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1 A ESCOLA NORMAL NA PROVINCIA DA BAHIA Lucia Maria da Franca Rocha UFBA [email protected] Palavras-chave: educação, formação, professores. O presente estudo objetiva analisar a trajetória da Escola Normal na província da Bahia, no século XIX, em especial, os seguintes aspectos: sua criação, implantação e consolidação. A história da Escola Normal mantém uma estreita relação com a implementação da instrução pública, mais especificamente com a instrução primária, uma vez que a criação dessas instituições tinha por fim preparar os mestres para as escolas de primeiras letras. Como é sabido, a escola pública, reinventada no mundo moderno, tem na escola normal e na escola primária seus pilares básicos. Os sistemas públicos estatais de ensino aparecem configurados de forma já bem definida no século XIX europeu e norte-americano. O Brasil refletiu essas idéias e propostas em outro contexto. Para a realização deste estudo, procuramos pesquisar a trajetória da escola normal, examinando a legislação, os relatórios dos Presidentes de Província e dos Diretores Gerais de Estudos e a literatura sobre o assunto. Optamos por explorar essas fontes, por não termos encontrado acervo documental específico sobre a Escola Normal na Província da Bahia. Preocupadas em dotar o país de um sistema de ensino mais amplo e eficaz, as autoridades provinciais acreditaram que um ordenamento jurídico sobre a matéria seria suficiente para a consecução de seu propósito. Assim é que o século XIX foi marcado por um número extremamente elevado de leis, que, na sua maioria, não se concretizaram, uma vez que essa legislação se inspirava na de outros países, como a França e a Inglaterra. As condições do ensino primário público na Província da Bahia, durante o período imperial, eram precárias. O número de escolas era reduzido, as instalações inadequadas. Sem mobiliário condizente e com parco material didático, funcionavam com número reduzido de professores, que trabalhavam em condições extremamente desvantajosas e percebiam baixos salários. Cerca de 90% dos habitantes da província

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A ESCOLA NORMAL NA PROVINCIA DA BAHIA

Lucia Maria da Franca Rocha UFBA

[email protected] Palavras-chave: educação, formação, professores.

O presente estudo objetiva analisar a trajetória da Escola Normal na província da

Bahia, no século XIX, em especial, os seguintes aspectos: sua criação, implantação e

consolidação. A história da Escola Normal mantém uma estreita relação com a

implementação da instrução pública, mais especificamente com a instrução primária,

uma vez que a criação dessas instituições tinha por fim preparar os mestres para as

escolas de primeiras letras. Como é sabido, a escola pública, reinventada no mundo

moderno, tem na escola normal e na escola primária seus pilares básicos. Os sistemas

públicos estatais de ensino aparecem configurados de forma já bem definida no século

XIX europeu e norte-americano. O Brasil refletiu essas idéias e propostas em outro

contexto.

Para a realização deste estudo, procuramos pesquisar a trajetória da escola

normal, examinando a legislação, os relatórios dos Presidentes de Província e dos

Diretores Gerais de Estudos e a literatura sobre o assunto. Optamos por explorar essas

fontes, por não termos encontrado acervo documental específico sobre a Escola Normal

na Província da Bahia.

Preocupadas em dotar o país de um sistema de ensino mais amplo e eficaz, as

autoridades provinciais acreditaram que um ordenamento jurídico sobre a matéria seria

suficiente para a consecução de seu propósito. Assim é que o século XIX foi marcado

por um número extremamente elevado de leis, que, na sua maioria, não se

concretizaram, uma vez que essa legislação se inspirava na de outros países, como a

França e a Inglaterra.

As condições do ensino primário público na Província da Bahia, durante o

período imperial, eram precárias. O número de escolas era reduzido, as instalações

inadequadas. Sem mobiliário condizente e com parco material didático, funcionavam

com número reduzido de professores, que trabalhavam em condições extremamente

desvantajosas e percebiam baixos salários. Cerca de 90% dos habitantes da província

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era anafalbeta, percentual que não deve causar espanto, já que a sociedade escravocrata

em que vivíamos não reconhecia aos negros, maioria da população, a condição de

sujeitos de direitos, como o de freqüentar escolas. Em 1840, o Presidente da Província,

Thomaz Xavier Garcia de Almeida, ao se pronunciar, na Assembléia Legislativa sobre a

situação da instrução pública na província da Bahia, salientou, entre outros aspectos que

estado o da Instrucção primaria na Capital algum progresso, e aproveitamento parece denotar; nos outros lugares porém vai em decrescimento e frouxeza na razão da distancia, em que elles se achão da inspecção immediata do Governo: na falta de um meio eficaz, que obrigue os Professores a cumprir com os deveres do Magistério,[...] (ALMEIDA,1840, pp.11-12)

Nos relatórios, as autoridades provinciais reclamavam sobre a atitude dos

professores, desânimo, desinteresse, falta de compromisso, mau comportamento.

Com o Ato Adicional de 1834, que reduziu o poder das Câmaras Municipais,

reforçando os poderes da Assembléia Legislativa em todos os setores, e lhe conferiu,

entre suas competências, a de legislar sobre o sistema educacional, as primeiras escolas

normais brasileiras foram criadas por iniciativa das províncias, que atenderam, assim, ao

movimento descentralizador.

Na Bahia, os Presidentes de Província exerciam o cargo por pouco tempo e essa

descontinuidade fazia com que sua ingerência na vida social, econômica e política da

província fosse passageira. E a instrução pública vivia ao sabor dessa oscilação. Mattoso

(1992, p.258) ao analisar a situação da Assembléia Provincial baiana afirma que “os

deputados baianos assessoravam o presidente da Província nomeado pelo poder central

e considerado ‘o olho do monarca’. (...) Em 65 anos, a Bahia teve 47 presidentes, o que

dá uma média de um ano e quatro meses para cada mandato”. Na condição de

“passageiros efêmeros” tinham muito pouco contato com as províncias e sua ação

política acabava por ser ineficaz.

A ESCOLA NORMAL E SEU PERCURSO NO SÉCULO XIX

Ao analisar a criação da Escola Normal, Nóvoa (1991,p.15) salienta que as

escolas normais representam uma grande conquista do professorado e que essas

instituições “estão na origem de uma verdadeira mutação sociológica do corpo docente:

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o ‘velho’ mestre-escola é definitivamente substituído pelo ‘novo’ professor da instrução

primária”.

A província da Bahia, como as demais, vinha, ao longo do tempo, enfrentando

uma série de dificuldades com os professores que lecionavam nas escolas primárias,

indivíduos sem formação para o ensino.

Como decorrência do Ato Adicional, no ano de 1836, a Assembléia Legislativa

Provincial da Bahia decretou a Lei n.37, de 14 de abril, sancionada pelo Presidente da

Província, Dr. Francisco de Souza Paraíso, Senador do Império, criando a Escola

Normal. Foi então que se iniciou a história da formação do magistério da instrução

primária na província.

O início do funcionamento da instituição foi postergado e só se deu seis anos

após sua criação, em 1842. A inauguração da Escola ocorreu em 1836, no Teatro São

João, em ato solene, com a presença de autoridades civis, militares, religiosas e

educacionais, e presidido pelo Desembargador Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos,

Presidente da Província, mais tarde Visconde de Mont’Serrat. Não havendo prédio

próprio para sua instalação, inicialmente foi escolhido um dos salões do Teatro São

João, escolha que não recebeu aprovação do governo que, representado pelo Sr.

Presidente da Província, Paulo José de Mello Azevedo e Brito, declarou: “inopportuna

esta escolha pelo freqüente ingresso de pessoas que, ao mesmo tempo, concorrem ás

cazas de bebidas”. (BRITO,1841 p.12).

Na tentativa de explicar o hiato de seis anos entre a criação e o início das

atividades da Escola Normal, COSTA (1988) afirma que a criação da Escola Normal

ocorreu no intervalo entre dois movimentos revolucionários, a revolta dos Malês e a

Sabinada . Em seu estudo, procurou estabelecer uma relação entre a Sabinada e a

trajetória da Escola Normal, ao assinalar que a Sabinada, movimento revolucionário de

1837, influenciado pelo Iluminismo europeu, ocorreu no ano seguinte à criação da

instituição e, entre os revolucionários, estavam professores.

As aulas tiveram inicio em 26 de março de 1842, nas instalações do “[...] prédio

á rua do Collegio, esquina para a antiga Rua das Capellas, hoje 3 de Maio, casa onde

presentemente se encontra o armazém ‘Centro Popular’ (no andar térreo)”.

(MAGALHÃES,1923,p.209). O prédio estava localizado em uma região nobre da

cidade, na freguesia da Sé, local que, segundo Mattoso (1978, p.177) reunia [...]

“edifícios públicos e religiosos [e era] pulmão administrativo da cidade e da Província

com sua praça do palácio onde vizinham o Paço Municipal, testemunho do poder local,-

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na época [...] bastante cerceado - com o Palácio do Governo, a Casa da Moeda e o

Tribunal da Relação”. Assim, a Escola Normal começou a funcionar em instalações que

Vinão (2005, p. 18) denomina “locais habilitados ou provisionais”, ou seja, ocupou

instalações físicas destinadas a outras finalidades. Não havia um lugar específico, um

território demarcado para a instituição, questão que perdurou durante todo o período

imperial.

A lei de 1836, que criou a Escola Normal, determinava que a instituição fosse

destinada, principalmente, à formação de alunos do sexo masculino, embora estivesse

prevista a formação de mestras para a instrução primária em um curso especial da

Escola Normal, com o currículo voltado para o ensino das matérias do ensino primário,

acrescido de desenho linear e prendas domésticas. Apesar de o plano de estudos ser

diferenciado, os professores eram os mesmos para ambos os sexos, e lecionavam alunas

e alunos em dias alternados. Para o ensino de prendas domésticas foi indicada uma

professora.

Os alunos, para serem admitidos na instituição, deveriam ter idade acima de 16

anos, ter sido aprovados em alguma aula de instrução primária e dar provas de bom

comportamento, uma vez que a conduta dos professores era motivo de insistente

reprovação por parte das autoridades. A duração do curso era de dois anos e

compreendia apenas duas cadeiras: a) métodos de ensino simultâneo e mútuo ; b)

leitura, caligrafia, aritmética, desenho linear, princípios de religião cristã, gramática

filosófica da língua portuguesa. A Lei em seu art. 4º determinava que:

para prover a primeira cadeira, fica authorisado o Presidente da Província a mandar á França dous indivíduos que, saibam o francez, escolhidos em concurso, á fim de que aprendam perfeitamente, na Eschola Normal de Paris, o methodo theorico, e prático do Ensino Mutuo, recomendando-os, á Missão Brasileira naquella Corte, para que sejam considerados como alunos Francezes”. (apud FRANCA, 1936, p.8).

O ensino mútuo era muito restrito, oferecido apenas na capital da província e em

poucas localidades circunvizinhas, com número reduzido de professores aptos a lecionar

a disciplina.

Em 1840, o Presidente da Província tomou providências para qualificar esses

professores que realizaram estudos na Escola Normal da capital francesa.

No ano em que a Escola Normal iniciou suas atividades, 1842, uma nova

legislação reformou a instrução pública, a Lei n. 172, de 25 de maio, aprovada pelo

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Presidente da Província, Dr. Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos. Essa legislação

alterou o plano de estudos, e o seu art.7º determinou, com mais clareza do que a lei

anterior, quais os requisitos de boa conduta moral a serem exigidos dos professores

para candidatos às cadeiras do ensino primário.

Art. 7º - Só podem concorrer ás cadeiras do ensino primário além dos actuaes professores, aqueles que previamente se mostrarem com os requisitos seguintes: § 1º- Bom comportamento moral, pollitico e religioso, comprovado com documentos authenticos do vigário e das authoridades policiais do logar; §2º - Certidão de folha corrida [...].

As atitudes morais e religiosas dos professores, conforme observa Nóvoa (1991),

foram objeto, ao longo dos séculos XVII e XVIII, de preocupação dos jesuítas e

oratorianos, que conformaram um corpo de saberes e de técnicas, bem como um

conjunto de normas e valores específicos da profissão docente.

No momento em que a conduta moral dos professores os desabonava, as

autoridades provinciais procuravam meios para puni-los, uma vez que o professor não

podia dar mau exemplo às crianças sob a sua guarda.

Um dos aspectos ressaltados com relação à moral dos professores refere-se ao

alcoolismo. No ano de 1846, o Presidente da Província, Francisco José de Sousa Soares

d’Andrea, solicitou ao Presidente do Conselho de Instrução Pública informação sobre o

comportamento do professor de primeiras letras da Vila de Ilhéus “visto que os pais

tem delle retirado os filhos, á quem transmitte os seos vícios da embriaguez e do

jogo”.(d’ANDREA, 1846, p.25). Todavia, fiscalizar o comportamento dos professores

era tarefa difícil, aspecto salientado pelo Desembargador João José de Moura

Magalhães, Presidente da Província em 1848: “são fracos e insufficientes os meios de

fiscalizar o comportamento dos Professores. As Commisões de Instrucção,(...) pouco ou

nada fazem”. (MAGALHÃES, 1848, p.10).

O realce que as autoridades davam à moral dos professores é um aspecto

comentado por Villela (1992, p.30): “a ênfase na moralidade certamente relacionava-se

à sensação de intranqüilidade que se vivia naqueles tempos tumultuados por

movimentos desordeiros”. Com efeito, a província da Bahia era palco de constantes

movimentos revolucionários, que reclamavam do poder político uma atuação de

permanente vigilância. Em seu estudo sobre a Escola Normal de Niterói, Villela assinala

que “esses dirigentes pretendiam difundir sua visão de mundo, e para isso era necessário

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fazer com que cada indivíduo identificasse os objetivos da classe dirigente como seus.

Assim era necessário colocar ordem no mundo da desordem”.(Ibid., p. 28). Aqueles que

chegavam ao poder não “pretendiam abrir mão da submissão e obediência dos

funcionários aos seus propósitos” e, relacionada à questão moral, estava “subjacente a

preocupação com a posição ideológica do professor”. (Ibid., p. 30). Além desse aspecto,

a pobreza do plano de estudos era assunto insistentemente salientado pelos Presidentes

da Província. O Desembargador João José de Moura Magalhães, Presidente da

Província, sugeriu que a Escola Normal oferecesse, “alem das matérias , que n’ella

actualmente se ensinão, reputo indispensáveis cadeiras de Geometria Elementar[...] de

noções geraes de sciencias physicas, e dos três ramos da Historia Natural, e finalmente

da Geografia e Historia”.( p. 12).

A Escola Normal, desde o inicio do seu funcionamento, em 1842, como já

observamos, enfrentou uma série de dificuldades: falta de livros, mobiliário inadequado,

ausência de uniformidade no ensino, baixos salários dos professores. Todos esses

fatores contribuíram para a fragilidade da instituição e seu desprestígio, como bem o

demonstra o decréscimo no número de matrículas durante o período de 1842 a 1847. No

primeiro ano, foram matriculados 83 alunos, com predominância masculina: 68 homens

e 15 mulheres. No último, 1847, os alunos não passavam de 4. A propósito desse

declínio, o Presidente da província observa que, a vocação do magistério não pode atrair

maior número de professores pelas insignificantes vantagens que oferecem, sendo

conveniente aumentar o ordenado dos professores.( MAGALHAES, 1848,p.12)

E a insatisfação com a qualidade do ensino oferecido pela Escola Normal

persiste. Dr. Casemiro de Sena Madureira, primeiro ocupante do cargo de Diretor Geral

de Estudos, criado em 1849, a quem competia, entre outras funções, a de fiscalizar a

situação do ensino normal, observa que o número de alunos continuava baixo - eram,

então, 20 - e que a prática dos métodos não vinha sendo exercitada conforme prevista na

legislação.

Sem pratica dos methodos em escolas primarias, ao menos 6 mezes em cada hum dos 2 annos, e sem direcção sobre a educação não pode hum alumno receber carta de habilitação para obter o cargo melindroso de Professor, e Director da mocidade. A pedagogia he huma parte impreterível da habilitação de qualquer Professor. Eu seria de parecer que os alumnos mestres, ainda depois de aprovados, pela Escola Normal, fossem obrigados a praticar , ao menos hum anno n’alguma das escolas primarias mais acreditadas para se julgarem habilitados ao cargo de Professor de 1ª letras; porque he a pratica,

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segundo Mr. Cousin que habilita os Professores. (MADUREIRA, 1851, p.9).

Em realidade, a Escola Normal não estava oferecendo condições para que seus

concluintes, mestres e mestras, exercessem satisfatoriamente seu ofício, uma vez que

havia poucos professores responsáveis pela prática de ensino, havendo casos em que

alguns alunos estavam terminando o curso normal sem a terem exercido

Outra questão a incomodar as autoridades era a inconveniência de alunos e

alunas conviverem em um mesmo prédio e compartilharem as mesmas lições, além do

fato de a escola funcionar sob o regime de externato, como vinha ocorrendo. Assim

funcionou nos seus primeiros vinte anos. Entendiam que a escola normal sob essa forma

de organização promovia a promiscuidade entre os sexos, questão ressaltada pelo

Diretor Geral de Estudos, Dr. João José Barbosa d’Oliveira: “A verdade é que o antigo

externato normal, e a promiscuidade dos sexos ali, andavam, de longa data,

unisonamente condemnados, assim no conceito publico como nos papeis

officiais”.(d’OLIVEIRA, 1861,p.8).

A separação entre os sexos era também defendida pelo Diretor de Estudos, Dr.

Casemiro, que argumentou: “[...] os costumes do Paiz, ainda abonão a necessidade da

separação do sexo, e que muitas moças com vocação para o magistério tem todavia

repugnância de receberem lições de Professores [...]”. (Ibid., p.10).

A Resolução n. 403 de 2 de agosto de 1850, dirigida especificamente para o

Curso Normal, deixou, enfim, expressa a determinação de separação entre os sexos.

Proibia que alunos e alunas freqüentassem o mesmo prédio e determinava que o curso

prático para o magistério, cuja clientela era do sexo feminino, ocorresse em outro

edifício, separado da Escola Normal. Em virtude disso, Sena Madureira (1851, p. 3)

determina: “que ponha as alumnas em um curso inteiramente separado com Professoras

do seo sexo, as quaes contentar-se-hião com o ordenado de seiscentos mil réis, como se

tem contentado a Professora do ensino pratico Anna Bonati”. A sociedade do século

XIX considerava a co-educação como uma questão perigosa do ponto de vista moral.

A Escola Normal sofreu uma nova reforma, regulamentada pela Lei 844, de 3 de

agosto de 1860, que a estruturou sob a forma de internato e, no ano de 1862, o

Presidente da Província, Joaquim Antão Fernandes Leão, mediante novo dispositivo

legal, intitulado Regulamento Orgânico da Instrução Pública, normatizou a existência de

duas escolas normais primárias, constituídas sob a forma de internatos. O internato

masculino instalou-se na freguesia da Vitória, em um prédio que depois foi “residência

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dos Presidentes da Província e Governadores do Estado” (FRANCA, 1936, p. 29). Foi

nomeado seu Diretor o Dr. Francisco Pereira de Almeida Sebrão. O internato feminino,

sob a direção da Profa. Anna Joaquina dos Santos Bonatti, ocupou um prédio ao lado

daquele. Esses internatos estavam localizados em uma freguesia que apresentava

características semi-rural e suburbana: “Bairro novo no território de uma freguesia das

mais antigas da cidade do Salvador, a Vitória guardava porém seu caráter de bairro

suburbano e semi-rural que só perderia no século XX com a expansão do povoamento

nessa nova direção”.[MATTOSO, 1977, p.179]. A experiência demonstrou que esses

internatos não estavam bem localizados tendo em vista sua finalidade, o ensino, e que

era preciso encontrar outras instalações, sendo providenciado a transferência de ambos.

Como se vê, a decisão de mudança da escola para outro local baseava-se no fato

de as escolas anexas não estarem cumprindo seu papel - a prática do ensino. Esse era

um assunto que já há muito vinha sendo levantado pelo menos desde 1851, como se

constata no relatório apresentado pelo Dr. Casemiro de Sena Madureira, já citado.

Contrariando aqueles que propugnavam pela necessidade da efetiva realização

da prática de métodos pelos alunos da Escola, o Diretor Geral de Estudos, Dr. Abílio

César Borges, realizando, no ano de 1856, uma avaliação das matérias lecionadas,

assinalou que a aula prática de métodos que existia anexa à Escola Normal era

desnecessária, uma vez que a experiência de cinco anos havia demonstrado sua

diminuta contribuição para a formação dos futuros mestres:

Confesso (...) que, assistindo a aula de methodos, fiquei penalisadissimo de ver um homem do quilate da inteligência do Sr. Portella, assim se estragasse explicando aos alumnos por um ano inteiro o modo como se devem os meninos collocar nas carteiras, levantar os bancos, qual o lado por onde devem sahir das respectivas classes [...] cousas estas que em uma semana qualquer discípulo aprenderia. (BORGES, 1856, p.45) .

Quanto à duração do curso, o novo Regulamento Orgânico determinou que fosse

de três anos, com um modelo que acentuava o caráter essencialmente prático e religioso.

Com relação ao aspecto religioso, o plano de estudos previa o ensino da instrução moral

e religiosa, a ser ministrado por um capelão. A instrução moral enfatizava as normas de

bom comportamento dos alunos e alunas da Escola Normal, considerado tão importante

para a formação do professor que foi criada uma Comissão de Vigilância em cada uma

das Escolas Normais. Ao Diretor Geral dos Estudos cabia fiscalizar, com certa

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assiduidade, o comportamento dos alunos, bem como investigar a vida anterior daqueles

que desejassem ingressar na Escola Normal.

No que se refere às qualidades de cunho moral, Villela (2003), analisando o

modelo de formação de professores e professoras primárias no Brasil, no século XIX,

salienta que:

dentre todas as qualidades desejadas para o exercício do magistério primário, as de cunho moral assumiam preponderância (...) [e] “saber se portar” relaciona-se à constituição do ethos profissional, ou seja, as características de caráter e comportamento do professor que se relacionam prioritariamente com o domínio da moral. (Ibid., pp.5-6) .

A criação dos internatos foi uma forma que as autoridades provinciais

encontraram para controlar o comportamento daqueles que escolhiam a profissão de

mestre. Barbosa d’ Oliveira, Diretor Geral de Estudos, em seu Relatório de Instrução

Pública lembra que Abílio César Borges, já em 1856, salientava que os internatos

submetiam os alunos a uma vigilância mais ativa e a uma disciplina mais severa e que

estes “acostumam-se facilmente aos hábitos de moderação e ordem, ao respeito que

devem á seus mestres, que neste caso exercem sobre elles uma autoridade

incontestável”. (apud d’OLIVEIRA, 1861, p.20). Essas instituições tinham a função de

socializar o professor e exercer o controle sobre sua formação.

Com relação à formação das alunas-mestras realizada no internato feminino, a

diretora, Profa. D. Anna Joaquina dos Santos Bonnati, assinalou que as aspirantes ao

magistério ingressavam na Escola Normal muito mal preparadas nas primeiras letras e,

durante o curso, lutavam com muitas dificuldades, “sem jamais attingirem o preciso

desenvolvimento de idéas, salvo uma ou outra, por excepção de muito talento”. (apud,

FRANCA, 1936, p.32). Assim, recomendava que o plano de estudos para essas meninas

não devia reduzir-se a ensinar as primeiras letras, mas deviam ser “escolas de

aperfeiçoamentos, onde venhão as mesmas estender a esphera dos conhecimentos

adquiridos alli na sua infância, tenhão ou não em mente entrar depois no professorado.”

(Ibid.,p. 32).

Essa distinção nos planos de estudos, analisado por Muniz (2003, p.298) em seu

estudo sobre gênero e educação em Minas Gerais no século XIX, significa uma

limitação dos conhecimentos a serem adquiridos pelas meninas na Escola Normal, uma

vez que, “esses cursos foram organizados pelo princípio dualista de que às mulheres se

educava e aos homens se instruía”. Considera, ainda, que se “o ingresso das mulheres

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nas escolas normais, tenha representado um avanço em termos de possibilidade de

aquisição de maiores conhecimentos compreendia uma limitada ampliação de

escolaridade”.

Para serem admitidos no curso normal, os alunos deviam ter idade entre 17 e 20

anos. Essa admissão tinha caráter provisório, e era válida por um período de cinco

meses, ao fim do qual eram submetidos a verificação do aprendizado das lições teóricas

e dos exercícios práticos na escola anexa. Confirmada sua aptidão para o magistério, a

admissão dos candidatos tornava-se definitiva. No ato de admissão, era preciso

apresentar uma promessa, reconhecida pelo tabelião, de lecionar durante cinco anos na

instrução pública primária ou, no caso de faltar com a referida promessa, pagar ao Cofre

provincial uma determinada quota. Provavelmente, essa exigência decorreu do grande

número de professores que abandonavam o ensino de primeiras letras, após a conclusão

do curso normal, fato insistentemente mencionado nos relatórios da época. Esse era uma

problema com que as autoridades provinciais se defrontavam, agravado pelo reduzido

número de alunos matriculados nos internatos, masculino e feminino. Os dados

demonstram que, até 1869, o internato masculino diplomara 16 alunos-mestres e o

internato feminino, 37 alunas-mestras. Esses dados indicam que, na Província da Bahia,

no final dos anos 60, o magistério já era predomínio do sexo feminino.

No ano de 1869, o Presidente da Província, Barão de São Lourenço, em

pronunciamento à Assembléia Provincial referiu-se ao “grande dispêndio da Província,

com os dois internatos e a diminuta freqüência”. Diante dessa situação, resolveu

extinguir o internato masculino, sob a seguinte justificativa:

O internato dos homens, creado contra a índole e hábitos da população que não se sujeita á reclusão, afugentou os habilitados ao magistério, e fez seccar a fonte que havia dado tão distintos professores, apresentando em 9 annos 16 alumnos com diploma, e d’estes apenas 10 aproveitados!(...) e de um e meio de habilitados annualmente. (BARÃO DE SÃO LOURENÇO,1870, pp.51-52).

O internato masculino da Escola Normal foi extinto e a instituição voltou a se

estruturar sob a forma de externato. O curso teve sua duração reduzida para dois anos,

solução que o Presidente da Província encontrou para habilitar alunos-mestres em curto

prazo, uma vez que, a essa época, pelo menos duas terças partes das cadeiras do ensino

primário ainda eram ocupadas por pessoas sem o devido preparo recomendado na

legislação. O externato começou a funcionar no dia 7 de março de 1870, ocupando as

instalações do Convento de São Bento. Apesar de funcionar em prédio com certa

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imponência na capital da província, as acomodações destinadas a seu funcionamento

eram inadequadas: as salas de aulas, pequenas e ensolaradas, mobília escassa,

instalações sanitárias extremamente precárias, o que levava os alunos a satisfazerem

suas necessidades fisiológicas na rua, além da ausência de materiais indispensáveis para

o ensino. Foram destinadas três salas para o externato, uma para a secretaria e duas para

as aulas. A escola anexa funcionava no pavimento térreo. Comentando sobre essas

instalações, o Diretor Geral de Estudos, Dr. Francisco José da Rocha, observou que “o

seu arranjo interno não é de modo algum compatível com sua cathegoria e importância”.

(ROCHA, 1872, p.42).

A reforma da instrução pública preconizada pelo Barão de São Lourenço deu

continuidade ao internato feminino da Escola Normal e, convicto da sua decisão, o Sr.

Barão ressaltou as conveniências da sua permanência:

A Eschola Normal creada em 1836 para habilitar mestras para o ensino das jovens bahianas, cujos pais não lhes pudessem dar educação excepcional, produzio mais beneficio à população que igual instituição para homens, porque d’estes cuidavam as famílias mais ou menos, distinguindo-se os bahianos no amor das letras.[...]. Houve maior concorrência de alumnas do que sucedeo n’aquelle, por não contrariar a índole e costumes do sexo, naturalmente recolhido. Também as necessidades de preenchimento de cadeiras não eram tão urgentes, sendo seu numero muito mais diminuto. O internato deo nos nove annos diplomas de habilitados á 37 alumnas, das quaes seis haviam começado no antigo curso normal.(Ibid.,p.55).

Tendo em vista, principalmente, a redução de despesas dos cofres públicos com

o internato feminino, o Regulamento Orgânico limitou o número de vagas gratuitas,

que não podiam exceder a doze. As ocupantes dessas vagas deviam justificar perante o

governo seu estado de pobreza. O internato podia ser freqüentado, também, por alunas

externas que tivessem boa conduta. Nesses casos, a preferência era dada às alunas que

fossem enviadas pelas Câmaras Municipais, que se responsabilizavam pelas suas

pensões. Ao término do curso normal, essas alunas seriam as eleitas para ocupar as

cadeiras nas escolas dos municípios, desde que houvesse um pedido das referidas

câmaras.

O Barão de São Lourenço, além de modificar a duração do curso, alterou o plano

de estudos e graduou as matérias por ano. Novas matérias foram incluídas, como:

gramática portuguesa, compreendendo o conhecimento teórico da prosódia, etimologia,

sintaxe e ortografia; análise etimológica, exercício de escrita ditada, leitura de prosa e

verso e recitação; pedagogia e metodologia.

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Esse plano de estudos parece não ter sido bem acolhido, principalmente pelo

Diretor Geral de Estudos, Dr. Francisco José da Rocha, que considerou excessivo o

número de matérias a serem ensinadas, o que sobrecarregaria demasiadamente os

alunos:

Para satisfazer as exigências do curso, tal qual está determinado, só os talentos raros, as inteligências privilegiadas deveriam alistar-se nelle; e, ainda estas muitas vezes ficam offuscadas, porque, pertencendo quase todos os aspirantes ao professorado ás classes menos favorecidas da sociedade, tem de occupar o pouco tempo que lhes resta das lições em prover aos meios de subsistir no dia seguinte. (Ibid., p. 38).

A organização desse plano trouxe conseqüências negativas para o

aproveitamento dos alunos-mestres, muitos não compareciam aos exames, certamente

por não se sentiram preparados para enfrentá-los.

O plano de estudos do internato feminino não sofreu alteração. Em razão de um

desajuste entre o plano de estudos das alunas - mestras e o plano da escola de primeiras

letras, o Diretor Geral de Estudos sugeriu que, no internato, fossem introduzidos o

estudo da geografia física e da história pátria, que eram disciplinas obrigatórias nas

escolas primárias.(Ibid., p.43). Essas matérias somente foram introduzidas no internato

em 1875, sob a regência da professora concursada, Maria Augusta Besucheth.

Apesar de tantas reformas, a Escola Normal, na Província da Bahia, não se

apresentava como uma instituição capaz de oferecer uma boa formação a seus alunos.

Dada a sua grande fragilidade, havia os que defendiam sua extinção, o que, entretanto,

jamais ocorreu. Partidário de sua permanência, Abílio César Borges, em 1856,

ressaltava que o magistério primário devia ter instrução e educação especiais, donde a

necessidade de uma escola, também, especial. Vários países da Europa mantinham

Escolas Normais desde o século XVIII e quando todos já a tinham adotado, não era

cabível que propugnássemos pela extinção da nossa. Ao contrário, “queremo-la

melhorada, reorganisada, tal que possa formar os mais perfeitos mestres para a

infância”.(Borges, 1856, p. 47). Reafirmava Abílio: “a influencia dos instituidores,

como funcionarios publicos, sobre a população que o rodeia, variará segundo a

educação que elles tiverem recebido, e segundo os conhecimento particulares, e os

sentimentos que elles tiverem sido inspirados nas Escholas Normais.”

A diminuição do número de professores vinha em prejuízo da educação

primária, que necessitava de professores habilitados, uma vez que, a essa época, as

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cadeiras ainda eram ocupadas, pelo menos duas terças partes delas, por pessoas não

oriundas da Escola Normal, o que constituía um desrespeito à legislação.

Estudos como o de Tanuri (2000) revelam que as Escolas Normais começaram a

tomar impulso a partir dos anos 70 do século XIX, em razão das transformações de

ordem política, cultural e ideológica que repercutiram no campo da educação. Segundo

a autora, algumas teses foram cogitadas, na época, com maior freqüência, entre elas:

a obrigatoriedade da instrução elementar, a liberdade de ensino em todos os níveis e a cooperação do Poder Central no âmbito da instrução primária e secundária nas províncias. É no contexto (...) de popularização do ensino que as escolas primárias passam a ser reclamadas com maior constância e coroadas de êxito. (p.66).

Contudo, na Província da Bahia, essas idéias repercutiram muito mais tarde.

Somente no ano de 1880, conforme assinala Tavares (2001, p.271), a província passou a

sofrer transformações econômicas, com o trabalho escravo sendo substituído lentamente

por novas formas de relações de trabalho, a maioria de semi-escravidão e algumas

assalariadas. Essa situação, provavelmente, reclamava a necessidade de escolas primárias,

para que essa população saísse da sua condição de analfabeta e pudesse inserir-se nas

novas condições de trabalho.

A situação das escolas primárias continuava objeto de discussão na Assembléia

Legislativa da Província da Bahia e, no ano de 1883, o deputado Artur Rios, em seu

pronunciamento, observou que:

A immensa área de que é dotada nossa província com uma população relativamente insignificante e irregularmente disseminada, é por si só uma causa capaz de neutralizar todos os esforços n’esse sentido (...) causa que so poderia ser removida si os municípios em que ella se divide, tivessem uma existência real (...) e não fossem, o que realmente são, uma colleção de burgos podres, sem iniciativa, sem luzes e sem recurso, apenas pastos de interesses pessoaes de grupos que são alcunhados pomposamente de políticos.(ANAIS,1883, p.10).

Essa situação, denunciada com veemência pelo deputado Rios, há muito tempo

configurava o panorama da instrução primária na Província, e era dada a conhecer, de forma mais amena, pelos governantes que buscavam constantes reformas para reverter esse lamentável quadro, não levando em conta a realidade e julgando que leis e reformas, por si sós, a transformassem.

A instrução primária na década de 1880 ainda deixava muito a desejar e, novamente, para aperfeiçoá-la, nova Reforma foi proposta. Em 1881, o Presidente da Província, Dr. Antonio de Araújo de Aragão Bulcão, assim justificava a reforma proposta: “as escolas primárias existentes foram criadas em localidades onde a população em idade escolar era reduzida, os professores formados na escola normal

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recebiam uma formação deficiente, ignorando matérias que eram indispensáveis ao bom desempenho do ensino, e, por conseqüência, do mestre mal preparado o efeito inevitável era um mau ensino. Ademais, afirmava que os concursos realizados eram sem rigor, com grande facilidade nas provas e os professores “pessimamente remunerados e menos justamente considerados no funccionalismo publico”.(BULCÃO, 1881, p.26). Depreende-se dessa declaração que o professor era muito desvalorizado e que a instituição responsável pela sua formação não estava desempenhando a contento sua função.

Assim, em 5 de janeiro de 1881, foi promulgado novo regulamento que reformou a instrução pública na província. Conhecido como “Regulamento Bulcão” vigorou até 1890. No ano anterior, ao se pronunciar, na Assembléia Legislativa Provincial, Bulcão ressaltara que a reorganização do ensino provincial devia começar pelas escolas normais, uma vez que os estabelecimentos desse tipo de ensino não correspondiam, senão de forma muito incompleta, à sua finalidade, pois deles dependia “exclusivamente a sorte do ensino publico primário”. (Ibid., p.11).

Segundo esse instrumento legal, os estabelecimentos destinados à carreira do professorado público primário eram em número de dois, organizados sob a forma de externatos, suprimindo-se o então vigente internato da Escola Normal destinado ao sexo feminino. Essas instituições passaram a denominar-se “Escola Normal para Homens” e “Escola Normal para Senhoras”.

A constituição dos externatos foi defendida por Bulcão nos seguintes termos: “Ás casas normaes dei o caracter definitivo de externatos- o que me aconselhavão muito poderosamente a moralidade, a economia e a alta conveniência de levar o futuro mestre para a eschola as lecções da experiência, que só podem ser adquiridas na vida externa”.(Ibid., p.31).

O Regulamento Bulcão também estabelecia um plano de estudos seriado, o mesmo para ambos os sexos, com cadeiras importantes para a formação dos mestres, pois, segundo seu autor, saíam das escolas normais alunos que mal podiam exercer o magistério, porque ignoravam matérias que deviam conhecer, mas que, até então, não eram contempladas nos programas de estudos.

Fundamentando sua proposta curricular, mais abrangente da que até então vigorava, Dr. Antonio Bulcão apresentou a seguinte justificativa:

Novos estudos, mais amplo desenvolvimento do ensino [...] attendi [...] ao que era indispensável attender. Accrescentei ás matérias do curso- as sciencias naturaes, que ensinando as regras de classificação, fornecem considerável somma de conhecimentos úteis; a physica e a química –d’onde brotão mil correntes fertilisadoras que espalhão-se por todas as artes e em toda a pratica da vida, bases que são de uma multidão de profissões especiaes; servindo ainda para guiarem o homem em grande número de circunstancias differentes:- a língua franceza, da qual terá de fazer uso aquelle que precisa aprender, e, portanto, de absoluta necessidade para estudos diversificados, principalmente quando na língua que se falla no paiz há escassez de livros de ciência;- e o desenho de imitação que, além de prestar serviços outros, “ forma o gosto e desenvolve o sentimento do bello”. Estabeleci, porém, que as sciencias mais geraes, de maneira a tornar-se, quando possível, nas circunstancias em que nos achamos, fecunda e proveitosa a applicação do methodo intuitivo nas escholas primarias.

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Accrescentei- a geometria, a álgebra e a trigonometria, para serem ensinadas elementarmente, de modo mais pratico que theorico- o que é da mais evidente utilidade nos usos mais communs da vida. (BULCÃO,1881,pp. 29 e30). Dei maior desenvolvimento á cadeira de língua nacional, mandando ensinar literatura, mas da literatura “succintas noções e curtas noticias biographicas dos seus principaes representantes”, porque entendi que ao movimento geral das lettras pátrias não devia ser estranho aquelle que figura como seu modesto collaborador, preparando o futuro do paiz no sanctuario da eschola primaria. E finalmente, reconhecendo que o ensino de pedagogia era incompleto nas casas normaes, desenvolvi-o: não tinha explicação plausível, nenhuma defeza, E, julgar-se apto para dirigir as escholas aquelle que ignorava, nos pontos capitães, a sciencia da educação.(Ibid.,pp.31-32).

No curso normal do sexo feminino, a de prendas domésticas era ministrada em

todos os três anos e compreendia o uso de máquinas de costura e corte de vestimentas

de crianças e de senhoras. Nesse curso, a maioria das disciplinas ficava sob a regência

de professoras, exceção feita às cadeiras de doutrina cristã, ciências naturais, física,

química e mineralogia e língua francesa lecionadas por professores.

Essa reforma, além de seu traço marcante com relação ao plano de estudos,

também introduziu uma inovação, ao regulamentar os concursos dos professores para

provimento das cadeiras vagas das escolas normais. Os concursos eram anunciados pelo

diretor geral por meio de edital publicado na gazeta oficial, e os candidatos eram

submetidos a três provas: prova escrita, oral e defesa de tese. Na vigência desse

regulamento, a Escola Normal diplomou cinqüenta professores, dezessete homens e

trinta e três mulheres. O número de diplomados deixa bem claro a predominância da

mulher na atividade de magistério.

Há que se observar que os fundamentos que nortearam o Regulamento Bulcão o

diferenciavam do anterior, na medida em que refletiam, na educação, os ideais liberais,

que então se consolidavam. Foi ele bem aceito no meio educacional da época, tendo

recebido muitos elogios.

A província da Bahia, durante o século XIX, foi gradativa e muito lentamente

consolidando a Escola Normal. Nem mesmo com a Proclamação da República em 1889,

quando a educação era vista como um importante elemento para consolidação do novo

regime, a situação educacional baiana não se distanciou daquela existente no período

imperial. Somente em 1895 com a lei n. 117, de 24 de agosto, a Escola Normal passou

a apresentar uma estrutura unificada, ocasião em que foi criado o Instituto Normal da

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Bahia, para ambos os sexos. Essa mesma lei criou Escolas Normais em outros

municípios, nas cidades de Caetité e Barra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a literatura assinale o processo de descontinuidade do ensino normal

durante o século XIX, visto que as Escolas Normais em algumas províncias passaram

por sucessivos processos de funcionamento e fechamento, na província da Bahia o

mesmo não aconteceu. A Escola Normal não percorreu esse caminho, não sofreu

processo de desativação, de interrupção. A formação do professor foi sempre uma

preocupação no cenário da instrução imperial, tanto a dos alunos mestres quanto as das

alunas mestres .Vale lembrar que a formação do magistério do sexo feminino, na

Província da Bahia, foi simultâneo à formação do professor do sexo masculino. Ambas

tiveram início na mesma data, em 1842.

Apesar da existência de um ordenamento jurídico extremamente amplo, com leis

que, na sua maioria, tornaram-se letra morta, isso não significou impedimento para que

as autoridades provinciais implementassem algumas ações com o objetivo de

institucionalizar a formação do magistério na província baiana. O campo de

conhecimento para essa formação foi, gradativamente, sendo ampliado com o objetivo

de proporcionar aos alunos da Escola Normal um corpo de saberes e de normas de

conduta fundamentais para um futuro exercício do magistério e indispensáveis à

construção de sua identidade como mestre, uma vez que, naquela época, a sociedade

necessitava, cada vez mais, de instituições e de indivíduos que contribuíssem para o seu

controle social.

A partir da segunda metade do século XIX, a composição do quadro de

professores passou por um processo de mudança, com o estabelecimento do predomínio

do sexo feminino. Esse processo de “feminização do professorado”, visível na Escola

Normal da província da Bahia, foi, sem dúvida, introduzindo mudanças nas

representações da imagem masculina e feminina no campo da profissão docente.

Na medida em que o Estado imperial foi criando uma série de requisitos para o

ingresso no magistério como, por exemplo, definição de idade, critérios para admissão

nos cursos normais, normas de conduta moral e conjunto de conhecimentos, concursos

para ingresso no magistério, todo esse processo objetivou delinear o campo de

intervenção do professor nas atividades do ensino.

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