos na forma de se trabalhar luz e cor, alcançando nuances antes

inimagináveis através do processo fotoquímico. (SOUZA, 2014)

Affonso Beato comenta aqui o que mostrou-se consenso entre os fotógrafos e o

colorista entrevistados: Artisticamente, [a intermediação digital] deu um poder muito maior de expressão pro diretor de fotografia, não tenho a menor dúvida. Essa parte eu acho que é a melhor parte. A parte da captação não. [...] Eu entendo que uma câmera digital te dá um “deixar você dormir tranquilo...”. Mas até hoje a câmera fotoquímica, é muito melhor do que a digital. Já o processo de intermediação, é muito melhor no digital, sem dúvida nenhuma. Seria hipócrita em não admitir isso. (BEATO, 2014)

Foi fundamental para mim este trabalho, enquanto parte de uma geração de estudantes

que já ingressaram no cinema pós intermediação digital, entender como se dava o processo

fotoquímico, e como trabalhava o fotógrafo naquele momento. A partir disso, busquei, no

segundo capítulo, apresentar as principais ferramentas de correção de cor disponíveis hoje, e

como elas modificaram a forma de se trabalhar a fotografia antes e depois da filmagem.

No terceiro capítulo, analiso as principais mudanças técnicas, estéticas e das relações

profissionais a partir do desenvolvimento da intermediação digital. Ainda que seja evidente

que essas ferramentas trouxeram uma grande evolução na forma de se trabalhar a fotografia, é 38 Podemos considerar como o grande avanço das câmeras digitais a evolução da sensibilidade. Câmeras como a Alexa, da Arri, podem trabalhar com ISOs de 1600, ou mais, sem apresentar ruídos significativos. (No caso da película, a maior sensibilidade disponível hoje é o negativo de ISO 500.) Ainda assim, para Fábio Souza, a imagem do negativo ainda é imbatível: “A imagem vem com um peso diferente. [...] a película ela tem um grão, ela tem a textura que é dela. E nas altas luzes, a película tem o soft clip...a luz não estoura, ela não vai reto e estoura, ela tem uma gradação diferente... E as cores são muito bem separadas.” (SOUZA, 2014)

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preciso ficar atento para que o abandono de algumas práticas tradicionais do trabalho do

fotógrafo não seja feito de forma inconsequente e acabe por prejudicar ao invés de contribuir

para o avanço da cinematografia.

As entrevistas realizadas com Mauro Pinheiro Jr., Affonso Beato e Ricardo Della Rosa,

três experientes fotógrafos, cada um na sua área de atuação, assim como com o colorista

Fábio Souza, da Labocine, foram sem dúvida a parte mais enriquecedora desta monografia.

As questões levantadas, tanto as que haviam sido formuladas anteriormente por mim, quanto

as surgidas a partir do diálogo com esses profissionais, compõem um material de pesquisa

inédito, que não havia sido encontrado em nenhuma fonte bibliográfica.

A importância desta troca com profissionais atuantes na produção de cinematográfica

reforça mais uma vez a necessidade de preencher esta lacuna no campo acadêmico do retorno

do conhecimento adquirido com a prática da filmagem. Acredito que este trabalho seja uma

pequena contribuição neste sentido e espero que inspire outros estudantes a pesquisarem

também a evolução da tecnologia, do método de criação, dos processos artísticos e seus

resultados no cinema.

Anexo aqui, então, a transcrição integral das entrevistas realizadas, na esperança de

que possam servir de material algum dia para um estudo mais aprofundado dos assuntos

levantados.

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BIBLIOGRAFIA

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PROBST, Christopher. Soup du Jour. In: The american cinematographer, Hollywood, v. 358, nov.1998.

SHAW, Steve. A real world guide to the DI Process. Digital Praxis, 2006.

LOKEN, Helge. Color Grading: Art or Science? An exploration of the use and effects of colour in films and television programmes. Bournemouth University, 2008.

SALT, Barry. Film Style And Technology: History and Analysis. Starword, ed.3, 2009.

MIRO, Todd. Teal and Orange: Hollywood, Please Stop the Madness. Disponível em: < http://theabyssgazes.blogspot.com.br/2010/03/teal-and-orange-hollywood-please-stop.html>. Acesso em maio/2014.

The DaVinci Resolve Engineering Team. Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual. Black Magic Design, 2003. Disponível em: <http://www.blackmagicdesign.com/support>. Acesso em abril/2014.

GREEN, Phil. The Digital Intermediate: A Guide. Disponível em: <http://www.pgreen.co.uk>. Acesso em abril/2014.

AINOUZ, Karim. Entrevista concedida à Allen Frame (2003). Disponível em: <http://carlosmotta.com/artwurl/interviews/INT019.html>. Acesso em abril/2014.

SOUZA, Fábio. Colorista da Labocine em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.

PINHEIRO, Mauro. Diretor de fotografia em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.

DELLA ROSA, Ricardo. Diretor de fotografia em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.

BEATO, Affonso. Diretor de fotografia em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.

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ANEXO - Entrevistas

ENTREVISTA COM RICARDO DELLA ROSA

(Rio de Janeiro, Março de 2014)

Ricardo Della Rosa : Quando começou a intermediação digital no Brasil ? Você deve estar

sabendo melhor do que eu… Eu sei que fiz o primeiro filme finalizado em 2K (no Brasil), que

foi o Casa de Areia, antes era finalizado em HD.

Ana Carolina : Mas antes disso você já tinha feito algum filme que foi todo em digital ?

R : Eu fiz o Olga, que foi todo finalizado em HD, não foi em 2K.

AC : E em processo todo ótico ?

R : Só publicidade […]

Eu acho que é interessante a gente falar por exemplo, que o digital veio pela rapidez, para

baratear, mas ele veio e até hoje com um conceito de tentar reduzir [o custo] do que o ótico

fazia, não é que veio para mudar a linguagem. Então a gente filma em digital mas a gente quer

que pareça filme, uma loucura... Eu lembro que o desafio inicial na finalização digital era

assim : “como é que a gente vai fazer um bleach by pass ?” Entende ? O processo sem

branqueador... Como é que a gente simula isso digitalmente ? E aí a gente pensava, vamos

fazer isso na película, e ai depois a gente vê aquilo que a gente quer. Eu cheguei a fazer testes,

rodados em película, finalizados em película e depois filmados de novo e finalizados em

digital para tentar reproduzir aquilo digitalmente. Então eu acho que o digital veio para

simular tudo aquilo que o filme fazia : todo tipo de revelação, a alquimia toda que você tinha

no laboratório, […] ai apareceram novos técnicos, com ferramentas diferentes. Eram pessoas

que vieram do Photoshop, do mundo digital, com pouco conhecimento da parte química.

Então esse início foi bem delicado. Porque você falava termos tipo “mais dois pontos de

verde”, que é uma linguagem do laboratório, “menos um de magenta” […] Você ia colocando

gelatininha ponto a ponto no laboratório. Então quando você falava assim “põe quatro, menos

dois” eles não entendiam… a velha geração muito mais do que eu já estava acostumada com o

laboratório, mas eu também tinha alguma experiência...

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AC : Então,você estava falando da transição, que era uma coisa inicialmente de fazer a

mesma coisa que você faria [na película], sem usar as outras ferramentas que o digital

proporciona.

R : Que são enormes…tanto que os primeiros coloristas eram os coloristas de laboratório, que

tentaram se adaptar ao digital, tiveram médio sucesso...aí veio a galera nova que tinha

domínio do digital e que tomou o negócio.

[…]

O que que acontece, quando a fotografia passou para o território digital, teoricamente, todo

mundo acreditava que facilitou a fotografia. Que você faria a fotografia no telecine. Que você

só tinha que imprimir ok, com informação, que depois você fazia tudo na marcação de cor.

Porque até os coloristas vendiam isso… O que não é uma verdade. Cada vez mais é uma

verdade, mas na época tinha muitas limitações, pelo menos no início aqui no Brasil.

Hoje em dia, funciona um pouco diferente. A boa câmera, é aquela que você tem latitude, que

tem informação no preto e no branco, ou seja, que você tem tudo realmente. Pra realmente

fazer acontecer na pós. Na época da película, se escolhia o negativo que tinha mais latitude,

menos latitude, já tinham os pretos mais pretos desde o início. Até porque, era uma coisa de

louco, a relação do fotógrafo com o diretor era diferente, porque na película você conseguia

imprimir uma coisa meio que sem volta. […] Essa sempre foi a eterna briga, os fotógrafos

sempre queriam o filme com mais contraste e o diretor queria ver mais os olhos dos atores.

Então você tinha recursos que você fazia quimicamente, o sem branqueador era um desses,

que era alto contraste e não tinha volta. Ou na revelação… O digital mudou hoje

completamente. E ficou mais fácil…mais fácil não sei, mas ficou diferente. Com mais

“range”. E abriu o campo pra muita gente entrar. Antes os fotógrafos eram super fechados.

Tinha aquele grupo, e depois ninguém entra. Quando eu entrei era um boicote geral. Depois

de uns 3 anos trabalhando, já tinha fotografado bastante coisa na faculdade, mas eu não

conseguia emprego. Porque era isso, era uma ditadura dos fotógrafos. O visor, só fotógrafo

olhava no visor. Então você via aquele video-assist meia-boca pra caramba e todo mundo

acreditava que o fotógrafo sabia o que estava fazendo e ia ficar legal. Então mudou um pouco

o poder.

AC: Eu passei um ano agora na França, numa escola de cinema lá. E aí tinha um professor

que era super tradicional. Nos primeiros cursos que a gente fez, ele falou “sem vídeo assist”.

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Você vai fotografar sem vídeo assist porque eu quero que você tenha a experiência, de confiar

em você [...]

R: Mas hoje em dia, passa a mulher do cafezinho lá atrás e fala “pô, você não acha que tá

muito claro aquela parede, Ricardo?”. Fala desse jeito, virou um negócio democrático pra

caramba.

AC: Aí eu vi um debate com uns fotógrafos ingleses e de Hollywood discutindo o corte final,

o que seria o corte final do fotógrafo. O fotógrafo tá perdendo o poder, a gente tem que ter o

nosso contrato o corte final da cor, com as produtoras opinando muito, você perde o domínio.

O que acha disso?

R: Eu fiz um filme lá [nos Estados Unidos], um filme de ação assim, que no meu contrato eu

tinha que marcar cor. Chegou na hora da marcação de cor, o diretor falou “não, não quero

você aqui dentro”. “Não, mas eu queria dar uma olhada pelo menos”, “não, não, não”. Não fui,

ficou uma merda, ficou totalmente diferente do que eu tinha feito.

AC: Aí é o contrário você tem que ter no seu contrato que você quer marcar a cor...

R: Exatamente. Tem o outro lado da moeda.

AC: Mas então, falando dos seus primeiros longas que ainda estavam nessa transição. O que

você acha que mudou? Você estava falando desse processo, você ainda tentava mais

reproduzir uma coisa da película e hoje se pensa diferente?

R: É, hoje pensa um pouco diferente. Na verdade a película continua sendo a grande

referência. Porquê? Finalização ótica hoje só se realmente o filme não tiver grana nenhuma...

Hoje aqui no Brasil, acho que nem se consegue finalizar ótico, o laboratório aqui no Rio

fechou, São Paulo fechou. Mas hoje não faz muito sentido...

A finalização digital faz você ganhar tempo no set. O lugar onde você faz uma sombra

naquela parede, colocar ali uma bandeira, vai perder um tempo, não sei o que. Não, deixa eu

faço uma máscara no telecine. Normal. No ritmo que a gente filma hoje, no plano de

filmagem que tem, se não tivesse finalização digital ia ser uma merda. Então é difícil você

pensar.

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Hoje eu li uma matéria por coincidência, dois fotógrafos franceses falando que... eu acho que

são os grandes fotógrafos franceses, um é o Bruno Delbonnel e outro, como é que chama? Eu

já lembro... Eles falam que tiveram a sorte de não rodar nenhum filme em digital. Nos últimos

projetos, com três diretores diferentes, que foi: os irmãos Cohen, esse último aí, Inside

Llewyn Davis, Fausto, e, esqueci o terceiro. Todos os produtores vieram falar “vamos fazer

digital” e ele falou assim “eu nunca filmei digital, não sei filmar digital. Gostaria de fazer em

película. Vamos ver quais são os prós e contras”. Os três diretores são muito visuais, então

vamos fazer em película. Isso a captação. Aí ele diz assim “Mas eu não consigo hoje

finalizar”. São os caras tipo peso pesado.

Eu tenho os meus dois finalizadores digitais, que eu não consigo fazer filme mais sem os

caras. Faço questão que eles estejam em todas reuniões de conceito. Porque eles que vão

segurar minha onda lá. Então acho que tem isso agora, mudou um pouco a maneira de se

chegar a isso. Porque eu acho assim, no nosso caso aqui, que é o que faz a diferença hoje num

filme. Às vezes, se tiver que abrir mão de uma luz, pra ter o colorista que eu quero, finalizar

onde eu quero, é uma vantagem. Eu fico sem luz, mas preciso ter esses caras. Entendeu? É

uma coisa que não se dispensa mais.

AC: É um mudança de poder ?

R: Exatamente. Então é isso, hoje é uma parceria do fotógrafo muito importante. No meu

caso, por exemplo, sempre fiz todos os filmes com o mesmo colorista. Que eu acho

fundamental...quando me chamam, eu falo assim “gente arruma alguma coisa, diminui o meu

cache, mas eu preciso fazer com esse cara”. Que é o Serginho, que é um cara que é meu

parceiro. No Penetras não sei se você lembra, a gente teve aquele White Gorila no set. Aí

trouxe ele no dia pra sentar lá com a Júlia, DIT, marcar o look mais ou menos como era.

Deixou meio pré-setado, porque ele ia fazer o pra valer.

Então esse conceito de equipe mudou muito. Acho que o acabamento em pós produção hoje...

por exemplo ontem teve a pré estreia de um filme em São Paulo e aí falei com algumas

pessoas “como é que foi?”, “oh o acabamento tá incrível”. É uma coisa assim, foi bem feito o

negócio. Antes não se falava nisso. Acabou, acabou ...

AC: Eu tava perguntando sobre como isso mudou, falando da sua experiência, a sua forma de

fotografar no set? Você já falou do negócio de às vezes não se perder tempo com algumas

coisas...

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R: Acho que é isso, hoje você mais ou menos tem que ficar dentro daquela latitude digital,

aperta lá o Log C pra ver, “ah, tem toda a informação, eu consigo resolver”. Não é nas coxas,

mas assim, é um pouco mais folgado do que antes, aquela tensão do produtor, como é que vai

ficar a revelação...como é que vai ficar a cópia. E às vezes ficava nós dois sem dormir

esperando o material chegar.

É óbvio que tem coisas que são irreversíveis. Você não vai fazer uma luz de frente e achar

que depois na marcação, você vai fazer outra luz. [...]

Ficou mais folgado pra se trabalhar. Que tem o lado bom e tem o lado ruim que eu te falei,

porque você perde um pouco a autoria. Porque você vai apresentar, no caso de um longa-

metragem pro diretor, ele vai entrar lá e dizer “quero mais claro”. O cara vai apertar um

botãozinho, vai ficar mais claro. Não é o que você quer, não é o que você imaginou...

E hoje você nem consegue, como antigamente, escolher como você ia finalizar oticamente, a

revelação, tudo. Que você conseguia realmente ser irreversível. O preto é preto, não tem...hoje

não tem isso. Pede pra ficar cinza...

Então tem o lado bom, acho que só tem lado bom... Mas tem o lado que é assim, tem filmes

que eu vejo, que eu tenho certeza que o cara pagou o cachê mais alto pra aquele cara e o cara

quer que ele apareça...e em uma visão não artística do produtor, que acha que quanto mais

claro melhor.

AC: Então como se faz pra manter a autoria?

R: A primeira coisa é a escolha do diretor. Aquele cara tem olho? Ou é um cara que

realmente só preza produtor... E papo né? É muito importante aí a parceria. Por exemplo, o

Serginho, porque? Porque o Serginho é o cara que vai me proteger. Na hora que o diretor

falar..., ele vai falar “cara, esse é o limite”. A real é que pode não ser de fato. Mas é o limite

dentro do artístico, que a gente concebeu. Se o cara quiser voltar e pagar mais, até pode, mas

ele vai ficar e vai me defender junto.

Mas se você entrega totalmente, esquece. Uma pessoa, que você não sabe se tem um olho que

combina com o seu...

AC: E isso você acha que é diferente mesmo hoje, quando você filma em película, ou em

digital, tem alguma diferença em relação a finalização?

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R: Porque a película tem uma etapa a mais, mesmo que seja a finalização digital. Você tem a

etapa da revelação, duas na verdade, revelação e escolha de negativo. Que você não faz isso

numa Alexa, só tem o Log C, sempre vai ter aquela latitude. Tem negativo, sei lá, ASA 50,

que a latitude é mínima. Então já vem contrastado pra caramba. Apesar que a evolução do

negativo também foi pra isso, mais latitude, mais latitude. É muito mais conveniente pra todo

mundo, você ter a informação do todo e decidir o que você quer depois. Só que o orçamento

hoje é caro, a pós produção digital. É muito mais caro que o ótico, pra fazer bem feito. Então

muitas vezes, o que acontece? Como é a última fase do filme, estourou tanto filme, que vai

acabar pós produzido de uma maneira mais ou menos. E aí o que acontece? Você não vai

conseguir a casa que você queria, os técnicos que você queria, que são muito mais caros,

provavelmente. Então, quando estoura lá o orçamento, o cara não quer saber. “Não, é isso

aqui, vai ser desse jeito”, diz o produtor. Ok, que eu vou fazer? É dinheiro, eu não vou pagar

pra fazer.

Eu acho que mudou um pouco sim. Eu levo muito em consideração, pra pegar um projeto,

quem tá envolvido. Porque eu sei que se o diretor quiser e acreditar naquilo, vai ser daquele

jeito. Mas se o diretor, como na maioria das comédias, por exemplo, pouco tempo pra filmar,

elenco global, que ganha uma grana. A fotografia não tá nem na lista das 20 primeiras

prioridades. As prioridades são outras. Então vai ficar daquele jeito, mais ou menos. Não vão

gastar o dinheiro com isso. Então eu acho que hoje o fotógrafo ele tem que saber por onde ele

tá caminhando e também o pessoal. Eu levo isso em consideração bastante. No mundo digital,

tudo você pode fazer. Noite virar dia, dia virar noite. [...] Mas eu tou falando das coisas ruins,

tem muita coisa boa...

AC: Uma pergunta desse trabalho é...o que mudou na forma de fazer? Essa coisa que você

falou de filmar mais rápido, isso é claro, acho que é uma consequência disso. Mas o que você

acha que mudou na estética do que se faz hoje, que não dava pra fazer antes? Ou que era

muito difícil e não se pensava?

R: Acho que aumentou as possibilidades[...] Hoje realmente, a finalização digital tá num

nível muito alto. Você pega uns filmes, sei lá, Hugo Cabret, vê o resultado final e vê o que

filmaram. É um nível muito alto... E os filmes, que tão ganhando o Oscar... São todos filmes

de pós produção pesadíssima digital. Inclusive, tá até tendo uma conversa agora na ASC que é

a Associação Americana de Cinematografia, que fala que devia ter dois prêmios. Filme que é

finalizado no digital e filme que não é finalizado no digital. Só que o não finalizado digital

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hoje em dia não é não finalizado com marcação de cor, é que não tem tanta interferência do

digital.

AC: É difícil saber os limites...

R: Exato. Eu acho que, pra mim, hoje, fazer um filme sem finalização digital é inconcebível.

Eu acho que mantendo o ritmo de que tem filmar, de cronograma...

AC: E você também não tem algumas opções, por exemplo, de variedade de negativo?

R: Não tem. Fora isso, você quer revelar um material, o laboratório tá com aquela máquina

parada há um tempo.

O último filme que fiz comercial pra Natura, que até hoje só pode fazer em película,

aconteceu isso, perderam dois rolos. Porque a química tava parada, não sei o que, fizeram

alguma coisa errada. Acontece isso, que também já acontecia antes. Era um risco pro produtor,

tinha que fazer seguro da diária caso desse problema no laboratório.

Hoje em dia, qual o maior problema que você tem? Tem um backup lá que pode perder? Pode.

Pode ter dez backups com problema? Pode. Mas é uma chance menor. Eu acho que...

Esteticamente o mundo digital é muito amplo. Você pode falar assim, deixa eu finalizar um

filme que não tem nenhuma interferência de pós, é só marcar cor. [...] Ou você tem esse tipo

de filme que só marca cor, vira um arquivo e você manda pra todos os cinemas. Ou ainda vai

passar por computação, vai ter, sei lá, multiplicação de gente, fazer cenário. O próprio

Penetras que a gente fez, a gente filmou tudo chroma. Então falar hoje, pós produção digital

hoje é o que? É tudo isso.

AC: Vamos falar da parte de cor... Em termos do que você acha que foi o avanço da correção

de cor? Você mudou a forma de pensar a fotografia?

R: Acho que mudou. O primeiro filme que eu fiz finalizado em digital foi o “Olga”. Que o

“Olga” tinha umas coisa assim, tinha uma parte de neve na Alemanha. Tinha campos de

concentração na Polônia. Tinha umas coisas que foi tudo filmado no Rio, no verão. Só que eu

não tinha o conhecimento nessa época, esse mundo digital, o quão profundo poderia ser,

como tem hoje. Então isso aí seria muito mais fácil. Então o que que fazia? Filmamos tudo,

para que se finalizasse ótico ou digital funcionasse. Eu não sabia o recurso. Então a neve, eu

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cobria tudo, azulava as luzes, fazia o que eu queria. Hoje, tá muito mais fácil...talvez não

cobrisse, deixasse o sol porque depois eu sabia que podia baixar o brilho. Ah, Rio de Janeiro

no verão, meio quente, sem nada pra esfriar, muda a temperatura. [...) Só que era um filme

que a gente filmou em 14 semanas. Hoje, provavelmente, só em função disso levaria 8

semanas. Isso em termo de dinheiro é um absurdo. Pensando nessa evolução, hoje eu entendi

muito mais as ferramentas da pós e entendi quão longe dá pra chegar. Então hoje eu acredito

mais na filmagem, como assim eu me viro. Então, continuidade, esse era o problema, às vezes.

A mesma sequência fazia durante 3 manhãs. Porque eu achava que depois das 10:00 da

manhã não dava mais. Hoje eu sei que não, a gente começa filmar de manhã, vai até o fim de

tarde. Dá uma forçada daqui, uma forçada de lá, mas vai chegar. [...] Ganhou-se muito em

tempo, consequentemente em dinheiro. Isso que eu te falei também, essas coisas da bandeira.

Você deixa de pôr uma bandeira que antes era sombra, tem uma máscara lá pra colocar. Mas

sempre confiando também que você tem a pessoa que vai mexer naquela máquina. Que a

máquina é o de menos, é quem vai botar lá, que é uma pessoa que você confia. Eu acho assim,

cada filme também já é pensado desde o início, como que vai ser o produto final. Qual o

resultado que você quer? Então eu acho que até por isso que hoje eu estou mais confiante

porque você vai fazer testes específicos pra aquele caso... Então na hora que você vai fazer a

reunião lá de plano de filmagem, o assistente de direção pergunta “você faz esse plano em 2

horas?” Você sabe que você faz. Eu faço em uma, pode por aí no plano. Então deu essa

confiança.

AC: Como que você trabalha estes testes de antes da filmagem e durante a filmagem, no caso

com o White Gorila. Como você faz pra trabalhar isso?

R: Os testes? Eu gosto de fazer os testes antes. Chegar num resultado, apresentar pro diretor,

produtor, “olha é isso aqui que eu quero chegar”, “gostamos, não gostamos”. Sempre vai

mudar no final, eles não querem mais aquilo, querem outra coisa. Mas você já encaminhou

pra um lugar que é confortável de você estar.

Então se o filme inteiro, a gente não vai poder filmar a noite porque não tem grana pra

iluminar a noite. Dá pra fazer tudo noite americana? Vamos fazer um teste.

“A Deriva” foi assim, tinha uma cena que tinha que ser noite na praia, só que teria que

iluminar. Fizemos um teste pra ver como é que ia ser noite americana, funcionou, ficou pronto,

foi. Senão ia ser caminhão de luz, filmar a noite mesmo. Eram coisas...assim, o teste deixa

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todo mundo tranquilo na hora de filmar. Por mais que você filme, tá olhando de um jeito que

não tá convencendo, depois você sabe no que vai se transformar.

AC: E você já trabalhou com aplicação de look na filmagem...pro diretor já ver, você acha

que isso faz diferença ?

R: Faz. Acho que faz muita diferença. Porque em processos mais longos, diferente da

publicidade, o diretor convive tanto tempo com aquele material na montagem, na filmagem,

que ele acaba se apaixonando pelo tudo. E depois você não consegue reverter. Por isso o

White Gorila...por isso no Penetras, eu trouxe o Serginho, porque eu queria que o Andrucha

montasse o filme bem próximo do que ficaria. Porque depois seria quase que impossível

mudar. [...] Então, acho que é isso. Hoje, você na caixinha lá, você tem um cartãozinho já

com looks, e fala assim “oh, experimenta esse aqui. Faz um testinho 2, 3. Tá bom, joga isso

aqui pro vídeo”.

AC: Que seria uma forma de garantir o que a gente estava falando antes?

R: Exatamente. Teve um comercial, que a gente tava lá todo mundo e ele fala “ah, tô achando

muito frio isso aqui.” “Ah, peraí, que você acha disso aqui?” Então já muda o look e deixa

fechado, que todo mundo fica tranquilo. Se você deixa, o Rec 709, nem sempre é tão próximo

do que você pode fazer. Então eu acho que isso é o essencial hoje em dia. Andar com uns

lookzinhos...

AC: Vamos falar sobre o estético, que a gente não falou tanto... O que pode ter mudado no

resultado final? O que mudou no olhar?

R: Eu acho que assim, esteticamente o que mudou na finalização digital? Eu acho que assim,

você consegue cores hoje que antes você não conseguia, em película. Você consegue nuances.

Você quer um céu mais ciano, antes não conseguia. Você chega a lugares muito mais

distantes...

Você quer uma pele super branquinha, num ambiente sei lá...é mais fácil de um trabalho

assim, eu fiz uma campanha da Sky com Gisele Bundchen, que tava meio bronzeada. Só que

no filme ela tinha que ser uma mafiosa, branca, tal. Antigamente, sem ter essa finalização, era

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ou uma maquiagem animal, que não teria tempo hoje. Ou você não teria como, fazer não teria

como selecionar só a pele dela...

Chegou na hora todo mundo ficou preocupado. Aí cheguei pro DIT “Faz uma máscara nela

separa do chroma, tira o tom, deixa ela branquinha. E todo o resto mantém”. Ela “incrível

isso”. Isso a gente não conseguia antes. Conseguia no tempo, hoje você consegue com menos

tempo. Pegava essa maquiagem e rodava um teste, “chegou lá?”, “mais ou menos”. Um

pouquinho mais de vermelho e o contrário também.

Nessa mesma campanha da Gisele, tinha a Claudia Leite. Ela queria aparecer morena,

aparecer bronzeada. Porque ela achava que ela tinha que aparecer assim... só que ela não tava,

tinha passado um tempo fora. Mesma coisa, entendeu? Te dá recursos muito rápidos...

Só que o principal além disso, criativamente são os lugares que você pode chegar. Fazer uma

máscara que vai tendendo pro azul. Sei lá, acho que tinha uns caras bons que sabiam fazer, eu

nunca soube. Então acho que criativamente gerou um mundo gigantesco. Só que todo tipo de

evolução nesse sentido, que te abre o leque, abre pra você, mas ao mesmo tempo, tira um

pouco o poder de escolha. Porque você pode gostar do azul e o cara do amarelo, o diretor. Vai

ser amarelo, abriu pra todo mundo isso.

AC: Agora todo mundo tem conhecimento...

R: É, conhece os recursos [...]

Então de qualquer maneira, mesmo pra agência de comercial, o cara sabe hoje que ele pode

criar um filme de neve, filmar aqui nas ruas de Cabo Frio, que vai ficar incrível. Que vai

funcionar e vai custar barato porque é só dar uma azuladinha nas altas. Então, já traz um

conceito geral de criação da fotografia, que às vezes nem vem do fotógrafo. Vem de

referências fotográficas que a agência fez, que o cara fez no Photoshop lá... E ele sabe que

você vai chegar, “e aí cara, você acha que chega?”, “chega”. Então, criativamente, se a gente

não fala de uma coisa muito específica, é difícil falar.

AC: Então fala assim, de um longa recente seu. Como você pensou algo na fotografia que

você não pensaria antes? Você estava falando do “A Deriva”...

R: Tem uma cena do “A Deriva”...Se fosse em outros tempos, acho que nem iluminada eu

conseguiria fazer. Na praia, uma menina correndo durante 4 minutos. Menina correndo na

praia, noite. Chega no mar, você tem que ver o mar, tem que ver o olho dela. Como é que

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você faz isso? Ou você faz na hora mágica e você tem um take pra fazer... 4 minutos e é isso...

Ou você fala pro diretor, vamo fazer esse plano dia, muda muito? Ou então vamo fazer uma

coisa assim, ela tá correndo com um lampião. Você ia ter que interferir mais na história. Esse

daí eu achei que não ia dar certo. Era de dia, fim de tarde mas com tempo pra rodar pelo

menos uns 5 takes, com folga. Achei que o céu tava muito mais claro, achei que não ia dar

tempo.

Mandei pro Serginho...Falei pra produção que tinha que ser o primeiro plano do filme, que dá

tempo dos caras testarem isso, qualquer coisa a gente refilma. Tava preocupado. Senão ia

fazer isso, uma solução tipo ela correr com uma lanterna na cara...ou filmar de dia...aí o

Sérgio começou a me mandar uns vídeos, eu falei “opa, isso aqui tá bonito pra caramba,

funcionou”. Então essa foi uma cena que não faria de outro jeito. Mas é difícil dizer...

AC: Acho muito interessante isso, o que muda na estética. Porque óbvio que existe uma

coisa autoral, mas existe uma coisa que muda no gosto, digamos assim, das pessoas... Você

falou da cor, de você chegar em lugares, sei lá, mais artificiais talvez. E o gosto vai se

aproximando disso né?

R: Exatamente. Vai mudando. As novas gerações vem com esse olhar. Eu, por exemplo,

continuo achando que as melhores fotografias não tão no mundo digital. Tem uns filmes que a

gente olha e fala “nossa, que loucura isso”. Ainda são antigos. [...] Pode ser um pouco de

saudosismo? [...]

Então eu acho que ao mesmo tempo que teve tudo isso. Facilidades, caminhos que você pode

ir mais longe de cor, contraste. As pessoas hoje precisam se aprofundar menos. O fotógrafo

não precisa se aprofundar tanto. Eu me incluo nisso. Você sabe que você divide essa autoria

com muita gente agora. Então não tem aquele negócio do cara que desenvolveu uma lâmpada,

usou uma gelatina que virou uma coisa única só pra aquele cara. Você não consegue fazer

hoje. Consegue, mas você vai apanhar. E outra coisa, no mundo digital se um faz uma coisa

que ficou legalzinha, principalmente na publicidade, todo mundo já começa a seguir esse

caminho. De repente você vê e está todo mundo com aquele look Alexa. Tudo assim bem

lavadinho, com pele bem rosinha. [...]

Hoje em dia, o mundo da publicidade é uma loucura. O cara na agência, pega uma foto no

Instagram, põe um filtro, diz o que quer...Então assim virou muito democrático, pro bem e pro

mal.

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AC: E essa coisa do Instagram é muito doido. Porque teoricamente o cara fez o aplicativo pra

reproduzir efeito de filmes velhos e e aí vira uma coisa...

R: Moderna, contemporânea...é que na verdade já fizeram de tudo, a gente só vai voltando pra

lá e pra cá. Se você olhar mais longe, os pintores... os caras realmente fizeram uns telecines

animais.

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ENTREVISTA COM MAURO PINHEIRO JR.

(Rio de Janeiro, Maio de 2014)

Ana Carolina : Qual o primeiro longa que você fotografou? Já era finalização digital ou

ainda foi processo ótico?

Mauro Pinheiro Jr. : Foi o “Aspirinas...”39. Foi ótico, mas foi contra-corrente. Foi ótico já

num momento que todo mundo dizia que era loucura fazer ótico.

[...]

Meu primeiro curta foi em 92, e aí de 92 até 2003, quando eu fiz o meu primeiro longa, eu fiz

todos os meus curtas óticos. Basicamente o que eu sentia que quando a gente filmava exterior

dia a gente ficava muito na mão da Kodak. Esse era o negativo novo da Kodak, essa vai ser a

cara do meu filme. E aí eu comecei a procurar o laboratório, porque eu queria saber como

mexer nisso um pouco. E a UFF tinha uma relação muito boa com a Labocine. Então eu tinha

acesso aos caras. E eu fazia longa como assistente de câmera e eu era bem rato de laboratório

durante os longas. Eu era contratado pra fazer aquelas semanas de filmagem mas eu colava

nos fotógrafos, tanto antes quanto depois. Então eu andava lá por dentro, os caras super me

conheciam. Eles ficavam a vontade com minha presença lá. E aí eu comecei a ter acesso aos

caras e eu falava “E se a gente fizer um pouco disso, um pouco daquilo?” A Labocine nem era

um laboratório que tinha essa tradição de pesquisa, como era a Marta Reis depois na Mega,

que foi a pessoa responsável pelo “Aspirinas” no laboratório. Mas eu já fazia bleach bypass,

já puxava, já subrevelava, já fazia várias coisinhas nos curtas. E o “Aspirinas” foi o meu

trabalho de pesquisa de laboratório mais forte. Só pra falar disso como exemplo pra ver a

diferença de método né. Eu fui pro Sertão, com o Marcelo, a gente foi ver locação, aí eu levei

minha Bolex, com reversível e negativo, levei uns 30 rolos de negativo, sei lá, na época era

um 250 ASA e um 50 ASA rebobinados nas bobinas de câmera fotográfica. Aí tirei 4 filmes

na viagem inteira, com 3 exposições cada foto. E tirei 20 filmes, de menos 4 até mais 4, de 3

situações, que eu parei na viagem pra fotografar, e comecei a fazer essa pesquisa. Mandei pro

laboratório e falei “um revela normal, um revela puxando, um sub-revela”. Aí a gente via esse

material e eu falava “Marcelo, gostei muito desse contraste, mas gostei da saturação daquele,

que que a gente faz? Você gosta assim também?” e ele “É, acho que pode ser bacana isso”. Aí

a gente ligava pra Marta Reis, na Mega, e falava “Marta, é o seguinte: o contraste do puxado

39 “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes, lançado em 2005.

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foi legal, mas ele ficou muito saturado, a dessaturação do revelado é boa, então vamos tentar

um bleach de 2/3?”, “Aonde? Na revelação ou no internegativo?” Aí a gente revelou 10, 15

rolos, cada rolo de uma maneira diferente.até a gente chegar em um e falar “esse a gente

gostou”. E o que a gente gostou era exposição +2, e um internegativo de 2/3 de bleach. E aí a

gente pegou aqueles 4 rolos que eu tinha feito da viagem inteira, das casas, das pessoas, e

revelou neste processo que a gente escolheu.

E aí você chega com um compromisso... o diretor de arte, que tava com a gente na viagem,

vendo essas fotos... ele conhece o lugar, ele viu aquelas pessoas, aquelas casas, e ele sabe

como isso imprime. Então ele começa a trabalhar em cima disso.

Aí a gente fez outros testes, aí eu filmei. Peguei um 16mm e filmei, pra poder amarrar como

seria o processo inteiro mesmo. Pra ver grão...porque eu tava com foto estática 35mm e o

filme era 16mm...Foi um super trabalho de pesquisa, que envolve os outros departamentos.

Então tem o lado bom e o lado ruim da intermediação digital né. A gente se preparava mais. A

gente pesquisava mais, e eu sinto que as produções eram mais abertas pros testes...porque não

era fácil negociar com o laboratório [...] Por outro lado, ficava eu, Marcelo e Marta Reis

analisando os resultados na projeção de slides do Mega. Isso não custa quase nada, a não ser o

tempo da Marta, que é precioso, mas que era funcionaria e o nosso tempo. Se eu entrar numa

máquina de correção, ai tá contando o taxímetro da máquina, a intermediação digital é cara

[...] Ou seja, ficou mais caro o processo de pesquisa. Essa cozinha, ou seja, de experimentar

os temperos, ficou muito mais cara. A sensação que eu tenho é que os filmes se concretizam

mesmo na pós, hoje em dia. Só que aí é um pouco cruel pro diretor de arte né? Porque

eventualmente ele fez um trabalho se preparando pra alguma coisa, mas aí chega na pós e

transforma tudo em outra, e pra ele não era tão bom. Ou ele poderia ter feito diferente se

soubesse que era assim. E aí a gente transfere as decisões, hoje em dia, muito pra depois...

Eu gosto de tentar antecipar as decisões, pra todo mundo tentar participar das consequências

das decisões, porque o cinema é coletivo né...Então isso é um aspecto que eu sinto que mudou

bastante. Os tempos de preparação tem diminuído muito. Ninguém tira uma semana de

filmagem, mas se tira da pré. Também se tira da filmagem, mas até você tirar uma semana de

filmagem, já tirou da pré antes.

A questão positiva, por exemplo, eu hoje estou fazendo televisão. [...] Que seria o outro

extremo disso. Que é...não em tempo, é muito rápido, e é assim que é. Não é porque deu

errado, é porque é assim que é. Tem que ser rápido, porque é televisão, porque é um

mecanismo industrial que tem suas características. Hoje a TV se beneficia dessa mesma

questão que a gente nos longas se beneficia. Antigamente a gente ficava mesmo, esperando

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dois caras subirem lá em cima pra botar uma bandeirinha pra fazer uma sombra na parede.

Hoje em dia você não faz mais isso. Então a gente pré-cozinha a imagem na filmagem. A

gente sabe que vai terminar a imagem depois. E eu acho que isso é muito positivo pra

dinâmica do set. Eu me sinto muito mal se eu tenho que interromper, agora porque vamos

inverter o eixo, eu tenho que interromper o fluxo do elenco, o elenco está numa emoção, e eu

tenho que interromper porque eu tenho que mexer uma coisinha ali no fundo. Coisinha ali no

fundo, depois a gente faz. Aí a filmagem ganha uma dinâmica onde as prioridades viram

outras, é um aspecto muito positivo...

AC: E como você trabalha, você falou que você gosta de antecipar...No caso da

intermediação digital, como você trabalha? Você já tem o colorista antes? Você tenta já

trabalhar um look antes?

MP: Eu sempre tento, e depende muito da capacidade de compreensão das produções disso.

Mas sinto que cada vez mais as pessoas entendem isso. O diálogo com o laboratório é

fundamental, antes. Por exemplo, o “Sudoeste”, que é o filme do Eduardo Nunes, ex-aluno da

UFF também...Ele tem uma questão que é de imagem, que é de laboratório mas não é

processamento de imagem, que é a questão do aspecto dele, da janela que é 2.35. Aquilo, a

gente foi pra locação, tirou umas fotos, veio aqui pra casa, ficou recortando as fotos. E eu

comecei a achar que por algum motivo eu tava recortando as fotos muito horizontais. E a

gente começou a discutir o motivo disso. E a gente começou a entender que o motivo era

muito precioso e que a gente devia tentar levar isso adiante. No caso do filme o filme é a

história de uma menina que envelhece 80 anos num dia, enquanto o resto do mundo passa no

tempo real. A gente achava que o tempo era uma coisa muito importante, era um personagem

do filme. E eu ficava meio encucado, porque eu achava que um plano longo não seria

suficiente, precisava de alguma coisa a mais. E aí quando eu fazia os recortes, a gente

entendia que tinha muito mais assunto que um close. A pessoa deixava de ser a medida das

coisas num quadro. Quando a gente fala plano americano, plano médio, tem sempre um ser

humano de referência...[...] A gente começou a acreditar que aquilo ali fazia com que o tempo

de visualização do plano mudasse, era importante...

Isso, por exemplo, não dava pra descobrir depois, tinha que descobrir antes. [...]

Isso é uma coisa muito simples de fazer, do ponto de vista digital, é só cropar. Mas a

elaboração disso, que é o que a gente fez durante o set, é o que faz com que dê certo...Uma

sacação de pós ali, ficaria frágil.

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[...]

AC: Uma questão que tem surgido é... Com a finalização digital, de certa forma, abriu uma

série de possibilidades, aumentou o campo de trabalho. Mas ao mesmo tempo, se facilitou

muito, como que você mantém a autoria, o conceito, uma proposta do início ao fim do

trabalho?

MP: Eu acho que, na verdade, existem processos criativos que são muito diferentes né? Por

exemplo, em várias instâncias do audiovisual, você tem que ser inovador, ou no mínimo

seguindo uma tendência. Pra alguns lugares do audiovisual, ineditismo é muito importante.

Ou pelo menos estar ali atualizado. Eu acho que no caso do cinema, algum cinema mais

comercial passa por isso também, mas eu acho que a maior parte dos filmes que eu faço não

tem um compromisso de ser diferente, de ser inédito, de nada. Tem um compromisso com o

roteiro. Então você lê o roteiro e sai de dentro dele, o que que esse roteiro tá me

dizendo...Então eu acho que esse assunto é um assunto pra 3, 4 pessoas: diretor, diretor de

arte, fotógrafo e produtor. E eu acho que quanto mais as ferramentas pra essa pesquisa

tiverem a mão, quanto menos você tiver que contar com uma estrutura...Por exemplo, pra

mim, ficar com o laptop aberto mexendo as fotos que eu tirei do lado do diretor, ficar

discutindo, isso é muito mais importante do que eu ir para uma sala de marcação de luz de um

laboratório. Porque eu vou ter aqui, quantas horas quiser ficar olhando essas imagens, pra

tentar descobrir o que faz parte, o quê que do filme tem dentro dessa foto e o quê que não tem.

[...]

Eu não sei quem conta essa história, acho que foi o Waltinho, que foi pra algum lugar, e tinha

um artesão fazendo girafas à partir de madeira, de tronco. E ele perguntou: “como você

consegue fazer essa girafa desse tronco?”. E ele falou: “ É muito fácil, eu olho pro tronco, e

tudo que não é girafa eu tiro.” Que é um jeito muito bacana de se pensar...Que você tem um

lugar, você faz uma imagem e o que que pertence ao filme dessa imagem? O que que você

tem que manter e o que tem que transformar? [...]

AC: Você tem uma forma de trabalhar hoje, que facilite, manter essa imagem, esse conceito

pensado antes com o diretor?

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MP: Eu tento simplificar muito a filmagem. Simplificar significa, por exemplo, o Sudoeste

que era um filme em preto e branco, eu botava a minha câmera pra visualizar em jpeg preto e

branco. Sem ficar futucando no preto e branco, sem botar no laptop o tempo todo. [...]

Eu acho que tem uma questão que passa pela formação, como você foi formado na fotografia.

Porque eu acho que tanto a pintura, quanto a escultura, o cinema, a fotografia...o que faz o

produto final é a imagem que a gente tem na cabeça. Então o pintor, enquanto ele pinta ele

tem uma imagem na cabeça. O escultor também, o fotografo também.

Existe uma relação da fotografia hoje na formação que é estranha pra mim. [...] Antes de tirar

a foto, é importante você ter uma reflexão sobre o que você tá olhando. Quem aprendeu a

fotografar em película, em negativo, tem isso por formação, não tem como você perder isso.

Quando eu comecei a fotografar, garoto, eu demorava 2, 3 dias pra ver a foto. Então não dava

pra eu sair clicando, aleatoriamente e concertando depois...

[...]

Por exemplo, esse exercício de olhar pra uma imagem e não ver a imagem que você tá vendo,

mas a imagem que tá na sua cabeça, é muito importante...Você olha pra uma imagem colorida,

mas você está vendo em preto e branco. Você está olhando uma imagem sem contraste mas

você está vendo o contraste nela. Eu se fosse um professor de faculdade, eu ia tentar estimular

isso nas pessoas, porque isso é uma questão de trabalho, é um exercício. Porque isso faz com

que mude toda a relação com isso que você tá falando. Não necessariamente eu preciso ver

um monte de coisa no set. Eu preciso ver, mas eu não preciso usar as ferramentas pra que

aquilo apareça pra mim. [...]

AC: E você acha que hoje, mesmo que a finalização digital seja a mesma, você trabalha

diferente com película e com digital? Ou está mais próximo?

MP: No set, como eu tento trazer o diretor mais próximo dessas decisões, eu acho que os

diretores... Isso é bem importante, quando a gente filmava a 15/20 anos atrás, as cameretas

eram muito ruins. Então essa relação de confiança, era absurda. Eu fiz alguns filmes sem

vídeo-assist. Que aí é brutal a relação de confiança, chega a incomodar, porque você quer

dividir uma opinião e você não pode, porque a pessoa não viu, não tem como ter uma opinião.

Mas eu sempre tento trazer os diretores nesse momento de pré, pra ver junto. Eu nunca filmei

um longa em digital, então talvez essa seja uma questão difícil. [...]

Normalmente vem um telecine off-line mais ou menos, de um colorista menos experiente de

madrugada, então não dá pra confiar muito. No “Aspirinas” por exemplo, eu mandei uma

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série de fotos do nosso teste e o cara todo dia olhava praquelas fotos antes de trabalhar no

telecine. E eu tinha que defender o material, porque eu estava sobrepondo dois stops, já era

uma coisa arriscada. Eu tinha muita pouca tolerância pro erro, porque eu já estava trabalhando

no limite da latitude. E daí eu tinha que defender: “não é assim, esse telecine veio errado,

acredita em mim...” E o Marcelo acreditava. Mas não é confortável essa posição...

Nos últimos longas que eu fiz, eram 35mm, eram boas cameretas, mas não é uma imagem de

2K né...

[...]

Eu já tive isso, esse ator tá em evidência...era uma sequência de sexo, meio escura...”vamos

abrir uns 2 pontos, só o rosto dele”. Já tive...Mas tranquilo também né, nada que

comprometesse a fotografia...

[...]

Eu lembro de fazer uns filmes gringos, como assistente de câmera, que os caras só

trabalhavam com monitor preto e branco. Porque os caras não queriam que o diretor, que as

pessoas, tivessem na filmagem as cores...que as características daquela imagem que são

consequência, não da opção do fotógrafo, mas da tecnologia do equipamento, que as pessoas

não ficassem apegadas aquilo. E isso que você falou...do material de edição...é ruim mesmo

quando o material de trabalho tem um distanciamento do trabalho final, porque as pessoas se

acostumam com aquela imagem. Pro bem e pro mal né...

[...]

Mas pra mim isso só tem um jeito de resolver. Muita conversa antes. [...] É lógico que eu faço

poucos trabalhos por ano, 3 longas por ano... Então isso faz com que talvez eu não tenha que

ter tantos métodos diferentes ao longo do ano. Tipo, hoje estou filmando em 5d, amanhã estou

filmando com uma 35mm que tem um camereta que não é HD, aí amanhã estou filmando com

uma Alexa...Não, eu me beneficio de ter o mesmo equipamento durante 2 meses, todo dia. E

eu me beneficio da conversa ser a mesma durante todo esse tempo, do ponto de vista

estético...isso cria uma coesão. [...]

Hoje em dia, por exemplo, você usando uma correção de cor no set, eu ainda não

experimentei isso. Mas eu tenho uma desconfiança da falta de tempo do set...que horas que eu

saio do set pra fazer isso mesmo se eu não consigo nem sair pra ir no banheiro?

AC: É meio que na hora do almoço né...

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MP: É muito louco isso...Eu não acho que isso seja mais sólido que a conversa antes... Acho

que completa né? Mas a conversa é muito importante...

[...]

O cinema comercial, as vezes exige outros métodos né. Por conta da rapidez. Por exemplo, na

TV, na Globo, onde eu estou filmando hoje, existe o departamento que cuida das chamadas.

Eles pegam nosso bruto, não pegam o material marcado. Então as chamadas da série tem uma

cor, e a série vai ter outra...Então tão bem, por conta desses acidentes todos...Quando eu

estava falando de terminar as imagens depois...Não dá pra fotografar “flat”. Você capta “flat”,

mas tem que fotografar com consistência. Que tem uma diferença muito grande. É engraçado

isso... Eu conversando com o colorista que faz o material lá... Como que ele interpreta aquela

imagem? Que artifícios que você coloca naquela imagem que faz ele ir pra lá ou pra cá na

correção se ele não tiver conversado com você. É curioso. Não tem uma distância tão

grande...várias vezes eu olho a chamada e penso “po, tá legal a chamada”. Porque tem um

caminho no bruto...A imagem também não pode ser qualquer coisa né. As vezes não dá tempo

de ir lá, as vezes eu só vou lá no final, pra concertar. Não é um trabalho que dá pra fazer cada

plano, cada fusão. Mas é engraçado como ele entende o caminho que estava sendo proposto

no set. E com o tempo, ele acerta cada vez mais...

AC: Então, voltando a falar do seu trabalho do “Aspirinas”, do seu trabalho de laboratório,

pra discutirmos mais sobre a transição. Quando você sentiu uma mudança, ao longo dos anos,

que você deixou de trabalhar com experimentos no laboratório e passou a ser mais um

trabalho de correção de cor?

MP: O “Aspirinas” foi meu primeiro filme. Meu terceiro foi uma coprodução com a França

[“Mutum”]. Aí tinha que ser num laboratório francês. Mas como eu não tinha um diálogo com

esse laboratório, eu nem conhecia as pessoas, eu fiz uma pesquisa no Mega, mesmo que não

fosse o laboratório final...Era meio louco, não sei nem se eu lembro...

Eu usava um Fuji 500 ASA, sub-expunha dois pontos, pra super-revelar. E aí em Paris, a

ideia era flashar o negativo...era cheio de coisa...

Mas aí eu fiz o Mutum...E naquele ano o Mega parou de fazer ampliação de 16mm, por

exemplo.

E a cada ano que fazia, fechava um laboratório que fazia ampliação de 16mm. E aí foi

restringido o trabalho nesses filmes, que tinham um orçamento menor, que era pra fazer em

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16mm mesmo... E aí começou a ficar inevitável que fosse uma finalização eletrônica, por que

aí não dava mais pra fazer...

AC: E como você já tinha essa experiência com laboratório, com essa passagem pro

eletrônico, eu queria entender... como que foi isso em termos de processo? Porque é muito

diferente né, eu imagino, de trabalhar na revelação e trabalhar no digital... Você ainda faz

revelação em bleach bypass, por exemplo? Ou faz na pós?

MP: É difícil dizer...Por que mesmo com revelação padrão...Por exemplo, no “Sudoeste”, eu

liguei pra Fuji e pedi os negativos pra eles, pra fazer os testes. A Kodak me mandou três

negativos e a Fuji me mandou dois, ou três. Aí eu fui lá na locação, com uma câmera 16mm,

filmei um pouquinho de cada. A sensação que eu tinha é que o grão da Kodak, a latitude da

Kodak ia funcionar melhor. Mas eu cheguei no teste, na Labocine... Eu sabia que gostava do

negativo 500 ASA da Fuji, mas não gostava do 50 ASA. Eu já tinha feito um longa com a

Fuji, mas com 250 e 500 ASA, porque não gostava do 50. Mas eu cheguei na Labocine, e ele

foi o que deu o melhor grão, pra um filme PB, na Labocine... Agora eu não posso dizer que é

o melhor negativo pra isso...Porque é uma conjugação de fatores... a revelação da Labocine,

com aquele negativo, para aquela finalização digital... deu o melhor resultado. Mas é por isso

que eu digo, mesmo quando as coisas parecem simples, óbvias, elas precisam ser testadas.

AC: E houve uma mudança nos negativos mesmo? À partir da finalização digital...

MP: Claramente. Isso foi de propósito. Por exemplo, o 50 ASA Daylight da Kodak, ele era

incrível. Eu fiz um teste com ele e cheguei a conclusão que tinha mais latitude que o 500. De

novo, naquele laboratório, naquela revelação...por que isso muda muita coisa, né? Se por

acaso, naquele laboratório, ele tem um banho que contrasta mais o negativo, você não vai ter

o mesmo resultado, não vai conseguir avaliar. Mas é uma pena, porque os negativos estavam

ficando cada vez mais poderosos. E eu parei de usar o negativo...faz um ano e meio que não

filmo em película...mas foi quando eu estava mais satisfeito com o negativo, não existia uma

crise de relação. Estava muito bom o negócio, é estranho interromper assim...

AC: Você percebe uma mudança estética, e aí você pode falar no seu trabalho ou no trabalho

de outros fotógrafos, do que que se passou a trabalhar à partir da correção de cor digital?

Você pensa cor de uma forma diferente? Existe uma tendência a uma certa estética?

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MP: Quando eu era assistente de câmera, nos longas, a chance que você tinha era trabalhar

com os filtros. Tinha gente que usava Tabaco, Coral, era a chance que você tinha de ter uma

cara no filme. E aí era engraçado isso, porque tinha uns fotógrafos que tinham seus filtrinhos,

o seu truque, né? Eu comecei a brincar de revelação, eu nunca fui muito fã de filtro não... Eu

era mais fã de revelação, que também era muito mais fácil pra um curta, que é rápido, são

poucos rolos...Num longa que tem banhos diários por 2 meses, mexer em revelação é mais

delicado...

Quando a intermediação digital apareceu, aconteceu uma coisa que foi curiosa. Assim como a

gente lê que no Cinema Novo, a questão do laboratório, os filmes expondo pra sombra, e os

laboratoristas querendo trazer o filme pra exposição correta, porque tentavam achar um

padrão...e os fotógrafos tentando fugir do padrão. Da mesma forma que você tinha um

colaborador e você tinha que buscar uma frequência com ele, ter um diálogo...até que ponto

isso interfere positivamente ou negativamente na sua imagem...e isso aconteceu. Você

começou a ter coloristas de publicidade, marcando cor dos longas, claramente você tinha a

junção de duas coisas. Você tinha diretores e fotógrafos que trabalhavam com RGB na

marcação de luz e de repente podiam tudo. Você vai do Analyser no RGB e passa a dividir a

cor em milhões. Então acho que rolou um deslumbre por um tempo. Dos longas começarem a

ter uma estética meio esquizofrênica. Porque você perdia o controle da própria ferramenta que

tava ali na tua frente né...Talvez isso sendo maior que a sua conversa conceitual

anterior...Acho que teve isso sim. Agora acho que a coisa se normalizou. Acho que tá normal

e você pode fazer um filme sem tanta interferência sem achar que está sendo careta.

AC: Acho que isso é normal com toda mudança de tecnologia né? Acho que existe uma

tendência em qualquer tecnologia nova a ter um certo deslumbre né, e depois as pessoas se

adaptarem e cada um achar o seu equilíbrio...

MP: Porque na época você tinha os marcadores de luz que só faziam longa e os coloristas que

só faziam publicidade. E hoje você tem os coloristas que só trabalham com longa e também

os que fazem os dois...

AC: Mas ao mesmo tempo eu acho que tem uma certa nostalgia, de estéticas que lembrem

mais a película, não acha?

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MP: Talvez. Mas o fato é que tanto um raciocínio quanto o outro não é o melhor né... Porque

em ambos está se olhando para o lado. Eu lembro que antes, principalmente no mundo da

publicidade, vários diretores entravam no telecine e falavam “mostra aí que que você tem

feito”. Aí viam o comercial dos colegas, pra poder fazer o deles depois...Você está olhando

pro lado né... Quando você tenta se posicionar tanto seguindo uma estética corrente, quando

se opondo a ela, você olha pro lado né...Você não tá olhando pra dentro, pro seu projeto, pro

seu roteiro...E acho que isso é meio louco. Porque as vezes eu leio um roteiro e penso “esse

filme é pra ser amarelo amarelo, verde verde, sem interferência, o mais clássico possível”. E

isso não é ser careta, não mexer não é ser careta, é simplesmente uma opção que você

escolheu né...

O “Aspirinas” não foi feito daquele jeito porque era pra ser diferente, porque era pra ser

inovador não. Ele foi feito por que tinham razões no roteiro que a gente pensava daquele jeito.

Eu lembro que nas primeiras conversas com o Marcelo, ele achava que o início do filme tinha

que ser mais claro, como se aquilo fosse uma adaptação do alemão a região. Aí eu questionei:

“mas o alemão se adapta?”. Aí ele: “não”. Então por que que a imagem tem que se adaptar?

Porque a imagem não é toda mais clara? Mas alguma adaptação tem... Aí a gente chegou ao

plano inicial do filme, que vai do branco ao super-exposto que é o normal do filme. Isso foi

uma conversa, no ar-condicionado, quatro meses antes de começar a filmar. Foi por que o

Marcelo tinha convicção que aquela luz tinha que ser mais forte, que tinha que incomodar o

olho claro dele o filme inteiro. Depois a gente lembrou do “Vidas Secas”, depois a gente

lembrou de outros filmes, outras estéticas que dialogam. Mas a origem é outra...a origem é o

personagem, aquela situação...

AC: E depois de tantos testes, o que foi decidido, em termos de revelação, pro produto final?

MP: Então, na Mega, você não tinha a opção de passar parcialmente pelo branqueamento. [...]

Aqui no Brasil, na Labocine também, você tinha a opção de não passar totalmente pelo banho.

“Madame Satã” foi feita assim, eu tinha feito alguns curtas assim também. Mas aí não passa

pelo banho absolutamente. Lá fora, o que você consegue é determinar o tempo que você passa

pelo banho. Por exemplo, na Swiss Effects, você tinha uma escala de 0 a 100. Mas eles

faziam na Arri, em Munique, essa parte. E aí você poda pedir 56% de bleach, e pra eles era

uma conta. Aqui não. Na Mega você tinha uma escala que ia de 0 a 1, e era feito na revelação,

simulando o bleach bypass. Então a gente tinha feito uns testes, e chegado a 2/3. E era 2/3 no

internegativo. Então eu super-expunha 2 pontos todos os exteriores dia, e as minhas noturnas

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a 0, na exposição correta. Aí montava o negativo, fazia o interpositivo normal. E no

internegativo fazia o efeito bleach 2/3. Do ponto de vista da produção, era melhor fazer no

interpositivo. Porque o interpositivo só tem um...Se você precisa fazer vários internegativos

pra distribuição no exterior é mais fácil você já ter um interpositivo padrão e os filhotes dele

vão sair assim. Mas pra gente não era tão legal. Aí a gente conseguiu convencer a produção

que seria o internegativo que seria interferido...E aí no final acho que o filme nem tem muitos

internegativos mesmo. No Brasil o filme foi lançado com umas 10 cópias, enfim...

Porque essa era uma outra questão na época né, o seu controle dependia, por exemplo... O

“Madame Satã” eu lembro que o bleach era no negativo de revelação...Eles tiveram que

refilmar cenas por causa disso...Fazer depois é muito menos arriscado...Por outro lado quando

entra a distribuição você não tem mais controle disso, a gente nunca marca luz de cópia de

lançamento né... Depois que o distribuidor entra você não é mais parte disso...E hoje em dia

não tem mais esse risco...

AC: E foi seu último filme feito todo ótico?

MP: Não. Eu fiz meu primeiro, meu segundo filme todo ótico. Meu terceiro também. [...]

Acho que “Os famosos duendes da morte” foi meu primeiro filme finalizado digital. E à partir

daí nunca mais fiz ótico... Mas eu também não tenho fetiche.

[...]

Eu não acho, voltando agora para outras coisas...Eu não acho que a gente precise acatar o

método vigente, acho que a gente pode escolher o nosso método de trabalho independente das

facilidades que a gente tenha. [...] Por exemplo, as pessoas falam muito de filmar em locação

ou filmar em estúdio. Quando você tem uma parede que você não pode ultrapassar isso

interfere na sua linguagem. É mais confortável filmar em estúdio? É. Mas tem gente que

prefere não poder tirar aquela parede, porque isso vai imprimir...Então você está usando os

limites daquilo a seu favor, isso pode ser bom. Então se você tem uma facilidade tecnológica

e eventualmente você não usar essa facilidade porque você acha que de alguma forma aquilo

vai te colocar uma reflexão, te mudar um comportamento...Então por exemplo, quando você

falou de fazer um exercício de não usar vídeo-assist. Isso pode ser legal, isso pode ser

interessante pra um filme.

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AC: As vezes acho que uma coisa que se perdeu, pelo menos nos mais jovens, é que não se

testa mais tanto...Se você fazia um monte de teste em película, porque com a finalização

digital, que é tão ampla, a gente testa menos?

MP: Bom...acho que o fato de que tinha uma mágica, uma alquimia ali na película que

transformava um pedaço de plástico em uma imagem...Eu acho que muita gente entendia que

os testes que eram feitos em película, era pra ver se aquilo ia dar certo, se ia imprimir, se ia

sei lá o que... Enquanto não é uma questão de insegurança... É uma questão de pesquisa, que

imagem que aquilo vai ter mesmo...

AC: Mas a insegurança de certa forma justifica o custo de produção né?

MP: Justifica...Porque o cara pensa “realmente eu tenho que dar o teste do cara, porque se

não ele vai fazer isso como?” Agora que todo mundo tem um celular, uma câmera que aponta

e filma, acho que o propósito do teste tem que ser realmente entendido. Porque ele ficava

muito escondido dentro dessa questão do “Po, vou ter que ajudar esse cara. Porque precisa de

uma mágica mesmo pra essa imagem existir...”. Mas aí é que tá...Também existe uma coisa

muito importante que é parar de pensar que o teste fotográfico é um teste do fotografo. Porque

é um teste da direção, é um teste da arte também...Eu acho que esse é o caminho pra propor

um teste pra um filme, e que ele seja aprovado, é pensar, esse é um teste pra todo mundo, pro

filme que estamos fazendo juntos. Pras pessoas saberem se é aquilo que elas tão pensando...

Algum diretor de arte me falou disso um dia, que quando um diretor chega num cenário e fala

“Nossa, ficou incrível! Nunca imaginei que isso fosse ficar assim.” Ele não fica feliz, ele fica

puto. Como assim? Eu apresentei os croquis, eu apresentei a maquete, alguma falha de

comunicação rolou aí. Era pra ele achar bonito, mas não pra não imaginar que ia ser assim.

Estava planejado pra ser assim. Então, quando a surpresa é muito grande, pro bom ou pro

ruim, demonstra uma falha de comunicação no meio do negócio.

E eu acho que imagem é muito difícil de você descrever. As pessoas não tem vocabulário para

imagem. Se você chega para um médico e diz que está com uma dor. Como é a dor? Os

médicos tem milhões de adjetivos pra definir a dor: se ela é uma pontada, uma fisgada, se ela

é constante, se ela oscila...A gente não sabe falar de dor, dói... Muita gente não sabe explicar

uma imagem e usa termos trocados. Por exemplo, escuro é uma coisa, contrastado é outra.

Contrastado pressupõe alta luz. Escuro é escuro. Eles podem significar a mesma coisa, mas

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podem significar o contrário. Então a visualização daquilo antes é o melhor jeito né, pra você

construir um senso comum...

[...]

Ao mesmo tempo, a gente tem que entender esse momento da informação também. Por um

bom tempo, na película, não tinha uma certa relação de transparência, entre o fotógrafo e o

produtor. Então por exemplo...por que que você ilumina uma sequência? Tem vários motivos

pra você iluminar...Você pode iluminar porque um lugar simplesmente não tem luz suficiente,

você pode iluminar porque você não gosta da luz que existe (ela é suficiente, mas você não

acha adequada pra sequência), ou você pode iluminar porque a luz é linda, ela tem intensidade

suficiente, mas era vai durar 15 minutos (porque o sol vai entrar atrás da árvore e aí acabou)...

Então são vários motivos que te fazem iluminar. O segundo motivo que falei agora é o mais

difícil de defender...Porque ela implica numa subjetividade que gera custos e tempo. Então

muitas vezes um produtor, ou um diretor-produtor, pode falar assim: “Me desculpas, eu te

entendo, até acho que essa luz que você propôs é melhor. Mas não vai dar tempo, a gente

precisa filmar agora, porque se não não vai dar pra parar os caminhões por mais tempo, etc...”.

Então o motivo “não tem luz suficiente”, ele é o mais fácil. Eu via muitas vezes quando eu era

assistente de câmera o fotógrafo falar “vou ter que iluminar, não tem jeito!” E hoje em dia

esse discurso ele não existe, ele não pode existir mais. Porque todo mundo tem uma câmera,

um iphone, e a pessoa sabe que imprime. Então esses acordos tem que ser mais transparentes...

E aí tem o lado bom e o lado ruim disso. Porque fantasiando o lado bom, o ideal fosse que

todo mundo tivesse conhecimento suficiente pra você poder falar daquilo que você está

falando mesmo e conseguir ter um interlocutor. Eu acho que nunca foi tão fácil de ser

compreendido enquanto fotografo nesse sentido. O lado ruim é que você vai ter defesas

consistentes contrárias ao que você queria...E você vai ter que dar argumentos...Eu acho que a

coisa fica mais equilibrada e as decisões passam a ser de grupo, e nem sempre a que você

queria. Se você for pensar de forma egoísta é ruim, se for pensar no projeto maior, é bom. [...]

Um dia eu estava numa mesa de debate, e um cara perguntou se eu não tinha medo da

profissão acabar. Na medida que ela ficava mais acessível, e as pessoas não precisam mais ter

tanto conhecimento técnico, a profissão podia acabar. E aí eu perguntei pra ele “Você

cozinha? E você vai a restaurante por quê”. Porque tem vários motivos que faz uma pessoa

que cozinha e gosta da sua comida ir num restaurante...porque ele gosta daquele tempero

específico, porque está sem saco de cozinhar naquele dia...

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AC: Acho que é legal o que você falou no sentido de o diálogo estar mais claro, as pessoas

terem mais conhecimento (ou verem mais), muita gente enxerga como uma perda de poder.

Mas as pessoas esquecem que também pode haver uma troca, que pode se pensar soluções

melhores para o filme. [...]

E talvez, quanto mais a técnica se torne banal, por outro lado a diferença entre os fotógrafos

fica realmente em como você olha aquela imagem, uma habilidade muito mais subjetiva do

que técnica...

MP: Acho interessante que quando você fala do poder, o poder está muito relacionado a

insegurança e segurança. Por exemplo, pessoas que tem formações diferentes. Nem todo

diretor tem a mesma formação, nem todo fotógrafo tem a mesma formação. Isso faz com que

cada relação profissional seja diferente. Muitas vezes eu demoro pra saber qual é a minha

posição do filme. Eu faço isso a muitos anos, mas eu não sei o que se espera de mim a cada

filme. Tem filme que o diretor decupa e fala direto com o câmera. Tem filme que o diretor

não decupa. Tem filme que o diretor quer decupar junto. Tem filme que o diretor descreve

uma luz e quer aquilo. Tem filme que o diretor mesmo que ele não goste da luz ele não

criticar sua luz, por respeito. [...] Então qual é a função do diretor de fotografia? Eu não sei,

cada filme eu tento entender qual é a minha função ali naquele filme. [...]

Por exemplo, um diretor que tem menos relação com a imagem, que é escritor. Ele pode dizer

“Cara, nessa cena aqui, escrito ela tem uma ambiguidade. E na imagem, era pra ser ambíguo,

ele ele tá confuso, se ele tá com raiva, mas na imagem aqui ele claramente tá com raiva, e eu

não sei mais o que fazer...” E aí você pode criar uma imagem que te tire elementos visuais,

porque você não quer definir qual é a emoção daquele cara. Aí essa construção junto, que

você fala das suas fraquezas pro outro. Esse terreno da exposição na parceria para o outro, de

falar sobre suas inseguranças pro outro, isso forma parcerias muito sólidas. Que é o contrário

da disputa de poder que a gente estava falando. [...]

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ENTREVISTA COM AFFONSO BEATO

(Rio de Janeiro/Los Angeles, Abril de 2014)

Ana Carolina: Então, eu vou te falar mais ou menos o que que é o meu trabalho. É sobre

mudanças na fotografia de cinema a partir da intermediação digital. O interesse é no que que

mudou nos processos, em como fotografar e também no que você acha que mudou

esteticamente.

Affonso Beato: Tá. Isso é uma longa conversa. Mas vamos começar de umas coisas assim

fundamentais. Primeiro isso aí é um plano tecnológico entende, que vem da ciência. Vamos

puxar as coisas assim devagarinho, mais criteriosamente. A mídia tá sempre tentando ver

melhor. O que é tentando ver melhor? Ver mais perto do que a visão humana vê. Então, a

visão humana é um negócio maravilhoso, entende? Existem vários aspectos que hoje a gente

considera. O campo de visão, full vision, a gente vê 180º. O cinema, a mídia em geral,

televisão, você só tá usando 28º, uma meleca...30º por aí. É uma visão que a gente tá

historicamente ligado. Se você quiser ler sobre esse troço, no meu site tem uma matéria sobre

a história do 3D que eu escrevi e que tem uma reflexão sobre isso, sobre o campo de visão.

Isso é uma coisa.

Segunda coisa é o seguinte. A visão humana, ela tem um poder de sensibilidade imenso. A

noite você pode ver até coisas iluminadas só com a luza das estrelas, não necessariamente

nem com a luz da Lua. Isso aí se você for comparar com a sensibilidade do filme ou com a

sensibilidade dos sensores hoje, a diferença é brutal. A gente tem assim sensibilidade de 12

mil, 8 mil ISO e hoje os sensores tão por volta de 800, não é isso? Depois, a visão

humana...tem uma coisa chamado latitude ou então, como chama isso, tô pensando em

português...dynamic range. Você sabe o que são essas coisas? Então é a capacidade de você

ver contraste. E a visão humana vê por volta de 22, até um pouquinho mais, é difícil de medir,

mas por aí. E os materiais hoje, quer dizer, o filme vê no máximo 16 stops em dynamic range

ou latitude. E as câmeras digitais veem por volta dos 14.

E aí tem uma outra coisa, que é a quantidade de cores que a gente pode ver. Isso aí é meio que

imensurável. Mas enfim, o sistema nosso ótico humano, ele é analógico. Então, ele vê o que

existe dentro da tua fisiologia. Umas pessoas veem mais, outras pessoas veem menos...mas

enfim, nós vemos uma gama, um espectro incrível. Então, você olha na pintura, as pessoas

veem matizes de cores e tal. E mostram que elas são sensíveis a matizes diferentes através da

história da arte. [...]

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Agora é o seguinte, em termo de resolução o negativo até hoje bate o digital. Porque o filme

colorido vê mais ou menos 16K. E hoje em dia, as câmeras, os sensores melhores tão vendo

8K. E a maior parte das pessoas trabalham até com 4K. Na maior parte das produções ou até

HD, 1920, 2K. Bom aí, o filme vê 16 stops. Os equipamentos digitais veem 14 stops. Filme

vê cor de uma forma analógica, ou seja, lê todas as cores. Basicamente todas as cores que são

apresentadas são gravadas no filme fotoquímico. Hoje em dia, as câmeras veem 10, 12 bytes,

14 bytes. A F65 agora vê 16 bytes, que é uma coisa extraordinária. Muito bem.

Então, primeira coisa que é assim, você tem digitais e digitais. Então, hoje em dia, o melhor

DI, que aliás eu fiz “O Tempo e o Vento” aqui [em LA] na Sony, com a maior quantidade de

cores e 16 bits, com esse processo novo chamado Aces que é um workflow novo. Mas se eu

tivesse feito essa captação em filme, e se eu tivesse escaneado esse filme, eu ainda só teria 65

mil cores por canal. Mas no negativo, estaria tudo ali. Que dizer, o DI não passa daquilo que a

capacidade instalada de cada DI tem. Aí depende também o que você vai fazer com esse DI.

Se você vai fazer os teus DCPs, que é a nova forma de você distribuir filme digitalmente... Se

vai ser um DCP em 4k ou em 2k. Ou se você vai jogar só pra televisão e vai em 1920.

Então isso aí é coisa técnica, não sei se interessa a tua tese ou não.

Esteticamente ou operacionalmente, o que te pode proporcionar é o seguinte. Os sistemas

anteriores, sistemas fotoquímicos, a marcação de luz ou a criação do teu máster negativo era

muito limitado. No sentido de que você só tinha filtros, na hora de copiar o negativo pro

positivo, você tinha filtros em que você cancelava os vermelhos, você aumentava os

vermelhos, abaixava, enfim. Você tinha uma possibilidade em RGB e densidade. Hoje num

DI, não só você tem isso, mas você pode ter em cima do quadro que você está operando, em

cima de uma janela...ou então você pode ter um controle muito maior, você pode separar as

cores, você pode contrastar as cores, você pode dessaturar uma cor. Você pode trabalhar em

cima de cada canal. Além disso, você hoje tem instrumentos que são semelhantes ao

Photoshop. Hoje uma mesa de DI é um super Photoshop. Você pode mudar a cor da tua blusa,

eu posso pegar a tua blusa que é branca e dizer “olha, o que é branco, agora vai ser azul”. E

posso criar uma máscara e posso fazer com que essa máscara ande dentro do quadro,

dinamicamente. Se você andar por aí, só vai mudar a cor da tua blusa. Porque a máscara vai

seguir a tua blusa, não é isso? Então isso propicia uma criatividade, a quem faz, espetacular.

A um nível quase de efeitos visuais. Então, eu diria que o DI te permite uma possibilidade

artística muito maior do que era o fotoquímico... E também, você sabendo que você tem esses

instrumentos todos, te facilita muito na hora de filmar. Quando você filma com película ou

com uma câmera digital é a mesma coisa. Você tem uma cena, aí você vê a parede lá atrás de

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linha, ela tá muito clara. Então, se eu fosse cortar isso no fotoquímico, eu teria que por

bandeiras nas janelas pra escurecer aquela parede e tal. Isso aí levava muito mais tempo.

Então, o que eu posso fazer? Eu sei que eu tenho um controle dessas coisas no DI, então eu

não faço na hora da filmagem. Ganho tempo, me dedico a outras coisas. Por exemplo uma luz

melhor pro rosto dos atores, enfim ... E aí eu faço isso no DI, no digital intermediate, porque

eu tenho essa facilidade.

Então isso faz com que a fotografia moderna ou a cinematografia moderna fique muito mais

livre pra uma série de outras coisas do que ficar fazendo corte ou ficar precisando

temperaturas de cor porque o controle no digital é enorme.

AC: Eu queria falar também um pouco do processo inicial, da passagem do ótico pro digital

assim. Como foi pra você essa passagem?

AB: Vamos falar disso, que eu acho que é uma boa pergunta. Eu acho que realmente foi uma

grande revolução. O fotoquímico passou pro digital justamente no DI, na descoberta do DI.

Como é que isso aconteceu? Primeiro, sempre foi um grande problema, quando você faz um

fotoquímico... Você tinha que mandar no laboratório, revelar, aquilo custava dinheiro e tudo.

Você tinha que ter um cinema pra ver o copião... Aí você tinha que ir no laboratório ou

encontrar um cinema. Se você tivesse filmando numa cidade no interior, o cinema não era tão

bom, então isso era um problema. Então começou uma coisa chamada telecine, não é isso?

Que foi a passagem, a gravação nos dailies pro sistema digital, essa foi a primeira invenção.

Isso aí é dos anos, sei lá, 70 por aí. Final dos anos 70, começou a acontecer isso. Aí chegou a

um certo ponto, em que não era mais telecinar negativo, mas sim escanear. Escanear era uma

coisa diferente do telecine. No telecine você botava o filme em movimento, era um

escaneamento em movimento que não agarrava toda a potência que o negativo te dá. Era uma

coisa somente para fatura de dailies e copião. Então num certo ponto assim começou... Foi até

a Kodak que inventou esse sistema chamado Cineon, que isso é usado até hoje, que deu

origem ao arquivo dpx. Que é usado nos DIs, a maior parte dos DIs são feitos na plataforma

dpx. Então, o que aconteceu foi o seguinte. Fizeram scanners que são máquinas que leem

fotograma por fotograma, escaneam todos os fotogramas e transformam aquilo num arquivo

digital, de alta qualidade. Então, esse é o arquivo. Então, o dpx é um arquivo.. 10 bytes. Que

vem sendo usado até agora. E a última modificação foi feita há dois atrás, com esse processo

Aces, que já usa um arquivo open. E usa 16 bytes, ou seja, ele puxa 65 mil cores. É a melhor

coisa que existe.

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AC: Mas esse processo Aces é pra escaneamento também?

AB: É pra tudo. Ele reconhece tudo que você tá fazendo, escaneamento também. Bom, mas aí

vamos voltar. Você tá falando da passagem. A primeira passagem foi telecine, todo mundo

falou “opa, genial, a gente até pode montar de uma outra forma e tal”. Depois a segunda

passagem foi o escaneamento, quer dizer, você transformar película em digital, em arquivo

digital. Bom, nesse momento o que se chamou workflow no processo, o fluxograma do

processo se tornou híbrido. Então, a maior parte dos filmes, até hoje muitos são feitos assim.

A gente filma em película porque a película é a melhor forma de captar e você passa aquilo

pro digital. Porque o digital é a melhor forma de você depois manipular, como eu estava te

falando. O que você pode fazer no DI é muito mais do que se fazia no laboratório fotoquímico

antigamente. Então, essa foi a primeira...esses foram os dois passos assim, em termos de

revolução tecnológica da passagem do filme pro digital, não é isso? E aí é uma coisa que a

gente amadureceu há pouco tempo, mas que sempre os diretores de fotografia, os diretores, os

produtores tinham problema. Com filme e com processo fotoquímico, ou você filma um dia e

você só vai ver as coisas no outro dia. Se alguma coisa tava dando errado, a câmera e tudo,

você só vai saber no outro dia. E isso, às vezes você perde um dia de produção. Que custa

uma enormidade, uma fortuna. Principalmente em filmagens aqui, o dia custa 200 mil dólares,

300 mil dólares, não levando em consideração o preço de ator, atriz e tudo. Então, eu já fiz

filmes...eu fiz um filme na Colômbia com co-produção inglesa, americana. O negativo ia pra

Londres, era processado lá, aí eles mandavam um arquivo pra Califórnia que depois fazia uma

redução e mandava pela via internet pra eu ver, dois dias depois, três dias depois o meu

copião. Isso cria uma incrível ansiedade e uma falta de controle no processo.

E tem várias pessoas. É o diretor que quer ver como que a cena estava pra ver se muda

alguma coisa. É o produtor que quer ver se o produto que ele tava vendo e tal. Então, o que

acontece? Hoje no processo digital, você vê tudo na hora. Você vê o que a câmera tá vendo,

se você tiver uma boa monitoração. Você tá vendo, você sabe que você tá gravando aquilo

que você tá vendo. E evidentemente tem uma série de cuidados, backup, porque o digital é

muito efêmero. Então, se toma uma série de cuidados, mas você vê os troço lá. Então, esse eu

acho que é o elemento, a monitoração em “real time”, que realmente levou a indústria ir toda

para o digital. Porque o digital não é tão mais barato do que filme, do que o processo

fotoquímico. Hoje, os grandes laboratórios tão fechando. Enfim, as câmeras fotoquímicas

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tão...ninguém mais produz as câmeras fotoquímicas. O próprio filme tá deixando de ser

produzido, não é isso? Então, houve essa passagem, através do DI...

AC: Então, qual foi o seu primeiro filme feito todo com intermediação digital? Você sabe?

AB: Deixa eu pensar aqui, não me lembro direito...eu acho que foi um filme americano

“Ghost World” Foi no ano de 2000, eu acho, com a Scarlet Johanson. Enfim, eu acho que foi

a primeira vez que usei esse processo...

AC: E o que que você acha que mudou nesses anos? Não só assim, tecnologicamente, mas se

antes se tentava copiar processos da película...hoje você acha que...

AB: Olha, o negócio é o seguinte. A intermediação do digital abriu um campo artístico, assim

uma possibilidade artística muito grande de intervenção. O diretor de fotografia chega até um

ponto quase de pintura, quer dizer, você tem um controle artístico da imagem no final quase

na área da pintura. Você pode interferir em tudo que você quiser. Você tá entendendo? Quase

beirando o “visual effect”. Tanto é que os primeiros filmes que foram feitos...aquele primeiro

filme que foi feito dos irmãos Coen, “Oh Brother...”? Então esse foi o primeiro filme, que

houve uma revolução assim de visualização. Porque ele pegou as árvores, todas as árvores

que eram verdes, as árvores ficam todas amarelas. Então o filme tem um negócio de pintura

maravilhoso. Eu fiz isso um pouco em “Deus é brasileiro”, filme do Cacá, eu mudei tudo.

Assim, você podia passar de uma coisa altamente realista para uma coisa totalmente

surrealista ou não realista, como o pintor pode fazer. Pode interpretar as cores. Então, eu acho

que essa capacidade...fez com que a cinematografia mudasse, que aliás é uma coisa que eu

ensino. Que hoje em dia, a cinematografia é design. É uma arte de design, é uma arte de

controle das coisas. Porque é uma palavra que a gente usa, não só pela unidade fotográfica,

digamos de um filme inteiro. Mas às vezes de sequências diferentes, isso é o que a gente

chama de “look”. Um “look” é um desenho para aquele sequência ou um desenho para o

filme inteiro. O filme inteiro pode ter um “look” só ou o filme inteiro pode ter “looks”

diferentes. Porque as sequências, os momentos diferentes pedem “looks” diferentes. Então,

isso é conseguido através de elaborações digitais. A gente agora cria uma coisa que são os

filtros digitais, que são os LUTs. Você produz isso em cada sequência pra você ter um “look”

diferente. E essas coisas, por exemplo, podem ser aplicadas no monitor. A câmera tá vendo a

realidade de um jeito, mas eu ponho um “look” no monitor eletronicamente e o diretor, os

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produtores, eu mesmo, o fotógrafo, estamos vendo a coisa de uma forma já interpretada. Já

desenhada. Então, essa capacidade...isso aí modificou muito. Você vê hoje em dia as séries de

televisão, cada uma tem um “look” diferente, que vem também da iluminação e tudo. Mas

passa por um filtro eletrônico e que você pode controlar. Então hoje, a cinematografia, a

interferência digital é feita a partir do que você recebe da câmera. A gente não usa isso dentro

da câmera porque a gente quer captar sempre o mais possível. E elaborar esse “look” depois

no DI. Mas você pode ver até na hora de monitorar, você pode por aquele “dream look” que é

um desenho da sequência. Então você põe aquilo, o diretor tá vendo aquela sequência “Olha,

essa sequência vai ficar assim, não vai ficar assado”. Não vai ver como a câmera tá vendo. A

câmera tá vendo de um jeito, mas você já modificou ali.

AC: Mas e falando assim pra gente comparar mesmo o processo quando era feito todo ótico e

a partir da intermediação digital. Você acha que mesmo hoje, quando você fotografa um filme

em película, você fotografa diferente?

AB: É. Eu fotografo diferente porque eu sei que na intermediação digital eu tenho tantas

ferramentas que eu não preciso fazer isso e aquilo.

AC: Fala um pouco mais assim...

AB: Deixa eu te contar uma coisa prática. Não vou mencionar nomes... Mas diretores... os

fotógrafos gostam que as pessoas, assim dinamicamente, entram numa sala entre uma zona de

sombra, vai no escuro e depois volta. Você sabe quem é o ator. Aí o ator chega perto da

câmera, então aí fala e tem uma luzinha. Tem diretor que quer ver o rosto do ator o tempo

todo. Você tá entendendo? Então, por exemplo, na intermediação digital eu estou vendo você

aqui na tela... Eu crio uma máscara pra você, eu pego uma ferramenta que analisa a cor da tua

pele. Então eu tou vendo a tua pele, e é diferente aqui da blusa que é branca. Então tá. Aí

disso, eu crio uma máscara que é a máscara Carol. Então, eu pego essa máscara e digo pro DI,

pra as ferramentas que eu tenho no Di. Então, trackea, segue esse elemento aonde tiver ela

tiver um quadro. Então, por exemplo, se eu achar que o seu rosto tá um pouco escuro do jeito

que eu tou vendo, eu atuo somente naquela área e re-ilumino o teu rosto. [...] Aí eu aperto o

botão e quando a cena voltar de novo, essa máscara te persegue aonde você andar aí dentro

desse quarto. Então, eu tenho um controle total de zonas de cor. Porque esse é o processo.

Processo de criação de máscaras. Aí, por exemplo, eu tô vendo que você tem um quadro lá

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atrás. Então, eu pego...aquele quadro tá muito escuro ou aquele quadro tá muito marrom. Não,

a gente precisa de um elemento amarelo. Então eu vou lá, abro uma janela, que a gente chama

de “power window”, como você faz em Photoshop. Aí eu interfiro ali. Agora eu vou passar na

frente do quadro, o sistema é tão complexo que não importa. Você pode entrar pelo quarto,

voltar, entrar na frente do quadro e sair. Quando você sai da frente do quadro, o quadro é

amarelo. Então, eu não tenho que chegar na hora da filmagem, chegar pra “art director” e

dizer “ah, esse quadro é tão marrom... Vai lá buscar outro quadro, um quadro amarelo. Porque

tá falando amarelo aqui nesse ambiente”. Porque eu posso mudar aquele troço pra amarelo.

Quer dizer, o poder da intermediação digital, ela é tão grande que eu tô te dizendo, ela chega

ao ponto dos efeitos visuais, os efeitos de pintura. Então, eu não tenho que me preocupar na

hora de filmar com tantas coisas. Agora, evidentemente, que a intermediação digital, só pra

tua informação, custa por volta de mil dólares a hora. Então, o que que você pode fazer

naquela hora? Porque também você não tem um ano pra produzir um filme. Por exemplo, no

“Tempo e o Vento”, que apesar de ter tido um apoio incrível da Sony aqui, eu tive 15 dias pra

fazer. Eu passei uma semana ajustando tudo com o colorista. Aí depois chegou o diretor e eu

passei uma semana ouvindo o diretor, o que ele queria mudar, o que a gente queria melhorar.

Então, isso tudo também tem um custo. Você tem que fazer as coisas mais importantes que

você pode fazer no set com iluminação, você faz no set. Mas eu tenho coisas que eu deixo de

fazer no set porque eu sei que vou fazer no DI.

AC: E você faz testes antes pra mostrar pro diretor?

AB: Faço. É uma boa pergunta. Eu crio aquilo que eu estava te dizendo, que são os “looks”.

Então, por exemplo, é uma coisa que eu ensino. O Jaime me convidou pra fazer essa série

Maysa. Então, vou falar um pouquinho sobre isso. Na história toda sobre a cantora, ela tinha

três momentos. O roteiro era um roteiro todo baseado num flashback. Porque a Maysa, na

cena inicial, ela sai de casa de carro, ela fala com os pais. Ela sai de carro e quando ela chega

ali na Ponte Rio-Niterói, ela sofre um acidente brutal e morre. Mas entre ela sair de casa e

chegar nesse acidente, ela faz uma série de flashbacks porque a estrutura da história é assim.

Então, o diretor me disse “Olha, Affonso, os flashback são de três tempos, essa história tem

três tempos”. Uma quando ela era criança e a relação dela com o pai, que era uma relação

linda, ela era uma criança feliz. Depois a carreira dela ficou muito importante, ela teve um

sucesso danado como cantora, então é o segundo momento. Então, ela tem um terceiro

momento, em que o marido começou a brigar com ela, porque ela é cantora e nos 60, aquilo

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não era uma coisa pra uma mulher de família, ela casou com um Matarazo... Enfim, a história

é assim, ela era oprimida e tal. E a carreira dela entrou, digamos, em decadência até o

momento da depressão e tal...até o momento do acidente. Bom, então são três momentos.

Então eu falei “vamos fazer três looks”. Vamos fazer três “looks” pra essa história. Então eu

peguei câmera e abri câmera pra três ambientes mais ou menos que eu sabia que ela ia tá.

Então, uma coisa lá no Palácio Guanabara, que é bonito, que tem uns ilustres. Aí foi num

lugar assim campestre, num jardim, até aonde as cenas dela quando criança. E depois foi num

ambiente no Museu de Arte Moderna, nas locações, abri um pouquinho de câmera que eu

sabia que ali ia ter umas coisas da decadência dela. Levei isso pro computador, aí tinha uns

programas que eu podia desenhar esses “looks”. Aí eu peguei esses arquivos e coloquei.

Então, por exemplo, você sabe que numa filmagem às vezes você...você vai filmar com uma

criança, você só pode filmar 4 horas. Então, eu vou fazer uma cena quando ela era criancinha,

que é outro ator, outra atriz. Eu aperto o botão e o monitor tá me mostrando o “look” quando

ela era criancinha. Então, eu tou ali na frente do monitor e já tô vendo o “look” dela como

criancinha. Quarta. Bom, vamos filmar um show dela, sei lá, no Copacabana Palace. Ela tá no

auge da carreira. Eu aperto outro botão, aparece um “look” que é totalmente diferente. Que eu

desenhei...as primárias são mais elaboradas. O “look” dela quando criancinha era tudo meio

douradinho, tudo meio esfumaçado e tal. Aí quando ela vai entrar em decadência, aperto outro

botão. Bom, agora a coisa é meio azulada, esverdeada, uma coisa sabe mais triste, dessaturada,

com os pretos mais enterrados, enfim... Então, eu já pré-desenho essas coisas. Agora, esses

“looks” são “looks” somente de monitoração. Eu tou gravando com as câmeras os

originais...eu não tou mexendo nos originais, eu tou gravando aquilo que a câmera tá vendo.

Então, quando eu chego no DI, na intermediação digital, eu tenho os “looks” como referência.

Aí o cara carrega lá na máquina, aí vem a cena, ele aperta o botão, o “look” entra lá. Só que

agora, eu tou com a minha imagem, plena imagem, com todos os detalhes que eu peguei e tal.

E aí a gente corrige aquilo numa tela grande, com todo o carinho e com toda a possibilidade

que você tem com toda a instrumentação.

AC: E assim falando da relação com os outros profissionais, o que você acha que

mudou...assim, se antes era uma coisa mais definitiva no negativo o que você fazia? Como é

que você acha que hoje, essa relação mudou assim?

AB: A relação é a mesma, o profissional é que mudou. Então, no laboratório fotoquímico

havia o que se chamava de colorista, mas ele sabia fazer aquilo com filtros, com aquela

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limitação. Quando a intermediação digital começou a aparecer, apareceu o colorista digital,

que é um cara que trabalha...um cara que sabe mexer com Photoshop. Uma pessoa que

entende dos arquivos eletrônicos. É quase uma coisa de engenharia eletrônica, digamos... E

uma pessoa que também tem uma sensibilidade artística pra aquilo. Então, por exemplo,

existe um colorista muito famoso que eu conheço, já trabalhei com ele, que é o cara que fez a

“Amélie Poulain”, você deve gostar. E ele fez, ainda no fotoquímico, ele fez esse filme

“Seven” que foi uma revolução, ainda fotoquímica, mas era uma revolução de “look”. Esse

colorista chama Ivan Lukas. É um francês. E ele era muito importante na França e aí os

Estados Unidos importaram e ele tá aqui. E eu fiz um filme com ele há um tempo atrás. Ele é

amigo, amigo meu, amigo do Waltinho. E ele é uma pessoa assim... ele tem uma cultura

europeia. Os coloristas americanos não tem a mesma formação que uma pessoa que estudou

belas artes na Europa. Então, hoje em dia o que modificou é que você quer descobrir essas

pessoas que tenham uma sensibilidade e uma velocidade. Porque o cara também tem que

trabalhar rápido, porque aquilo tem muitas ferramentas. Então existe uma série de fatores,

mas assim artisticamente você tem que encontrar essa pessoa. O colorista se tornou uma

figura muito importante no processo.

AC: Eu tava na França, eu fiquei um ano lá. Agora de 2012 a 2013 na França, eu fui naquele

Festival Camerimage na Polônia. Eu fui num debate que teve com alguns fotógrafos sobre

essa questão da intermediação digital. E eles brincando...falando sobre como eles iam ter que

exigir...assim como tinha diretores que tinham o “director’s cut”, que eles iam ter que exigir a

correção de cor final assim...

AB: Infelizmente nós perdemos esse bonde totalmente, ao contrário. Aliás isso é uma coisa

muito bem colocada. Porque isso acontece muito, aconteceu comigo. Você fotografa uma

coisa, aí hoje em dia aquilo tá aberto, você tá em log. Você fotografou original, tá lá, não tem

“look” no original. [...]

É uma brincadeira triste porque realmente...isso aconteceu comigo a pouco tempo. Eu fiz um

filme pra HBO, vim aqui corrigi tudo direitinho. E tinha uma sequência, que o dia tava caindo,

aí a gente queria “não, vamos fazer uma coisa mais perto da noite”. Porque a sequência

posterior já seria noite. Eu tirei os filtros, ficou tudo azulado, enfim escureci. No DI me levou

um tempo danado. E eu tinha uma diretora de pós produção da HBO. Depois o diretor foi pra

Nova York, eu fui pra outro lugar. Quando a gente virou as costas... a colorista me chamou

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dois meses depois e falou “oh Affonso, essa mulher veio aqui e mudou tudo”. Aquela

sequência... É a cabeça dela e a gente não pode fazer nada. Eu não posso fazer nada.

E não adianta você ficar reclamando que os caras tem põe numa “black list”, você não

trabalha mais. Diretor de fotografia como um grande autor, isso já foi o tempo. É de uma

importância danada, não tô diminuindo a importância. Mas é que autoria é um negócio sério...

AC: E você faz alguma coisa durante a filmagem assim ou na própria coisa de mostrar os

looks, que já tente influenciar o DI...

AB: Tem diretores de fotografia que gravam o look original. Mas isso não é um bom caminho.

O que eu tou te falando é o seguinte. Esses filtros digitais, às vezes eles são tão radicais.

Porque os LUTs se dividem em undestructable ou destructable LUT. Ou seja, você pode fazer

um look ou um LUT. E quando ele mexe muito com o original, se você gravar aquilo em cima

do original, você não pode voltar mais pro original. Por exemplo, o teu cabelo é loiro. Aí eu

vou dizer “não, eu quero cabelo escuro, muito mais escuro. Totalmente escuro”. Aí eu aperto

aqueles preto do teu cabelo. Se eu gravar esse look em cima da imagem, o teu cabelo não vai

voltar a ser loiro, porque eu matei, acabei com a informação que estava ali no original. Se eu

pegar uma parede lá no teu quarto, meio esverdeada e transformar aquilo em vermelho. Eu

não vou ver mais o original... Então, o caminho mais certo é você andar com a tua intenção, o

teu look andar num caminho paralelo... Você leva como referência para a intermediação

digital...

AC: Uma última pergunta que eu queria fazer. Vamos tentar pensar esteticamente...o quê que

você acha... do seu trabalho, do trabalho de outras pessoas... o quê mudou?. O próprio gosto

estético mudou com tudo isso?

AB: Eu acho que mudou muito porque o DI abriu, como eu já te disse, uma instrumentação

enorme que a gente não tinha antes. Antigamente, no fotoquímico, você passava 6 meses sem

ver teu material, você não podia fazer nada até aquele outro momento, quando você ia fazer a

correção de cor. E a correção de cor era muito limitada. Se você for ver os filmes até o ano

2000 por aí. Os filmes eram até lindos, existem coisas lindas...mas tudo era feito na fotografia,

tudo era feito na luz e alguma coisinha era feita no laboratório. Tem filmes extraordinários...

O Storaro inventou um sistema, o ENR...esse próprio Ivan Lukas, no “Seven”, eles fizeram

um troço chamado “bleach bypass” nas cópias. Eu usei essa história no filme do Waltinho,

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“Água Negra”. Ficou bonito a beça. Então, a gente fazia coisas. Mas dizer que depois disso,

não ficou muito melhor, não é verdade. E do DI, a gente pode voltar de novo pra filme

também.

Mas artisticamente, deu um poder muito maior de expressão pro diretor de fotografia, não

tenho a menor dúvida. Essa parte eu acho que é a melhor parte. A parte da captação não. Até

hoje eu acho que filme é muito melhor do que qualquer câmera digital. Eu entendo que uma

câmera digital te dá um “deixar você dormir tranquilo...”. Mas até hoje a câmera fotoquímica,

é muito melhor do que a digital. Já o processo de intermediação, é muito melhor no digital,

sem dúvida nenhuma. Seria hipócrita em não admitir isso. [...]

Você pode pintar, é isso que eu tava tentando dizer do começo. No digital você pode mudar

tudo. Você pode “ah, eu quero uma fotografia mais impressionista, eu quero uma fotografia

mais expressionista”. Sei lidar com isso. Eu, por exemplo, tenho uma formação de pintura,

então eu conheço. Eu uso muita cor, eu uso muito contraste. Além da luz que eu faço no set.

Eu gosto disso.

AC: Então você pensa mais nisso, na cor, do que antes?

AB: Claro. Porque antigamente você ficava na mão do “production designer”, do diretor de

arte, “ah me bota uma cadeirinha dourada ali”. Hoje, o cara pode botar uma cadeira xadrez,

que eu viro com a cadeira, ponho florzinha na cadeira. É claro que hoje em dia, até hoje você

trabalha com todos os elementos... Mas, por exemplo, quando eu fiz “A Rainha”, era um

filme de orçamento baixo. A Inglaterra não tinha dinheiro, sei lá, 9 milhões de dólares, um

troço assim. O “production designer” tinha um problema sério. Ele não sabia, porque muita

gente até hoje não sabe, o poder do digital intermediate. Então ele falou “Pô Affonso, eu

tenho um problema sério, porque nós conseguimos lá um castelo, que era pra ser o

Buckingham. Mas o problema é que as cortinas são verdes. E no Buckingham, todo mundo

sabe na Inglaterra que as cortinas do Buckingham são vinho, são de um vermelho vinho”. Eu

falei “nenhum problema”, ele falou “como assim?”. Eu falei “vamos lá”. Aí nós tiramos as

fotografias do lugar que ele queria lá na hora. Aí botei na máquina lá, que a gente ia fazer o

DI e falei pro colorista “carrega isso aí”. Aí ele pôs lá o tom verde, o cara fez as máscaras da

cortina, virou a cortina que o cara queria. Você tá entendendo? Então, é esse poder que você

tem. Você pode fazer mil coisas que você não podia fazer antes. Ou você tinha que fazer

aquilo no set.

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ENTREVISTA COM FABIO SOUZA (Rio de Janeiro, Maio de 2014)

Fábio Souza: Sou colorista da Labocine há 15 anos. Minha formação foi ótica, processo

tradicional. Quando ainda se escolhia o negativo de acordo com o look pretendido. Esse

negativo era enviado para o laboratório, depois da revelação, a gente fazia uma luz mais ou

menos, fazia um copião. O diretor de fotografia vinha no laboratório, junto com o diretor,

assistia esse copião. Aí depois o copião era enviado para montagem, o montador montava na

moviola e o copião voltava pro laboratório. Aí com esse positivo montado na mão, era

montado o negativo, era feita uma cópia fiel com uma EDL, Edit Decision List, na mão.

Quem fazia isso aqui na época era a Angela (que ainda faz hoje em dia), e esse negativo

montado era enviado para a marcação de luz. Aí nesse momento o colorista passava o

negativo montado pelo Color Analyser, todos os rolos, pra fazer a marcação de luz. Eram

rolos de 19 a 20 minutos no máximo. Aí quando era feita essa primeira marcação, o diretor de

fotografia ficava do lado, e o marcador de luz ia equilibrando a cena...Ele ia falando “Aqui eu

quero um pouco mais frio, mais claro, mais escuro...” Esse era o processo, você não tinha

muito recurso... Aí depois de feito todo esse equilíbrio no Analyser, com todas as marcações

anotadas, cena a cena, nos enviávamos o negativo para fazer a cópia, no laboratório, junto

com uma fita impressa, perfurada, chamada fita Band. Nessa fita tínhamos marcado o RGB

correspondente a cada cena. Por exemplo, se a marcação de luz desse um valor 24-30-31, nós

já sabíamos que era 24 de R, 30 de de G e 31 de B. Isso corresponde a abertura do diafragma

do “light valve”, que fica em cima de cada canal de luz do copiador. Então essa variação toda

era descrita por essa fita Band, o copiador rodava isso dentro do sistema dele, numa

velocidade de 240 quadros por segundo. Tinha que ser lento, porque todo o negativo era

emendado com cola. Aí fazia-se o positivo. Esse positivo era enviado para o laboratório,

revelado, e íamos para a sala de projeção e assistíamos o que tínhamos marcado. Sendo que

nesse momento, algumas coisas ficavam boas, outras ficavam ruins, outras iam se

aproximando... Essa marcação de luz inicial era uma marcação de aproximação...

Depois com essa cópia na mão você não pegava mais seu negativo, e não voltava mais pra

marcação de luz. Você ia para uma mesa, chamada mesa de luz, com os respectivos filtros

RGB e uma lupa na mão. Com essa lupa na mão, os filtros, e um papel na mão anotando onde

entrava cada cena e os respectivos valores de RGB é que você fazia as compensações. Ia

anotando cena a cena...pra tirar um copião remarcado. Mandava pro laboratório, repetia todo

o processo, e marcava um dia pro diretor de fotografia vir assistir. Aí ele vinha, e aí via como

tinha melhorado...Nessa etapa você avançava mais uns 40% do seu processo...Aí tomava as

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notas, do que deveria ser mexido novamente, voltava pra mesa de luz, remarcava o filme

inteiro, com muito cuidado pra não trocar nenhuma letrinha...que era uma coisa muito

comum... [...]

Aí depois disso remarcado, você tirava outro copião, o diretor de fotografia via de novo, ou

achava que estava tudo ok, ou achava que ainda precisava mexer... Mas aí seriam ajustes mais

finos. Aí deixava remarcado, pra quando o som chegasse, com o filme montado e as devidas

trucas [...], você encaixava pra tirar a cópia zero. Ficava seguindo esse processo até você ter

uma cópia ajustadinha, e aprovada por todos.

Ana Carolina: Uma curiosidade que eu tenho. Qual a sua formação antes de ser colorista?

FS: Eu estudei muito pintura. Eu terminei o segundo grau, fiz muitos cursos de pintura, de

ilustração, muita computação gráfica...Mas não tinha faculdade pro que eu queria fazer, eu já

tava trabalhando aqui na Labocine... [...] Eu fui pra Nova Yorque, estagiei na TP House,

conheci os laboratórios de lá, foi quando eu tive contato com a mesa Da Vinci 2K Plus, que

era a mesa que controlava o Sheldon na época, era antes do Spirit. E fui trabalhando, em

contato com a galera, com os profissionais... Não era como é hoje em dia que você consegue

fazer uma faculdade como a UFF, a Estácio, e você tem toda uma literatura na sua mão, você

pode ter acesso aos programas....Antigamente os programas eram caríssimos. [...]

Então correção de cor mesmo, no Brasil, eu demorei um pouco pra fazer. Eu era marcador de

luz, ainda sou né...Você nunca deixa de ser, só deixa de trabalhar na área. O último longa que

eu fiz todo ótico foi o “Educação Sentimental”, do Julio Bressane, fotografia do Walter

Carvalho. Daqui a pouco pode pintar mais um, aí o pessoal pede pra você fazer, mas é

raríssimo né? Por leve saudosismo você acaba fazendo, e também pra estar perto dos caras né,

dos diretores de fotografia, que são pessoas maravilhosas...Você não tem como recusar um

pedido do Walter...

AC: O que que você acha que mudou nessa passagem para o digital? Como foi a passagem,

as primeiras experiências?

FS: As primeiras experiências foram trágicas. Porque você estava acostumado a trabalhar

com a película...Aqui na Labocine, demorou um pouco o investimento na parte digital. Então

eu via material chegando de transfer de outros laboratórios. E a imagem...eu sempre via os

diretores e os diretores de fotografia muito frustrados. E como eu já tinha uma bagagem legal

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com a parte ótica, conhecendo todo mundo, com uma bagagem bacana, eles começaram a

trazer os filmes pra cá, achando que eu poderia resolver. [...] Então eu tive que começar a usar,

nessa época, os positivos que eu tinha na mão pra tentar solucionar certos problemas. Tinham

materiais que eram pra ser copiados em Kodak, que quando a copia chegava ela estava

extremamente contrastada, muito contrastada, e eu não conseguia eliminar esse contraste. A

cópia ficava lavada e não se chegava a um resultado legal. Então pra esses casos eu começava

a usar o Fuji, porque tinha um contraste baixo, dessaturava mais os tons, embora ele

priorizasse o verde, características mesmo do negativo que a gente já conhecia. Isso nos

primórdios... Aconteceu com Zuzu Angel, foram vários... [...]

Depois que começamos a trabalhar mesmo fazendo a intermediação digital, a receber imagens

capturadas com algumas câmeras digitais. As câmeras não tinham latitude nenhuma, então

você entrava com isso no laboratório de cor, na época o Scratch tava começando, não tinha

nem secundárias direito...E aí a gente ia olhando a tela no monitor, e muitas coisas que nós

marcávamos a luz, por mais que tivesse calibrado e tentando se fazer o misterioso LUT, look

up table, as imagens não saiam exatamente quando eram “printadas”. Então foram sendo

necessários anos de pesquisa, de ajuste, de investimento, até a gente conseguir chegar e ter um

ambiente como esse que você tá vendo aqui, de você olhar na tela e você marcar com

segurança o que você tá vendo, e isso responder na cópia. Você passar por todo o processo de

laboratório, e ainda assim ficar fiel na tela. Isso não somente aqui na Labocine, mas nos

outros laboratórios também, isso foi muito complicado.

AC: Então como foi quando você começou a sentir que esse processo estava mais estável? O

que você achava que mudou na forma dos fotógrafos quererem trabalhar? Você achava que

houve um deslumbre com as possibilidades ou os fotógrafos ficavam com medo de arriscar?

FS: Houve resistência e houve deslumbramento. O deslumbramento continua, a resistência

está minada, e o deslumbramento continua mas não com tanta intensidade. Porque agora já se

sabe das possibilidades, e o que está se buscando é uma imagem cinematográfica. Quem

conhece e teve esse know-how do laboratório, conhece a película e é íntima dela, quando pega

uma imagem e bota aqui na tela, o que eu busco fazer é trazer a cinematografia dela, tirar a

cara de vídeo. E quando eu faço isso as pessoas já gostam. E aí você já começa a ajustar a

base do material. E muitos trazem a idéia do que eles querem, já pensam antes o que vão

querer. Tem pessoas que escolhem câmera, podem escolher câmera. Antigamente as pessoas

escolhiam negativo. Então se tinham um objetivo lá na frente eles escolhiam se queriam

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Kodak, se iam filmar em Fuji, na hora da filmagem se eles iam pular o bleach, pra conseguir

uma imagem mais metalizada, e se iam fazer a cópia em Kodak, Fuji ou Agfa. Se iam filmar

em 16mm e fazer a ampliação em laboratório... como o “Cazuza”, por exemplo, foi feito. O

Walter Carvalho filmou em 16mm, marcamos a luz do 16mm, pista A e B, entre uma cena e

outra entrava um black. Depois marcamos a pista B... E daí fizemos um copião, em 16mm,

remarcamos. Na hora dele fazer a ampliação ótica do material, chamado de blow up, ao invés

dele fazer num material de baixo contraste, especial para isso, para se fazer um internegativo,

ele fez para um positivo. Só nisso ele já foi radical. Ele ampliou para um positivo,

extremamente contrastado, e desse positivo fez um internegativo e pediu pra tirar mais prata

desse negativo. E fizemos o copião.

Poucas pessoas viram no cinema o que é o “Cazuza” realmente, mas na tela do cinema

aquelas cores brilhavam, eram metalizadas, o filme era radical. Eu me lembro que eu estava

nessa situação, nessa sala, com o Waltinho e o Vitor Bregman, que era o diretor do

laboratório na época. E o filme tinha um look radical. E o Vitor perguntou “Walter, você não

tem medo do que as pessoas vão falar da sua fotografia?”. E o Walter respondeu “Dr. Vitor,

eu não tenho não. Eu tenho medo do que o Cazuza vai achar da minha fotografia.” O Cazuza

naquela época morreu de Aids, ele era um cara radical. “O Cazuza é isso, ele é essa fotografia,

radical, eu não posso ter medo de fotografar o Cazuza. Eu tenho medo é dele voltar e puxar

meu pé a noite”. Então isso foi uma aula, uma pessoa com essa cabeça...

Hoje as pessoas escolhem câmeras, ao invés de escolherem negativos. Mas muitas já chegam

aqui sabendo o que querem...

AC: E você acha que nessa coisa de escolher câmera, você acha que existe uma tendência às

pessoas testarem menos? Por que isso é uma coisa que os fotógrafos tem falado às vezes, por

que antes se entendia mais a importância de se testar... E hoje acaba que se faz menos isso, ou

mesmo quando se testa é mais rápido, porque se sabe que pode resolver na pós...

FS: Eu tou sentindo que no momento não. No momento se testa muito. Tivo com o Ivo Lopes,

há duas semanas atrás. E ele veio trazer um teste de fotografia pro look que ele queria seguir,

junto com a Sandra Kogut. E aí ficamos aqui trabalhando e chegamos a um resultado bacana,

“pronto, é isso que a gente quer seguir”. Porque eles estavam testando entre duas câmeras e

escolheram a câmera que deu o resultado melhor. Então eles pegaram essa câmera pra

fotografar o filme. No meio do segundo dia de filmagem, o Ivo pede pra vir aqui na sala,

porque ele estava inseguro com algumas coisas que ele estava fazendo, porque ele achava que

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não estava reagindo bem. Então ele pegou essas cenas que ele achava mais complicadas,

pegou as outras que ele fotografou que ele achava que estavam num caminho melhor, e

quando ele chegou aqui ele ficou apaixonado, viu que ele estava no caminho certo... Então ele

não precisa mais vir aqui, pelo menos não precisa mais voltar aqui, pra fazer novos testes.

Mas ele já sabe o que ele vai fazer, problemas que ele achava que podia ter e que não

houvessem solução nós resolvemos relativamente fácil, então ele está seguro e vai fazer...

Ontem mesmo teve um outro projeto aqui na sala, que vai ser fotografo em 7D e 5D. Então o

diretor de fotografia achava que a ótica da 7D estava a desejar com a definição da 5D. E eu

achei lindo os dois, dependia de como ele queria usar, mas ele tinha essa ideia de que estava

ruim. Quando nós começamos a marcar a luz ele sentia falta de definição da 7D. Mas depois,

olhando bem o look que a gente queria chegar, ele começou a achar fantástico, achar que a 7D

estava reagindo melhor que a 5D, embora ela tivesse uma definição menor. E ficou fantástico,

ficou bem orgânico, nas imagens de ficção... E nas imagens reais ele vai usar a 5D...Então é

necessário testar de qualquer forma...

AC: E você acha que hoje, com a intermediação digital, ainda é diferente quando um filme é

filmado em película e passa pela intermediação, e quando é capturado em digital, numa RED,

Alexa? Isso muda seu trabalho?

FS: Olha, o que acontece, quando você fotografa em película, é que a imagem vem com um

peso diferente. Você sente, ela imprime esse peso, ela é imponente. Parece que se respeita

mais quando se está com um chassis, a câmera no set, e a câmera digital ela fica mais solta.

Com o tempo você começa a sentir essas coisas...

E a película ela tem um grão, ela tem a textura que é dela. E nas altas luzes, a película tem o

soft clip, que é característico da curva da película...a luz não estoura, ela não vai reto e estoura,

ela tem uma gradação diferente... E as cores são muito bem separadas. Toma-se um cuidado

muito grande ao se filmar em película, é claro que os grandes diretores de fotografia mantém

esse cuidado ao filmar digital. Mas a película, eu acho fantástica. Pra mim é o que tem de

melhor ainda. Quando você vai nas outras câmeras, por exemplo a RED, a Alexa... Eu sinto a

RED mais radical no nível de contraste, a Alexa eu sinto que ela segura mais esse contraste e

a diferença entre as baixas e as altas luzes. Você precisava trabalhar um pouco mais na RED,

mas você consegue um resultado muito bacana. Na Alexa você consegue um resultado legal

mais fácil, mais rápido. As cores são mais separadas, o branco não estoura tão radical, então

tem essa briga no mercado de tecnologia pra se conseguir chegar o mais próximo da película.

Eu acho que está caminhando muito bem...

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AC: E a película mesmo mudou? A própria película mudou, com o surgimento da

intermediação digital, e imagino que antes o filme estava mais dependendo da película

mesmo...e depois, houve uma tendência a elas se adaptarem a intermediação digital?

FS: Pra você trabalhar com a película, ficou muito mais fácil de você trabalhar agora, você

tem muito mais facilidade agora do que com o processo totalmente ótico. Porque no

laboratório, você tem de 1 ponto de luz até 50 pontos de luz na marcação ótica. Então se o seu

material, se ele vinha dentro de uma casa no interior e lá fora você tinham pessoas

conversando na varanda...Você tinha que optar pra onde você ia marcar. Se era aqui pra

dentro ou lá pra fora [...] Embora o negativo tivesse um curva bem redondinha, o positivo não.

O positivo tem uma curva mais brusca, ele enxerga menos. Então você tinha que pegar o que

você queria nesse negativo e encaixar aqui, ou a parte de baixo ou a de cima. Hoje em dia,

que que acontece, esse material é escaneado em 4K (ou em 2K, depende do projeto). E o

scanner pega todo esse negativo aqui, mais uma margem nas baixas e outra nas altas. E ele

traz tudo pra você fazer a correção de cor. Então eu tenho toda essa informação. A imagem

vem lavada, sem contraste, normal... Então com o meu LUT ajustado, e isso aqui é anos de

ajuste (cada laboratório tem o seu LUT), e com esse material escaneado em 4K e logarítmico

(ou seja, ele não é linear, que nem as câmeras digitais). Você aqui, junto o waveform, que

agora virou o braço direito do fotografo, você tem o seu nível de preto e o nível de baixas

luzes. E aqui dentro você trabalha tudo, você consegue simular o bleach bypass do laboratório.

Então por isso que é necessário você ter cultura cinematográfica. Pra quando o diretor sentar

do teu lado e ele quiser uma cópia flashada, ou um bleach bypass, ou um preto e branco, e ele

tiver referência do que ele quer, você sabe que consegue simular isso aqui no mundo digital.

Você pode colocar difusão em cada camada de cor, coisa que era impossível no laboratório. E

depois quando você volta e printa o seu material que está no computador, ele volta ao

internegativo, já na curva do internegativo e com essa latitude toda ajustadinha aqui dentro. E

daí quando ele passa para o positivo, ele passa já na curva do positivo, porque tava já tudo

previsto antes. Então eu não preciso mais escolher qual parte que eu quero. Eu posso colocar

tudo junto. Eu posso querer ver você aqui, e as pessoas que tão lá forando, trazendo tudo de

altas luzes, tudo de baixas luzes, e a gente pode ir buscando um contraste entre elas, isso que é

bacana de se trabalhar... Sendo que quando você faz isso, tudo fica muito presente. Então

você, cinematograficamente, deixa um pouquinho mais solto, lá fora não precisa trazer tanto...

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Você trabalha com isso, mas se precisar trazer você sabe que consegue. Então a película

mudou muito, pra se trabalhar no mundo digital... [...]

Eu tive um experiência bem radical. Eu gosto sempre de citar o Waltinho, porque ele

experimenta muito e eu acabo passando por essas situações com ele. Ele estava muito

resistente em relação digital. Então na época a gente ia fazer o Baixio das Bestas. Ele ia ser

fotografado em 16mm e fazer a ampliação ótica. E você tinha truca, porque você tinha que

fazer alguns efeitos. Então quando você fazia a marcação de luz, além da truca, você tinha

que fazer pra um máster e depois fazer o internegativo. Quando você fazia a imagem já perdia

a qualidade. Toda vez que você fazia um máster pra gerar um internegativo, a qualidade caía.

[...] E quando tinha truca então, você pegava uma luz, marcada pra determinada situação e

pegava uma outra situação, com outra luz marcada. [...] A truca gerava um internegativo

dessa junção, e nisso já tinha uma perda de definição. E isso era encaixado antes de se fazer

um máster, pra que ele não tivesse emenda. Então nas suas imagens normais você perdia

definição, digamos que uns 30%...As imagens de truca, já tinham menos definição, então

quando eram finalizadas perdiam 50%...Então nunca ficava perfeito. Depois que nós pegamos

esse material, escaneamos e printamos, nós vimos que não perdia definição. Foi quando o

Waltinho viu que valia mais a pena printar no internegativo, só nisso já se ganhava muito. [...]

Então eu, com todos os meus anos de cinema, trabalhando em película, eu posso te dizer que

captando em película, escaneando, e trabalhando na intermediação digital, e voltando para o

internegativo em película é o melhor que você pode fazer. [...]

AC: Quando você trabalha, desde o início de um filme, que o fotografo já vem fazer testes

com você desde o início...você já trabalhou com a criação de looks? Quele eles aplicam

depois na hora da filmagem? Percebe que isso faz diferença?

FS: Faz. Tem projetos que o diretor de fotografia vem, conversa comigo, me manda umas

referencias, e eu vou criando os looks. Eu olho as referencias que ele mandou, busco algumas

coisas. A gente assiste o filme, depois que o filme tá montadinho, e já vamos decidindo em

que situação usar cada look. Então você já está indo muito direto no que você quer, isso é um

jeito muito bacana de se trabalhar.

E a maioria das situação acontece sem eu ter visto o filme, sem eu ter visto nada. Aí vamos

começar a marcação de luz hoje. Aí é hoje que eu vou chegar, vou ver o filme, vou conversar

com o diretor, com o diretor de fotografia, e ele vai me dizer o que que ele quer. Esse último

filme que eu tou fazendo, que é o “Até que a casa caia”, nosso diretor o Mauro, ele entrou

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aqui na sala e falou “Eu quero meu filme mais colorido, porque esse filme não tem cor, eu tou

um pouco insatisfeito com a direção de arte, sofreu muito o filme, não tá bacana e tal...”.

Realmente, tava tudo ali no off-line. Quando eu peguei o material em alta da RED e

começamos a trabalhar, era tudo mentira. Nada do que ele via era o que ele tava falando.

Então ele já chegou com o conceito totalmente errado. Pelo menos eu já sabia o que ele não

queria né. Aí começamos a trabalhar e foi muito tranquilo, foi muito fácil. Até ele mesmo

falou, que um dos dez mandamentos que ele vai levar pra vida dele é “jamais falar mal da

direção de arte antes de você ver o seu material em alta, no laboratório”. Então sofre as vezes,

ele sofreu de mais, e isso é muito comum...

AC: Uma coisa que o Mauro [Pinheiro] falou que eu achei bem legal, é que antes, no ótico,

você fazia os testes com o diretor de arte, ele via o resultado impresso na película, e ia

trabalhar à partir disso. E o que ele falou que com alguns fotógrafos que não trabalham dessa

maneira, que fazem menos testes, ou a produção mesmo que não incentiva isso, ele acaba

tendo na cabeça dele onde ele vai chegar, ele sabe que vai chegar nessa imagem na pós, só

que o diretor de arte se perde nesse processo porque ele nunca vai ver o que vai ser a imagem

mesmo.

MP: E ele trabalha um tempo com aquela imagem estranha né? A imagem que não é a

verdade. [...] Mas um copião próximo, é uma coisa muito difícil de se conseguir, ainda é

longe... Porque antigamente a gente tinha o problema de conseguir um bom copião no

laboratório. Porque às vezes saía um todo verde, às vezes saía magenda, às vezes saía bom...E

aquele processo de marcar luz, olhar, remarcar, era um processo complicado... Um bom

copião era difícil. Tinha uma técnica bem apurada pra você chegar e produzir um bom copião.

E não se dava muito atenção, porque se fosse marcar cena a cena ia sair muito caro, então

geralmente era luz única.

E o que acontece hoje em dia é que você tem um material digital na mão, e que também não

tem muita qualidade. Eu considero isso um copião, pra você montar seu filme... e continua

horrível. O cara fica sofrendo, não sabe se as altas estão estouradas, se vai dar pra usar, não

vai dar, até chegar aqui, que é quando a gente realmente olha as imagens em alta e vê seu

filme acontecendo.

AC: Essa pergunta que eu vou fazer agora é um pouco mais subjetiva. Como o processo está

mudando, isso tem mudado a forma de fotografar, você não faz um recorte aqui, uma cor ali,

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você deixa pra fazer na pós. Então o diretor de fotografia passa parte do poder criativo pra

você. Claro que a decisão ainda é dele, que ele vai acompanhar você, mas você faz parte desse

trabalho, talvez mais do que antes. Você acha que isso mudou a forma de você trabalhar

criativamente, hoje você tem uma participação maior no filme?

FS: Olha, as ferramentas mudaram. O marcador de luz ele era limitado ao que a película e a

marcação ótica podia dar pra ele. Era muito simples de você olhar o material e saber o que o

fotografo quis fazer pelo negativo. Hoje em dia continua, você pega a imagem dele, analisa a

base, analisa a temperatura de cor e você já vê a intenção dele. E acontece, tem diretores de

fotografia que deixam de fazer coisas no set porque eles sabem que podem fazer aqui. Isso é

muito comum. E tem outros que não curtem fazer isso, que preferem fazer tudo lá pra você

ganhar mais tempo. Então ou você gasta mais dinheiro aqui, no DI, ou você fazendo lá você

consegue finalizar um longa aqui em uma semana. Tem outros que demoram três semanas.

Então qual o custo benefício? Se ele sabe que dá pra fazer isso aqui, e sabe que dá pra fazer

isso lá, a minha participação em cima disso é pelo que ele fala. Eu sou uma ferramenta na

mão dele. Mas é infinita a possibilidade que você tem na intermediação digital. Eu posso

fazer várias propostas, quando o diretor me deixa livre pra fazer propostas, e quando ele não

me dá um caminho a seguir. E ele aceita ou não aceita.

Estava sendo falando agora, na semana ABC, sobre o último filme que ganhou o Oscar de

fotografia. Que ele tinha cenas no espaço e não tinha como ser filmado no espaço. Então o

diretor de fotografia ganhou melhor fotografia num filme que a maioria das fotografias ele

não tinha como filmar, não existiu. [...] Então o pessoal do efeito interferiu muito no filme.

Tudo está interferindo muito no filme. Então o diretor de fotografia tem esse conhecimento, e

ele usa essas ferramentas pra agregar a fotografia, mas ele é o responsável por isso.

Então a minha tarefa está cada vez mais junto do diretor de fotografia. Nós estamos

interferindo cada vez mais onde tem que interferir, deixando bem singelo onde tem que

deixar... Eu quero ser usado, todos os coloristas estão aqui para ser usados, como toda

ferramenta. Mas o mérito é todo do diretor de fotografia. Eu posso ficar duas horas corrigindo

uma cena, mudando tudo, mas se ele não gostar, tira-se tudo. Tem mérito sim, mas ele sabe

onde ele está chegando e ele sabe quem ele usa. Então eu não penso que “o colorista agora é o

cara”, eu acho que não. O diretor de fotografia é o cara.

AC: Mas os fotógrafos falam muito, pois como hoje você sabe até onde você pode chegar

com o digital, ter o cara que chega lá, e que faça isso rápido, às vezes é mais importante do

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que a câmera que você preferia usar, sei lá... Então eu acho interessante pensar em como a

profissão do colorista também está evoluindo, talvez hoje você precise estar mais próximo do

trabalho de fotografar mesmo.

FS: Eu vejo como uma questão de sensibilidade. Eu tenho uma sensibilidade. Eu acho que

você nasce com algumas características e eu tive a oportunidade, graças a deus, de explorar

esse meu lado e desenvolver em cima disso. Então você vai fazer um filme comigo ele vai

ficar de um jeito, se for fazer com outro colorista, ele vai ficar de outro jeito. Então a equipe

que você trabalhou torna o filme único. Então um diretor de fotografia se adapta melhor a um,

ou a outro, ele prefere trabalhar com um ou outro, ele vê os resultados na tela. A meu modo

de ver, a subjetividade é de cada um. Porque além de técnicos, quando você passa acima da

técnica, você alcança a arte. [...] Porque às vezes você domina a técnica, mas você põe uma

imagem na tela e ela não fica plástica. E os diretores olham assim...e acham que a imagem

talvez ainda não esteja lá. Mas ele não sabe dizer o que que é o lá. Então você que tem que

saber o que que é o lá. E tem que saber chegar lá. Às vezes um toque, 20% de saturação a

mais ou a menos, é a diferença entre estar maravilhoso, estar bom ou estar ruim.