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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 799 A EDUCAÇÃO RURAL NO PARANÁ NO INÍCIO DO SÉCULO XX: A VOZ DOS DOCUMENTOS OFICIAIS Elisângela Zarpelon Aksenen 1 Maria Elisabeth Blanck Miguel 2 Introdução Este artigo faz parte dos estudos que investigam a educação rural no estado do Paraná. O recorte proposto neste texto enfatiza as três primeiras décadas dos anos novecentos, por se tratar de um período em que as discussões em torno do meio rural nesse estado tornaram-se incipientes. As pesquisas envolvendo a temática rural ainda têm sido inexpressivas no Paraná, principalmente por terem muito a revelar sobre a história da educação de um estado eminentemente agrícola. No início do século XX, o estado paranaense foi cenário de importantes transformações na valorização da educação rural no país. Diante disso, a abordagem desta investigação observa o contexto histórico do Paraná, articulado ao seu desenvolvimento social e econômico durante esse período, pois se julga ser impossível compreender a educação rural isolada dessas questões. Partilha-se da visão de Bloch (2001), quando este autor afirma que “nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento” (BLOCH, 2001, p. 60). O levantamento bibliográfico e a análise de fontes documentais, como relatórios da inspetoria de ensino, mensagens de governo e legislações educacionais, situam a abordagem apresentada neste artigo, cujo objetivo é discutir o cenário educacional rural paranaense nas três primeiras décadas do século XX. Para tanto, elegeram-se algumas questões norteadoras: Como se caracterizava o meio rural paranaense, em seus aspectos sociais e econômicos, no período considerado, inclusive nas relações com o restante do país? Quais as características das escolas rurais do estado, apontadas nos relatórios da inspetoria de ensino? Qual a relevância dada à educação rural na legislação estadual de ensino e nos discursos do período? 1 Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora da Secretaria Estadual de Educação do Paraná. E-Mail: <[email protected]>. 2 Doutora em História e Filosofia da Educação pela PUC-SP. Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Campus Curitiba). E-mail: <[email protected]>.

A EDUCAÇÃO RURAL NO PARANÁ NO INÍCIO DO SÉCULO XX… · era possível porque no final do século XIX, o Brasil assinou tratados de navegabilidade fluvial com a Argentina e o

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 799

A EDUCAÇÃO RURAL NO PARANÁ NO INÍCIO DO SÉCULO XX: A VOZ DOS DOCUMENTOS OFICIAIS

Elisângela Zarpelon Aksenen1

Maria Elisabeth Blanck Miguel2

Introdução

Este artigo faz parte dos estudos que investigam a educação rural no estado do Paraná.

O recorte proposto neste texto enfatiza as três primeiras décadas dos anos novecentos, por se

tratar de um período em que as discussões em torno do meio rural nesse estado tornaram-se

incipientes. As pesquisas envolvendo a temática rural ainda têm sido inexpressivas no

Paraná, principalmente por terem muito a revelar sobre a história da educação de um estado

eminentemente agrícola.

No início do século XX, o estado paranaense foi cenário de importantes transformações

na valorização da educação rural no país. Diante disso, a abordagem desta investigação

observa o contexto histórico do Paraná, articulado ao seu desenvolvimento social e

econômico durante esse período, pois se julga ser impossível compreender a educação rural

isolada dessas questões. Partilha-se da visão de Bloch (2001), quando este autor afirma que

“nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento”

(BLOCH, 2001, p. 60).

O levantamento bibliográfico e a análise de fontes documentais, como relatórios da

inspetoria de ensino, mensagens de governo e legislações educacionais, situam a abordagem

apresentada neste artigo, cujo objetivo é discutir o cenário educacional rural paranaense nas

três primeiras décadas do século XX.

Para tanto, elegeram-se algumas questões norteadoras: Como se caracterizava o meio

rural paranaense, em seus aspectos sociais e econômicos, no período considerado, inclusive

nas relações com o restante do país? Quais as características das escolas rurais do estado,

apontadas nos relatórios da inspetoria de ensino? Qual a relevância dada à educação rural na

legislação estadual de ensino e nos discursos do período?

1 Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora da Secretaria Estadual de Educação do Paraná. E-Mail: <[email protected]>.

2 Doutora em História e Filosofia da Educação pela PUC-SP. Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Campus Curitiba). E-mail: <[email protected]>.

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As discussões contemplam, portanto, uma reflexão metodológica de análise

documental baseada em Thompson (1981, 1997), Le Goff (1992) e Faria Filho (1998),

considerando os documentos como resultados da ação humana, de acordo com as relações de

força que então detinham o poder. Recorre-se ainda, ao aporte teórico de Bloch (2001),

Wachowicz (1984), Miguel (1997), Wachowicz (2010), Werle (2006, 2010), Almeida (2011),

dentre outros.

As reflexões teóricas apontam as características da educação rural no Paraná,

articuladas ao contexto social e econômico. Os documentos revelam, dentre outros aspectos,

questões singulares da educação rural neste estado, a presença das escolas de imigrantes e a

relativa desconsideração a esta modalidade de ensino, percebida na legislação e nos discursos

do período.

Um Paraná rural e sua relação com a educação

A ocupação, assim como o consequente desenvolvimento econômico do Paraná foram

fortemente determinados pela agricultura. “A ocupação do território paranaense na sua

integralidade coincide com a difusão da agricultura em todo o Estado” (CARDOSO e

WESTPHALEN, 1986, p. 11).

De acordo com Ruy Wachowicz (2010), em 1902, a erva-mate era responsável por 31%

do orçamento do estado, que a exportava para os mercados do rio da Prata e do Chile,

“passando a constituir o negócio mais rendoso da nova Província e ao qual praticamente se

entregaria toda a sua população” (CARDOSO e WESTPHALEN, 1986, p. 10). A exportação

era possível porque no final do século XIX, o Brasil assinou tratados de navegabilidade fluvial

com a Argentina e o Paraguai, já que quase não havia estradas e algumas regiões paranaenses

(principalmente a região oeste) eram inacessíveis. Todavia, com isso, o estado ficou mais

vulnerável a invasões fluviais vindas da Argentina que subtraíam erva-mate e madeira como

contrabando.

As exportações foram extintas em 1930, quando a Argentina passou a cultivar seus

próprios ervais. Com isso, desenvolveu-se no Paraná a exploração da madeira.

O Paraná nos primeiros trinta anos do século XX constituía-se talvez na mais atraente e rica fronteira agrícola e colonizadora do país. O extrativismo e a industrialização da madeira (principalmente do pinheiro) conformavam o setor mais dinâmico da economia dessa fronteira (SALLES, 2004, p. 54).

Entretanto, o nomadismo é o principal atributo deste tipo de atividade, que “não se

integra na região em que está estabelecida” (WACHOWICZ, 2010, p. 250), pois com a

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extinção da floresta explorada, a serraria e o núcleo populacional constituído em torno dela,

transferiam-se para outro lugar. Tal fator prejudicou o desenvolvimento da educação no

estado.

Para Lilian Anna Wachowicz (1984),

As atividades econômicas predatórias e nômades, absorvendo parte da população e gerando a crise na agricultura de subsistência, tornava elevado o custo da vida nos núcleos urbanos no século XIX. Além disso, a extensão do território e a relativa escassez da população, geravam uma formação social na qual a instituição escolar não tinha o significado das necessidades básicas (WACHOWICZ, 1984, p. 95).

Miguel e Vieira (2005), corroboram nesse sentido, quando afirmam que a educação se

desenvolveu tardiamente no Paraná, porque ainda no início do século XX, este era um

território pobre e de população rarefeita, ocasionando a falta de escolas que, por sua vez, não

se mostravam necessárias.

Como uma alternativa para o enfrentamento dessas situações, incentivou-se a

imigração europeia, fator este que promoveu um notável progresso ao estado devido a

atuação desses imigrantes em diversos setores da economia, como a agricultura, o comércio,

a industrialização (WACHOWICZ, 2010).

A influência dos imigrantes estendeu-se também aos domínios educacionais, já que

criavam em seus núcleos, onde não havia escolas públicas, escolas subvencionadas3, com a

iniciativa da própria comunidade.

Frente ao quadro de precariedade das escolas públicas, os grupos de imigrantes não esperavam a ação do governo para as instalações escolares. Criavam-nas com características de identificação com o país de origem, ensinando aos seus filhos a língua materna e os costumes da Pátria distante. Estas escolas foram construídas com o esforço da comunidade, que mantinha o professor e também a escola (RENK, 2004, p. 15).

Segundo Wachowicz (2010), os grupos imigratórios que se estabeleceram no Paraná4 a

partir da década de 1920, dispuseram de movimentos planejados e de auxílio de entidades

internacionais.

Balhana, Machado e Westphalen (1969) contribuem para esclarecer esta questão,

quando afirmam:

3 Getúlio Vargas extinguiu as escolas estrangeiras com o Decreto Federal nº 406, de 4 de maio de 1938, denominado “Lei da Nacionalização”, como parte de um projeto de unificação nacional.

4 Os contingentes imigratórios por nacionalidade que entraram no Paraná até o ano de 1948 foram apontados por Wachowicz (2010). Eram eles: 57.000 poloneses, 22.000 ucranianos, 20.000 alemães, 15.000 japoneses e 14.000 italianos.

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A tônica dos projetos imigratórios continuou a ser o estabelecimento de pequenas e médias propriedades agrícolas através da introdução de imigrantes, política, aliás, consagrada pela legislação federal, com o Decreto nº 3010 de 20 de agôsto de 1938, ao fixar que 80% da quota de cada nacionalidade de imigrantes, deveriam ser preenchidos por imigrantes agricultores (BALHANA, MACHADO e WESTPHALEN, 1969, p. 225).

Os esforços voltados às questões agrícolas, fizeram com que o Paraná se tornasse

também um grande produtor de café. O cultivo desse produto, presente no estado desde a

primeira República, sustentou a sua economia até a década de 1960, período em que se deu

início à diversificação das atividades agrícolas e à intensificação do processo de

industrialização.

No âmbito nacional, o advento da República originou mudanças estruturais na

sociedade. O século XX promoveu uma redefinição do papel do estado a fim de adaptar-se a

uma nova ordem social, a acumulação do capital passou do setor agrícola para o setor

industrial (IANNI, 2004). Com isso, intensificou-se o êxodo rural. Até 1920 a maioria da

população brasileira concentrava-se no meio rural, no entanto, posteriormente foi havendo

um aumento da população urbana e uma consequente diminuição da população rural.

As mudanças econômicas e sociais promoveram transfigurações identitárias e, portanto, afirmaram-se as identidades urbanas, uma vez que a cidade tornou-se o ícone da modernidade. Nesse contexto, o meio rural foi associado às ideias de atraso, de ausência de desenvolvimento e de ignorância. (ALMEIDA e GRAZZIOTIN, 2013, p. 136).

Diante desse contexto, a escolarização começou a ser percebida como uma forma de

contribuir para o ajustamento dos indivíduos aos modelos econômicos e sociais que

emergiam na sociedade brasileira e, timidamente, na sociedade paranaense.

Entretanto as ações limitavam-se às escolas urbanas, conforme retrata Sérgio C. Leite

(1999):

Mesmo a República – sob inspiração positivista/cientificista – não procurou desenvolver uma política educacional destinada à escolarização rural, sofrendo esta a ação desinteressada das lideranças brasileiras. Dado o comprometimento dessas elites com a visão urbano-industrial que se cristalizou no país as primeiras décadas do século, a concentração dos esforços políticos e administrativos ficou vinculada às expectativas metropolitanas, de modo que a sociedade brasileira somente despertou para a educação rural por ocasião do forte movimento migratório interno dos anos 1910/20, quando um grande número de rurícolas deixou o campo em busca das áreas onde se iniciava um processo de industrialização mais amplo (LEITE, 1999, p. 28).

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Nesse período, a educação rural passou a ser concebida como uma poderosa ferramenta

de fixação do homem ao campo, constituindo o “Ruralismo Pedagógico” que permaneceu até

a década de 1930.

Flávia Werle (2006) afirma que no final dos anos 20 e início dos anos 30

intensificaram-se as discussões em torno da valorização da escola rural “como campo de

experiência e ensaio de processos agrícolas modernos” (WERLE, 2006, p. 117) e combate ao

urbanismo. A autora ainda diz que “a primeira metade do século XX trouxe elementos

marcantes quanto ao encaminhamento da educação rural no país” (WERLE, 2010, p. 27).

Alguns elementos extraídos das teses apresentadas na I Conferência Nacional de

Educação, realizada em Curitiba no ano de 1927, reforçam essas questões. A valorização do

meio rural, de sua consequente importância para o desenvolvimento econômico do país, as

dificuldades enfrentadas para se escolarizar nesse contexto, a diferenciação entre os ensinos

ministrados nas zonas urbana e rural, com propostas de currículos diferenciados para esses

locais.

Como exemplo, optou-se por trazer a contribuição de Deodato de Moraes (1997) que

acreditava que o futuro do Brasil estava no desenvolvimento das indústrias agrícolas. Então,

ele atribuía à escola primária rural o papel de propagar os valores necessários à população

rural, a fim de que essa última pudesse compreender a importância da profissão agrícola para

a economia do país, tendo o professor uma função fundamental nesse contexto, como um

sujeito interessado pelos assuntos agrícolas, combatendo o urbanismo, criticando as

profissões liberais, descrevendo “com cores carregadas e impressionantes o êxodo dos

campos para as cidades, a burocracia que definha o intelecto e avilta o caráter, e procure

infiltrar no espírito infantil a afeição à terra e às profissões agrícolas” (MORAES, 1997, p.

195).

Diante desse cenário, pretende-se na sequência, à luz dos documentos oficiais do

estado do Paraná, verificar como foi constituída a educação rural no início do século XX.

A voz dos documentos oficiais

Compreende-se a importância de se debruçar sobre os documentos oficiais,

especificamente relatórios e legislações de ensino, a fim de se poder compreender a história

da educação. Contudo, é imprescindível considerar tais fontes como instrumentos das

relações de produção, cujo principal objetivo é mediar e reforçar as relações de classe

existentes, funcionando como dispositivos ideológicos de legitimação de interesses

(THOMPSON, 1997), procurou-se analisá-las levando em consideração tais aspectos.

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Le Goff (1992) contribui neste sentido ao afirmar que o dever principal do historiador é

olhar criticamente os documentos, compreendendo-os não em uma perspectiva neutra, mas

sim como produto da ação humana, como “um produto da sociedade que o fabricou segundo

as relações de forças que aí detinham o poder” (LE GOFF, 1992, p. 545).

Diante disso, as fontes estão sendo analisadas em relação ao contexto, levando-se ainda

em conta a necessidade do cotejamento dessas fontes, visto que “a análise da legislação

isoladamente não é suficiente [...] é possível se se realiza um intenso trabalho de cruzamento

de fontes” (FARIA FILHO, 1998, p. 123).

Após a análise conjunta das fontes, torna-se possível estabelecer um diálogo entre a

teoria e os fatos; entre o interrogador e o objeto, mediado pela crítica que considera o

movimento do real, a provisoriedade do conhecimento, mas, principalmente, a racionalidade

do processo histórico. Porque concorda-se com Thompson (1981, p. 51) ao afirmar que “[...] a

historiografia pode falsificar ou não entender, mas não pode modificar, em nenhum grau, o

status ontológico do passado”.

A educação no estado do Paraná no início do século XX era regida pelo Decreto nº. 93,

de 11 de março de 1901, que trazia o Regulamento da Instrução Pública, o qual dividia em 1º e

2º graus o ensino primário ministrado nas escolas mantidas pelo estado. A cada um desses

graus correspondiam disciplinas específicas.

Dispondo de 305 artigos, o decreto versava sobre a instrução primária, o ensino

secundário e a escola normal. Propunha que só houvesse escolas de 1º e 2º graus nas cidades

(Art. 34). Entretanto, tal condição não foi constatada, tendo em vista que o Presidente

Francisco Xavier da Silva, em Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo, em fevereiro

de 1905, afirmava que existiam “escolas publicas providas em todas as cidades, villas e

povoados populosos” (PARANÁ, 1905, p. 4). Porém, considerando-se a vastidão do território

paranaense e sua inacessibilidade em diversas regiões, muitas crianças ficavam sem escolas,

tendo em vista que a escolaridade deixava de ser obrigatória aos meninos, entre 7 e 14 anos,

que residissem a mais de dois quilômetros da escola e às meninas, entre 7 e 12 anos, que

residissem a mais de um quilômetro da escola.

Em Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do Estado, em 1 de fevereiro de

1901, o presidente Francisco Xavier da Silva, advertia sobre a necessidade de atenção que a

instrução pública carecia. Embora existissem escolas em número apropriado, as grandes

distâncias impossibilitavam que as crianças pudessem frequentá-las. Além disso, muitas

escolas estavam fechadas porque o número de professores era insuficiente e eram muitos os

professores provisórios que, nas palavras do presidente, “embora prestem exames, não terão

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competencia para bem desempenharem o extenso programma escolar, podendo apenas

ensinar a ler e escrever e as quatro principaes operações arthmeticas” (PARANÁ, 1901, s/p).

Em Relatório apresentado ao governador Francisco Xavier da Silva pelo Secretário de

Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública, Octavio Ferreira do Amaral e

Silva, em 31 dezembro de 1901 registrava-se a existência de 351 cadeiras de instrução

primária, sendo 238 providas e 113 vagas. O total de matrículas das escolas públicas foi de

9.648 alunos e 1.751 alunos oriundos das 18 escolas particulares existentes na capital.

No referido relatório, o Secretário Octavio Ferreira do Amaral e Silva denunciava o

descaso dos professores estrangeiros para com a língua nacional e dos filhos de imigrantes

para com o espírito nacional. Os “colonos extrangeiros, em geral, deixam de enviar seos filhos

ás escolas publicas, quando o respectivo professor não lhes ensina a lingua de sua pátria,

preferindo mandal-os ensinar particularmente” (PARANÁ, 1901, p. 11). As questões

nacionalistas fazem-se fortemente presente nos discursos verificados neste e em outros

relatórios do período.

O Relatório apresentado pelo Diretor Geral da Instrução Pública do Estado, Dr.

Reinaldo Machado, em dezembro de 1904 apontava o descontentamento para com o

regulamento vigente. Este é o primeiro relatório do período que mencionava a escola rural,

dentro de uma proposta de reforma da instrução, que se fazia necessária na visão do Diretor.

Percebe-se, no discurso oficial, a visão dualista com que foi concebida a escola rural,

privilegiando os interesses do meio urbano em detrimento do rural.

Uma medida que me occorre, e que acho de grande importancia, é a classificação das escolas, com vencimentos desiguaes para os respectivos professores, de modo a estabelecer o estimulo entre os mesmos. As escolas poderão ser consideradas como ruraes, urbanas e da Capital. Não é justo que um professor de uma escola de colonia ou de bairro perceba vencimentos iguaes aos da capital ou outra cidade. As primeiras nomeações deverão ser sempre feitas para as escolas ruraes com acesso para as escolas das cidades e destas para as da Capital (PARANÁ, 1904, p. 50).

Segundo Lilian A. Wachowicz (1984), a partir de 1906 começaram a surgir nas colônias

do estado, escolas nas quais os professores atuavam gratuitamente durante algum tempo, a

pedido da população, que os recompensavam com alimentos. A iniciativa era motivada pela

ausência de escolas e pelo grande número de crianças em idade escolar. Após formada a

escola, os moradores, por meio de abaixo assinados, pediam a subvenção do governo por

pagarem a taxa escolar. “A gratificação representada pela subvenção era na proporção de ¼

dos vencimentos de um professor normalista” (WACHOWICZ, 1984, p. 211).

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Para Miguel (1997), essa população que pressionava os poderes públicos constituiu-se a

partir do final do século XIX como uma classe intermediária resultante das atividades de

expansão e beneficiamento da erva-mate. À medida que tal classe “se organizava como grupo

social com interesses definidos, passou a exercer pressão em busca de participação política.

[...] Foi por pressão das populações desta classe emergente que as escolas primárias se

concretizaram” (MIGUEL, 1997, p. 23).

De acordo com o Relatório apresentado pelo Secretário da Instrução Pública, Luiz

Antonio Xavier, em 1908, o Congresso do Estado, reconhecendo os vícios do Regulamento de

1901, decretou a lei nº. 723, em 03 de abril de 1907, como uma tentativa de reforma. Todavia,

este último, que entrou em vigor em 16 de janeiro de 1908, teve uma vida efêmera, devido aos

defeitos que se manifestaram assim que foi praticado. Por isso, foi suspenso (Lei nº. 735, de

28/02/1908), voltando a vigorar o Regulamento de 1901.

O Relatório apresentado ao Diretor da Instrução Pública pelo Delegado Ismael Alves

Pereira Martins, em 1908, registrava a dificuldade de organizar a instrução pública devido à

considerável imensidão do território paranaense e da respectiva pequena densidade da

população. Além do orçamento do Estado não comportar as despesas, gastando grande parte

de seus rendimentos com a Instrução Pública e obtendo um resultado insatisfatório.

A dificuldade orçamentária era registrada nas mensagens de governo do período. Como

exemplo, pode-se mencionar a Mensagem do Presidente Francisco Xavier da Silva, em 1905,

na qual ele decretava a exoneração de 84 professores da instrução primária. Tal feito foi por

ele justificado devido à verba insuficiente para efetuar seus pagamentos.

Em 1909 houve mais uma tentativa de reforma da Instrução Pública no estado.

Tratava-se da Lei nº. 894, de 19 de abril, regulamentada pelo Decreto nº. 150, de 15 de

outubro do mesmo ano, que não vingou devido, segundo o Diretor Geral da Instrução Pública

Arthur Pedreira de Cerqueira, ao meio paranaense não o comportar. Por isso, foi suspensa,

retornando mais uma vez, o Regulamento de 1901.

Segundo o Relatório do Diretor Geral interino da Instrução Pública, Jayme Dormund

dos Reis, em 24 de novembro de 1909, existiam nas escolas falta de mobiliários, obrigando as

crianças a sentarem-se em caixotes, tijolos e outros móveis arranjados.

O Diretor denunciou ainda que nas épocas de plantios e colheitas, os pais retiravam

seus filhos das escolas ou os enviavam por algumas horas, para que pudessem aproveitá-los

na agricultura. Tal fator gerava despovoamento das escolas e baixo aproveitamento dos

alunos. Por isso, o diretor propôs que se adequassem os horários de aula às épocas do ano,

conciliando os interesses do ensino com os da lavoura.

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O Diretor também mencionou a composição da população do estado e se referiu aos

imigrantes:

A população do nosso Estado compõe-se, além dos nacionaes, de elementos os mais heterogeneos, representantes das principaes raças espalhadas pela superficie do nosso planeta: italianos, polacos, russos, alemães, syrios, etc. [...] Esses elementos pódem ser divididos em dous grupos distinctos: um, proporcionalmente pequeno, vivendo nas cidades; outro denso, habitando as colonias e agrupamentos exclusivos de suas raças; o primeiro conhecendo, pelo contacto e necessidade do meio, a nossa lingua e acceitando uma parte dos nossos habitos e costumes; o segundo, sem modificar os costumes e habitos trazidos de seus paizes, conserva a propria lingua e a ensina aos filhos, aqui nascidos; desconhece por completo a nossa, não carecendo della, visto como directamente não trata com os nacionaes nas suas operações comerciaes; vive vida á parte; sustenta professores particulares de seus idiomas (PARANÁ, 1909, p. 61-62).

Tal registro reforça o discurso bastante presente nos Relatórios da Instrução Pública do

Paraná, os quais apresentam fortemente as questões envolvendo a ação dos imigrantes para

com a escolarização.

Prieto Martinez, em seu relatório de 1920 também expôs a preocupação com as escolas

estrangeiras ao afirmar: “[...] desnacionaliza a infancia. Municipios ha que contam dezenas

de escolas onde se ignora por completo a existencia do Brasil, como se funcionassem em

territorio extrangeiro. A lingua falada é a poloneza, a allemã ou a italiana” (PARANÁ, 1920, p.

23).

De acordo com Wachowicz (1984), os imigrantes europeus habitavam as localidades

mais distantes, na zona rural, os quais eram acostumados em seus países de origem, a

providenciar a instituição escolar por iniciativa própria. Ao chegarem ao Brasil e verificarem

a possibilidade de conservarem nas novas gerações, a cultura de sua nacionalidade de origem

e verificarem ainda a falta de condições do governo em atender as demandas educacionais, os

imigrantes construíam às suas custas o prédio da escola e o pagamento do professor, também

imigrante. “O governo estadual subvencionava o professor, desde que ele demonstrasse

capacidade para lecionar em língua portuguesa, mediante exame de habilitação”

(WACHOWICZ, 1984, p. 208).

Em 1910 havia 127 escolas particulares subvencionadas, sendo esse número ampliado

para 174, em 1913 (Relatórios da Instrução Pública, 1911, 1914).

De acordo com o Relatório apresentado pelo Diretor Geral da Instrução Pública, em

1914 foram postas em execução, na Capital e em diversas localidades, as instruções aprovadas

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pela Portaria nº. 4, de 17 de janeiro de 19145, a qual propôs, sob o modelo do estado de São

Paulo, a reorganização das escolas públicas primárias, dividindo o ensino em quatro séries,

com um programa específico para cada série.

Neste documento o referido diretor sugeriu que se organizem programas especiais para

as escolas rurais e ambulantes6.

Os programas que constituíam a Portaria nº. 4 passaram a fazer parte, com ínfimas

complementações, dos Programas de Ensino e sua execução nos institutos públicos do Curso

Primário, organizados pelo Conselho Superior do Ensino Primário, em 1916.

Para as escolas rurais deveria ser observado o programa geral do curso primário, com

exceção da 4ª. série, que não existia em tais escolas. Entretanto, para as escolas ambulantes,

desenvolveu-se um programa especial.

Entretanto, o inspetor Prieto Martinez em relatório apresentado ao Secretário Geral do

Estado, em 1920, denunciou a inaplicabilidade desse programa nas escolas rurais: “Somente

os grupos escolares remodelados tinham um programa official. Nas escolas isoladas cada

professora guiava-se como bem entendia e dava a matéria que mais facil e commoda lhe

parecia” (PARANÁ, 1921, p. 14). Portanto, propôs um programa para essas escolas.

O Código do Ensino do Estado (Decreto nº. 17, de 9 de janeiro de 1917) estruturou as

regras administrativas e pedagógicas para todos os níveis de ensino: Escola Maternal, Jardim

de Infância, Curso Primário, Curso Secundário e Normal, Ensino Superior.

Verifica-se a inexpressividade da menção à escola rural ao longo de seus 332 artigos,

tendo sido citada em apenas 5 deles, sendo que somente em dois de modo específico. O artigo

42, ao se referir à obrigatoriedade; o artigo 58, ao estabelecer que a distribuição do tempo e

os programas para as escolas rurais e ambulantes serão especiais, atentos à natureza dessas

escolas; o artigo 59, ao estabelecer que o ensino dos meninos estudantes de escola rural

(assim como urbana ou suburbana) deveriam ser regidos por professores ou professoras, mas

que o ensino de meninas nessas escolas seriam regidos por professoras; o artigo 101, ao

legislar que ao provimento de escolas rurais ou ambulantes deveria ser feito

“preferencialmente” por professores formados pela Escola Normal, diferentemente dos

professores para as escolas urbanas ou suburbanas em que era “obrigatória” tal formação; e

5 O texto da referida portaria encontra-se na íntegra como uma das notas de seu relatório. 6 As escolas ambulantes eram regidas por professores ou professoras. Cada professor tinha a seu cargo um circuito

escolar que abrangia três localidades, onde permanecia três meses e meio ao ano em cada uma. Essas escolas funcionavam em prédio designado pelo inspetor escolar. O período, assim como o circuito das escolas ambulantes era determinado pelo Secretário do Interior, sob proposta dos Conselhos ou dos inspetores locais, em dezembro de cada ano.

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finalmente o artigo 151 que tratava da remoção de professores de escolas urbanas para

escolas rurais.

Esse documento revela o descaso para com a educação rural por parte dos poderes

públicos do Paraná no período.

O Inspetor Escolar Interino Candido Natividade da Silva, em 1917 retratou a situação

das escolas rurais do estado:

Os prédios onde funccionam as escolas simples, principalmente fóra do quadro urbano, quasi na totalidade, não ofereccem as condições de hygiene necessarias, não comportando ou comportando mal o numero de alumnos frequentes, não obstante muito se esforçarem os professores em instalar suas escolas em prédios apropriados (PARANÁ, 1917, p. 243).

Além disso, segundo Wachowicz (1984), a maioria da população das escolas públicas

tinha dificuldade para frequentar as aulas devido ao seu estado de pobreza. Além da falta de

local para o ensino, faltavam lápis, cadernos e livros.

A autora revela ainda o antagonismo entre o trabalho do inspetor e do professor, sendo

esse último responsabilizado pelos problemas da escola.

É possível perceber-se em diversos relatórios do período a desvalorização e a precária

imagem do professor:

Temos professores sem competencia e sem vocação [...]. Temos professores, mesmo entre normalistas, dotados de alguma competencia, mas que, sem estimulos para progredir, vão machinalmente dando aulas diarias, sempre rotineiros, sem ter a minima noticia dos progressos pedagogicos e sem dar um passo no sentido de melhorar por si os processos do ensino. [...] fazendo tudo, tudo...menos dar aulas e ensinar, sendo premiados mensalmente com falsos atestados de cumprimento de dever, para o recebimento dos respectivos vencimentos. [...] Temos todos esses que estão longe de ser bons; mas, com satisfação o digo, temos tido tambem alguns (poucos infelizmente) optimos professores, que têm prestado serviços inestimaveis ao ensino publico (PARANÁ, 1914, p. 7).

A respeito da formação do professor para atuar no meio rural, Sebastião Paraná, diretor

do Ginásio Paranaense e da Escola Normal, em seu relatório relativo ao ano letivo de 1917

utilizou-se das palavras do pedagogo suíço Werhli, afirmando: “O professor de um municipio

rural, que não tem gosto pela vida campestre e que passa com indifferença ao lado de um

campo ou de um jardim, sem para ahi lançar um olhar indagador, é um mau professor”

(PARANÁ, 1917, p. 146).

Os relatórios do Inspetor Geral do Ensino, Prieto Martinez, demonstravam um zelo

pelo ensino rural no estado, como se pode perceber no seguinte trecho:

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Que é a escola rural? É aquella que ensina o filho do colono, a creança que mora na roça, que anda descalça e em geral maltrapilha, que logo aos 7 annos já leva o almoço ao pae, quando não capina ou puxa terra para os caules em crescimento; que monta a cavallo e toca os animaes do pasto para comerem o sal ou receberem cuidados. É aquela que recebe toda essa infancia, tão cedo amadurecida para o trabalho, logo nos verdes anos e que, portanto, tem de lhe ensinar, em curto espaço, a ler e a escrever como Deus é servido. Alem desses ensinamentos, as bôas obras e, si os tempos fossem melhores, a religião, o temor de Deus, o amor ao próximo, o perdão como o maximo expoente da caridade. Felizes aquelles sertanejos que puderem ter uma escola assim organizada (PARANÁ, 1921, p. 12).

O discurso de Martinez, envolto em preceitos religiosos e munido de valores, revelava

sua sensibilidade a essa modalidade de ensino. O inspetor acreditava que a riqueza do país

vinha do meio rural:

Praticamos um crime si cuidássemos tão somente das cidades e abandonassemos o sertão. É de lá que nos vem a vida que muita gente ignora como seja. É lá que está nossa riqueza sem a qual não existiria o ruído e a pompa das cidades. Em troca de tudo isso o sertanejo pede uma escola, de moveis toscos e de organização simples, para que o filho saiba ao menos ler (PARANÁ, 1921, p. 12).

No referido Relatório, Martinez também apontou o fato de conseguir que professores

normalistas aceitassem assumir cadeiras em povoados do interior, completamente

desprovidas. Ao mesmo tempo que julgava ser desvantajoso que o professor permanecesse

muitos anos no mesmo povoado, por se adaptar aos costumes locais e se deixar influenciar

pelas amizades.

Martinez ainda indicou a estatística do período afirmando que em 1921 funcionavam no

estado 459 escolas isoladas, com matrícula total de 22.975 alunos.

Em seu relatório de 1922, Martinez, entre outros aspectos, demonstrou preocupação

com a higiene e a frequência dos alunos nas escolas primárias, com o preparo dos professores

normalistas (anunciando a instalação de mais duas escolas normais no estado, uma em Ponta

Grossa e outra em Paranaguá, já que só havia uma escola normal na capital) e com a escola

rural.

A escola rural, em meio de nacionaes, deve ser escola bem apparelhada. Devemos começar pelo edificio: uma casa com todo o conforto para o professor e para o alumno. Para exercer esse encargo, um professor capaz de influir no animo dessa gente e de lhe prestar todas as informações uteis e indispensaveis, quer em relação á saúde, quer em relação á lavoura, quer ainda em relação ás leis do paiz. Apar de tudo isso, um material didactico bem escolhido e abundante e a execução de um programma inteligentemente delineado (PARANÁ, 1923, p. 25).

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Todavia, apesar de suas preocupações, a realidade vivenciada nas escolas rurais do

estado nesse período era diferente, conforme relato do Subinspetor do ensino, Antonio Carlos

Raymundo:

Quasi todas as escolas ruraes não satisfazem com plenitude os fins a que se destinam. Muitas funccionam em casas verdadeiramente improprias: anti-hygienicas e anti-pedagogicas; ressentem-se da falta de mobiliário e da falta do indispensavel material technico. O maior defeito das escolas, porém, está na insufficiente qualidade dos professores. [...] Ha, entretanto, honrosas excepções (PARANÁ, 1923, p. 37-38).

Nesse período Martinez contava com o apoio de dois subinspetores de ensino, os quais,

em meses de exercício, inspecionaram diferentes municípios do estado, oferecendo relatório

detalhado, anexado ao relatório do Inspetor Geral.

É possível verificar em tais relatos o número de escolas existentes em cada município, a

descrição minuciosa de cada escola ou sala de aula, as características do professor, os

resultados obtidos pelas arguições dos alunos, as documentações escolares, o número de

alunos matriculados, etc.

Em sua grande maioria, tais relatos revelam as condições físicas precárias das escolas

rurais e resultados de aprendizagem inexpressivos, aliados à má atuação dos professores.

Entretanto, há também raros relatos positivos, como os que seguem:

A casa em que funcciona a escola, apesar de escapar ás exigências pedagógicas, é pittoresca e alegre. Arvoredo de folhagem espessa [...]. O professor parece bom homem; seu preparo é deficiente, todavia alphabetiza. A professora trabalha com amor; é assidua no cumprimento do dever; estima suas alumnas e é por ellas estimada (PARANÁ, 1923, p. 41-42).

Considerações Finais

Ao longo desse texto, procurou-se pormenorizar algumas questões relacionadas à

educação rural no estado do Paraná nas primeiras décadas do século XX. Para tanto, foram

utilizadas fontes oficiais, considerando suas limitações por se tratarem da voz do estado. Isso

significa, nas palavras de Faria Filho (1998), que “boa parte dos nossos arquivos guardam (ou

não) e ‘são mandados guardar’ informações a partir da lógica e do interesse da administração

estatal” (FARIA FILHO, 1998, p. 95). Diante disso, vale ressaltar a importância de que se

utilizem fontes variadas a fim de compreender cada objeto de estudo histórico.

Contudo, tais documentos possibilitaram demonstrar as características prescritas para

a educação rural no estado, apresentando estatísticas, as regulamentações para essa

modalidade de ensino, assim como detalhes percebidos pelos inspetores de ensino.

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A legislação do período revela que a educação rural, desde que foi concebida no estado,

esteve atrelada a ideias segregadoras, privilegiando os interesses do meio urbano em

detrimento do meio rural.

As políticas públicas estaduais do período relegaram a educação no meio rural a planos

inferiores, por se verificar a insignificante atenção a essa modalidade de ensino na legislação

educacional.

As possíveis causas para tal descaso podem estar relacionadas ao contexto social e

econômico, tendo em vista que o estado do Paraná, no período considerado, era pobre, com

baixa densidade demográfica e diminuto desenvolvimento.

Os documentos, de um modo geral, apontaram a ação positiva dos imigrantes nas

questões educacionais para o meio rural paranaense e a consequente preocupação dos

poderes públicos na manutenção dos interesses nacionalistas.

Os relatórios, por sua vez, explicitaram a dificuldade vivenciada no meio rural do

Paraná nos assuntos relacionados à educação, sendo os professores responsabilizados pelo

malogro dos resultados obtidos.

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