A EDUCAÇÃO DO HOMEM BURGUÊS - contexto pestalozzi

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FILOSOFIA DA EDUCAOPROFESSORA EDNAPonce, Anbal, 1898-1938.Educao e luta de classes I Anbal Ponce , traduo de Jos Severo de Camargo Pereira. - 11. ed. - So Paulo: Cortez : Autores Associados, 1991 - (Coleo educao contempornea)http://www.lersemver.com/temasacademico/Capitulo%206%20-%20a%20educacao%20do%20homem%20burgues.txtANBAL PONCEEDUCAO E LUTA DE CLASSESTraduo de Jos Severo de Camargo Pereira (Do Instituto de Matemtica e Estatstica da USP)CAPTULO VI

A EDUCAO DO HOMEM BURGUSSegunda Parte - Da Revoluo Francesa ao Sculo XIX"Vossa Majestade - escrevia Voltaire em 1757 ao seu amigo, o Rei da Prssia - prestar um servio imortal Humanidade se conseguir destruir essa infame superstio, no digo na canalha, indigna de ser esclarecida e para a qual todos os jugos so bons, mas na gente de peso.".Quase vinte anos depois desta carta de Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784) se dirigia a outra majestade, a Imperatriz Catarina da Rssia, e a aconselhava a respeito do Plano de Uma Universidade, destinada a ministrar instruo para todos. bom que todos saibam ler, escrever e contar - dizia ele -:- desde o PrimeiroMinistro, ao mais humilde dos camponeses." E pouco mais adiante, depois de indagar por que a nobreza se havia oposto instruo dos camponeses, respondia nestes termos: "Porque mais difcil explorar um campons que sabe ler do que um analfabeto."Ambos eram representantes do Terceiro Estado. Por que, ento, opinies to opostas? E: que, como j vimos, Voltaire era um intrprete da alta burguesia e da nobreza letrada, ao passo que Diderot representava as aspiraes dos artes os e dos operrios. fato bem sabido que o assalto definitivo ao mundo feudal foi comandado pela direita da burguesia, que lhe imprimiu a sua marca, e ainda' que a pequena burguesia, sob o impulso de Robespierre, tenha conseguido arrastar a grande burguesia at conseqncias extremas, tambm no menos verdade que esse controle no esteve durante muito tempo em suas mos. To logo a burguesia conseguiu triunfar, pde-se ver que a "humanidade" e a "razo" que tanto havia alardeado no passavam da humanidade e da razo "burguesa". Na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, a "propriedade" aparece imediatamente depois da "liberdade", entre os direitos "naturais e imprescritveis". E se, por acaso, esse segundo artigo da Declarao poder-se-ia prestar a equvocos, a est o ltimo artigo para dirimir quaisquer dvidas, afirmando que a propriedade "um direito inviolvel e sagrado". Alm disso, um decreto de 14 de junho de 1791 declarava que qualquer coligao operria constitua "um atentado liberdade e Declarao dos Direitos do Homem", passvel de ser punida mediante uma multa de quinhentas libras e a cassao, por um ano, dos direitos da cidadania ativa. . .As palavras grandiloqentes desfaziam-se no ar, os ideais "magnficos" deixavam a descoberto a realidade pobre e mesquinha. verdade que, agora, a Catedral de Notre Dame era o Templo da Razo, mas a burguesia se incomodava to pouco com a nova deusa que dois de seus representantes mais conspcuos - Talleyrand e Saint-Simon - tiveram de amargar durante uma temporada nas celas de Santa Pelgia porque foram surpreendidos negociando nada menos do que com o prprio chumbo do Templo da Razo... Danton, o orador inflamado e eloqente, no perdia nenhuma oportunidade para realizar um bom negcio, mesmo que .eles - como o provou Mathiez - implicassem alguma traio Ptria. E, para que nada faltasse a essa crua realidade, o prprio Rouget de L'Isle, o prprio autor do canto de guerra da Revoluo, comps algumas dcadas depois outro hino, chamado O Canto dos Industriais... A Revoluo, que comeara com um clamoroso apelo aos "filhos da ptria", terminava em benefcio exclusivo dos "filhos da indstria" . . .As massas exploradas da Antigidade e do Feudalismo apenas haviam trocado de senhor. Para que a burguesia conseguisse realizar o seu prodigioso desenvolvimento no eram suficientes o desenvolvimento do comrcio e o alargamento quase mundial do mercado. Era preciso, alm disso, que exrcitos compactos de trabalhadores livres fossem recrutados para oferecer os seus braos burguesia. Esse "trabalhador livre" surgiu na histria nos fins do sculo XV e comeos do sculo XVI. A runa do mundo feudal libertara os servos, da mesma forma que a queda do mundo antigo havia emancipado os escravos. O empobrecimento dos senhores feudais obrigou-os a dissolver as suas hostes e a liquidar as suas cortes, ao mesmo tempo que o enriquecimento da burguesia expulsou os pequenos proprietrios das suas terras, para convert-las em campos de criao. f; verdade que, em outras pocas, trabalhadores livres j tinham oferecido os seus braos no mercado de trabalho, na Grcia, em Roma e durante a Idade Mdia. Mas, antes do sculo XVI, o campons que alugava os seus braos temporariamente era tambm dono de uma pequena extenso de terra, capaz de sustent-la em casos extremos. O trabalho assalariado no passava, para ele, de uma ajuda, de uma ocupao subsidiria. Mas, a partir do sculo XVI j o assalariado momentneo havia-se convertido em assalariado permanente, at a morte. O seu nico meio de subsistncia era a fora dos seus braos.Outro fenmeno extremamente importante tambm comeou a manifestar-se nessa ocasio. Quando a produo de mercadorias - isto , a produo destinada troca e no ao comrcio interno - alcanou determinado nvel, nova forma de apropriao surgiu no mundo. Na forma de apropriao que Marx chamou de "capitalista", o trabalhador j no colhe os frutos do seu trabalho. No incio, o trabalhador trocava o objeto que havia produzido por outro, que havia sido produzido do mesmo modo e que tinha valor equivalente. Com o estabelecimento do comrcio mundial e com o aparecimento de enormes massas de "trabalhadores livres" que ofereciam venda a sua fora de trabalho, surgiram os alicerces de um novo regime: um regime em que o capitalista d ao trabalhador muito menos do que o valor do objeto produzido. Em outras palavras: o capitalista se apodera, sem qualquer retribuio, de uma considervel parte do trabalho alheio, de tal modo que o salrio com que "paga" os seus operrios mal d para que estes possam se manter e possam voltar a vender ao capitalista, nas mesmas condies, a sua fora de trabalho.Com a substituio do regime feudal pelo burgus, piorou a situao das massas, mas os novos amos no se importavam absolutamente com isso. Formar indivduos aptos para a competio do mercado, esse foi o ideal da burguesia triunfadora. Ideal lgico, sem dvida, para uma sociedade em que a sede de lucros lanava os homens uns contra os outros, em um tropel de produtores independentes. Produzir, e produzir cada vez mais para conquistar novos mercados ou esmagar algum rival, essa foi, desde o incio, a nica preocupao da burguesia triunfante. Que nenhum obstculo dificulte o seu comrcio, que nenhuma dificuldade paralise a sua indstria. Se, para conquistar algum novo mercado, for necessrio liquidar populaes inteiras, que assim seja feito; se, para no interromper o trabalho das mquinas, for necessrio engajar mulheres e crianas, que assim seja tambm.Para ser coerente com os ideais da classe que representava, Rousseau (1712-1778), como j o dissemos, no se incomodou com a educao das massas e sim, apenas, com a educao de um indivduo suficientemente abastado para permitir-se o luxo de contratar um preceptor. De fato, o seu Emlio era um jovem rico, que vivia das rendas e que no dava um s passo sem o seu mestre.Poder-se-ia argumentar que Rousseau no foi um realizador e que o seu Emlio apenas um romance. Vejamos, pois, a influncia que Rousseau exerceu sobre um pedagogo que manteve contato direto 'com os fatos da educao, um educador que fundava. institutos e dirigia escolas, um mestre que admirava to ardentemente o ilustre genebrino que chegou a dar sua prpria filha o nome de Emlia. Refiro-me a Basedow (1723-1790).Filho de um cabeleireiro, Basedow havia sido em sua mocidade o preceptor do filho de um grande senhor. Todavia, desejoso de aplicar em escala maior as idias de Rousseau, conseguiu do Prncipe Leopoldo Frederico a ajuda necessria para fundar o seu famoso Filantropino (1774). Segundo suas prprias palavras, o fim da educao consistia em formar "cidados do mundo, e em prepar-los para uma existncia til e feliz". Como se preparavam esses "cidados do mundo"? ~ o que vamos escutar do prprio Basedow. Antes de tudo, ele distinguia dois tipos de escolas, uma para os pobres e outra para os filhos dos cidados mais eminentes."No h qualquer inconveniente em separar as escolas grandes (populares) das pequenas (para os ricos e tambm para a classe mdia), porque muito grande a diferena de hbitos e de condio existentes entre as classes a que se destinam essas escolas. Os filhos das classes superiores devem e podem comear bem cedo a se instrurem, e como devem ir mais longe do que os outros, esto obrigados a estudar mais... As crianas das grandes escolas (populares) devem, por outro lado, de acordo corri a finalidade a que deve obedecer a sua instruo, dedicar pelo menos metade do seu tempo aos trabalhos manuais, para que no se tornem inbeis em uma atividade que no to necessria, a no ser por motivos de sade, s classes que trabalham mais com o crebro do que com as mos."Nas "grandes escolas" - diz Basedow, em seguida -, alm de ensinar a ler, a escrever e. a contar, os mestres tambm devem cuidar "daqueles deveres que so prprios das classes populares". Mas, como nessas escolas existia um s professor, que estava encarregado de ensinar muitos alunos de idades bastante distintas, o que provocava graves dificuldades de ordem tcnica, Baselow se consolava com estas palavras simples e chocantes: "Felizmente, as crianas plebias necessitam de menos instruo do que as outras, e devem dedicar metade do seu tempo aos trabalhos manuais."Parece-me que no necessrio dizer mais nada para se compreender em qual dessas escolas se podia formar os "cidados do mundo": enquanto nas escolas populares a instruo, felizmente, devia ser exgua, nas outras, ao contrrio, os vcios ou os defeitos eram castigados "transformando-se uma hora de estudos, em uma hora de trabalhos manuais" .Filangieri (1752-1788) tambm se expressava de forma parecida. Na sua Cincia da Legislao podemos, de fato, ler: "O agricultor, o ferreiro etc. no necessitam mais do que uma instruo fcil e breve para adquirir as noes necessrias para a sua conduta civil e para os progressos da sua arte. No se poderia dizer o mesmo em relao aos homens destinados a servir . sociedade com os seus talentos. Que diferena entre os tempos exigidos pela instruo de uns e outros!" "A educao pblica - dizia ele, em outra ocasio - exige, para ser universal, que todos os indivduos da sociedade participem dela, mas cada um de acordo com as circunstncias e com o seu destino. Assim, o colono deve ser instrudo para ser colono, e no para ser magistrado. Assim, o arteso deve receber na infncia uma instruo que possa afast-lo do vcio e conduzi-lo virtude, ao amor Ptria, ao respeito s leis, uma instruo que possa facilitar-lhe o progresso na sua arte, mas nunca uma instruo que possibilite a direo dos negcios da Ptria e a administrao do governo. Em resumo, para ser universal, a educao pblica deve ser tal que todas as classes, todas as ordens do Estado dela participem, mas no uma educao em que todas as classes tenham a mesma parte." O pensamento da burguesia revolucionria do sculo XVIII se expressava de modo to claro atravs das palavras de Basedow e de Filangieri que pode parecer um esforo intil trazer novas citaes para esclarec-lo. No entanto, as idias que temos a respeito da Revoluo Francesa alimentam de tal modo as doutrinas chamadas liberais que no creio ser esforo intil tentar apanhar o sentido mais ntimo dessas idias. Nem sempre a tarefa to fcil como no caso dos dois exemplos citados. A igualdade perante a lei, que foi uma das mais hbeis descobertas da burguesia, dissimula s vezes com tanta perfdia a intimidade do pensamento que, freqentemente, necessrio aguardar muito tempo antes de se conseguir descobrir essa intimidade. Mirabeau, um dos grandes da Revoluo, tratou de temas educativos em vrios dos seus discursos, nos quais, alis, muitos tm querido ver, e parece que com razo, a mo de Cabanis. Mas, quer tenham sido escritos por Cabanis, quer tenham sido escritos por Reybaz, como asseguram outros, o certo que Mirabeau (1749-1791) defendeu as idias ali contidas. No primeiro discurso, Mirabeau fazia uma afirmao errada, que depois iria ser repetida inmeras vezes pelos tericos da burguesia: "Todos os legisladores antigos - dizia ele - se serviram da educao pblica como um meio adequado para manter e difundir as suas instituies. .. Quanto a vs, senhores, no tendes opinies favoritas a difundir, nenhum fim particular a cumprir; a vossa finalidade nica consiste em dar ao homem o emprego de todas as suas faculdades, o exerccio de todos os seus direitos, em colocar a existncia pblica acima das existncias individuais livremente desenvolvidas, a vontade geral sobre as vontades particulares".Podemos dizer que, depois de reconhecer que at essa data todas as educaes se haviam preocupado em servir os interesses das classes superiores, Mirabeau assegurava que a educao burguesa escapava a essa lei: ela se propunha formar "o homem", ".0 ser" humano". Mas, logo em seguida, ele se opunha gratuidade do ensino, porque assim rebaixar-se-ia o seu nvel, ao eliminar-se a concorrncia, e porque, desse modo, "arrancar-se-iam muitos homens do seu lugar natural". Mas, isso significava exatamente o mesmo que era afirmado por Filangieri: que cada um dos membros da sociedade deve compartilhar da educao de acordo com o seu "destino econmico" e as suas "circunstncias sociais".Mas, e Condorcet, e Pestalozzi? A instruo do "povo", "a igualdade diante das luzes" no foram, por acaso, a medula da concepo poltica e social de Condorcet? Alm da gratuidade do ensino primrio, no props ele tambm a gratuidade do ensino superior? Tudo isso certo, no h dvida alguma, mas com a certeza aparente de todos os ideais de uma revoluo que, depois de eliminar as desigualdades at ento engendradas pelo nascimento, proclamou sem rebuos que s existem entre os homens as diferenas que surgem do dinheiro.O famoso plano de Condorcet - Rapport -, lido na Assemblia Legislativa nos dias 20 e 21 de abril de 1792, reflete de modo to exato os ideais hipcritas da burguesia, que vale a pena nos determos alguns instantes em examin-lo. Quase todos os problemas que ainda hoje preocupam os mestres e educadores so ali propostos e examinados. Condorcet (1743-1794) concede ao Estado no s o direito de controlar o ensino, como tambm a obrigao de instruir. De instruir mesmo, no de educar, porque Condorcet deixa a formao das crenas religiosas, filosficas e morais a cargo dos padres. Na sua opinio, a instruo pblica deve assegurar a todos um mnimo de cultura, de tal modo "que no deixe passar despercebido qualquer talento, e possa oferecer-lhe todos os recursos que at agora s estavam ao alcance dos filhos dos ricos". Com a difuso das luzes, poder-se- multiplicar as descobertas que iro aumentar o poder do homem sobre a natureza. No importante lugar at ento reservado ao ensino das letras, Condorcet coloca agora o ensino das cincias; suprime entre as faculdades a de Teologia, que continuava sendo a mais importante, e assegura que o estudo das cincias combate a mesquinhez do esprito e os preconceitos, constituindo para isso um remdio mais eficaz do que a filosofia. "As prprias coisas e no as suas sombras", como dizia Comnio, entram agora nas escolas, mas com um tom mais franco do que o do pastor da Morvia e sem sua crena de que esta vida uma preparao para a outra.Como orientao geral, no era possvel interpretar de melhor maneira o esprito da burguesia nesse instante: cientfica, ctica e prtica, e por isso mesmo desejosa de que as tcnicas perdessem os segredos com que, at ento, as "corporaes" as haviam cercado. A orientao geral do plano excelente e o mesmo acontece com os seus detalhes. No s ele se ope terminantemente ao ensino religioso nas escolas - "os povos que so educados por sacerdotes no podem ser livres", so as suas palavras textuais - como tambm no permite que o Estado imponha criana qualquer credo. A "liberdade de conscincia" deve ser respeitada, tanto do ponto de vista religioso, quanto do social. "Que o poder do Estado - afirma termine no umbral da escola, e que cada professor possa ensinar as opinies que acredita verdadeiras, e no as que o Estado cr verdadeiras." O Estado deve pr a criana em condio de conhecer todas as idias, para poder escolher livremente entre elas. Mas, Condorcet ainda pretende mais, alm de proibir ao Estado qualquer ingerncia nas coisas da educao, impondo determinado credo poltico aos alunos; Condorcet nega ao Estado duas coisas fundamentais, a saber: o monoplio do ensino e a nomeao dos professores.Recusa o monoplio do ensino em nome da liberdade. As escolas particulares devem existir lado a lado com as oficiais, porque umas estimulam as outras por causa da rivalidade que se estabelece entre elas. Livre concorrncia entre as escolas do Estado e as particulares, e nenhuma interveno poltica do Estado nas escolas, eis, em essncia, o que pretende Condorcet. Mas, se o Estado tivesse o poder de nomear os professores, fcil lhe seria dominar as escolas atravs destes. Esse fato no escapou argcia de Condorcet, que recusou, ento, esse poder ao Estado. Props, ento, que os professores fossem eleitos por "sociedades cientficas", constitudas em cada departamento pelos homens eruditos mais esclarecidos. Em resumo, Condorcet quer que o Estado funde escolas e pague os seus professores, mas sem exercer qualquer tutela sobre eles.Considerado isoladamente, o Rapport de Condorcet parece a obra de um visionrio, de um terico, de um "idealista". Taine, em pginas vigorosas, mas falsas, difundiu a idia de que os dirigentes da Revoluo Francesa eram pensadores que viviam to afastados da vida que pretendiam que esta obedecesse aos seus planos. Mas, aqueles "tericos" de que fala Taine sabiam muito bem o que propunham. E, vejamos se no era isso que acontecia com Condorcet. Um ano depois da apresentao do seu informe, Condorcet continuava defendendo a independncia absoluta para a educao superior, mas j admitia agora que o ensino primrio deveria ser dirigido e vigiado pelo Estado. . .Como possvel que no transcurso de um ano apenas o nosso "idealista" tenha mudado tanto de pensar? Mas, a contradio apenas superficial. O pretenso visionrio conhecia bem o caminho que percorria. Quando, nos dias 20 e 21 de abril de 1792, Condorcet leu o seu informe na Assemblia Legislativa, a burguesia, apesar de triunfante, ainda no tinha em suas mos a mquina administrativa. No s a Monarquia ainda estava de p, como ainda continuava representando um perigo. Mas, poucos meses depois da apresentao do dito informe, a Repblica foi proclamada. E, naturalmente, ao reeditar o seu informe um ano depois, por ordem da Conveno, Condorcet introduziu nele as modificaes que mencionamos. Quer dizer, enquanto o poder estatal continuava nas mos da classe inimiga, era necessrio impedir a qualquer preo o controle estatal nas escolas: no permitir que o Estado nomeasse os professores e exigir a existncia nas escolas particulares (burguesas, J.J.este caso), em cuja fundao o Rei no pudesse interferir. Mas, assim que a burguesia se apoderou da mquina administrativa, Condorcet passou a afirmar que as escolas deveriam estar sob a vigilncia e a administrao do Estado. No se poderia exigir de um "visionrio" maior conscincia de classe. . .Poder-se-ia afirmar que, apesar de tudo, o informe de Condorcet constituiu um grande passo adiante e que a proposio de gratuidade do ensino constituiu, por si s, um grande mrito. No possvel nega-lo, mas neste largo esboo que estamos fazendo da histria da educao a nossa felicidade no consiste em falar em mritos ou em demritos. Condorcet propiciou, de fato, a gratuidade do ensino, que s muito tempo depois viria a implantar-se definitivamente. Mas, apesar dessa gratuidade foram as escolas do seu tempo freqentadas por crianas no pertencentes pequena e mdia burguesia? O impressionante triunfo das mquinas no sculo XVIII e extraordinria expanso comercial, que teve lugar nessa poca no s mobilizaram enormes massas de homens, como tambm incorporaram as mulheres e as crianas explorao capitalista. No dizer de Marx, aqueles foram "os tempos orgisticos do capital". E foi exatamente nessa poca, em que at crianas de 5 anos trabalhavam, que Condorcet declarou gratuitas as escolas... Grande vantagem, para uma criana que desde os 5 anos deve ganhar o po de cada dia, o fato de as escolas serem gratuitas! Se ela no pode freqent-la, que lhe importa que a escola seja gratuita ou no? Condorcet era bastante inteligente para compreender que dentro do sistema capitalista a gratuidade escolar tinha pouca importncia, e tanto verdade que o compreendeu que ele prprio se apressou a propor a concesso de penses e de bolsas de estudos. No nos interessam por agora os seus paliativos, mas convm ressaltar que nas prprias origens da escola burguesa, "gratuita e popular", um dos seus fundadores mais ilustres reconhecia que no se tratava de uma escola destinada s massas.E Pestalozzi, no se encarregou ele de preparar o caminho para elas? to grande a glria que cerca o nome deste insigne educador que nos custa um pouco aproximarmo-nos desta figura mxima do santurio pedaggico.Discpulo da Revoluo Francesa, e especialmente de Rousseau, Pestalozzi (1746-1827) passa no s por ter sido o introdutor de uma nova tcnica pedaggica - o que exato - como tambm por ser o "educador da humanidade", como reza o seu epitfio. Mais do que qualquer outro educador do seu tempo, Pestalozzi se interessou pelos camponeses; mas, ainda que esse sentimento tenha sido autntico e generoso, no menos certo que ele passou a vida educando crianas ricas. Nas poucas vezes em que acolheu em sua casa crianas pobres, com a inteno de educ-las, ele atuou como filantropo e como industrial. "Tendo fracassado definitivamente como agricultor - afirma o seu bigrafo Guillaume -, Pestalozzi quis tentar a carreira industrial. Em 1774, instalou em um edifcio contguo granja de Neuhof, edifcio esse que mandou construir especialmente, uma indstria para a fiao de algodo. Pretendia acolher em sua casa algumas crianas pobres para empreg-las nesse fcil trabalho, que, pensava, logo daria bons lucros. Isto constitua a seu ver uma feliz especulao industrial, ao mesmo tempo que uma boa ao."Ctico em algumas ocasies, desta em outras, Pestalozzi no duvidava de que a organizao burguesa, com todos os seus defeitos, tinha como autor o prprio Deus, e se algo podia ser esperado no sentido de melhorar um pouco as coisas, esse algo, na sua opinio, deveria ter origem na boa vontade dos poderosos e dos prncipes. Na ltima parte de Leonardo e Gertrudes, Pestalozzi props um cdigo completo de reformas sociais para uso dos senhores ilustrados que desejassem assegurar a felicidade dos seus camponeses. "Leonardo e Gertrudes - afirma Pestalozzi numa carta a um amigo - ser o eterno testemunho do que eu tentei para salvar a aristocracia honrada, mas os meus esforos s foram recompensados com ingratides, a tal ponto que o bom Imperador Leopoldo falava de mim em seus ltimos dias como de um abade de Saint-Pierre."Na sua opinio, os prncipes eram os responsveis pela situao revolucionria, por causa da sua cegueira e das suas ms administraes. A Revoluo Francesa, com a qual simpatizava - porque acreditava que ela constitua um castigo justo para os erros dos nobres -, inquietava-o sobremodo. E como nunca teve papas na lngua ao aconselhar reis e naes, ele enviou Frana uma mensagem concitando-a a cessar a propaganda revolucionria porque "as reformas de que os povos necessitam podem ser-lhes concedidas pelos seus governantes atuais, sem transtornos nem violncias".O campons conservador e tmido que existia em Pestalozzi no queria nada com mudanas e revoltas. Mais pomposo do que Rousseau, e mais declamador, Pestalozzi gostava de falar tambm em fundar escolas de "homens". Mas, admitia que existiam tantos homens e tantas educaes quanto classes, e como a ordem social havia sido criada por Deus, o filho do aldeo deve ser aldeo, e o filho do comerciante, comerciante. Nenhuma educao teve um carter mais manso do que a de Pestalozzi. A sua bondade sofria, certamente, com a sorte dos explorados, especialmente com a dos camponeses, que to de perto conhecia. Mas, ele nunca pretendeu outra coisa a no ser educar os pobres para que estes aceitassem de bom grado a sua pobreza.Apesar de, no princpio da sua vida, ter educado algumas crianas pobres e, mais tarde, ter recolhido muitas outras no seu orfanato, nunca lhe ocorreu a possibilidade de dar a elas a mesma educao que ministrava s crianas ricas. Da mesma forma, nunca pensou que a estas fosse possvel educar por meio do trabalho. verdade que ensinou muitas vezes trabalhos manuais no seu internato, mas do mesmo modo como so ensinados nas mais modernas escolas atuais, isto , como um exerccio ou uma administrao mais ou menos desordenada. A sua atitude, portanto, no podia ser mais conseqente: o "apstolo" do ensino "popular" dividia o seu ensino e o seu mtodo de acordo com a classe social a que pertenciam os seus educandos.Os pedagogos mais autnticos da revoluo burguesa, Condorcet e Pestalozzi, j nos mostraram quais as intenes da burguesia no campo educativo.E, cinqenta anos depois da Revoluo Francesa, elas no eram muito diferentes das que Herbart (1776-1841) expressava em nome da burguesia do seu tempo. No seu Informes de um Preceptor, Herbart nos conta detalhadamente como se deve ensinar cincias naturais, acompanhando cada aula com demonstraes experimentais, mas, ao mesmo tempo, anota que as crianas que lhe foram confiadas recebem os ensinamentos de Cristo para que reconheam "os sinais da providncia no progresso para a perfeio". Anos mais tarde, na sua Pedagogia Geral, ele insiste a respeito do mesmo tema: "A religio nunca poder ocupar no fundo do corao o lugar tranqilo que lhe corresponde, se a sua idia fundamental no foi inculcada desde a primeira infncia." E, trinta anos mais tarde, no seu Bosquejo, volta de novo a falar a respeito de religio: "O contedo da instruo religiosa deve ser determinado pelos telogos, mas a filosofia h de demonstrar que nenhum saber est em condies de sobrepujar a segurana da crena religiosa." " necessrio unir a educao religiosa propriamente moral para humilhar desse modo a presuno de crer haver realizado algo."Desde a carta de Voltaire a Frederico Guilherme, nos meados do sculo XVIII, at s palavras de Herbart, nos meados do sculo XIX, a situao no mudou muito, portanto. Continua sendo a mesma que uma anedota atribuda a Voltaire j mostrava claramente. Contam que uma noite em que vrios amigos discutiam a respeito da religio em sua casa, Voltaire interrompeu a conversa para impedir que os seus criados a escutassem; e s depois que estes se retiraram que ele permitiu que o assunto voltasse baila, "porque absolutamente no pretendia ser assassinado ou roubado durante a noite". O prncipe da burguesia demonstrava claramente as suas intenes com esse gesto: uma vez que a "gente bem" - la bonne compagnie - havia triunfado, era necessrio impedir, mediante a religio e a ignorncia, a ascenso das massas.Mas, a burguesia no podia recusar instruo ao povo, na mesma medida em que o fizeram a Antigidade e o Feudalismo. As mquinas complicadas, que ,a, indstria criava no podiam ser eficazmente dirigidas pelo saber miservel de um servo ou de um escravo. "Para manejar certas ferramentas necessrio aprender a ler, dizia Sarmiento (1811-1888) a Alberdi, numa polmica notria. Em Copiac se paga 14 pesos ao operrio rude, e 50 ao operrio ingls que, pelo fato de saber ler, recebe as encomendas mais delicadas e todo o trabalho que requeira o uso da inteligncia. Para manejar o arado necessrio saber ler! S nos Estados Unidos que se generalizou o uso de arados aperfeioados, porque s nesse Pas que o trabalhador rural, que deve manej-los, sabe ler. No Chile, por agora, impossvel popularizar as mquinas de arar, de trilhar, de debulhar milho, porque no h pessoal para manej-las, e eu prprio vi numa fazenda quebrar-se a debulhadeira no prprio instante em que era posta funcionar". O testemunho de Sarmiento terminante: o trabalhador assalariado j no poder satisfazer o seu padro se no dispuser ao menos de uma educao elementar. pois necessrio procur-la, como uma condio sine qua non para ser explorado. Em outras pocas, quando o trabalho era confiado ao servo e ao escravo, em que os instrumentos de trabalho eram primitivos e as tcnicas rudimentares, o aprendizado do trabalhador requeria uma ateno muito pequena. Entretanto, rios ltimos tempos do Imprio Romano, quando o brao escravo comeou a rarear, tratou-se de suprir essa deficincia mediante a educao de trabalhadores escolhidos. Agora, em condies diversas, sem dvida, voltou a aparecer essa diferena entre trabalhadores no especializados, capazes apenas de realizar as tarefas mais grosseiras, e trabalhadores especializados, em condies de se encarregarem daquelas tarefas que exigem um nvel mediano de cultura. Mas, ao lado dos operrios no qualificados e dos trabalhadores especializados, o capitalismo requeria tambm a existncia de operrios altamente especializados, detentores de uma cultura verdadeiramente excepcional. Cada progresso da qumica, por exemplo, no s multiplicava o nmero dos materiais teis e das aplicaes conhecidas, como tambm estendia as esferas de aplicao do capital. A livre concorrncia exigia uma modificao constante das tcnicas de produo e uma necessidade permanente de invenes. O capitalismo incorporava aos seus planos de trabalho cientfico a livre investigao, da mesma forma que o Feudalismo implicava a religio e o dogmatismo. Favorecer o trabalho cientfico. mediante escolas tcnicas e laboratrios de altos estudos, foi, desde essa poca, uma questo vital para o capitalismo. As escolas tradicionais no estavam em condies de satisfazer essa exigncia, nem mesmo as criadas sob a influncia direta da Revoluo Francesa. Longe das influncias oficiais, junto s prprias fbricas e como frutos diretos da iniciativa privada, comearam a surgir as escolas politcnicas. A burguesia do sculo XIX preparava nelas os seus peritos industriais, da mesma forma que a do sculo XVI preparava nas suas escolas comerciais os seus peritos mercantis. Uma educao primria para as massas, uma educao superior para os tcnicos, eis o que, em essncia, a burguesia exigia no campo da educao.Reservava, todavia, para os seus prprios filhos outra forma de educao - o ensino mdio - em que as cincias ocupavam um lugar discreto, em que o saber continuava livresco e bastante divorciado da vida real. Enquanto nas outras escolas a orientao era francamente prtica e impregnada de inteno utilitria, por que nessas escolas de ensino mdio prosseguia-se cultivando o "cio digno", isto , esse ensino de puro adorno que os jesutas inculcaram em outros tempos aos nobres? Como se explica que, no nosso sculo, um homem como Durkheim tivesse podido pronunciar estas palavras: "Com exceo de alguns casos raros, que no modificam a essncia da coisa, os homens da minha gerao foram educados nos liceus, de acordo com um ideal que no diferia muito daquele que inspirava os colgios jesutas dos tempos do Rei Sol". O ideal pedaggico dos jesutas conhecido por ns: buscar uma cultura aparatosa e brilhante, como prpria de homens que devem dirigir muito de cima os negcios desta terra, e aos quais no interessa, portanto, as mincias e as mesquinharias desse trabalho.Como explicar, pois, este fenmeno, em aparncia contraditrio, de que a educao de adorno criada para uma classe ociosa "dos tempos do Rei Sol" possa continuar servindo aos interesses de outra classe social, e exatamente de uma classe que proclamou o trabalho como a virtude fundamental? O problema fica esclarecido quando ns nos dirigimos diretamente s suas razes.Nos primeiros tempos da burguesia, ainda no se "mostravam muito acentuadas as diferenas existentes entre o operrio e o mestre do seu grmio. Viviam sob o mesmo teto e colaboravam nas mesmas tarefas. Mas, logo que o mestre do grmio se converteu em comerciante e comeou a organizar a produo em. grande escala, o patro, transformado em capitalista, foi se separando cada vez mais do trabalho material. E, medida que as distncias entre o capitalista que dirige e o operrio que produz aumentavam, mais desaparecia a antiga colaborao que existia entre eles, e mais se acentuava o carter desptico do capitalista. E isso pela razo extremamente simples de que a orientao geral da produo capitalista consiste em valorizar ,o mais possvel o capital e, portanto, em explorar e tiranizar cada vez mais a fora de trabalho do operrio. Distncia do trabalho material, por um lado, despotismo, pelo outro, eis a os dois traos fundamentais da psicologia do capitalista. E que outra coisa encontramos tambm na psicologia do baro feudal, to distinta da do burgus em outros pontos? O triunfo do capitalismo, sobre o Feudalismo, apenas significou realmente triunfo do mtodo de explorao burguesa sobre o de explorao feudal. E, pelo fato de que nem o capitalista, nem o nobre, participavam diretamente do trabalho, ambos podiam prescindir dessa cultura tcnica que o primeiro exigia dos seus especialistas. Nos livros em que Carnegie contou a sua vida e seus negcios podemos comprovar abundantemente a fantstica ignorncia deste rei de ao em relao aos problemas tcnicos-cientficos concernentes a esse metal. Da mesma forma, nos livros em que Ford narra as peripcias da sua indstria podemos constatar o desprezo que devotava a Edison, que, na sua opinio, sabia demasiado para ser um bom capitalista. Em relao a estudos e diplomas, Carnegie apenas demonstra desprezo, e, numa conhecida pgina, confessou ele, deste modo, o seu segredo: "O segredo do xito consiste exclusivamente na arte de fazer os outros trabalharem." Para "fazer os outros trabalharem" no necessrio certamente muita cincia. Como estranhar, pois, que, ao lado das escolas industriais e superiores, destinadas a preparar os capatazes e os tcnicos do exrcito industrial, a burguesia tenha reservado para os seus filhos outro tipo de ensino, inteiramente separado do trabalho, que considerava como o nico tipo de ensino verdadeiramente digno das classes superiores? Defendendo o ensino chamado "clssico", Weiss disse: "Ns apreciamos tanto quanto qualquer outro tudo o que corresponde ao domnio da inteligncia e da tcnica, cincia naturais e histricas, Matemtica, Economia, Estatstica, Filosofia, Arqueologia etc., mas os nmeros e as abstraes, a Geometria e as suas dedues, as cincias naturais e as suas classificaes, a Histria e os seus fenmenos, a Lgica e as suas leis no so mais do que parte do homem e do entendimento humano; As humanidades e as letras, por outro lado, so o prprio homem; elimin-las da educao como que eliminar o homem do prprio homem."Cabe, agora, perguntar: Quem so esses privilegiados, capazes de adquirir essa cultura que, por ser independente do trabalho produtivo, considerada pelos tericos da burguesia como a que caracteriza propriamente o "homem"? Um inspetor francs de instruo pblica vai-nos responder: "O aluno que freqenta os nossos liceus o que est em condies de esperar at os 22 anos para ganhar a vida." No se pode expressar com mais franqueza o carter de classe e a orientao geral do ensino mdio. O caminho que leva s universidades e, por isso mesmo, s altas posies governamentais impe um tipo de instruo to distante do trabalho produtivo que apenas se diferencia da que ministravam os jesutas nos tempos do Rei Sol, uma instruo to inacessvel s grandes massas que s podem beneficiar-se dela aqueles que absolutamente no tm de se incomodar com o seu prprio sustento.O ensino secundrio, acrescenta mais adiante o mesmo Vial, deve capacitar as classes mdias "a guiar a vontade nacional". "Enquanto a nossa imperfeita organizao social continuar proibindo ao grande nmero o acesso cultura moral e intelectual", necessrio que o povo [isto , os operrios e os camponeses] aprenda atravs das classes mdias, "a pensar, a querer e a atuar".Essa afirmao no requer esclarecimentos: pela pena de um dos seus funcionrios mais autorizados, a burguesia capitalista reconheceu que a sua organizao social "probe" ao grande nmero "o acesso cultura moral e intelectual", e enquanto isso durar isto , enquanto a burguesia continuar como classe dominante - o grande nmero dever "pensar, querer e atuar" por meio da burguesia.Um sculo depois do plano de Condorcet, eis em que resultou a "difuso das luzes" e o "ensino para todos",A burguesia sabe demasiado bem o que faz. Quase ao mesmo tempo em que Sarmiento assegurava que no se podia manejar uma ferramenta sem saber ler, um fabricante ingls de vidros - Mr. Geddes - afirmava a uma comisso investigadora: "A meu ver, a maior parte da educao de que tem desfrutado uma parte da classe trabalhadora durante os ltimos anos prejudicial e perigosa, porque a torna demasiado independente." Nada mais adequado para mostrar as contradies que existem na burguesia do que citar essas duas atitudes to distintas no plano pedaggico: de um lado, a necessidade de instruir as massas, para elev-las at o nvel das tcnicas da nova produo e, do outro, o temor de que essa mesma instruo as tome cada dia menos assustadias e menos humildes. A burguesia solucionou esse conflito entre os seus temores e os seus interesses dosando com parcimnia o ensino primrio e impregnando-o de um cerrado esprito de classe, como para no comprometer, com o pretexto das "luzes", a explorao do operrio, que constitui a prpria base da sua existncia. Alm disso, razes de outra ordem tambm a levaram a se preocupar com o "povo". Nos tempos orgisticos do capital, a voracidade da burguesia havia feito com que mulheres e crianas trabalhassem em condies realmente inquas. Mas, essa procura doida de uma mo-de-obra cada vez mais barata ameaava aniquilar essas mesmas classes sofredoras de que o capital se nutre. Os prprios interesses da burguesia fizeram com que esta percebesse o quanto insensato seria matar a sua galinha dos ovos de ouro, e ao mesmo tempo que a sua sede de lucro a levava a destruir o lar operrio - o mesmo lar de Leonardo e Gertrudes, em que Pestalozzi havia depositado as suas cndidas esperanas -, os seus tericos se apressaram a proclamar "os sagrados direitos da infncia". . .Nessa ocasio, como em muitas outras, salta aos olhos a agudeza de uma observao de Marx: quanto mais alquebrada estiver a ordem das coisas, mais hipcrita se toma a ideologia da classe dirigente. A burguesia no s deixou correr algumas lgrimas sobre a desgraada causa da infncia, como ainda responsabilizou o "abandono culpvel dos pais" pelo ocorrido. Como se, antes de decidir-se a "proteger", com leis nunca cumpridas, o desamparo das crianas operrias, no tivesse sido essa mesma burguesia quem primeiro destruiu as antigas condies familiares!Ainda faltava, contudo, uma hipocrisia: no mesmo sculo em que Jules Simon publicava um livro com este ttulo terrvel - O Operrio de Oito Anos -, no mesmo sculo em que o nmero de suicdios de crianas se elevava de modo trgico; no mesmo sculo em que Lino Ferriani, Procurador do Reino da Itlia, denunciava que na sua ptria se compravam criancinhas por trinta liras, para obrig-las a trabalhar nas indstrias vidreiras do estrangeiro; nesse mesmo sculo, a sensvel Ellen Key anunciou comovida que tnhamos entrado no "sculo das criancinhas"..