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A dupla ruptura epistemológica de Boaventura de Sousa Santos: delineamentos para debate Ariston Azevêdo I Em 1987, quando escreveu Um discurso sobre as ciências 1 , Boaventura de Souza Santos procurou descrever o estado paradoxal que o final do século XX trazia em si. Vivemos, dizia ele, “num tempo atônito (sic) que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser” (SANTOS, 2001a, p. 5). Essa situação de perplexidade atingia não somente as pessoas, mas também as principais instituições de nosso tempo, entre elas a própria ciência, esta que, segundo o autor, enfrentava um momento de profunda crise, melhor dizendo, um momento de transição paradigmática. Foi da apreensão desse estado que Boaventura derivou sua hipótese de trabalho, uma hipótese que hoje podemos dizer ter desembocado na formulação de uma teoria social pós-moderna crítica, tal como ele mesmo fez questão de afirma em Toward a new commom sense, de 1995. Em linhas gerais, a sua hipótese de trabalho pode ser expressa da seguinte forma: (a) com o advento do estágio científico pós-moderno, a distinção entre ciências naturais e ciências sociais perde o seu sentido de ser; (b) uma síntese dessa distinção começa a operar e, desta vez, terá como pólo catalisador as ciências sociais; (c) isso significa, para as ciências sociais especificamente, o abandono dos vestígios do positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista ou idealista, sob os quais ela esteve dominada desde o seu surgimento, e a revalorização das chamadas humanidades ou estudos humanísticos, onde estão inclusos os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos; (d) essa síntese, no entanto, não tem o significado de unificação, tão pouco a pretensão de fundação de uma Teoria Geral. Antes, porém, é sua pretensão representar um conjunto de eixos temáticos, para onde convergem os conhecimentos, ampliando os seus respectivos objetos teóricos e buscando novas e variadas interfaces; (e) à proporção que essa síntese se configura, ocorrerá o desaparecimento da hierarquia corrente entre conhecimento científico e conhecimento de senso comum na realidade, uma espécie de reencontro da ciência com o senso 1 Trata-se de uma versão ampliada da “Oração de Sapiência” que proferiu no ano letivo de 1985/86, na Universidade de Coimbra.

A dupla ruptura epistemológica de Boaventura de Sousa Santos: delineamentos para debate

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Em 1987, quando escreveu Um discurso sobre as ciências, Boaventura iniciava seu texto com uma descrição da atônica que o final do século XX trazia em si. Na verdade, queria ele exprimir o estado em que a ciência se encontrava, isto é, em uma situação de transição paradigmática, e que por isso mereceria ser cunhada como uma condição de profunda crise científica. Da percepção desse estágio de crise parece ter emergido a sua hipótese de trabalho, uma hipótese que hoje podemos dizer ter desembocado na formulação de uma teoria social pós-moderna. Em linhas gerais, esta hipótese de trabalho pode ser expressa das seguintes formas: (a) com o advento do estágio científico pós-moderno, a distinção entre ciências naturais e ciências sociais perde o seu sentido de ser; (b) uma síntese dessa distinção começa a operar, e desta vez terá como pólo catalisador as ciências sociais; (c) isso implica, para as ciências sociais, o abandono dos vestígios do positivismo lógico ou empírico, ou do mecanicismo materialista ou idealista sob os quais esteve dominada desde o seu surgimento, sendo importante, para tanto, revalorizar as chamadas humanidades, ou estudos humanísticos, entendidos estes, entre outros, como os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos; (d) esta síntese, no entanto, não tem o significado de unificação, tampouco a pretensão de fundar uma Teoria Geral; antes porém, é pretensão do autor representar um conjunto de eixos temáticos para onde convergem os conhecimentos, ampliando os seus respectivos objetos teóricos e buscando novas e variadas interfaces; (e) à proporção que esta síntese se configura, ocorrerá o desaparecimento da hierarquia corrente entre conhecimento científico e conhecimento de senso comum – na realidade, uma espécie de reencontro da ciência com o senso comum –, ocasionando uma nova relação entre ambos, na qual a feitura de um provém do outro, daí surgindo algo novo. Não será nosso objetivo aqui percorrer todo o caminho intelectual trilhado por Boaventura em sua tentativa de levar a termo a sua hipótese de pesquisa. Ateremo-nos a abordar, de maneira descritiva, e com base em um estudo de sua vasta obra, apenas a discussão levantada por ele sobre a sua idéia de “dupla ruptura epistemológica”, derivada da hipótese (e) descrita acima. No que tange a esta dupla ruptura, percebe-se que foi a postura radical assumida frente ao senso comum, promovida pela epistemologia bachelardiana, aquilo que o sociólogo português designou como “a primeira ruptura epistemológica”, algo que se deu em uma sucessão de “três atos epistemológicos” (a ruptura, a construção e a constatação) e que vieram a institucionalizar a prática científica, seja nas ciências naturais seja nas ciências sociais. No entanto, esta ruptura levada a termo por Bachelard tem se demonstrado impeditiva ao desenvolvimento das ciências sociais, pois que instiga a tratar o objeto de investigação da ciência social como algo inerte e isolado, quando este é, em realidade, “um objeto que fala” e interage, além de que ela não permite perceber que não apenas a separação entre o sujeito e o objeto não é viável, como também a relação entre esses não pode se descolar do contexto em que se dá. Esses impedimentos sugerem aos cientistas sociais, portanto, uma postura de vigilância epistemológica. Na tentativa, assim, de reaproximar o senso comum da ciência, Boaventura propõe uma segunda ruptura, ou seja, a de romper com a ruptura epistemológica bachelardiana. Deste modo, pretende o autor restituir o senso comum à categoria de conhecimento verdadeiro, quebrando a hierarquia que historicamente se tentou firmar entre este e a ciência. A partir desta postura epistemológica, o autor destaca, para a teoria social, novos critérios de sua construção e avaliação. Entre os quais está a importância de um conhecimento mais prudente do que preciso. Além disso, pode-se dizer que esta posição epistemológica de Boaventura sustenta também seu duplo compromisso,

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  • A dupla ruptura epistemolgica de Boaventura de Sousa Santos: delineamentos para debate

    Ariston Azevdo

    I

    Em 1987, quando escreveu Um discurso sobre as cincias1, Boaventura de

    Souza Santos procurou descrever o estado paradoxal que o final do sculo XX trazia

    em si. Vivemos, dizia ele, num tempo atnito (sic) que ao debruar-se sobre si prprio descobre que os seus ps so um cruzamento de sombras, sombras que vm

    do passado que ora pensamos j no sermos, ora pensamos no termos ainda deixado

    de ser, sombras que vm do futuro que ora pensamos j sermos, ora pensamos nunca

    virmos a ser (SANTOS, 2001a, p. 5). Essa situao de perplexidade atingia no somente as pessoas, mas tambm as principais instituies de nosso tempo, entre

    elas a prpria cincia, esta que, segundo o autor, enfrentava um momento de

    profunda crise, melhor dizendo, um momento de transio paradigmtica.

    Foi da apreenso desse estado que Boaventura derivou sua hiptese de

    trabalho, uma hiptese que hoje podemos dizer ter desembocado na formulao de

    uma teoria social ps-moderna crtica, tal como ele mesmo fez questo de afirma em

    Toward a new commom sense, de 1995. Em linhas gerais, a sua hiptese de trabalho

    pode ser expressa da seguinte forma:

    (a) com o advento do estgio cientfico ps-moderno, a distino entre cincias naturais e cincias sociais perde o seu sentido de ser;

    (b) uma sntese dessa distino comea a operar e, desta vez, ter como plo catalisador as cincias sociais;

    (c) isso significa, para as cincias sociais especificamente, o abandono dos vestgios do positivismo lgico ou emprico ou de mecanicismo materialista ou idealista,

    sob os quais ela esteve dominada desde o seu surgimento, e a revalorizao das

    chamadas humanidades ou estudos humansticos, onde esto inclusos os estudos

    histricos, filolgicos, jurdicos, literrios, filosficos e teolgicos;

    (d) essa sntese, no entanto, no tem o significado de unificao, to pouco a pretenso de fundao de uma Teoria Geral. Antes, porm, sua pretenso

    representar um conjunto de eixos temticos, para onde convergem os

    conhecimentos, ampliando os seus respectivos objetos tericos e buscando

    novas e variadas interfaces;

    (e) proporo que essa sntese se configura, ocorrer o desaparecimento da hierarquia corrente entre conhecimento cientfico e conhecimento de senso

    comum na realidade, uma espcie de reencontro da cincia com o senso

    1 Trata-se de uma verso ampliada da Orao de Sapincia que proferiu no ano letivo de 1985/86,

    na Universidade de Coimbra.

  • 2

    comum , ocasionando uma nova relao entre ambos, uma relao em que a feitura de um provem do outro, da surgindo algo novo (SANTOS, 2001a, pp. 9-

    10).

    Como deixa transparecer a hiptese acima, trata-se de um trabalho

    academicamente rduo, denso e de grande meticulosidade. No ser nossa pretenso

    percorrer o caminho intelectual trilhado pelo autor portugus em sua tentativa de

    levar a termo sua hiptese de pesquisa. Importa-nos, aqui, apenas abordar, de

    maneira descritiva, o que para ns apresenta-se como substancial para fomentar a

    nossa discusso. Assim, procurarei me deter em sua idia de dupla ruptura

    epistemolgica, derivada da hiptese (e) descrita acima.

    Boaventura de Souza Santos, como mencionado pouco acima, desde 1987,

    tem afirmado que a cincia moderna est em meio a uma profunda crise, por ele

    designada de crise de degenerescncia (SANTOS, 2000, p. 19). Trata-se de uma

    crise que, segundo nos informa, perpassa todas as disciplinas do conhecimento de

    maneira profunda e sinaliza para uma mudana paradigmtica, no apenas em

    termos metodolgico ou conceitual, como ocorre em pocas de crises de

    crescimento, estas que tem lugar no nvel da matriz disciplinar de um dado ramo da cincia, isto , revelam-se na insatisfao perante mtodos ou conceitos bsicos

    at ento usados sem qualquer contestao na disciplina (Idem, pp. 17-18), mas em termos mesmo da forma como o paradigma dominante faculta a inteligibilidade do

    real.

    Embora ainda seja reinante a obscuridade sobre a maneira efetiva como

    procede a substituio de um paradigma por outro2, quer seja esse um paradigma

    epistemolgico, quer um paradigma societal3, a crise do paradigma cientfico

    dominante suscita a emergncia de um novo paradigma, cuja configurao somente

    pode ser obtida de maneira especulativa. Assim, baseando-se nesses sinais, e

    embebido de imaginao sociolgica, Boaventura designa o paradigma emergente de paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, isto ,

    trata-se de um paradigma que se volta no apenas para o circulo fechado da

    comunidade cientfica, mas que tambm traz em si reflexes acerca da vida humana

    em seu conjunto.

    Em Introduo a uma cincia ps-moderna, o autor portugus aprofunda a

    sua anlise epistemolgica do paradigma dominante iniciada em seu livro de 1987,

    mantendo, desta feita, um dilogo crtico intenso com as linhas epistemolgicas mais

    2 Em A estrutura das revolues cientficas, por exemplo, Thomas Kuhn chega a afirmar que, em

    parte, a substituio de um determinado paradigma por outro ocorre por meio da converso de seus adeptos ao novo paradigma (1998, p. 39). Se somente em parte essa substituio se d pela converso espontnea ou no, no sabemos! , que outras possibilidades, ento, um paradigma possvel ganha concretude, quer seja em termos cognitivos, quer seja em termos de praxis? 3 Por paradigma societal queremos nos referir a uma categoria que compreende um conjunto ou

    conjuntos de formas ou modelos possveis para a organizao da vida humana individual e coletiva.

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    recentes que se aproximam e que se distanciam de sua hiptese, no intuito de melhor

    clarificar sua propositura de paradigma emergente. Mais especificamente,

    Boaventura procede uma crtica severa cincia moderna4, recorrendo a uma dupla

    hermenutica (de suspeio e de recuperao), para a partir da derivar a idia de

    dupla ruptura epistemolgica.

    O seu ponto referente para proceder a anlise hermenutica da cincia a

    reflexo epistemolgica feita por Gaston Bachelard. Mas, por que Bachelard?

    Primeiramente, porque a sua construo epistemolgica considerada por

    Boaventura como a que maior influncia teve entre os cientistas naturais e sociais,

    nos ltimos anos. Em segundo lugar, porque, sem recorrer a fundamentos

    metafsicos, mas to somente aos resultantes da prtica cientfica, a reflexo

    epistemolgica de Bachelard representa o mximo de conscincia possvel de uma concepo cientfica engajada na luta pela defesa da autonomia do conhecimento

    cientfico frente s demais formas de conhecer, em especial ao senso comum, bem

    como porque se trata de uma concepo que no nega o seu comprometimento com

    a verdade proveniente da cincia (SANTOS, 2000, p. 30). Assim, por considerar a

    reflexo epistemolgica bachelardiana como a concepo mais avanada que a

    cincia moderna gestou no sculo passado, nela que Boaventura de Souza Santos

    acredita encontrar os limites da lgica dos pressuposto cientficos modernos, sendo,

    desta forma, o ato conceptual que melhor pode fornecer opes para a sua prpria

    superao.

    Qual , ento, singularidade da proposio de Bachelard para a cincia?

    Bacherlard apresenta a cincia como radicalmente oposta ao senso comum,

    opinio. Diz Bachelard em A formao do esprito cientfico: a cincia, tanto por sua necessidade de coroamento como por princpio, ope-se absolutamente

    opinio. Se, em determinada questo, ela legitimar a opinio, por motivos diversos

    daquele que do origem opinio; de modo que a opinio est, de direito, sempre

    errada. [grifos nossos] A opinio pensa mal; no pensa: traduz necessidades em

    conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhec-los.

    No se pode basear nada na opinio: antes de tudo, preciso destru-la. Ela o

    primeiro obstculo a ser superado. (1996, p. 18) [grifos do autor]. exatamente este pensamento bachelardiano que atrai a ateno de Boaventura para um olhar

    crtico de sua epistemologia. A posio que Bachelard adotou frente ao senso

    comum reflexo de uma longa tradio na histria da cincia, onde aparecem

    figuras como Coprnico, Galileu, Newton, Bacon, Decartes, entre outros, todos

    4 Muito embora, como veremos mais frente, a inteno de Boaventura seja a de propor uma nova

    configurao do saber, configurao esta em que a mutualidade construtiva entre o conhecimento proveniente da cincia e o que provm do senso comum se apresenta como possibilidade concreta,

    fazemos notar logo de incio que, embora o seu grau de criticidade seja intenso no que diz respeito

    cincia, a sua atitude para com o senso comum tende mais para a benevolncia explcita. Mantm-se

    em suspenso em relao a cincia, mas no consegue manter-se nas alturas quando aborda o senso comum.

  • 4

    engajados na autonomia e supremacia do conhecimento cientfico, frente ao senso

    comum e s humanidades.

    Boaventura no tem dvidas de que Bachelard e todos esses autores

    nomeados contriburam sobremaneira para que o modelo de racionalidade que se

    encontra impetrado no paradigma cientfico moderno viesse a se transformar em um

    modelo global e totalitrio. Global, porque sua emergncia no est desvinculada

    ascenso da sociedade ocidental como padro de organizao social para a sociedade

    como um todo; Totalitrio, por negar o carter racional a todas outras formas de conhecimento que no toma os seus princpios e suas regras epistemolgicas em

    considerao para se constiturem enquanto forma de conhecimento (2001b:60-1).

    Foi a postura radical assumida frente ao senso comum que levou Boaventura a

    considerar a epistemologia bachelardiana como a postura responsvel pelo que ele

    designa de primeira ruptura, ou seja, representa o radicalismo final que a cincia

    moderna ainda poderia sustentar. Como diz Boaventura, a cincia contri-se, pois, contra o senso comum, e para isso dispe de trs atos epistemolgicos: a ruptura, a

    construo e a constatao. Por que essenciais a qualquer prtica cientfica, esses

    atos aplicam-se por igual na cincias naturais e nas cincias sociais5, sendo, porm, nestas ultimas, mais difcil de serem conseguidos, haja vista as suas particularidades,

    em termos de objeto de investigao a cincia social tem por objeto real um objeto que fala, e em termos da condio do prprio cientista social a condio de est com o objeto (2000:31). Dadas essas barreiras que se impem aos cientistas

    sociais, a eles cabe, mais do que aos que produzem a cincia natural, a postura de

    vigilncia epistemolgica.6 Em termos gerais, desta forma que se apresenta,

    segundo o entendimento de Boaventura de Souza Santos, aquilo que ele designa de

    primeira ruptura.

    II

    Para sermos um pouco mais enftico na caracterizao do paradigma

    dominante, necessrio se faz elencarmos aqui um pequeno rol de suas

    particularidades, em termos de pressupostos epistemolgicos e de regras

    5 De maneira geral, podemos entender esses trs atos da seguinte forma: (a) ruptura: a cincia

    radicalmente distinta do conhecimento imediato, do senso comum; (b) construo: a abstrao

    racional, a geometrizao das representaes que alimenta o esprito cientfico; e (c) constatao: o

    real produto da abstrao racional. 6 Lembremos aqui as perguntas que fez Pierre Boudieu: como pode o socilogo efectuar na prtica a

    dvida radical a qual necessria para pr em suspenso todos os pressupostos inerentes ao facto de

    ele ser um ser social, portanto, socializado e levado assim a sentir-se como peixe na gua no seio

    desse mundo social cujas estruturas interiorizou? Como pode ele evitar que o mundo social faa, de

    certo modo, atravs dele, por meio das operaes inconsistente de si mesmas de que ele sujeito

    aparente, a construo do mundo social do objecto cientfico? (ver: BOUDIEU, Pierre. Poder simblico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989. p. 34-5). E comenta: uma prtica cientfica que se esquece de pr a si mesma em causa no sabe, propriamente falando, o que faz (Ibdem). Resposta para a situao: necessrio que se recorra sociologia da sociologia.

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    metodolgicas, tal como so apresentados pelo socilogo Boaventura de Souza

    Santos. Comecemos pela dicotomia cincia/senso comum. Esta distino

    derivativa, j falamos isso antes, de um longo processo de constituio da cincia

    enquanto um saber autnomo. Em seu processo consolidativo a cincia foi levada a

    se defende, de maneira ostensiva, de duas formas de conhecimento: o senso comum

    e os estudo humansticos, a ambos negando o atributo racional.7 Na realidade, se

    durante vrios sculos foi natural ao homem comum tomar o conhecimento dado

    pelo sentido como verdadeiro, a perspectiva inaugurada pelos homens da cincia a

    partir do sculo XVI pe em dvida a possibilidade de que o conhecimento

    verdadeiro possa ser originrio da experincia primeira, para dizermos como disse Bachelard (1996). Para alm disso, o advento da cincia tambm inaugura outra

    distino, a dicotomia homem/natureza. Com o advento da cincia moderna, a

    natureza, informa Boaventura, to-s extenso e movimento; passiva, eterna e reversvel, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob

    a forma de leis; no tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impea de

    desvendar os seus mistrios, desvendamento que no contemplativo, mas antes

    activo, j que visa conhecer a natureza para a dominar e controlar (2001b:62). Todavia, no o bastante ter o objeto sobre o qual se projetar de maneira racional.

    Quem quer que se aventure a conhecer deve est metodologicamente munido, sob

    pena de tomar o aparente, o imediato como verdadeiro. Eis que a matemtica, alm

    de fornece a lgica da investigao, tambm fornece para a cincia o esquema, o

    modelo de representao da prpria estrutura da matria (2001b:63). Ou como diria Bachelard, na organizao matemtica do saber, necessrio preparar o domnio de definio antes de definir, exactamente da mesma maneira que, na prtica do

    laboratrio, preciso preparar o fenmeno para o produzir.8 E conclui: o pensamento cientfico contemporneo comea pois por colocar entre parntesis a

    realidade (Ibdem).9 Resumindo: conhecer, segundo os cnones matemticos, significa dividir e classificar para depois determinar as relaes sistemticas entre o que se separou (Ibdem).

    Foi em meio a essa consolidao que as cincias sociais emergiram, e de

    imediato comea foram abaladas. Ou seja, dentro dessa concepo de cincia a

    7 Vejamos por exemplo o caso de Ren Descartes, um marco desse processo. Muito embora desde

    pequeno a sua educao tenha perpassado o estudo das humanidades, das letras, foi chegado o momento em que ele manifesta a sua decepo com essa cultura sem fundamentos racionalmente satisfatrios e vazia de interesse pela vida (Discurso do mtodo). 8 BACHELARD, Gaston. Filosofia do novo esprito cientfico: a filosofia do no.

    Portugal:Editorial Presena; Brasil: Martins Fontes, 1976. p. 45-6. 9 No podemos entender aqui o colocar entre parntesis de Bachelard de forma anloga epoqu ou

    reduo fenomenolgica de Edmund Husserl (ver: HUSSERL, Edmund. Investigaes lgicas e

    outras obras. Coleo os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 2000) No esqueamos que as

    categorias abstrativas de Bachelard encontram na matemtica o seu locus per excellence: a cincia da realidade j no se contenta com o como fenomenolgico; ela procura o porqu matemtico (1996:08) (grifo do autor). Ou se expressando de outra forma: o pensamento abstrato e matemtico, diz ele, prolonga a tcnica. Eis que o pensamento cientfico reforma o pensamento fenomenolgico (1996:307). (grifos nossos).

  • 6

    distino entre cincias naturais e cincias sociais apresenta-se com categoria

    imperativa, pendendo a superioridade hierrquica para a primeira. As cincias

    sociais, desta forma, quanto mais tomam para si as leis e os mtodos empregados

    pelas cincias naturais, mais legitimam-se na comunidade cientfica como cincia

    propriamente dita. Mas por outro lado, uma nova zona de conflito se apresenta e diz

    respeito questo metodolgica nas cincias sociais. Boaventura a classifica em

    duas vertentes: uma que parte do pressuposto que as cincias naturais so uma aplicao ou concretizao de um modelo de conhecimento universalmente vlido e,

    de resto, o nico vlido, tendo as cincias sociais um longo caminho para estarem no estgio de compatibilizar os seus critrios de cientificidade como os das cincias

    naturais; outra que reivindica para as cincias sociais um estatuto metodolgico prprio, argumentando fundamentalmente que aco humana altamente subjetiva, no sendo portanto possvel explicaes que se baseiem no observvel (2001b:65-8).

    III

    No entanto, na esteira de reaproximar o senso comum da cincia que

    caminha Boaventura. A segunda ruptura precisamente isso: um reencontro com o

    senso comum. Assim ele formulou essa concepo: uma vez feita a ruptura epistemolgica, o ato epistemolgico mais importante a ruptura com a ruptura

    epistemolgica (2000:36). Neste caso, esse ato epistemolgico fundamental o rompimento que o prprio Boaventura procede em relao epistemologia

    bachelardiana. Com a segunda ruptura o socilogo trata de restituir o senso comum

    categoria de conhecimento verdadeiro, quebrando a hierarquia que historicamente se

    tentou firmar entre a cincia e o senso comum, quando este ltimo foi

    significativamente reduzido categoria de conhecimento superficial e ilusrio (2000:37). A sua desvalorizao frente a cincia conseqncia do fato mesmo de

    que a cincia quem tem caracterizado o senso comum, por isso, a imagem

    negativa, depreciativa que at hoje o acompanha. Mas contrariamente s cincias

    naturais que sempre se esforaram por manter a atitude separatista radical com

    relao ao senso comum, as correntes tericas das cincias sociais, por suas vez,

    conta Boaventura, tem tido com ele uma relao muito complexa e ambgua (2000:37). Destaca-se dessa relao trs particularidades: primeira, h correntes

    tericas que no acham possvel a ruptura, como o caso da fenomenologia,

    etnometodologia e interacionismo simblico; segunda, entre as linhas tericas que

    propem a ruptura h uma grande variao sobre o entendimento do que venha a ser

    senso comum: algumas destacando aspectos negativos, outras aspectos positivos; e

    terceira, comum as novas propusituras tericas se referirem as antigas como

    produtoras de conhecimento que no passam de senso comum (ibdem). Apesar de na

    maioria das vezes se referir apenas ao sentido crtico da cincia para com o senso

    comum, Boaventura no esconde, por outro lado, que a contribuio para a distino

    no parte apenas da cincia. O senso comum tambm um centro originrio nessa

    distino. Quando tal distino parte do senso comum o que ganha relevo o fato da

  • 7

    cincia ser um conhecimento incompreensvel e prodigioso e um conhecimento bvio e obviamente til (2001b:107).

    Em busca de uma concepo alternativa, positiva, caracterizao vigente de

    senso comum sem que isso signifique de fato uma epistemologia do senso comum, ou at mesmo uma epistemologia da prtica (cotidiana), pois como

    sabemos, o comum a anlise epistemolgica incidir sobre o conhecimento

    cientfico e sobre a prtica cientfica em si10

    , Boaventura um cientista, nunca esqueamos tem a inteno de retirar do senso comum aquilo que em sua viso seria a contribuio para que um projeto de emancipao cultural e social possa ser levado a cabo (2000:41). Convm aqui transcrever o elenco de caractersticas

    que ele utiliza para salientar a positividade do senso comum:

    O senso comum faz coincidir causa e inteno; subjaz-lhe uma viso do mundo

    assente na aco e no princpio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso

    comum prtico e pragmtico; reproduz-se colado s trajectrias e s experincias de vida de

    um dado grupo social e nessa correspondncia se afirma fivel e securizante. O senso comum

    transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objectivos tecnolgicos e do esoterismo

    do conhecimento em nome do princpio da igualdade e do acesso ao discurso, competncia

    cognitiva e competncia lingistica. O senso comum superficial porque desdenha das

    estruturas que esto para alm da conscincia, mas, por isso mesmo, exmio em captar a

    profundidade horizontal das relaes conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O

    sendo comum indisciplinar e imetdico; no resulta de uma prtica especificamente

    orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder cotidiano da vida. O senso

    comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a aco que no produza rupturas

    significativas no real. Por ltimo, o senso comum retrico e metafrico; no ensina, persuade

    (2001a:56)

    Alm das caractersticas citadas acima, Boaventura categrico em afirma

    que, por ser o denominador comum daquilo que um grupo ou um povo coletivamente acredita, h no senso comum uma vocao solidarista e transclassista (2000:37), alm de uma feio utpica e libertadora (2001b:108).11 dessa pressuposio que Boaventura parece, em grande parte, construir o

    argumento bsico de sua teoria social (crtica) ps-moderna12

    , levada a cabo, como

    10 Ver a este respeito LATOUR, Bruno. A vida de laboratrio: a produo dos fatos cientficos. Rio

    de Janeiro: Relume Dumar, 1997 e, do mesmo autor, Cincia em ao: como seguir cientistas e

    engenheiros sociedade afora. So Paulo: Editora UNESP, 2000). 11

    O senso comum emancipatrio, enfatiza Boaventura, um senso comum discriminatrio (ou desigualmente comum, se preferirmos), construdo para ser apropriado privilegiadamente pelos

    grupos sociais oprimidos, marginalizados ou excludos, e, de fato, alimentado pela prtica

    emancipatria destes (2001b:109). 12

    Convm fazer notar que em termos de evoluo dessa questo no pensamento Boaventura de Souza

    Santos possvel afirmarmos que as obras escritas por eles sobre este tpicos especfico possam ser

    ordenadas da seguinte forma: Um discurso sobre a cincia, Introduo a uma cincia ps-

    moderna, Pela mo de Alice: o social e o poltico na Ps-modernidade, Toward a new common

    sense: law, science, and politics in the paradigmatic transition, e essa obra que se constitui em quatro

    volumes: volume 1, A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia; volume 2, O

    direito da rua; ordem e desordem nas sociedades subalternas; volume 3, Os trabalhos de atlas:

  • 8

    falamos, em uma obra composta por quatro volume. Relembremos que a idia de

    dupla ruptura epistemolgica proposta por Boaventura Santos uma tentativa de sair

    desse crculo vicioso cincia/senso comum. Se a primeira ruptura, como dissemos,

    ocorreu com a radicalizao da separao entre cincia e senso comum, a segunda

    ruptura visa transformar o conhecimento cientfico num novo senso comum, ao

    mesmo tempo em que opera a transformao do senso comum com base na cincia.

    Como resultado, temos assim uma transfigurao tanto em termos do senso comum

    como em termos da cincia, a mesma ocorrendo de forma recproca. Trata-se agora

    de uma relao em que qualquer deles feito do outro e ambos fazem algo de novo (2000:40) (grifo do autor).

    13

    Com isso, passa a ganhar relevncia no pensamento de Boaventura a reflexo

    sobre as condies sociais e tericas que possam acomodar essa mutualidade

    transformativa, sem que se interponham entre elas os obstculos epistemolgicos (Bachelard) sob pena de se regressar ao status quo da primeira ruptura, tornando vo

    o trabalho epistemolgico.14

    Na realidade, a dupla ruptura epistemolgica objetiva a

    criao de uma nova configurao de conhecimento que, em sendo prtica, no deixe de ser esclarecida e, sendo sbia, no deixe de estar democraticamente

    distribuda (2000:42). Na viso de Boaventura, essa condio j hoje em dia possvel de ser alcanada graas ao desenvolvimento tecnolgico da comunicao

    produzida pela cincia moderna. Estamos perto, acredita ele, da phronesis

    aristotlica, ou seja, da configurao de uma saber prtico que possa d sentido e

    orientao existncia e que crie o hbito de decidir bem (2000:41), bastando para

    isso que a desconstruo que se origina aps a Segunda ruptura epistemolgica seja

    orientada por alguns topoi: (1) que se procura, de maneira progressiva, atenuar os desnivelamentos dos discursos; (2) que a dicotomia contemplao/ ao seja tambm progressivamente superada; e (3) que se busque o equilbrio entre adaptao

    e criatividade (2000:41-5).

    BIBLIOGRAFIA

    regulao e emancipao na redopolis; e por ltimo o volume 4, O milnio rfo: para um futuro da

    cultura poltica. No nos foi possvel procedermos um exame do livro publicado em ingls, o mesmo

    acontecendo com os trs ltimos volumes citados a pouco. 13

    No possvel para ns agora entrarmos em maiores detalhes sobre um dos muitos pontos que mais

    nos interessam na epistemologia de Boaventura, que a questo do conhecimento-emancipao,

    sobre o qual temos certeza de retornarmos quando da elaborao da segunda parte deste ensaio. Por

    ora, basta apenas que conhecimento-emancipao seja entendido como uma trajectria entre um estado de ignorncia que dadas as condies scio-polco-culturais contemporneas Boaventura designa por colonialismo, e um estado de saber designado por ele de solidariedade (2001b:78). (para maiores detalhes consultar o captulo primeiro de A crtica da razo indolente, ou mais

    especificamente as pgs 78-81, onde Boaventura expe de maneira sinttica a sua idia. Como

    falamos, h por trs de tudo isso uma teoria crtica j gestada. 14

    No nosso interesse no momento explorar as condies sociais que minimamente possa garantir

    idia de Boaventura o carter de concretude.

  • 9

    SANTOS, B. de Souza. Introduo a uma cincia ps-moderna. 3. Ed. Rio de

    Janeiro: Graal, 2000.

    SANTOS, B. de Souza. Um discurso sobre as cincias. 12. ed. Porto: Edies

    Afrontamento, 2001a.

    SANTOS, B. de Souza. Toward a new common sense: law, science, and plitics in

    the paradigmatic transition. New York: Routledge, 1995

    SANTOS, B. de Souza. Para um novo senso comum: a ci~encia, o direito e a

    poltica na transio paradigmtica. 3. Ed. So Paulo: Cortez, 2001b.

    KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. 5.ed. So Paulo: editora

    Perspectiva, 1998.

    BACHELARD, Gaston. A formao do esprito cientfico: contribuio para uma

    psicanlise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.