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:...7 A Entr evista Sem san t o n em senha - POR JOAQUIM LEITAO O SR. CAPITÃO ANDRÉ A VE L INO D ' OLIVE I RA REIS Commandnnte do eequndrãll de Lanceiros, que-acompanhou El-Rei D. Manuel, do Paço de Belem, ás Necessidades, na noite de a outubro de HltO, findo o banquete do Presidente Eleito da Republica Brnzileira l'iflO SE l'lCCeITl'lM nSSlQNl'lTUHl'lS \ Ed i tor e pr oprie t a r lo : MAR /O ANTUNES LEI TÃO 1 <:ompo!'.to e• imr rc!'M na Typographla de A. J. da Silva Teixeira, Successor - Rua da Cacella Velha, 70 - PORTO. Todos oi:; diroiL0;.) de reproducçuo re,.;\}rvadot-i \

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A Entrevista Sem san t o n em senha

-POR JOAQUIM LEITAO

O SR. CAPITÃO ANDRÉ AVELINO D'OLIVEIRA REIS

Commandnnte do eequndrãll de Lanceiros, que-acompanhou El-Rei D. Manuel, do Paço de Belem, ás Necessidades,

na noite de a outubro de HltO, findo o banquete do Presidente Eleito da Republica Brnzileira

l~7iJ~~N:~r;~~J:;6o --:.ei;"~~~ l'iflO SE l'lCCeITl'lM nSSlQNl'lTUHl'lS

\ Editor e pr opriet ar lo : MAR / O ANTUNES LEI TÃO

1 <:ompo!'.to e• imrrc!'M na Typographla de A. J. da Silva Teixeira, Successor - Rua da Can·

cella Velha, 70 - PORTO. ~~~~~..._...,,.~~

Todos oi:; diroiL0;.) de reproducçuo re,.;\}rvadot-i \

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Nun1eros publicados:

Numero 1. - Entrcçista com JO.ÃO D'AZEVEDO COUTINIIO. Numero 2. - l~ntre,·ista com o notal>ilissi mo estadista hespanhol D. EU-

0 E'N[Q MONTERO RI OS. Numero 3. - Entrevista com o Sr. CONDE DE :MANGUALDE. Numero 4. - "Ji~ntre,·ista com o ::intigo Ministro do .Jlexico em Paris, D. l\II­

G eEL DI..\i LOMBAHDO. • Numero 5. - l~ntrcvü,ta com· o DR CUNIL\. E COS1'A. Numero 6. - 1~ntrevi8ta com FERREIRA DE :MIDSQUIT.A , ajudante do

Sr. Conrlc do :Ma11gua lde. Numero 7. - l~ntrevisb-t com o PADHE DOMfNGOS ·- O guerril heiro de

Cabccci ras de 11-tstos. Numero 8. - ~Jntr~vista cor~1 a Senhora 1Iarqucza de Hio-1\faior sobre a

SENHOHA D. JULTA DE BRITO E CUNHA. Numero 9. - l~ntrC'vi~ta com o Sr. Conselheiro JOS~ J)' 1\ZEVEDO CAS­

'l'EIJLO BRANCO. Numero 10. - l~ntrerista com o PADRE .AJIADEU DE VASCONCELLOS

(~L\ Hl Orlvl'E). Numero 11. - Entrorista com :JlAHIOTTE - As arcusar,ões do f'l'. João de

Frritas e os ultimos parlamentos rnonarchicos - Porque dc\'emo~ ser mo­narchicos - Exposir,ão da doutrina monarchica.

Numero 12. - EntrC\'Ísta com JOAQUDl OEIRAS -A c0bard ia dos gran­des e a roragem dos prquenos - O 26 de Janeiro e o Sr. Affouso Costa­llistoria tl'unia e\·asão do presidio d'Elvas.

A ENTREVISTA occupa-se exclusivamente de assumptos portuguezes.

T01)0S OS PEDIDOS D'A ENTREViSTA DEVEM SIDR DIRIGIDOS:

PORTO - Mario Antunes Leitão, R. Cance!la Velha, 70-1.º LISBOA - Agencia d' « f\ Entreuista \), Largo de S. Paulo, 7 -1.º EXTRANGEIRO - Joaquim Leitão, t~, Rue Faustin-Helie-Passy-PARIS.

li lustração Catholica

He,·ista l ittl"raria semanal de informação graphica, collaborada pelos principaes es­criptores portugu(lics. Reproduz em for­mosas e numerosas gravuras os factos mais importantes do paiz e do estrangeiro.

Ass(qnntttra annua/., 2 $ -100 - Semestre, 1$200 - Arul:w, GO reis

Pedidos ao proprietario Joaqu im Antonio Pereira Ville;a, R. :illartyres da Republica- Braga

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A ENTREVISTA Sem Santo nem Senha

POR

JOAQUIM LEITÃO

N.º 13 11-2-1914 1 • li + li + li • li + li + li + ti + 11 + ll + ll+ ll+ ll+ H + ll + li + li + li + I + 11 + 11 + 11 + 11 + li + lf + ti + li + 11 + ll + ll + U + ll + 11 + lt+ ll + ll+ ll + 11 + li + lt + 11 + I + 11 + 11 + 11 + 11 + 11 + 11 + li + O • ll + li + li + H + li + 11 + lt + ll + H + lf + I

COMMEMORANDO A

Retirada do sr. Bernardino Machado Carta d'um leitor -Novas perguntas-Res­posta a estas -A diplomacia republicana­Diversas encarnações do sr. Guerra Jun­queiro - Porque foi para Berne o sr. Jun­queiro ·- Uma interpretação de Miguel Una­muno -- O grupo dos "Vencidos da Vida,, - Differença entre Eça de Queiroz, Marquez de Soveral, Ramalho Ortigão, Anthero do Quental, O. Martins, e o sr. Junqueiro em­pregado da Republica-Como sahiu de Berne o Tolstoi portuguez -Peor crise que a vini­cola - Como foi para o Brazil o sr. Bernar­dino Macha do - Intervenção d'um senador brazileiro na política republicana portugueza - Bernardino 111achado e Camello Lampreia - Como lembrou ao sr. Affonso Costa elevar a embaixada a Legação da republica portu­gueza no Brazil - O plano do sr. Bernardino e seu fracasso--A política externa nas de­mocracias - Razão d'esta entrevista e da que se segue - Mais bocadinhos d'oiro para a historia d'este dispendioso interregno.

~

Esr.ripta nos faceis caracteres d' urna 1 com o carimbo de Lisboa, a seguinte Remington, recebi uma manhã d' estas, carta:

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202 A ENTREV !STA

«. . . sr. Joaquim Leitão.

« No numero 1.0 da Entrevista, conta V. que constantemente lhe f a:em de dentro e de f óra do paiz as seguintes perguntas:

- Porque fracassou a 1.ª incursão ? - Porque não ent rou Paiva Cou-

ceiro em Chaves? - O que diz você ao Homero? - Porque é que as al1as patentes do

exercito, o peixe g1·aúdo é prêso e logo solto d'ahi a dias, e os capitães, os tenentes, os pequenos são chamados a perguntas e fi cam prêsos definitiva­mente?

a. Contente-se commigo que mitita vez as faço cá aos meits botões e bastantes vezes as ouço dirigidas pm· ahi a mim. Mas agora andam na baila mais estas perguntas que eu peço licença pat·a en­dossar a V. :

- «Para que acceitou a Legação de Berne um poeta como o Gum·ra Jun­queiro?

- « Porque foi parm· ao Brazil o Bernardino 1

- « O que fez no Brazil o Bernar­dino .l

- « Porque saíu do Bt·azil o Bernar­dino ~2

« Não poderia V. deita1· alguma luz sobte estes quatro mystet ios ? Muito grato lhe ficaria o

De V. ex.ª a) Um Espectador da Gale1-ia ».

Apesar de tambem dever resposta a Tres Realistas Portugite:es que, do norte do Ilrazil, me fazem uma remessa importante e .sympto_matica, que m~­rece não cair em mgrato esqueci­mento, respondo hoje ao Espectadm· da Galeria, já que as suas linhas re­vestem actualidade, emquanto que o assumpto dos Tres Realistas nem perde a opportunidade, nem se acon­tenta com duas pennadas n'um pos-

tal. E' tarde, e mais depressa se res­ponde a um do que a tres.

A primeira pergunta do B:spectador da Galeria traduz um certo dó de lei­tor, ao vêr o seu poeta cravado de suellos na imprensa ministerial que do nome do bardo·funccionario faz n'este momento seu paliteiro. Comprehendo o seu dó. Eu tambem o senti. Mas não agora. Senti-o em 19l ü, depois de pro­clamado o regimr n, quando dei com o sr . Guerra Junq ueiro ar rastando as suas barbas tols toianas e a sua lyra pelas pedras mendicantes da Arcada, como qualquer bacharel obscuro que, ao acabar a format ura , reconhece a sua impotencia para ganhar a vida.

Era um fim de tarde. Vinha eu n'um carro electrico, da Praça de Camões para a Avenida, quando ao dobrar a esquina da rna elo Ouro, vi o poeta Guerra Junqueiro. cozido com as paredes, guarda-chuva de­baixo do braço, sair do Ministerio do Interior. Eu encontrára esse homem sob varias transfigurações ; malbara­tando o tempo e o talento em bobi­ces arranjadas e engommadas em casa, sobre o caso do dia , para as proferir depois cá na rua coi:t1o se jorrassem d'um abundante e 1mpro­visto espírito sarcaslico; prégando o desinteresse e o sacri ficio métrico na Praça Nova do Porto; encontrei-o dys· peptico em 1895, a prometter o Pro­methéo; encontrei·o mais tarde tols· toiano, affirmando praticar para as duras humildades de franciscano; encontrei·o com christos, debaixo do braço, e embrulhados em lençoes a ofTerecer á venda, pelas casas, en._ contrei·o com garrafinhas de amostras de vinho da sua lavra, embrulhadas em pedaços de jornal, encostado pela pela Praça In fante D. Henrique. como qualquer corrector de aguardente ou vinhos generosos ; encontrei-o inspi­rado, encontrei-o a apostrophar, a recitar , a invejar, a declamar, a pas-

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A ENTREVISTA 203

sear a sua cabelleira e a sua gloria, mas nunca o encontrára a pedinchar, na Arcada, de chapeu na mão, pelos hnmbraes dos mini::;terios.

Esse homem que toda a minha ge· ração ouvira flagellar o funccionalismo e a dependencia, esse homem que andava pelas esquinas a pedir-nos desculpa de SfW agricultm· e co1·rect01· das 9 ás 3 e só ser santo das 3 ás 9, esse homem que se dizia aprendiz de S. F rancisco d' Assis, esse homem que já não era croança e que podia con­t inuar a viver sem se agachar á têta do Estado, esse homem que multipli­cára a sua for tuna com o briú-á-brac e amealhára um par ele moedas com a sua obra, que o seu talento de mercador tão bem sabia collocar, não lhe faltando seqner com frui;s de annunciada e irrealisada apprehensão, como quando da pnblicação de A Pa­fria; esse que era todo intellectualis· mo, e se dava em amostra de des­carnamen to d'um espírito, esse ho­mem que desprezava os desgraçados que a miseria enforcava nas fitas dos alvarás-nomeadores, esse homem ali, a rebaixar o seu talento, a manchar a sua gloria de poeta - indisciplinado e maléfico mas hoje o maior Llos poetas da península e um dos maiores da Europa - , esse homem, feito preten­dente, a engraxar as botas do Antonio Zé, a achar intelligeneia ao seu supe­rior Afl'onso Costa, a saccudi r as poeiras da sobrecasaca do Bernar-

, dino, do Bernardino que elle tanto crivárn de mordacidade alacre, que elle tanto desprezára do alto da sua torre de marfim.

Ponham na s ua imaginação Victor Hugo amanuense, Tols toi, de sobre­casaca, a entregar ajoelhado um me­morialsinho, Ueaudelaire a venerar o sr. coronel Barreto - , e não excede­rão a evocação real do sr. J unq ueirn a arrastar o seu manto de bardo pe­los escarros da arcada.

Olhei-o com um pungente senti­mento. Não consegui arranjar despre­so : foi peor, foi lástima, foi dó, foi pêna o que senti. Não sorri, não es­carneci: condoí-me. Ao passar o ele­ctrico na curva, elle olhou. Eu ia so­sinho no car ro. Deu com os olhos em mim, e leu decerto a piedade que a sua degradação me inspirára, porque no seu olhar não havia a superiori­dade passada, nem o contentamento do idealista sincero qne se revê no triumpho elo seu êrro: aquelle olhar tinha apenas a confissão do proprio vexame. Eu vinha da redacção do « Correio da 1\1anhã », onde conti­nuava o meu destino de independen­cia moral e intellectual, elle afoci­nhava como um pôrco á procura de restos e de cascas ; eu continuava simplesmente e alegremente a senda dos sacriílcios. de olhar levantado e alma afoita; elle corria, como os poe· tas antigos, para a portaria. á sopa esmolér; eu era um homem livre, elle era um escravo.

Foi um momento, um relampago. Kunca mais me esquece esse espe­ctaculo pungente e triste.

Guerra Junqueiro filou-me com a vexada confissão da sua miseria no olhar, baixou-o confundido, trocou o andar, cozeu-se mais com as paredes, n'um ar encolhido de mendigo que encontra alguem que o conhecêra ou­tr'ora na posse de uma dignidade e de uma roupa sem buracos, e o cr electrico » arrebatou-me felizmente áquelle espectaculo d'entre todos o mais horroroso : um velho insultan­do-se e desprezando-se a si proprio, um cerebro a que mal resta clareza para vêr quanto desceu - aguia que caiu dos cimos altaneiros e arrasta a pomposa plumagem das azas orgu­lhosas pela patinhice d'um lamei ro.

En vim para deante, elle ficou para traz, de chapeu na mão ...

Lamentei ou.tr'ora muita vez a de-•

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204 A ENTREVISTA

cadencia d'esse poeta, acabando n'um bôbo de boteqnim ; confrangi-me muita vez, de o vêr empurrar a con­versa para a deixa artificial que lhe permittisse applicar a phrase, trazida de casa, e que já se ouvira n'outro grnpo; nunca o admirei mas respei­tei-o encostado ás paredes d1 Praça Infante D. Henrique, com as amos­trinhas de vinho apertadas contra o peito ou a sairem-lhe dos alforges do casacão; mas nunca mo senti com­pungido como n'essa tarde em que o surprehendi a coçai' a barba prophe­tica pela piolhice ela Arcada.

Que distancia d'essa tarde ás horas de pompa intellectual, ús horas pa­trioticas do J!'inis Patrix, encarnado­ras do sentimento e da vibração de u m povo, ás horns de lyrismo dos Simples, das velladas mysticas dns Orações! Que distancia e que differen­ça entre a agonia d'esse cerebrn e o acabar dos sobreviventes dos Venci­dos da Vida !

O Marquez de Soveral, repellindo a sua funcção de ministro em Londres, mal se proclama a Repuhlica, sem uma hesitação nem uma duvida no caminho a seguir!

Ramalho Ortigão, mandando entre­gar as chaves ela Bibliotheca da Ajuda ao sr. TeophHo Braga e a farda de se­cretario da Academia Heal ao sr. Lo­pes de Mendonça, assim que vinga a outubrada, e recomeçando honrada· mente a sua actlvidacle de escriptor, aos setenta e tantos annos, dando assim um exemplo á mocidade e urna di{:rnificação ao caracter portuguez !

Guerra Junqueiro, o poeta-anathe­ma, o bardo nacional, o portador da lyra de um povo e d'unw. raça, ali, de casquête na mão, a esmolar !

Se Eça de Queiroz vivesse ! elle, que, quando da tentativa republicana de 91, antes de se saber em Paris, como acabaria esse dia 31 de Janeiro, declarava:

- ci: Se chegar algum telegramma dando a victo1ia aos republicanos, nem mais uma hora quero ser consul de Portugnl. Vou para o Brazil, vou trahulhar, mas com a republica? vou­me logo embora ! ... »

Com que desinteressado desprezo elle deixaria cair o monóculo, se dés­se com o antigo companheiro do ce­lehrc grupo dos Vencidos da Vida, assim desfigurado n'aquelle preten­dente l

Com que mordacidade justa Carlos Valhom chumbaria áquellas pedras da Arcada o Vencido da Vida desen­caminhado do respeito que devia ao seu proprio valor !

Com que repulsão receheria a noti­cia cl'aqnella decadencia o grande An­thero ! com que ironia amarga não veria aquelle declínio, e que estupen­do retrato psycologico, para pendu­rnr ao lado do infante D. Miguel e de Pedro, o Crú, não traçaria d'esse po­bre homem Oliveira Martins, re.lem­brnndo o poeta que se phot0graphára a seu lado, annos antes!

Qn:rnto ao Mar::iuez de Soveral en­colheria apenas os hombros, e Rama­lho Ortigão repetiria :

- <<E' um porcalhão ! » Por mim tive esse minuto de pnn­

giclo dó pelo que fôra nm poeta e desde ahi ficou-me o absoluto des­prendimento pelos infalliveis trambo­lhões e pontapés que viesse a apa­nhar, - dos carbonarios ou dos guar .. das civis encarregados de impedir a mendicidade, aos indivíduos que não ostentem a chapa da indigencia ma­t riculada- , essa sombra cl'u rn poeta que se chamára Guerra Junquei ro.

Soube-o depois a regatear a sua gloria que elle offerecêrn ao Bernar­dino, rninistrn dos extrangeiros do Provisorio :

- ci: Tres contos de reis para ser minis tro em Berne? Menos de seis, nunca, Bernardino ! Seis, e olha que

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A ENTREVISTA ~ . 205

é de graça, u m poeta em bronze 1 E' authenticamente antigo, a ti não te engano que és amigo 1

-- « Tres é q uanto tinha o Alberto d'Oliveira l .. . »

Em principio accei tou . Foi a noticia para os jornaes. Mas o sr. Gnerra J un­q ueiro não partia. Promelteram-lhe mais dinheiro, quatro contos de reis : saiu nas gaze tas a noticia de que breve marcha ria a assumir o seu posto ele ministro em Berne o sr. Guerra Junqueiro.

Ainda não partiu. Quer ia mais di­nheiro . .Regateava, d o hRbito de ven­der santos, pela sua longa vida de adélo.

Deram-lhe mais meio conto, e man­daram a corre r a noticia para as fô­lhas, a ver se cl'essa feita o empur­ravam para Berne. Passaram-se dias. E o sr. Guerra Junqueiro não foi: continuava pela Arcada, de chapeu na mão, como mendigo que não retira á b uraca sem ajuntar a féria . ..

Deram-lhe cinco contos, e d eram nova noticia da proxima partida çlo poeta par a Berne. O poeta arrecadou os cinco contos, e ficou-se a tiritar de avareza á hombreirn do "linisterio dos gxtrangeiros :

- « Duzentos mil cincorcisinhos, pelas s uas alminhas ! . .. »

Um dia foi para Berne, su bstituir o sr. Alberto <.l'Oliveira, a quem elle d'antes chamava :

-- « Aquelle egoísta recloncliQJ.-10 de Ilerne ! »

Emfim, lá foi par a Be1 ne, arredon­dar tambem a sua esguia e csqualida figura ele môcho israeli ta.

Miguel de Unam uno q uanclo sonhe, explicou assim o caso :

- «Guerra? preferiu Ilerne porque não gasta nada em representação e pôde andar sujo e rôto a vender por lá o seu vinho ! .. . »

E lá se foi o tolstoi nacional que entre garrafas de Champagne decla-

mava uma vez no Central, em Lisboa, uhi por 1899 :

- « Ah 1 eu na minha casa da Barca d'Alva é que me cilicio. Não attingi ainda a perfeição. Tambem Tols toi foi accusado por u ma creada d e se levan­ta r de noite e ir ás escondidas comer carne. i\1as eu peço aos meus : quando eu fôr a cair, amparem-me. E' muito difficil ser santo! » -, e deitava abai­xo otil?'a taça de « Champagne ».

Aqui tem o «Espectador da Galeria » respondido a t raços largos a sua per­gunta : pat·a que foi para Be1·ne um poeta como Guerra Junqueiro.

Foi pa ra Berne como iria para um mercado de Damasco ou de Tanger , se em vez de sair poe ta e vinhateiro, sae simples vendedor de tá maras.

O « Espectadm· da Galeria» admi­ra-se e condóe-se porque não sabe que o s r . Guerra Junqueiro é ne to de almocreve, tem raça de mercador. Admira-se porque ig nora que por baixo do seu nimbo de poeta , elle usa o turbante do mercador judeu. Vendeu santos, vendeu contadores, vendeu pra tos ga teados, vendeu ima­gens <le Chris to, nào é muito que vendesse o seu nome, a s ua gloria , a s ua lyra, eHe que venderia o pro­µrio Ch risto, se o descobrisse n'algu­ma casa de J er usalem onde não sou­bessem o valor do Redemptor.

E sobre o miserando caso d'essa dccadencia intellectual e d 'essa fal­lencia moral, basta ! Nem mesmo vale mais espaço a liquidação d'um poeta n'um funccionario que anda agora aos pontapés por esse rnundo ...

O runccionario foi intimado a d e­mittir-se, a bem da moral adminis­trativa , escorraçado por faltar á re­partição? Nàc faltará quem tenha pena d'elle e lhe arranje outro em­prego. Crcar-lhe-hão, se fôr preciso, um logar novo, por exemplo : Alto Comrnissa·rio d~ Republica, junto da Fefra da Lad1·a .

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206 A ENTREVISTA

Para um negociante de bric-árbrac ficava a matar, com quatorze contos de reis por anno, e as viagens no electrico pagas pelo Estado. Mas ou essa ou outra situação, qualquer coisa lhe hào·de arranjar. Entretanto, venderá santos, bentinhos, agua do Jordão em infuzas de Extremoz, au­thenticos pedacinhos do San lo Le­nho, e o terceiro ou quarto Orava da Mad1·e Paula.

O funccionario está amparado, não morre á fome, qualquer chefe ou cabo político lhe dará uma esmola ou o conduzirá ao Asylo da Mendici­dade .

O poeta Guerra Junqueiro, esse morreu, e não res8usci ta. Morreu doido, no dia 5 de outubro, com um delirio de cigano, preci!Jitando-se para os cofres publicos, mettendo os de­dos nos dobrões, deixando cair de alto o oiro, e cantando ao som dos Sinos de Corneville : tic, tic, tic; tic, tic, tão, toca, toca, toca, toca o carri­lhão!, desvairado, querendo beber o metal, escondei-o no peito, babado de avareza e de cubiça, suando allu-. - ' c10açao ....

Guerra Junqueiro acabou , como um quadro de mestre, n'um leilão da Liquidadora.

Foi uma crise de juizo, que sup­plantou, n'esse ramo d'um tronco de doidos, a sua crise vinícola e a sua crise espiritual.

Cubram-o com a bandeira verde e encarnada ou com a linhagem das morgues.

Mette horror! Fallemos de coisas alegres : o Ber­

nardino. Como foi parar ao Brazil ? Era natural que fôsse parar ao Bra­

zil: era a sua terra natal. Na saudação ao Imperador do Bra­

zil, pelos estudantes brazileiros, então na Universidade de Coimbra, quando o bondoso e grande Pedro II visi·

tou Portugal, Já se lê a assignatura do esperançoso Bernardino. Mas eu sei, elle não voltou ao Brazil, levado pela nostalgia : não era uma sau­dade que ia beijar a patria, era um renegado que ia representar no seu proprio paiz natal um paiz estra­nho.

Certamente, o « Espectador da Ga­leria» não é d'isso que se admira. O que o intligou foi esse ambicioso ter abandonado assim, á boa mente, Por­tugal e a prêsa poli tica ao sr. Affonso Costa.

Eu explico-lhe. O sr. Antonio Luiz Gomes, ex-ne­

gochnte de couros, n'uma casa de atacado do Rio Grande do Sul, teve mais difílculdade em continuar a gerir a pasta deixada pelo conde de Selir, do que em continuar a gerencia da casa de couros do tio-do-Brazil.

Estava a Republica Portugueza em difficuldades para preencher a Lega­ção do Braiil, quando passou em Lis· boa o senador brazileiro sr. Aze1êdo, um dos potentados da actual política brazileira, e ouviu os republicanos portuguezes exclamar, afflictos:

- « O que nos convinha era o Lam­preia. Só o Lampreia podia salvar a situação 1 »

- « Pois isso arranja·se ! - affirmou o illustre senador Azerôdo -- O Lam­preia faz o que eu quizer. Vae para lá o Bernardino e logo que eu che­gue ao Brazil, faço com que o Lam­preia accei te a Legação».

O sr. Bernardino Machado chora­va.se:

- a: Então eu hei· de deixar Lisboa? Agora?! . . . Esquecer? 1 ••• Perder a minha influencia ? 1 ••• »

- « São seis mezes, garanto-lhe que são só seis mezes, Bernardino 1 > - dizia, a tranquillisal-o, o sr. senador A.zerêdo .

E o sr. Bernardino Machado partiu muito convencido de que era ida pela

..

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A ENTREVISTA 207

volta, que estava lá uns mezes e que apenas chegasse encontraria o sr. Camello Lampreia, prompto a tomar­lhe conta da empada da legação.

Entretanto, o pessoal da legação do Rio de Janeiro, ofílciava ao sr. conselheiro Camello Lampreia, minis­tro em disponibilidade, convidando-o a passar pela legação dentro de certo prazo. O officio parecia feito por um d'esses diplomatas-amadores de que a republica lançou mão. Documento emmanado d'uma legação, assignado por qualquer entidade diplomatica e dirigido a um diplomata, o dito papel pelos seus te rmos tinha geito de ser fructo de marçano na carreira : nem a qualidade do officiante, nem a qua­lidade da pessoa a quem se officiava, nem sequer o nome d'elle direito, nem t ão pouco o fim da chamada. O sr. Camello Lampreia nem respondeu. Para o fim já se contentavam que o sr. Lampreia fôsse á legação deixar um cartão de visita. O sr. Camello Lampreia que na verdade, não faz grande uso de cartões de visita, tal­vez por a lylographia no Brazil ser cara, não foi á legação deixar o seu cartão.

Chegou o sr. Bernardino Machado, chegou o sr. senador Azerêdo, e o sr. Conselheiro Camello Lampreia nem foi a nem para a legação.

Pelos modos o sr. senador Azerêdo é um grande amigo do sr. Conselheiro Camello Lampreia, mas os nossos amigos são os primeiros a quem com­pete não forçar o homem a commet­ter actos que lhe fiquem mal. E o illustre e poderoso senador Azerêdo não insistiu no seu pedido ao sr. Con­selheiro Camello Lampreia, desde que soube que o seu amigo tinha já accei­tado outra represen tacão que melhor quadrava á sua lealdade, á sua grati­dão e á sua coherencia, representa­ção que s . ex.ª exerceu até ha pouco que deixou de residir no Brazil.

O sr. Bernardino Machado, porém, não desanimava: cortejava o sr. Ca­mello Lampreia, cumprimentava-o onde o encontrava, docemente, te­nazmente. No comboyo que condu­zia o elemento official aos funeraes d'um vulto brazileiro, o sr. Conse­lheiro Camello Lampreia cumprimen­tou todos os homens publicos e o corpo diplomatico, com uma unica excepção: o sr. Bernardino Machado. Pois nem depois d'essa desconsidera­ção, o ministro da Republica deixou de cortejar o antigo ministro de S. M. Fidelissima.

Para o sr. Bernardino Machado, o sr. Camello Lampreia não era uma relação, era a abolição d'aquella es­crava tura. O sr. Conselheiro Lampreia não parecia impressionado por aquelle caso a pedir 13 de maio. Passaram­se 6 mezes. A' vergonha do fracasso que foi a viagem do sr. Bernardino á terra natal juntava-se a protelação do sacrificio. O sr. Bernardino Machado ao partir para o Brazil desenrolou o seu plano : carreira de navegação na­cional, tratados de commercio, um tunel sub-atlantico de Lisboa á Ca­pital Federal, canaes que levariam a bahia de Guanabára ao Chiado, um programma tão vasto e tão ousado, tão sabidamente impossível de se exigir em seis mezes, que quando s. ex. regressasse á politiquice sórna dos centros regicidas de Lisboa, a imprensa e a familoria podiam dizer :

- « Que pena 1 se o grande Bernar­dino tem continuado ministro da Re­publica no Brazil, que grandiosa éra veriamos incorporar-se nas relações entre dois povos irmãos 1. . . Que pêna elle ter retirado antes de lhe darem tempo a realisar a sua obra! ... >

E o republicano vermelhaço e gra­ni tico protestaria :

- «Mas é isto, é isto 1 Eu bem grito: fóra com os thalassas l A Republica

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208 A ENTREVISTA

não se fez para os thalassas, fez-se para nos anichar a nós, ás nossas companheiras e aos nossos filhos! Não senhor, o governo tirou a lega­ção ao Bernardino para dar ao Lam­preia, sua alma sua palma ! Agora ahi Leem, aguentem-se 1 ))

Permanecer no Brazil era desco­brir a calva charlatanice d'esse plano diplomatico.

O sr. Bernardino quiz regressar . Foi então que o sr. Affonso Costa o segurou pela aba da vaidade , com es­te telegramma :

« A Republica tenciona elevar a em­baixada essa Legação, e deseja que V. Ex .ª ahi esteja quando esse aconteci­mento se dei·. ))

O sr. Bernardino Machado ficou á espera de ser embaixador. O sr. Af­fonso Costa teve- o assim arrumado para lá uns tempos, dizendo muito sa tisfeito :

- «Deixai-o estar, deixai-o es tar! Elle a mim não me incommoda, mas e8cusa de vir para ahi embrulhar tu­do com as suas amabilidades. As gaf­fes feitas no llrazil, quando cá che­gam, a este cambio, não valem nada 1))

Não foi tanto assim . O cambio bra­zileiro não está tão mau como ao sr. Affonso Costa queria parecer. As gaf'­fes do s r. Bernardino Machado, som­madas com as que o proprio sr. Af­fonso Costa praticou em Lisboa, para com o Brazil , não são agradaveis pa­ra nenhum portuguez que estíme Portugal, que ei::;time o Brazil, e que comprehenda o valor que teem as boas relações com a chancellaria flu­minense.

As actuaes relações de Portugal com a sua antiga colonia são infeliz­mente de molde a provar esta grande verdade affirmada pela dou trina mo­narchica : nas republicas não póde ha­ver politica extm·na.

A dolorosa verificação d'este facto,

nas nossas relações com o BrazH, obriga-nos a commemorar, com jubi· lo, a retirada do s r. Bernardino Ma­chado, do Rio de Janeiro.

O sr . Bernardino Machado, 0omo todos os homens f ondants, é perni­cioso : está sendo pernicioso para Portugal, e é-o para a Republica desde o dia 5 de outubro. N'esse mesmo dia ,.começou eJle, elle! junto do Marechal Hermes da Fonseca, a bordo do S . PaHlo, a sua infini ta enfiada de gaffes.

E' a razão d'es ta entrevista, que de­corre desde a manhã da festa off ere­cida a El-Rei D. Manoel, a bordo do cruzador brazileiro, até á sabida do S. Pai,zo, revelando o que se passou e m volta do P resi<.lente Eleito da Re­publica Drazileira, e descrevendo a inconveniente visita do Governo Pro­visorio, governo revolucionario, não reconhecido, a um vaso de guerra extrangeiro onde estava o Chefe de Estado d'uma nação, que só conhe­cia e reconhecia áquella data a Mo­narchia Portugueza. Como comple­mento logico d'e~ta entrevista, que é um dos capitulas mais palpitante , e de todo inedito da outubrada, dare­mos no numero seguin te , n'outra entrevista, com um diplomata portu­guez, a descripçào da retirada do Rio de Janeiro, do Conde de Selir , então ministro de Portugal junto da Repu­publica do Brazil, e a retirada do sr. Bernardino Machado.

Recapitularemos, então, o estado em que a Monarchia deixou as suas relações com o Brazil e o estado em que a Republica as pôz, e ajuntare­mos assim mais um argumento ás provas classicas d' esta these : nas i·e­publicas não pode have1· política exter­na.

Se o mal fosse só de pessoal, bem estava.

O pPor é que as relações de Por­tugal com o Brazil não melhorarão

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A ENTREVISTA 209

pela simples substituição do sr. Ber­nardino Machado, o rei dos gaffeu'rs, como a si Luação nacional não se re­medeia pelo simples facto de manda­rem render o sr. Aflon~o Costa.

O mal é mais profundo. O mal é maior do que esses ho­

mens.

O mal é de origem. O mal é do regimem. O mal é a democracia, é a re­

publica dentro da qual , nem para Portugal nem para paiz algum, pro­va-o a historiat é possivcl continui­dade IJacional ou respeito internacio­nal.

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A REPUBLICA PORTUGUEZA

E A REPUBLICA BRAZILEIRA

1

ENTREVISTA com o capitão-tenente da armada brazileira,

SR. AMERICO PIMENTEL,

ajudante de ordens do sr. Marechal Hermes da Fonseca, na visita do Presiden te E le ito, da Republica Brazileira,

a Lisboa, em outubro de 1910.

Como se nos proporcionou esta entrevista - O descendente d'um heroe da guerra do Paraguay, companheiro d'armas de Deodoro da Fonseca e Hermes da Fonseca - A entrada do « S. Paulo » no Tejo - A « matinée » no cruzador < S. Paulo > - O banquete de Belem - O sr. Batalha de Freitas - Impressão deixada por S. M. El-Rei D. Manoel - Depois do banquete - Um passeio na noite de 3 de outubro - lntran­quillidade e • . • zelo do sr. Batalha de Freitas - O Marechal Hermes da Fonseca resolve Ir para bordo do « S. Paulo :) -O que se passára a bordo do « S. Paulo » n'essa madrugada - Historia da celebre salva do a: S. Paulo » ã bandeira re­publicana - O ministro do Brazil em Lisboa - o Marechal Hermes da Fonseca encarrega d'uma delicada missão diplo­matica, o sr. Batalha de Freitas, que não é cumprida fiel­mente - A noite de 4 de outubro a bordo do cruzador < S. Pau lo l> - Visita d'um official revolucionar ia - O assalto ao < D. Carlos » - O 5 de outubro - Angustias do sr. Batalha de Freitas - Em menos de duas horas deixa de representar a Monarchia junto do Presidente Eleito e passa a represen­tar junto do 1llustre hospede hrazileiro o Governo Proviso­rio - Visita do Governo f' rovisorio ao cruzador « S. Paulo> - O que responde o Marechal Hermes ao sr. Batalha de Freitas e o que faz este homem - As reservas do Presi­dente Eleito - A primeira o: gaffe » do sr. Bernardino Ma­chado, como ministro dos extrangeiros da Republica - Como

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212 A ENTREVISTA

foi recebido a bordo do « S. Paulo:& um grupo de individuos que disseram compor o Governo Provisorio - O que lhes disse o sr. Marechal Hermes da Fonseca - O presidente do Brazil, e o sr. Batalha de Freitas - Fim da carreira do commandante do « S. Paulo l> : o castigo d' uma inadvertencia - O « S. Paulo l> deixa o Tejo antes de entrar o barco da marinha de guerra brazileira que devia rendei-o.

N'aquelle inquerito ao 5 de outu­bro, que intitulei Diario dos Vencidos, recolhi depoimentos de vmios ele­mentos: ot"ficiaes da guarnição, com­mandan tes e officiaes da marinha elos navios ancorados no quadro, ajudan­tes cl'ordens de Sua Magestadc El-Rei , palatinas, testemunhas <los episodios <.lo Quartel General e da inacção do Ar· senal, etc., etc. Urna pagina ficou e fi­caria por documentar e esclarecer, se um perfeito e grato acaso não trou­xesse aonde a mim a mais fidedigna e idonea das testemunhas: todo o papel representado pelo cruzador S . Paulo, da armada brazileira , que a Lisboa conduziu o Presidente Eleito, rilarechal Hermes da Fonseca. Nem sequer me passou júmais pela mente poder "ir a documental-a. Dobados q ua::;i tres annos depois dos aconteci­mentvs, eis que, sem eu dar um pus::;o para isso, me vem ter ás mãos o precioso depoimento.

Foi o verão passado, aqui em Paris, n'csto mesmo hotel onde hoje estou a passar ao papel esta pagina inedita do Diario dos Vencidos, que se me deparou esta entrevista. A uma meza contigua á minha sentou-se certa ma­nhã uma familia composta de marido, mulher, e filhos. Avêsso a conheci­mentos de hoteis e de caminhos de ferro, e indo já para essa desencan­tada hora da experiencia em que não appetece fazee novas relações, os primeiros dias nem cumprimen­tava os meus visinhos d' almoço e jan­tar.

A' f9rça de nos vermos, abaixámos

a cabe~a, e as creanças, esse admira­vel traço de união, provocaram a troca das primeiras palavras. Ao le· vantar-nos da meza declinámos os nomes: elle era o sr. Americo Pimen­tel, official da marinha brazilcira, na commissão naval de Newcastle, onde o llrazil tinha a construir o dreadnou­ght Hio de Janeiro. Assim que teve a confirmação de que eu era portu­guez, follou-me de Lisboa, contando que tinha da nossa capital recorda­ções historicas: acompanhára o ~are­chal Hermes da Fonseca, como aju­dante de ordens, na visita do Presi­dente a Portugal.

O episodio ligou-nos, n'esses dias de ferias que o distincto ofílcial pas­sou em Paris, e o valor intellectual e a serieclade do capitão-tenente A.me­rico Pimentel fizeram com que eu conte mais um amigo no BrazH, e este official da armada brazileira mais um amigo entre os portuguezes.

Homem habi tuado a responi::ahilida· eles ofílciaes, já de si calmo, a espe­cialidaclc de artilheiro naval, a longa e repetida residencia nas civilisações britannicas, acabam de o tornar meti­culoso e reflectido, e por fazer cl'este exuberante braziteiro descendente de portuguezes, uma serenidade inimiga de enthusiasmo de exaggeros. Com pouco mais de trinta annos, dispõe d<?. tanta ponderação como simplici­dade.

Não podia deparar.se-me mais va­lioso documentador qne, como se vê, estava escripto que havia de depôr no Dim·io dos Vencidos.

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A ENTREVISTA 213

Velha amisade cimentada no campo da batalha.

- Meu Pae, - conta o capitão te­nente Americo Pimentel - , foi com­panheiro d'armas, <.lo Marechal Deo­doro da Fonseca e do Marechal Her­mes da Fonseca. Alistado como volun­tario, o «Velho J> bateu-se na guerra do Paraguay, d'oncle data a amisacle com a familia Deodoro e a familia Her­mes. Meu Pae, que praticou actos de coragem, durante a campanha, deixou depois o oxerci lo, vivendo hoje para os seus traba lhos do historiador, mas nunca deixoo c~quccer a amisade de Deodoro e elo Marechal Hermes da Fonseca, que nu guerra do Paraguay era um simples e bravo capitão, de cuja modcstia e alheamento da poli­tica não per mi li in.m prever o destaque que havia ele vir a ter na hh;toria do Brazil. Isso abona a amisade da nossa familia â familia Fonseca, a que agora não fal l (l.m inopinados amigos. A es­sas velhas relações de meu Pae, ci­mentadas no campo da batalha, devi a honra de ser escolhido pelo ~fare­chal, para seu ajud:rn te de ordens, na sua viagem a Lisboa. Mal diria eu que ia assistir á queda d'aquelle tronco da secular monarchia portu­gueza 1 .. . E como aquillo caiu, senho­res? J • • •

Esperariam os republica­nos por tuguezes a chegada do « S. Paulo » ao Tejo para fazerem a revolução?

- Diga-me uma coisa , capitão-te­nente ! Os republicanos portuguezes contariam com a presença do cruza­dor « S. Panlo t> como uma carla para a partida?

- Combinação, escuso de dizer-lhe que não havia. Lá que os revolucio­narias se lembrassem de que, se fos­sem vencidos, teriam o « S. Paulo >>

para se acolherem, era natural, não é? E o « S. Paulo» decerto os receberia, no que não faria mais do que agrade­cer e retribuir o acto tão louvavel e bonito do velho Castilho, com 08 re­voltosos do Custotlio José de ~lello, não é?

- Mas eu não digo que o 13razil ou mesmo o Marechal estivessem na com­binação, mas emílm a sympathia de qualquer elemento de guarnição do « S. Paulo » . . .

- Isso, si m ! Para todos nós foi um aborrecimento prcsencearmos aquelle espectaculo. E para o Marechal lhe assegnro que foi de arrelia 1 Nós es­tavamas passados 1 Quando entramos o Tejo, o senhor se deve lembrar, que foram esperar-nos fóra da barra, uns vapores e lanchas com muita gente. N'um dado momento de bordo d'uns vapores, aquelle povo tirou do bolso umas bandeiras verdes e en­carnadas, piquininas, e entrou a acce­nar com ellas. Eu perguntei a um se­nhor que estava ali , ao major Vaz, o que queriam dizer aquellas bandeiras encarnadas, e elle me respondeu : « Aquillo são uns malucos que teem idéas republicanas, mas qtialquer dia levam uma to:a I >) Não dei import.m­cia, e não passou-me pela imaginação que viesse a ver cm Portugal arvora­das aquellas bandeiras que aquelle «pessoal » tirára do bolso e tornára a esconder.

A « matlnée » no cruzador « S. Paulo ».

- O que foi afinal a salva dada pelo cruzador « S. Paulo l> , á bandeira revoltosa içada no Adamastor e no S. Raphael, na manhã de 4 de ou­tubro.

- Um mero engano. Eu lhe conto. No dia 3 houve, como deve de lem­brar-se, uma matinée em honra de Sua Magestade o Senhor D. Manuel.

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A ENTREVISTA

O « S. Paulo» devia metter carvão. O commandante pensou em metter carvão até ao meio clia, e do meio dia ás 2 horas fazer a limpeza do navio. O serviço fazia-se, mas era muito violento para a guarnição. Então, o Marechal, ouvindo fallar no caso, pe­diu ao commanclante elo « S. Paulo» que suspendesse a carga do carvão mais cedo, para não estafar a guar­nição. Nas condições em que o Ma­rechal estava a bordo, um pedido d'elle ao commandante era recebido como uma ordem, não é ? O com­mandante respondeu: « Pois não, Marechal, vou j á dar essa ordem 1 » Mas ficou mal disposto. A matinée correu muito bem, e ao fim da tarde é que ouvi dizer que tinha morrido o dr. Bombarda, e que andavam dando vaias aos padres, pela cidade ! Ni n­gu em ligava, porém, importancia á noticia. Depois da matin,ée no « S. Paulo», sahimos na vedêta a toda a pressa para atracar ao caes D. Fer­nando e irmos p!:tra o Paço de Be­lem, vestir-nos a toda a pressa para o banquete. Estava-me a vestir quando chegou um camarada, que vinha communicar ao Marechal que o commandante não ia ao banquete. Que estava indisposto, não podia ir.

No banquete de Belem-0 sr. Batalha de Freitas ligando pouca importan­cia aos revolucionarios.

- Que impressões tem d' esse ban­quete?

- Uma, a dominante, de assom­bro.

- Qual? -A da serenidade do seu Rei. A

certa altura, um escudeiro apresen­tou um despacho ao Monarcha. <Aqui 'l • - disse O. Manuel. - « E' urgente, Mages tade I :i> - respondeu o creado. O Rei abriu, leu, e nas cos-

tas do menu escreveu : Faça apressm· o jantar, e mandou-o ao Batalha de Freitas, que era o secretario do mi­nistro dos extrangei ros, e que estava affecto ao Marechal. « Algo ha de g?·aue ! - diz Batalha de Freitas, que estava ao meu lado - porque El-Rei manda apressar o janta1· ». - «Serão as a1·ruaças em que ha pouco se fallou ?» - perguntei eu. - « Se fór - res­pondeu o Batalha - , se fôr, o gove1·no dá-lhes a liçcio que elles me1·ecem I » Mas não poude deixar de admirar a presença de espírito de f~l-Rei D. Manuel: não se lhe contrahiu um musculo !

Um passeio nas ruas de Lisboa na noite de 3 de outubro.

- Ora diga-me : era o aspecto nor­mal d'um banquete, não havia desas­socêgo, intranquillidade?

- Notava-se um certo movimento: pessoas que se levantavam, outros que não acabavam o jantar, mas El-Rei continuava conversando, e quem é militar não repara em que officiaes se levantem a meio d'um banquete ou saiam inesperadamente d'uma festa, chamados pelos seus deveres. Depois do banquete, El-Rei e os ministros ficaram conversando. O Senhor D. Manoel até gracejou commigo, como de costume : « En­tão essa paixão pelo « S. Paulo ». Se lhe tiram o « S. Paitlo )> o Pimentel morre de saudade I » Os ministros conversavam, entre elles o conse­lheiro José a: Azevedo, uma boa prosa, por signal ! Por fim, ahi pelas dez ou dez e meia da noite, chegou a guarda de honra para acompanhar D. Manuel; a Mages tade sahiu, e Ba­talha de Frei tas lembrou : <r. Vamos nós

.dar uma volta , a ve1· o que ha 1 » E sa­himos, eu, Batalha, um jornalista que estava lá e fôra dar noticias, e

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A ENTREVISTA 2f 5

um official de bordo. Fomos de ele­ctrico até ao centro, depois a pé até á Avenida. Vimos movimento de tro­pas, e para os lados da Avenida ou­vimos tiroteio. Houve um momento em que se tornou perigoso andar na rua : recolhêmo-nos n'uma casa, fô­mos á janella, e assistimos a algumas correrias. Voltámos para o Paço.

Historia da salva do « S. Paulo> á . bandeira revoltosa içada no « Ada­mastor l>.

- O Marechal ainda estava a pé? - Ainda. Communicámos-lhe que

havia coisas graves e fômo-nos dei· tar. Batalha de Freitas declarou: <Eu jd não sáio d' aqui l» E dormiu lá. Du­rante a noite ouvimos diversas des­cargas, e pela madrugada soubemos que as tropas revolucionarias tinham saído para a rua e estavam ent1'in· cheiradas na Rotunda. O meu cama­rada tenente Moraes Rego ...

- Official do « S. Paulo ) ? - Sim, senhor .. • apresenta-se no

Paço de Belem a explicar ao mare­chal o equivoco da bandeira.

- Estamos chegados ao que mais me interessava.

- Vae ouvir. Um dos navios re· voltosos içou uma bandeira que ao commandante , do « S. Paulo» pare­ceu o estandarte real. O commandan­te disse ao official de quarto que içasse o estandarte real que tínha­mos requisitado para arvorar durante o matinée offerecida em honra do Se­nhor D. Manuel, e que salvasse. O official objectou: « Commandante l me parece que não é o estandarte real l » «Cumpra, a minha ordem l l> O offi­cial cumpriu a ordem e depois vol­tou junto do commandante e disse· lhe : « Commandantel cumpri a sua ordem, mas me permitta dizer-lhe que aquelta bandeira não é o estandarte

real, porque está içada na « Caran­gueja » e não no tôpo do mastro. ) O commandante correu á prôa, de bi­noculo em punho, e verificou que se tinha enganado. Tinha sido uma illu­sào de optica muito conhecida: o vermelho a distancia absorve o ver­de é um phenomeno optico perfeita­m~nte averiguado. E a bandeira iça­da no na\ io revoltoso tinha um can­to verde, e a maior parte do signal era vermelho. O commandante fi cou incommodadissimo e mandou lavrar a declaração do equivoco, perante testemunhas, no livro de Bordo. Ora aqui tem o caso da salva do « S. Pau­lo>> tão commentado. Não passou de um méro equivoco.

O Marechal Hermes da Fonseca retira para bordo do « S. Paulo. »

- E como conhecia o official de quarto do < S. Paulo l> a bandeira verde e encarnada dos republi~anos portoguezes?

- Conhecia-a de a ter vista agitar pela multidão que nos fôra esperar, á entrada da barra, nos seis vapores que foram ao encontro do < S. Pau­lo l>. Em todo o caso, o Marechal fi­cou contrariado com o equivoco, mas não disse nada. Depois do almoço, o Marechal sabendo que o governo es­tava empenhando todas as forcas, resolveu retirar-se para bordo do «: S. Paulo l> não só para não preoccu­par o governo com a sua pessoa, como tambem por deprehender que a força que estava de guarda no Paço de Belem, e que fôra reforcada, po­dia fazer falta.

-Ahi está uma coisa que o presi­dente do conselho não comprehendeu quando reteve forças a guardar-lhe a casa.

- Seguimos, pois, para bordo, d~­pois d'almoço.

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216 A ENTREVISTA

- E o sr. Batalha de Freitas? - Batalha . . . Batalha tambem. De-

clarou que emquanto o Marechal não deixasse o Tejo, a sua missão era junto d'elle e junto d'elle estaria, embora tivesse de ser seu hospede . « 01·a essa, « seu » Batalha I com muito yosto, não faça ce1·emonia I » E foi comnos<;o. Quando chegamos a bordo e démos com a bandeira azul e bran­ca ainda arvorada no «D. Carlos» , ficamos á espera de combate naval. Mandou-se uma patrulha a terra re­colher os marinheiros e officiaes do a:S. Paulo», e o Marechal mandou-me a mim a terra, procurar o ministro do Brazil, com quem me desencon­trei porque o ministro já se dirigira para bordo.

O Marechal Hermes en­carrega o sr. Batalha de Freitas d'uma missão que não é fielmente cumprida.

- E o capitão-tenente voltou tam­bem para bordo 'l

- Logo. Mas não tardei a ir a ter­ra. N'esse momento, o «Adamastor » começava a fazer evoluções, e nós receamos que elle seguisse rio abaixo para ir bombardear o Paço das Ne­cessidades. O Marechal Hermes da Fonseca encarregou, então, o Bata­lha de Freitas de ir ao Paço das Ne­cessidades dizer a El-Rei que se en­tendia que a sua Pessoa corria algum perigo, elle teria muita honra em lhe offerecer abrigo a bordo do « S. Pau­lo », a Elle e á Familia Real, em­quanto a revolta não estivesse suffo­cada. Eu acompanhei o Batalha de Freitas, que não quiz que a vedêta fosse atracar lá baixo, e se dirigiu a Belem. Eu ainda lhe disse : « Seu Ba­talha I isto não é nada ..;ommigo, o se­nho1 fará o que entender, mas me pm·ece que o Marechal ncio ficará sa­tisfeito se a sua missão não f ôr intei-

rameti.te citmprida. Acho melhor frmos ao Paço das Necessidades, e o senhor communicar dfrectamente a Sua Ma­gestade as palav1·as do ~farechal l> . Mas seu Batalha não estava pelos aj ustes: « Ah I o senhor nã() conhece esta cana­lha d'este povo rneudo. Podem-me ma­tar I :P - « Qual mata1·, « seu » Bata­lha I o senhor vae commigo, eu estou fardado, ve1·á que ninguem lhe faz de­sacato algum I Então, a sua terra é alguma terra de selvagens I >> Uns po­pulares disseram umas graçolas, e o sr. Batalha não quiz saber de mais nada, enfiou para o Paço de Belem : Q Nada, nada I eit voit. aqu,i ao telepho­ne, e falto para as Necessidades. >> -

« O senhor fará o q1te entender I « seu » Batalha I » Elle lá foi para os telepho­nes, e d'ahi a pouco, appareceu: « P1·ompto I J<i dei o recado, elles agm·a giw mandem a resposta para bordo. Vamos, vamos para bordo f l> Voltamos na vedêta , e eu fui mudar tudo quanto era meu, para ter prompto o meu camarote que era um bom ca­marote, em cima, para qualquer ca­marista das Magestades.

- Chegaram, então, a tratar de alojamentos no « S. Paulo 1> , para a familia real ?

- Esteve tudo prompto. - E afinal?

. - Afinal, d'ahi a algumas horas o sr. Batalha disse que fôra um homem com esta reHposta : « Que Sita Mages­tade agradecia muito ao Marechal, mas qu_e nào era caso. »

A visita do Provisorio -O sr. Bernardino Machado no « S. Paulo J>.

- Mas os revoltosos parece que chegaram a convencer se de que El­Rei tinha ido para o « S. Paulo» ?

- Parece que sim, por isto que eu lhe vou contar. Na noite de 4 de Ou­tubro, antes da abordagem ao D. Car-

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A ENTREVISTA 217

los, um official revolucionario foi a bordo do G: S. Paulo » e disse ao com­mandan te que era melhor procurar outro ancoradouro, porque não esta­va ali bem; que se esperava a bate­ria de Queluz, e não sei que mais, e que podia haver qualquer desgraça. O commandante respondeu que áquella hora não podia mudar de ancoradou­ro; que o « S. Paulo» era um navio que calava muito, que elle não co­nhecia o rio, e que receava ir collo­car-se ou onde prejudicasse o navio, ou onde prejudicasse os outros; que o navio era encouraçado, e que elle o mais que podia fazer era mandar re­colher a guarnição, e que se caísse por lá alguma bala só causaria estra­go material. O ufficial portuguez reti­rou-se, e d'ahi a pouco dava-se o as­salto ao D. Carlos.

-Tinha sido uma precaução, re­ceavam que alguma bala do assalto lá chegasse.

- Sem duvida. Nós estavamos mui­to proximos. Na madrugada de 5, o official voltou communicundo ao com­mandante que já não era preciso mu­dar de fundeadouro. Mas o homem olhava, tornava a olhar, e eu disse­lhe : G: Está a ver se vê cá alguem co­nhecido .2 Não estd, não I » - <1: Sim, dis­se-se que o Rei se abi·igá1·a ao <1: S. Paulo I ... » - «Pois, não está, ncio I ... » D'ahi a pouco sabia-se a noticia de que fôra proclamada a Republica. Senti, então, a situação do Batalha. Muito pallido, lamentava a ~ma sorte, e sua caireira quebrada. E foi a terra. D'ahi a. . . a menos de 2 horas, vol­tou. Trazia outra cara, vinha todo contente, e explicou : « Elle não era un fimccionario da 111onarchia, rr.as itm diptornala portuguez, itrn rnnccionario do Paiz. Os republicunos pedi?'am-l 'ie qite ficasse , que 8e1'uisse a Patria, e elle ffoara JJara serui1· a Pal·ria . » E tanto que vultava já inve:;tiuo e.las mesmas funcções protocolares junto <lo .Jfare-

chal, em nome do Governo Provisorio da Republica. O Marechal deu-lhe os parabens, disse~lhe que estimava que elle não perdesse .a sua situação, e reinou um pouco com elle, dizendo­lhe que bom fôra que a Republica o investisse d'aquellas funcções, porque emfim já se conheciam e estavam ha­bituados desde os tempos passados da Monarchia. Um pouco comprome­tido, Batalha de Frei tas communicou mais ao Marechal que o « seu minis­tro», o sr. Bernardino Machado o en­carregara de lhe annunciar a sua vi­si ta a bordo do S. Paulo para esse dia. O Marechal disse·lhe que não po· dia, na siiuação em que se encontra­va ali , receber a visita d'um membro do Governo revolucionario. Que se o sr. Bernardino Machado queria ir a bordo do « ~. Paulo » que isso era com o commandante. O commandan­te respondeu que o G: S. Paulo» po­dia ser visitado por quem quizesse. .Batalha de Freitas vae para terra e d'ahi a coisa de hora e meia vê-se um vaporsito, com uma bandeira verde e encarnada, dirigir-se para bordo do ({ S. Paulo». - G: 0' da embai·cação ! gritou-lhe a vigia - At-reie o signrrl, se quer atraca1· J » A embarcação ar­reou a bandei ra verde e encarnada, atracou, e entra no S. Paulo o Bata­lha annunciando que estava ali o Go· ve'rno Provisorio. Como visitantes para ver o navio, podem entrar. E foram recebidos co;n gua1·da formada .

- Isso é honraria? - Não, senhor. Guarda formada é

signal de visita suspeita. Recebeu-os o commandante, e como elles insis­ti!:>sem em se apµroximar do ~1arechal este disse-lhes : «Que bem via que tinha havido itma 1·euol·uçào e que pa·dic!tlar·· mente sabia que aquelles senho1·es que aU estavam eram o Governo P1·ouisorio; mcis qite elle era o Presidente Eleito da Republica Bra:ilefra, que riqtwlla h01·a só re.;onhecia o regirnem. monarchico, e

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que elle Marechal, não podia 'receber um governo ?·euolucionario que o seu Paiz ainda não tinha ?·econhecido. » E saiu, deixando-os ficar.

- Boa lição! - O Marechal é um homem reser-

vado e prudente. Já com a manifes­tação republicana no Paço de Belem, elle déra mostras d'um grande lacto deixando sem resposta as allusões re~ publicanas dos discursos qne lhe di­rigiram, e pegando apenas no trópo do amor paternal que une os dois povos Portugal e Brazi l. Elle estava afinadissimo, arreliado. Disse ao Ba­talha de Freitas que a4uillo se não fazia : o Marechal fôra elevado á Pre­siclencia da Republica do Bruzil por uma eleição renhidíssima; se no dia se­guinte qualquer jornal mona1 chico de Lisboa se lembrasse de o censurar pela visita do Governo Provisorio, a que elle não accedêra. e se e::;sfü; repa­ros chegassem ao 13razil a ugmentados, não deixariam de ser aproveitados pe­los seus inimigos poli ticos que haviam de t en tar fazer crer ao Pail que elle era um leviano, sem o sen::;o exigido a um chefe de Estado.

Fim da carreira do com­mandante do <e S. Paulo ».

- Comprehendo: o caso explornoo por uma opposição ainda f e1 ida da l ucta ela eleição preshlencial podia chrgar até á tentativa ue lhe não deixarem tomar pO$Se da pre:::idencia.

- Ah ! o Marechal ficou 1 ••• E lauto

que deu logo ordem para retirarmos Nós devíamos esperar que o Almi­rante Barroso nos fosse render ao Tejo. Mas quem pensa que o Mare­chal esperou 'l Isso sim. Que espe­rança 1 Sahimos logo. A.o passarmos a barra, logo d'ahi a pouquinho, nm r adio-telegramma do Almirante Bar­roso annunciava-nos que ia proxirno. Pois que venha! ... E seguimos nosso rumo. Comprehende, o Marechal t ra­tára o Rei, ticára tendo por elle certa sympathia, reconhecia que a queda da monarchia, não era da responsa­bilidade de D. Manoel, e ia impres­sionado. Mas sobretudo era o abor­recimento de ter assistido áqnillo tudo.

O capi tão-tene nte Americo Pimen­tel, corno official de marinha não quiz referir mais. Mas não é hoje se­gredo para ninguem o fim da carrei­ra do commandante do « S. Paulo .1> :

duas ve1.es foi levada ú assignatura a promoção a que tinha direito, e duas vezes foi preterido. A' terceira vez, pediu que lhe déssem a promo­ção que ell13 ~e compromettia a re­formar-se. Promoveram-o, e clle re­quereu a reforma pagando assim duramente o equivoco da noite de 4 ele outubro, mandando salvar á ban­dE:ira ve rde E.. encarnada por o encar­nado, que a distancia absorve o ver­de, lhe ter dado a illusào optica do qne era o estand~1 te real.

Se o Brazil assim é inl:leme11te com os seus officiaes de marinha, o que será elle com os diplom:ltas estran­geiros que lhe desagradam 1 . ••