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http://www.comciencia.br/200412/reportagens/framereport.htm 10.amio.05 A Espiral da cultura científica Carlos Vogt I Fernando de Azevedo, no clássico A cultura brasileira, de 1943, seguindo a distinção de Humboldt entre cultura e civilização vê na primeira uma espécie de vontade schopenhauriana da sociedade em preservar a sua existência e assegurar o seu progresso, atendendo não apenas à satisfação das exigências de sua vida material, mas sobretudo e principalmente de suas necessidades espirituais. Como escreve o autor, "cultura, [...], nesse sentido restrito, e em todas as suas manifestações, filosóficas e científicas, artísticas e literárias, sendo um esforço de criação, de crítica e de aperfeiçoamento, como de difusão e de realização de ideais e de valores espirituais, constitui a função mais nobre e mais fecunda da sociedade, como a expressão mais alta e mais pura da civilização". Em 1959, C. P. Snow, proferiu em Cambridge, Inglaterra, a famosa conferência "As duas culturas" que, publicada, tornar-se-ia também um clássico da reflexão sobre as diferenças que separariam a cultura voltada para a ciência e a cultura, humanística, voltada para as artes. Entretanto, como bem aponta o professor Leopoldo de Meis em seu instrutivo e oportuno Ciência e Educação - O conflito humano-tecnológico, de 1998, várias são, ao longo da história, as discordâncias em relação à dicotomia traçada por Snow, entre elas a do escritor americano John Burroughs, para quem "o verdadeiro poeta e o verdadeiro cientista não se estranham", a de Max Planck, que considera que "o cientistas tem de ter uma imaginação vívida e intuitiva, porque as novas idéias não são geradas por dedução, mas por uma imaginação artística e criativa", e mesmo a de Einstein, quando escreve: "Onde o mundo cessa de ser a cena de nossas esperanças e desejos pessoais, onde podemos encará-lo como seres livres, admirando, perguntando, observando, aí entramos nos domínios da arte e da ciência. Se o que é visto e experimentado é mostrado com a linguagem da lógica, estamos engajados em ciência. Se é comunicado através de formas cujas

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http://www.comciencia.br/200412/reportagens/framereport.htm10.amio.05

A Espiral da cultura científica

Carlos Vogt

I

Fernando de Azevedo, no clássico A cultura brasileira, de 1943, seguindo a distinção de Humboldt entre cultura e civilização vê na primeira uma espécie de vontade schopenhauriana da sociedade em preservar a sua existência e assegurar o seu progresso, atendendo não apenas à satisfação das exigências de sua vida material, mas sobretudo e principalmente de suas necessidades espirituais.

Como escreve o autor, "cultura, [...], nesse sentido restrito, e em todas as suas manifestações, filosóficas e científicas, artísticas e literárias, sendo um esforço de criação, de crítica e de aperfeiçoamento, como de difusão e de realização de ideais e de valores espirituais, constitui a função mais nobre e mais fecunda da sociedade, como a expressão mais alta e mais pura da civilização".

Em 1959, C. P. Snow, proferiu em Cambridge, Inglaterra, a famosa conferência "As duas culturas" que, publicada, tornar-se-ia também um clássico da reflexão sobre as diferenças que separariam a cultura voltada para a ciência e a cultura, humanística, voltada para as artes.

Entretanto, como bem aponta o professor Leopoldo de Meis em seu instrutivo e oportuno Ciência e Educação - O conflito humano-tecnológico, de 1998, várias são, ao longo da história, as discordâncias em relação à dicotomia traçada por Snow, entre elas a do escritor americano John Burroughs, para quem "o verdadeiro poeta e o verdadeiro cientista não se estranham", a de Max Planck, que considera que "o cientistas tem de ter uma imaginação vívida e intuitiva, porque as novas idéias não são geradas por dedução, mas por uma imaginação artística e criativa", e mesmo a de Einstein, quando escreve:

"Onde o mundo cessa de ser a cena de nossas esperanças e desejos pessoais, onde podemos encará-lo como seres livres, admirando, perguntando, observando, aí entramos nos domínios da arte e da ciência. Se o que é visto e experimentado é mostrado com a linguagem da lógica, estamos engajados em ciência. Se é comunicado através de formas cujas conexões não são acessíveis à mente consciente, mas são reconhecidas intuitivamente como importantes, então estamos engajados na arte. Comum a ambas e a devoção amorosa àquilo que transcende as preocupações pessoais..."

II

De nosso ponto de vista, embora haja distinções teóricas e metodológicas fundamentais entre arte e ciência, há entre elas algo poderosamente comum. Trata-se da finalidade compartilhada por ambas, que é a da criação e a da geração de

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conhecimento, através da formulação de conceitos abstratos e ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, tangíveis e concretos. No caso da ciência essa tangibilidade e concretude se dá pela demonstração lógica e pela experiência; no caso da arte, pela sensibilização do conceito em metáfora e pela vivência.

Por isso a expressão cultura científica nos soa mais adequada do que as várias outras tentativas de designação do amplo e cada vez mais difundido fenômeno da divulgação científica e da inserção no dia-a-dia de nossa sociedade dos temas da ciência e da tecnologia.

Melhor do que alfabetização científica (tradução para scientific literacy), popularização/vulgarização da ciência (tradução para popularisation/vulgarisation de la science), percepção/compreensão pública da ciência (tradução para public understanding/awarness of science) a expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo isso e conter ainda, em seu campo de significações, a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, ou ainda do ponto de vista de sua divulgação na sociedade, como um todo, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais, de seu tempo e de sua história.

Louis Berlinguet, no Prefácio ao livro When science becomes culture, que contém os trabalhos apresentados no simpósio internacional sobre o tema, realizado em Montreal, Canadá, em abril de 1994, escreve:"No passado, o pequeno grupo de cientistas, que, com grande dificuldade, examinaram as primeiras leis de nosso universo, estava circundado pela sociedade. Com a expansão do conhecimento, nas palavras de Pierre Fayard, houve 'uma revolução coperniciana que tende a fazer com que a ciência gire em torno do público, e não o contrário'. Hoje, quer queiramos ou não, estamos envolvidos em nosso cotidiano pela ciência e pela tecnologia. Desse modo, é melhor tentar conquistá-las do que permanecer passivo em face de seus desenvolvimentos"

Como é possível realizar essa conquista sem estar envolvido diretamente no processo de produção, de difusão ou de ensino e aprendizagem da ciência?

A resposta é "Pela divulgação científica", isto é, pela participação ativa do cidadão nesse amplo e dinâmico processo cultural em que a ciência e a tecnologia entram cada vez mais em nosso cotidiano, da mesma forma que a ficção, a poesia e arte fazem parte do imaginário social e simbólico de nossa realidade e de nossos sonhos, multiplicando em nossa existência única, e provisória, a infinitude de vidas e vivências que vivemos sem jamais tê-las vivido.

III

Quando se fala em cultura científica é preciso entender pelo menos três possibilidades de sentido que se oferecem pela própria estrutura lingüística da expressão:

1.Cultura da ciênciaAqui é possível vislumbrar ainda duas alternativas semânticas:a)cultura gerada pela ciência b)cultura própria da ciência

2.Cultura pela ciênciaDuas alternativas também são possíveis:a)cultura por meio da ciência b)cultura a favor da ciência

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3.Cultura para a ciênciaCabem, da mesma forma, duas possibilidades:a)cultura voltada para a produção da ciênciab)cultura voltada para a socialização da ciência.

Nesse último caso, teríamos em a) a difusão científica e a formação de pesquisadores e de novos cientistas e em b) parte do processo de educação não contido em a), como o que se dá, por exemplo, no ensino médio ou nos cursos de graduação e também nos museus (educação para a ciência), além da divulgação, responsável, mais amplamente, pela dinâmica cultural de apropriação da ciência e da tecnologia pela sociedade.

Essas distinções aqui esquematizadas certamente não esgotam a variedade e a multiplicidade de formas da interação do indivíduo com os temas da ciência e da tecnologia nas sociedades contemporâneas, mas podem contribuir para um entendimento mais claro da complexidade semântica que envolve a expressão cultura científica e o fenômeno que ela designa em nossa época também caracterizada por outras denominações correntes em geral forjadas sobre o papel fundamental do conhecimento para a vida política, econômica e cultural dessas sociedades: sociedade do conhecimento.

IV

Na apresentação que escrevi para o livro Divulgação científica - 96 verbetes, de Isaac Epstein, chamo a atenção para o uso adequado que faz o autor da famosa tirada, cheia de espírito e fina ironia com que Bernard Shaw brinda a distinção entre especialistas e generalistas e a sua relação com o conhecimento nos tempos modernos: os especialistas, sabem cada vez mais sobre menos, até saberem tudo sobre nada, enquanto os generalistas sabem cada vez menos sobre mais, até não saberem nada sobre tudo.

Será essa a vertigem do conhecimento? Estará a sociedade fadada a viver na exterioridade completa da compreensão e do entendimento daquilo que hoje, mais do que nunca, por ser também riqueza, estrutura e determina o conjunto de nossas relações de trabalho, de nossos valores culturais e éticos, e mesmo cotidiano de nossas esperanças?

A distinção cara à tradição do positivismo lógico que opõe o contexto de justificação ao contexto de descoberta da ciência, estabelecendo diferenças epistemológicas cortantes entre o que é intrinsecamente próprio do fazer científico e aquilo que o cerca como eventualidade histórica e externa às suas normas, regras e leis constitutivas, essa distinção, dentro do que aqui vai sendo chamado de cultura científica, vai também perdendo sua força, não fosse, entre outras coisas, o fato de que a ciência, por suas transformações, foi incorporando, como campo de sua pesquisa, a própria relação entre o fenômeno observado e o observador.

Mudanças importantes nos paradigmas científicos, como aquelas analisadas por Popper e por Khun, trouxeram também conseqüências importantes para as culturas dos que fazem ciência, dos que ensinam a fazer ciência e dos que buscam fazer saber como e para quê se faz ciência. Essas mudanças marcam também, no plano geral dos valores que caracterizam a maior parte das sociedades contemporâneas, a dinâmica do processo cultural da ciência e da tecnologia conhecido como cultura científica e tecnológica.

Como medi-lo? Como avaliá-lo? Como interpretá-lo?

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Há, desde que foi constatado e nomeado, uma grande quantidade de estudos produzidos, uma literatura sociológica e economicista em franco desenvolvimento e constituição, um volume significativo de indicadores que se apresentam, questionários sobre percepção pública da ciência que se aplicam, estatísticas sobre o número de visitantes de museus dedicados ao tema, estudos sobre sua ocorrência na mídia e a sua frequentação pelo leitor, e, sobretudo, uma enorme vontade epistemológica de definição, própria das grandes novidades e dos novos campos de conhecimento, em geral multidisciplinares, como é o caso desse que a expressão cultura científica procura recortar.

V

A dinâmica da chamada cultura científica poderia ser melhor compreendida se a visualizássemos na forma de uma espiral, a espiral da cultura científica, como proponho chamá-la.

A idéia é que a representássemos em duas dimensões evoluindo sobre dois eixos, um horizontal, o do tempo, e um vertical, o do espaço, e que pudéssemos, estabelecer não apenas as categorias constitutivas, mas também os atores principais de cada um dos quadrantes que seu movimento vai, graficamente, desenhando e, conceitualmente, definindo.

Espiral da Cultura Científica

Tomando-se como ponto de partida a dinâmica da produção e da circulação do conhecimento científico entre pares, isto é, da difusão científica, a espiral desenha, em sua evolução, um segundo quadrante, o do ensino da ciência e da formação de cientistas; caminha, então, para o terceiro quadrante e configura o conjunto de ações e predicados do ensino para a ciência e volta, no quarto quadrante, completando o ciclo, ao eixo de partida, para identificar aí as atividades próprias da divulgação científica.

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Cada um desses quadrantes pode, além disso, caracterizar-se por um conjunto de elementos que, neles distribuídos, pela evolução da espiral, contribuem também para melhor entender a dinâmica do processo da cultura científica.

Assim no primeiro quadrante, teríamos como destinadores e destinatários da ciência os próprios cientistas; no segundo, como destinadores, cientistas e professores, e como destinatários, os estudantes; no terceiro, cientistas, professores, diretores de museus, animadores culturais da ciência seriam os destinadores, sendo destinatários, os estudantes e, mais amplamente, o público jovem; no quarto quadrante, jornalistas e cientistas seriam os destinadores e os destinatários seriam constituídos pela sociedade em geral e, de modo mais específico, pela sociedade organizada em suas diferentes instituições, inclusive, e principalmente, as da sociedade civil, o que tornaria o cidadão o destinatário principal dessa interlocução da cultura científica.

Ao mesmo tempo, teríamos outros atores distribuídos pelos quadrantes.

Assim, a título de ilustração, teríamos no primeiro quadrante, com seus respectivos papéis, as universidades, os centros de pesquisa, os órgãos governamentais, as agências de fomento, os congressos, as revistas científicas; no segundo, acumulando funções, outra vez as universidades, o sistema de ensino fundamental e médio, o sistema de pós-graduação; no terceiro, os museus e as feiras de ciência; no quarto, as revistas de divulgação científica, as páginas e editorias dos jornais voltadas para o tema, os programas de televisão, etc.

Importa observar que nessa forma de representação, a espiral da cultura científica, ao cumprir o ciclo de sua evolução, retornando ao eixo de partida, não regressa, contudo, ao mesmo ponto de início, mas a um ponto alargado de conhecimento e de participação da cidadania no processo dinâmico da ciência e de suas relações com a sociedade, abrindo-se com a sua chegada ao ponto de partida, em não havendo descontinuidade no processo, um novo ciclo de enriquecimento e de participação ativa dos atores em cada um dos momentos de sua evolução.

Como resultado desse movimento que a espiral da cultura representa vale a pena registrar o nascimento de instituições voltadas para as questões de ciência e tecnologia e que têm fortes componentes de participação da cidadania, como é o caso, no Brasil por exemplo, da CTNBio e de suas atribuições regulativas no que diz respeito à nossa biodiversidade.O que, enfim, a espiral da cultura científica pretende representar, na forma que lhe é própria, é, em termos gerais, a dinâmica constitutiva das relações inerentes e necessárias entre ciência e cultura.

 

As confluências entre arte, ciência e tecnologia

A proximidade entre arte e ciência pode ser traçada de muitas formas diferentes no decorrer da história. O escultor, pintor, engenheiro e cientista Leonardo da Vinci (1452-1519) afirmava que ciência e arte completavam-se constituindo a atividade intelectual. A literatura de ficção científica, por sua vez, é compreendida por vários intelectuais como uma antecipação, nas e pelas artes de futuros feitos da ciência. Em ambos os casos, bastante distantes, um ponto comum: a proximidade entre arte e ciência, seja pela complementariedade ou pela influência recíproca.

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Mais recentemente, seguidas gerações de artistas têm desenvolvido suas obras focalizando áreas tecnocientíficas, os avanços da computação e dos meios de comunicação, a biologia e a engenharia genética, entre outros. Esse é o caso do que tem sido nomeado como arte eletrônica, arte-comunicação, ou ainda, arte transgênica.

No Brasil, Abraham Palatnik (1928) e Waldemar Cordeiro (1925-1973) são considerados os pioneiros dessa convergência entre arte, tecnologia e ciência. O primeiro, após suas pesquisas sobre luz e movimento e discussões com o crítico de arte Mário Pedrosa, desenvolveu um aparelho cinecromático, exposto na 1a Bienal Internacional de São Paulo (1951). Os trabalhos de Palatnik fazem parte do que se convencionou chamar arte cinética e apresentam objetos que se movimentam por eletroímãs ou motores de pequenas dimensões, e que mudam de coloração conforme a ação da luz. O trabalho de Waldemar Cordeiro, contemporâneo de Palatnik, introduziu em 1970, o uso do computador nas artes visuais.

Desde a década de 1970 no Brasil, quando ocorreu a mostra Arteônica - O uso criativo dos meios eletrônicos em arte, realizada por Cordeiro, muitos outros artistas têm se voltado para a confluência da arte, ciência e tecnologia. A artista Diana Domingues, que coordena as pesquisas do Grupo de Pesquisa Artecno, do Laboratório de Novas Tecnologias nas Artes Visuais, da Universidade de Caxias do Sul (RS), explora a dimensão artística e estética das tecnologias através do tratamento eletrônico de imagens, vídeo, dispositivos de interação, redes neurais, em instalações interativas, web art e eventos robóticos. Para ela a relação amalgamada entre ciência, arte e tecnologia é hoje um sintoma mundial que trabalha com um novo conceito de arte. "É a noção da arte não mais como objeto, mas como sistema complexo, que permite a interação. As pessoas que vão ver uma obra não apenas contemplam, mas interagem.", explica Domingues.

A pesquisa atual de Diana, envolve as áreas de artes, comunicação, filosofia, informática e automatização industrial e focaliza a idéia de simbiose entre o corpo biológico e corpos sintéticos, e as alterações nos modos de sentir propiciados pelos sistemas interativos. Um exemplo desse trabalho é a obra denominada INS(H)NAHE(R)ES. Nesse trabalho, um robô dentro de um serpentário pode ser movimentado pelas pessoas através da Internet. A web câmera do robô transmite as imagens de dentro do serpentário, de forma, que o robô simula o corpo e a visão da pessoa, como se ela estivesse em seu lugar. "Esse é um projeto de comunicação em que a telepresença e a telerobótica colocam as pessoas num limite extremo. O título da obra significa in snakes e, ao mesmo tempo, as letras entre parênteses podem forma a palavra share, que traz a idéia de partilhar o corpo humano com o corpo do robô", afirma a artista. Na sua opinião, a ciência e a tecnologia trazem novas possibilidades para a arte, que as utiliza e, ao mesmo tempo, difunde-as.

Outro artista que trabalha com essa relação é Kiko Goifman, autor do livro e CD-ROM Valetes em slow motion. Segundo ele, num primeiro momento de seu trabalho, havia um interesse sobre como a arte poderia difundir questões científicas, fechadas ao meio acadêmico. No entanto, essa idéia foi abandonada em prol da utilização de meios tecnológicos, como vídeo, internet, CD-ROMs e instalações, para o desenvolvimento de processos criativos. Em seu livro, Goifman explora o conceito de tempo e discute como sua percepção se dá pelo excesso na prisão e, pela escassez, quando percebido por pessoas em liberdade. Para ele, a aproximação entre arte e ciência é bastante produtiva. "Cada vez mais meu trabalho é desenvolvido na relação com ciência e tecnologia, até porque existe uma questão da ciência que é muito importante como contribuição para a arte: a possibilidade do tempo da pesquisa, do mergulho e imersão. O tempo dentro da universidade e da academia é bem diferente, não é o tempo das empresas e dos negócios, o tempo imediato. Isso gera uma bagagem de conhecimento que é fundamental para os artistas", afirma Goifman, que ressalta que assim como ele, que é antropólogo e fez mestrado em multimeios, muitos artistas que exploram essa relação têm ligações com o mundo acadêmico.

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Na 25a Bienal de São Paulo, Goifman apresentou junto com Jurandir Müller a obra Cronofagia, na qual uma página da internet podia ser clicada, mas aparentemente nada ocorria após o clique. No entanto, cada aperto do botão do mouse era contabilizado e a partir de um certo número de cliques uma nova imagem se formava. "Estava colocado nesse trabalho o excesso de movimentos na internet, a idéia de imagem não duradoura e uma crítica a essa situação quase comercial da internet. Outra coisa que também estava presente era a ação individual e a coletiva na rede", diz Goifman.

Para o artista, apesar de não ser possível definir dicotomias ou diferentes vertentes entre esses artistas, existem aqueles mais otimistas ou pessimistas com relação à ciência e à tecnologia. Segundo ele, há uma aproximação de parte dos trabalhos com filósofos que trabalham com as idéias de ciberespaço, como Pierre Levy, que tem uma visão positiva da internet. Por outro lado, assim como Diana Domingues, ele diferencia essa convergência entre arte, ciência e tecnologia, daquela que procura fazer divulgação científica. "Apesar de difundir as possibilidades da tecnologia e de alguns caminhos pessoais, como o meu, cruzarem-se em algum momento com a divulgação científica, é necessário destacar que são coisas diferentes", afirma Goifman.

Teatro e divulgação científicaA relação arte e ciência visando a divulgação científica está mais presente no teatro. É o caso de peças teatrais promovidas pela Estação Ciência da USP, como a que estreou em junho deste ano Conexões cósmicas, reunindo diversas teorias sobre a criação e evolução do universo.

A divulgação científica pela via teatral tem sido bastante comum nos últimos anos. Peças como Einstein ou a montagem brasileira de Copenhagen, tiveram um sucesso de público bastante inesperado e foram as precursoras de uma nova forma de divulgação da ciência. Outro precursor dessas iniciativas foi o grupo coordenado pelo bioquímico Leopoldo de Meis, que encenou a peça Método Científico. As experiências foram tão bem recebidas pelo público que atualmente existem até mostras de teatro científico como é o caso da realizada na Universidade Federal da Universidade do Espírito Santo (UFES), em junho de 2003.

(MK)

 

Em aulas de ciências, ensinam-se ciências?

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Existem idéias que nos perseguem e que, embora fixas, vêm e voltam recorrentemente aos nossos pensamentos e formas de agir, na expectativa de se concretizarem, de ganharem vida e de se efetivarem, no desejo de deixarem de ser idéias. Muitas dessas idéias não têm sua localização na consciência ou inconsciência humana; fazem parte, compõem nossas culturas, movimentam um conjunto vasto de relações que estabelecemos e obtêm nas linguagens suas formas de captura e expressão das realidades ou, em outras palavras, suas representações.

Garantir que aspectos relevantes das ciências estejam presentes no currículo do ensino das ciências das escolas é uma das idéias fixas da comunidade de pesquisadores em educação em ciências, tanto brasileiros como estrangeiros. Perdurando há mais de 50 anos, existe um conjunto de movimentos, que podem ser tonalizados como reformas curriculares, formação de professores, produção de

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materiais didáticos e pesquisas acadêmicas; são múltiplas vozes imprimindo, fantasmaticamente, os encontros entre ciências e escolas (mais especificamente as práticas de ensino) com aspectos dissonantes, harmoniosos ou marcando diferenças.

Proponho inicialmente um breve passeio em nossas lembranças de estudantes para estabelecer linhas, portos de paragem e admirar as aulas de ciências. Para alguns de nós são muito expositivas, centradas nos conteúdos, tendo o livro didático como grande referência, ou seja, igual às escolas, quando são oficialmente apresentadas. Também é possível que lembremos dos laboratórios de ciências, mesmo que não fossem utilizados, de alguns experimentos, de trabalhos de campo, de modelos (átomo, célula, sistema solar), das feiras de ciências , de alguns equipamentos (o microscópio é um dos que teve o maior ibope, embora as células visualizadas nem tanto...). Para outros de nós, as lembranças recaem sobre as figuras dos livros didáticos, na apresentação os cientistas (em geral, homens, brancos, europeus ou o professor), as relações entre ciência e sociedade, a relevância das tecnologias, os órgãos dos corpos humanos - sempre aos pedaços- e as inusitadas figuras dos aparelhos reprodutores masculino e feminino, muitas vezes juntos em um mesmo corpo (uma criação didática que é instigante). Temáticas variadas como sexualidade, educação ambiental, ética, história da ciência, jogos/modelos/simulações, quando em nossas lembranças persistem, têm muitas chances de serem associadas às aulas de ciências.

Como dizem as más e as boas línguas o ensino de Ciências há de ser dinâmico, prático e atual! Em nossas rememorações, quem sabe ele já não está sendo?

A indústria cultural - incluindo cinema, televisão, produtoras de audiovisuais diversos, jornais, editoras de revistas e de materiais didáticos - age sobre o ensino de ciências expandindo-o em multiplicidades, mantendo as características apontadas acima, colocando- as em circulação para além das escolas, e compondo nosso repertório de possibilidades de entrar em contato com representações do ensino de Ciências e rememorá-lo. É possível, então, pensarmos que nos educamos sobre ciências em diferentes espaços e que muito do que aprendemos pretendem ter significações próximas.

Como nas escolas, professores usam vários recursos produzidos pela indústria cultural, uma série de identificações será provavelmente estabelecida, como em uma cópia, uma decalque. Esses pressupostos respaldados na reprodução, repetição e similaridade são uma das referências de trabalhos que se debruçam sobre análise de materiais didáticos que educam em ciências (livros, vídeos, jogos etc) tanto em investigações acadêmicas quanto em nível do Ministério da Educação. Constituem uma das tradições sobre a educação em ciências, juntamente com os estudos das concepções de alunos e professores sobre ciências e a análise de como tais concepções interferem nas situações práticas sociais, cotidianas e profissionais. Têm seu com valor, mérito e contribuições reconhecidamente relevantes.

Quero neste artigo produzir um diferir das escolas associado aos meios de produção e aos formatos de apresentação das ciências. É nessa esteira que buscarei as produções cotidianas em aulas de Ciências e as colocarei neste texto, fragmentadamente, na humilde esperança de expressar como as escolas, ao produzirem significações para as ciências, peculiarizam-nas.

Os entornos das relações entre ciências e escolas são constituídos, culturalmente, em tênues fronteiras: seria impossível, mesmo que insistíssemos muito, querer perceber em situações de ensino e aprendizagem tais relações pelos seus elementos identificadores, a partir de suas marcas peculiares, essenciais ou próprias. Convido o leitor a imaginar os transbordamentos, as dobras e aquilo que excede os lugares próprios, fixos escolas e ciências. Faremos isso, juntos, por minha escrita e pela leitura que a potencializa, caminhando, em busca dos modos de funcionamento da educação

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em ciências em episódios que aconteceram na 6ª série e na 8ª série, em duas distintas escolas públicas do estado de São Paulo.

A professora entra na sala da 6ªB. Cumprimenta a classe. Dois alunos vêm cumprimentá-la com um abraço.

- Eu queria organizar com vocês a aula de hoje. Nós vamos montar o que vamos chamar de borboletário. Vamos ver o desenvolvimento dos ovos em lagarta e em borboleta. O que a gente já tem são os ovos de borboleta que o Eduardo trouxe em uma folha, uma lagarta que estava no coquinho e outra maior. São todas borboletas diferentes. Nós vamos observar o ciclo delas.

Mostra um livro ilustrado com todas as fases doaa ciclo.

- Dependendo da borboleta ela coloca os ovos na folha que depois as lagartas vão se alimentar. As lagartas são diferentes em cada espécie. É a fase infantil da borboleta, nesta fase ela não se reproduz.

- Então como apareceu esta outra lagarta no vidro?

- Devia ter um outro ovo no vidro que você não viu. Ela não se reproduz nesta fase. É com a gente, bebê se reproduz?

- Não!

- Vocês estão começando a produzir óvulo, espermatozóides, outros ainda não entraram nesta fase. Eu e a Alice já somos borboletas. Mas mesmo que alguns de vocês já tenham entrado nesta fase é para esperar viu, não é hora de ter filho ainda!

Os conhecimentos sobre lagartas e borboletas são recontextualizados, com finalidades reguladoras morais, para falar sobre comportamentos humanos.

 

Continua mostrando as ilustrações do livro.

A respeito de que animais mesmo se está falando nesta aula?Os conhecimentos científicos, as representações da natureza, a intermediação do mundo pelo observação

- Outro inseto que eu trouxe é o bicho-pau, que eu peguei lá no Taquaral. Eles estão lá no salão.

Um aluno vai buscá-los. A professora abre o aquário, os alunos se juntam no entorno dele. Edna deixa que eles peguem nos bichos-paus, pedindo cuidado.

- Olha só, o macho tem asa. Como ele é adolescente a asinha dele está crescendo. A

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tensionam-se no contexto escolar no qual é forte condição a relação com o cotidiano, com a realidade e o vínculo com a transformação dos alunos.

fêmea é mais gordinha e não tem asa. Por que será, Alice?

- Talvez seja porque é ele que saia para procurar a fêmea.

- Olha só, é ele que sai para procurar namorada. A fêmea trocou de pele.

Mostra a casca de muda da fêmea. Depois explica:

- Olha só, os insetos tem o esqueleto endurecido por fora, enquanto que na gente o esqueleto é interno. A nossa pele estica, a barriga da mulher estica quando está grávida.Algum aluno faz uma brincadeira.

- É, o pênis também fica duro, depois fica mole.

Alunos riem. Um menino brinca:

- Não pode falar de pênis, é palavrão!

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Com essas e outras idéias, os alunos, separados em pequenos grupos, iniciaram a leitura do Tema 5 do livro didático da 8ª série do ensino fundamental. Numa nova organização para a aula, os alunos, em grupos de três, fizeram a leitura de determinadas páginas do livro para, em seguida, contarem a história para os colegas. O tema era Origem da Vida e a professora tinha a impressão de que poderia privilegiar a discussão sobre ciência e cientistas. Perguntou aos alunos, principalmente os que não foram seus alunos no ano passado, como descreveriam um cientista. Os alunos, surpreendentemente, não apresentaram uma visão estereotipada do cientista com relação à sua imagem física.

Uma das mais belas discussões que ocorreram nessa aula foi realizada a partir da dúvida de uma aluna se o cientista era ou não um sábio. Esta dúvida, também compartilhada em alguns momentos da fala pela própria professora, derivou da relação da aluna com uma das frases escritas no livro didático.

Nas interlocuções, fios se emaranham...

_ Professora, qual é a diferença do sábio com o cientista?_ Alguém pode explicar para a L.?_ Eu acho que ele sabe bastante, mas cientista não, cientista fica se matando, para aprender, para o que ele sabe, não é, dona?_ A gente estava conversando aqui, o sábio sabe quanto vai dar o cálculo. Agora o cientista não, ele fica calculando, usando fórmula até dar o cálculo! Não sabe antes._ A senhora é sábia, então, professora?

E explodem multiplicidades...

_ E você acha assim, que essa pessoa é muito sábia? Tem muito conhecimento, daria para você conversar com ela?_ Não._ Não, você acha que não daria para conversar?_ Eu não. Só se fosse sobre televisão. Agora planta, igual a isso aí, a vida, não!_ Aí não!_ Não._ Você acha que se você conversasse com o cientista, ele ia te colocar algumas perguntas meio cabeludas que você não saberia, você não teria parado para pensar ainda?_ É!_ E essa é a mesma visão que você tem, L.? Do cientista? Já viu alguma foto em livro, sobre cientista? E aí, te representou uma pessoa normal?_ É, normal. Com mais estudo, com estudos específicos _ E é uma pessoa que está sempre em busca de conhecimentos, de descobertas.

Na opinião da professora de ciências, os alunos vivenciaram, em aulas anteriores, experiências similares à produção do conhecimento científico pelos cientistas. Este foi ponto explorado por ela para mostrar dificuldades e diferenças no trabalho dos cientistas.

(Os métodos da ciência)_ Você acha que tudo por que você passou, um cientista passa também?_ Passa_ Passa, não passa, J., só que ele tem que fazer o quê? Ele tem que explicar, de alguma maneira, ele tem que o quê? passar a informação para aquelas pessoas que estão lendo, ou se depois ele escreve, ele vai demonstrar. Ele tem que mostrar a verdade daquilo que ele está tentando fazer. A M. não veio aqui mostrar, ela veio mostrar como funcionava. Você não tem aqui uma pessoa com o abdômen aberto, o tórax para você olhar como funciona o pulmão. Então, ela fez de uma maneira que

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você consiga ver, você vai o quê? Imaginar. Então tem experimento que você vai fazer e a pessoa vai imaginar e tem coisa que você vai fazer de concreto, ali, que você vai realizar, como é o caso da J. que fez acender a lâmpada, colocando-a na água com sal e na água com açúcar, demonstrando. Ela provou a experiência dela. Ela fez o papel de um cientista, também. Então, eu estou falando tudo isso para quê? Para ver se você consegue chegar na origem da vida. A origem da vida, todos os livros que a gente vê, experimentos que você vê, são cientistas que estão tentando, ou tentaram mostrar para nós por que eles chegaram até aquele ponto. Porque ninguém estava lá, gente, há bilhões de anos atrás. Só que a gente tem que saber uma história nossa.

A Origem da Vida é nossa história, de homens e mulheres, é história da ciência, é diversidade dos métodos científicos, é papel social dos cientistas, é relação entre cidadão comum e conhecimento científico, é a circunscrição de quem tem o poder de saber coisas do mundo antes das demais pessoas, é religião...

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim é professor assistente doutor da Faculdade de Educação da Unicamp, pesquisador no Grupo Formar Ciências e vice-presidente da Diretoria Executiva Nacional da Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia - [email protected]

 

Imaginando uma paleontologia da cultura científica

Yurij Castelfranchi

Malucos e geniais, lucidamente racionais porém instintivamente distraídos, heróicos ou às vezes perigosos: o cinema, as histórias em quadrinhos e as novelas pintam uma imagem dos cientistas (e das cientistas) complexa e cheia de contradições. A mídia, a literatura e a arte contam a ciência como uma aventura humana carregada de ternura mas também inquietante, rica de promessas e também de perigos; fonte de um conhecimento que é objetivo e democrático mas, ao mesmo tempo, esotérico e aparentemente inalcançável para a maioria das pessoas.

O jeito tradicional de resolver essa contradição, especialmente no norte da Europa e nos Estados Unidos, foi interpretá-la simplesmente como fruto de uma escassa cultura científica: as pessoas não conhecem a ciência e o método científico; é natural sentir medo do desconhecido; conseqüentemente, as pessoas têm medo da ciência e das aplicações tecnológicas, têm reverência e pavor do cientista, que imaginam parecido com um bruxo.

Esse silogismo é, para alguns, tranqüilizante. Todavia contém só uma parte da verdade, tanto nas premissas como nas conclusões: os Estados Unidos estão entre os países com pior nível de alfabetização científica, e é também um dos lugares onde as pessoas têm maior confiança em relação à ciência e suas aplicações. Na Europa, foi mostrado que os melhores níveis de conhecimento científico se tornam às vezes sinônimo de um maior nível de atenção crítica e preocupação em relação a alguns setores da ciência contemporânea.

Um dos problemas é que a cultura científica foi estudada mais pelos buracos do que pelos conteúdos. E mais pelos fatos, dados, noções, do que pelos aspectos culturais mais profundos como os símbolos, as metáforas, os medos, o imaginário. Em inúmeras entrevistas e questionários sobre a chamada Public Understanding of Science (compreensão pública da ciência), foi estudado muito mais o que as pessoas não sabem, o que não entendem, o que não conseguem aceitar, do que o contrário. A

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cultura científica foi deduzida principalmente a partir de interrogações de tipo escolar sobre conceitos, fatos, números. Esses dados são muito importantes, mas nos contam só uma metade da história: permitem uma análise substantiva (e pessimista) só em termos de quanta informação é perdida no caminho entre a ciência e o público. Não consideram a parte aditiva: o contexto, as metáforas, as percepções, os mitos e símbolos que todos nós, antes e além da informação que recebemos pela mídia ou na escola, anexamos para construir nossa própria imagem da ciência e do cientista.

Esse imaginário científico é difícil de estudar porque, como toda a cultura, é formado de sedimentos que apareceram em épocas diferentes, se estratificaram com o tempo e sobrevivem juntos, reelaborados, ainda hoje. Contém alguns mitos profundos, mais antigos do que a própria ciência. Para analisar a cultura científica de um país, temos então que perguntar o que é uma molécula, ou se os homens apareceram na Terra antes dos dinossauros. Mas precisamos também de uma paleontologia da percepção científica. Nesse sentido, pelo menos três grandes elementos antigos dão uma contribuição importante a nosso imaginário sobre conhecimento em geral e, pelo menos cinco sedimentos modernos compõem nossa imagem sobre o que é a atividade científica.

Na pré-história do imaginário, o conhecimento foi associado, em quase todas as culturas, a três grandes dilemas, todos caraterizados por um pólo positivo (de entusiasmo, euforia, paixão pela novidade) e um pólo negativo (de medo, desconfiança ou hostilidade em relação às conseqüências do próprio conhecimento):

o dilema do conhecimento em si mesmo; o dilema do controle do conhecimento e suas aplicações; o dilema da manipulação e transformação da natureza e da superação da

fronteira entre o inanimado e o animado.

O primeiro dilema, que podemos chamar "do fruto proibido", nos lembra que tentar conhecer o universo é um impulso que homens e mulheres sempre querem perseguir, mas que ao mesmo tempo pode representar uma violação da ordem natural ou divina. O conhecimento é indispensável, e é também terrível. Na Bíblia ele assume a forma do fruto proibido, na Odisséia (e na Divina Comédia) é a teimosia corajosa (e desastrosa) de Ulisses, que quer ultrapassar as Colunas de Hércules: "não nascemos para viver como brutos" - ele declara no poema de Dante - "mas para perseguir virtude e conhecimento". Na cosmologia grega, o roubo do fogo do conhecimento é o heróico feito de Prometeu em favor dos homens, porém sofrendo para a eternidade uma duríssima punição.

O segundo dilema, que chamamos "do aprendiz de feiticeiro" enfatiza que o conhecimento é poder e que o poder tem que ser controlado com sabedoria. O mito do aprendiz de feiticeiro, de origem egípcia, foi transformado em literatura no segundo século antes de Cristo pelo escritor sírio Luciano de Samosata. Foi reelaborado em forma de poesia romântica por Johann Wolfgang Goethe, em forma de música pelo francês Paul Dukas e, enfim, transformado em desenho animado por Walt Disney. Em um trecho célebre de "Fantasia", Mickey Mouse aproveita a ausência do feiticeiro - que se chama Yen Sid (ler ao contrário e descobrir quem é) para experimentar o chapéu mágico, com resultados cômicos, mas quase catastróficos.

O terceiro grande símbolo, positivo e negativo, é ligado ao desejo antigo de transformar os seres vivos ou até dar vida a corpos inanimados. Podemos chamá-lo de "dilema do Golem": o nome, que já aparece na Bíblia, se torna na Idade Média a lenda de um rabino que consegue dar vida a uma estátua de barro por meio do poder da cabala. Escrevendo na testa do gigantesco monstro a palavra "emet" (vida, em hebraico), ele vive. Depois de provocar muito medo, ele terá que ser destruído retirando a primeira letra da escrita mágica, para formar a palavra "met" (morte).

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Não é difícil perceber o quanto estes três elementos penetraram profundamente no nosso imaginário: dúzias de contos (como Frankenstein, ou Dr. Jekyll & Mr. Hyde) e centenas de filmes (2001: uma Odisséia no espaço, O Exterminador do Futuro, Jurassic Park, Matrix...) nos mostram a maravilha e o medo, as vantagens e os perigos de conhecer, controlar o conhecimento, utilizá-lo para transformar os vivos ou dar vida, inteligência e consciência aos inanimados.

Mas esses elementos profundos, "pré-históricos", não são os únicos. Eles fundamentam nosso imaginário científico que se forma a partir de símbolos que nasceram na época moderna e que descrevem a ciência como:

novidade e progresso método e instrumento de domínio sobre a natureza saber democrático que permite a libertação dos povos saber "superior", separado do conhecimento comum por linguagem e conceitos

que poucos podem entender enfim, tecnociência, saber tão poderoso que pode se transformar em inúmeras

tecnologias e transformar radicalmente nossas vidas, tanto para o bem como para o mal.

O primeiro elemento aparece pela primeira vez no Renascimento. Entre os séculos XV e XVII novos mundos geográficos, biológicos, astronômicos, tecnológicos e epistemológicos são descobertos com uma velocidade jamais vista na história. A palavra latina novum (novo, novidade) aparece no título de dúzias de livros. Nascem as wunderkammern (salas das curiosidades, embriões de museu científico). Nasce a idéia fundadora da modernidade: o mito do progresso. Pais e filhos vivem em mundos diferentes. Os antigos não são os mais sábios. Nós somos anões que, "sentados nos ombros dos gigantes" do passado, podemos enxergar mais longe que eles. A modernidade (e a imagem do progresso científico) é caraterizada por essa euforia que também é fonte de insegurança e medo.

Durante a Revolução Industrial nasce a ciência moderna propriamente dita. Tem um método baseado em hipótese e experimento - descrito por Galileu - e uma filosofia, codificada entre outros por Francis Bacon, que também declara: a meta da ciência não é somente conhecer e explorar o novo, mas também dominar e controlar a natureza "para alcançar todos os objetivos". Novamente, uma promessa que um dia iria também soar como ameaça. O século das Luzes e o Positivismo somam essas imagens para destilar um imaginário que tende a exaltar a ciência como a única fonte de conhecimento verdadeiro e objetivo, transformando-a quase numa religião. Mas, ao mesmo tempo, a profissionalização da ciência (a palavra "cientista" aparece somente depois em 1830), a especialização das disciplinas científicas, junto com a formalização da linguagem separam definitivamente a ciência do público leigo, levando a uma visão do cientista como de um ser mais e mais alheio e "diferente de nós".

No século XX, enfim, as guerras mundiais concretizam e cristalizam com imagens definitivas, e não míticas, o antigo entusiasmo bipolar sobre conhecimento e ciência. Com os aviões os homens alcançam o sonho de voar e também acabam com centenas de anos de estratégia militar: conseguem pular montanhas, rios e exércitos para aparecer acima das cidades e jogar bombas na população civil. Pior, comandando na linha de frente, o grande químico Fritz Haber (que ganhará o prêmio Nobel em 1918) faz uso de gases tóxicos em Ypres e transforma o primeiro conflito mundial na chamada "guerra dos químicos", mostrando que a mesma ciência (e o mesmo cientista) capaz de inventar o adubo químico, produz, para usar as palavras do próprio Haber, "um meio superior de matar". Durante a Segunda Guerra Mundial (a chamada "guerra dos físicos") a ciência se apresenta - até nas formas mais teóricas e abstratas (a teoria da relatividade, o eletromagnetismo, a física quântica) - como meio estratégico crucial para a supremacia militar, econômica, política. E dá o exemplo final do seu potencial destrutivo planetário.

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Hoje, para o cidadão, ciência é um pouco de tudo isso. É basicamente positiva: na maioria das revistas de divulgação é novidade e progresso, é sala das maravilhas e sinônimo de verdade, é instrumento de transformação da natureza e de libertação da superstição, é mãe generosa de novas terapias, máquinas, bem-estar. Mas também, no cinema e nos quadrinhos, a ciência é fonte do poder do "cientista maluco", que cria instrumentos com conseqüências ecológicas (ou morais) inquietantes e imprevistas e que podem ser utilizados para fins destrutivos.

Há muita ciência na mente de cada um de nós. Podemos não saber definir um gene ou não ter uma idéia exata do que é uma molécula ou a lei da gravidade, mas todos estamos incorporando muita parte da moderna genética, da química, da física. Olhando as estrelas hoje, um camponês e um poeta imaginam um objeto que é muito mais parecido com o objeto descrito por um astrofísico do que com as estrelas imaginadas por Aristóteles. Mas essas imagens científicas nas nossas cabeças não são somente na forma de conceitos mais ou menos aproximativos, de dados, leis, fatos. São também na forma ambígua, contraditória e interessantíssima de metáforas, símbolos, sonhos e medos estratificados. São, em uma palavra, cultura. E a cultura transita não somente pelos canais visíveis da divulgação e da educação escolar, mas também, antes e mais, ao longo dos caminhos subterrâneos, enrolados, longínquos, da difusão cultural de mitos e símbolos. Antes de aprender a palavra e o conceito, uma criança pode intuir o que é o frio tomando um sorvete. Antes de ler um livro de texto ou uma revista, um cidadão constrói uma imagem da ciência e do cientista por meio das novelas, do cinema, da arte, da música. Estudar a cultura científica adentrando por esses caminhos e contradições, analisando o imaginário que o público agrega à informação científica além de suas falhas no conhecimento, é mais difícil. E também mais fascinante.

Yurij Castelfranchi é jornalista científico, mestre em Comunicação da Ciência e professor de Teoria e Técnicas de Comunicação Científica na Escola Internacional Superior de Estudos Avançados (SISSA) em Trieste, Itália.

 

Criança & Ciência*

Bianca Encarnação

Será que criança se interessa em saber como nascem as estrelas, quem foi Galileu Galilei, como vivem os índios Waimiri-Atroari ou quais as conseqüências da extinção do jacaré-de-papo-amarelo? Tudo depende da forma como os assuntos são explicados a ela. Nem sempre é fácil. Mas o desafio de atuar como intérprete dos fatos da ciência para o público leigo de qualquer idade é o que há de mais entusiasmante para quem trabalha com divulgação científica.

No Brasil, são raros os espaços na mídia com o propósito de construir uma ponte entre a ciência e o público infantil. O único periódico integralmente voltado à divulgação científica para crianças é a revista Ciência Hoje das Crianças, objeto de análise deste artigo. Editada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a publicação nasceu em maio de 1986, como encarte da revista Ciência Hoje. A linguagem inovadora com que os mais diversos temas da ciência eram tratados no encarte, totalmente diferenciada dos livros didáticos, foi bem recebida pelos filhos dos leitores de Ciência Hoje e também pelos professores apresentados à publicação. Em setembro de 1990, Ciência Hoje das Crianças foi transformada em uma revista independente.

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A concepção da publicação partiu do pressuposto que meninos e meninas, com idade entre 7 e 14 anos, podem ter interesse despertado para fatos de todas as áreas da ciência. Assim, Ciência Hoje das Crianças firmou-se como publicação de caráter multidisciplinar, abordando ciências exatas, humanas e biológicas, dedicando especial atenção para a educação ambiental, e abarcando também temas relacionados à cultura.

A linguagem da revista pretende aguçar a curiosidade dos leitores para a relação entre a ciência e a experiência cotidiana. Os textos, em sua maioria escritos por pesquisadores e professores da comunidade científica, têm o tamanho e a forma de abordagem adequados ao perfil do público leitor. Este trabalho de adaptação da linguagem, realizado por jornalistas especializados, visa promover a aproximação entre cientistas, pesquisadores e o público infanto-juvenil.

Neste estreitamento de laços, reside o objetivo maior de desmitificação da idéia de que ciência é campo de estudo para gênios, intelectuais e outros privilegiados. Ciência Hoje das Crianças busca fugir das fórmulas e respostas prontas. A proposta é de uma relação interativa com o leitor, estimulando a investigação e a reflexão que o levarão a construir suas próprias explicações para os fenômenos à sua volta a partir do conhecimento científico apresentado nos textos. Para que tudo isso seja possível, a revista ousa em tratar a ciência de forma coloquial, leve e, sempre que possível, divertida.

Bom-humor com seriedadeComo chamar a atenção da criança para as reações químicas que fazem o açúcar se transformar em caramelo? A saída pode ser uma receita de maçã-do-amor recheada com as devidas explicações. E como abordar os hábitos e costumes dos brasileiros nos tempos do Império? Uma opção é escrever um conto contendo todos os elementos que se deseja relatar.

Os exemplos ilustram o tipo de solução que a Ciência Hoje das Crianças busca para intermediar o conhecimento dos pesquisadores aos leitores. A equipe de redação tem como fonte de inspiração o próprio universo da criança. Nos casos citados, os artifícios foram o fascínio que os doces e uma história bem contada podem exercer sobre meninos e meninas.

Comparações e metáforas são recursos também bastante utilizados, na tentativa de tornar artigos e matérias mais leves e palatáveis para as crianças. Porém, para que a adaptação de linguagem não comprometa as informações científicas, os textos editados são submetidos à avaliação dos respectivos autores.

Esta relação entre redação e pesquisadores, que se estabelece desde a chegada do artigo e só se desfaz quando a revista é publicada, pretende colaborar para que o conhecimento científico seja repassado ao leitor da forma mais clara possível. Considera-se que o cientista, ao se envolver em todas as fases do processo de produção da revista, não só prima pela qualidade do conteúdo a ser divulgado como tem a oportunidade de refletir sobre a linguagem empregada para dialogar com o público leigo.

O retorno dos leitores permite concluir que, quando os fatos e métodos da ciência são absorvidos com prazer e interesse, especialmente pela criança, a tendência é que seja gerada uma demanda permanente pelo conhecimento. O resultado esperado é o desenvolvimento do senso crítico -- elemento indispensável para o exercício pleno da cidadania.

Consciência da contribuição social Em tempos que o jornalismo científico reflete sobre a sua função social, pode-se considerar de vanguarda o trabalho de uma revista que, desde a sua concepção, há

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quase 17 anos, já procurava envolver a comunidade científica no processo de comunicação com crianças. A premissa pode ser ainda reforçada se for considerado que a publicação ampliou seus propósitos e seu público, tornando-se material de referência para o ensino fundamental.

Hoje, a proposta da revista de fazer divulgação científica se funde com o desejo de contribuir para a melhoria do sistema educacional do país. Por esta razão, Ciência Hoje das Crianças se esforça para participar ativamente do processo de alfabetização científica e torce para que outras publicações e outros canais na mídia surjam com objetivo semelhante.

O ideal, no entanto, seria que vários setores da sociedade tomassem para si a responsabilidade de popularizar a ciência, colaborando para elevar o Brasil a um patamar próximo ao dos países desenvolvidos. Uma articulação entre a mídia, a escola e a universidade, por exemplo, poderia resultar na renovação da idéia que o grande público faz da ciência: substituindo o conceito de área para superdotados pelo entendimento de algo que faz parte do cotidiano de todos.

A tarefa não é fácil. Talvez exija um plano de ações que passe pelo encantamento; ações subliminares que consigam traduzir o conhecimento científico como algo imprescindível para as pessoas tirarem o melhor proveito de qualquer coisa que façam na vida -- seja do trabalho, do filme no cinema, ou da leitura de uma bula de remédio.

Felizmente, já é possível identificar no discurso daqueles que trabalham com divulgação científica, a importância da integração de diversos setores da sociedade para equacionar a questão de como fazer as pessoas se interessarem por aquilo que se consideram incapazes de compreender. E não há dúvidas de que a mídia, como um desses setores, deve dar contribuição significativa, buscando a linguagem adequada para se comunicar com cada segmento do público. Afinal, em grande parte, os meios de comunicação de massa são responsáveis pelo estereótipo de que cientista é gênio e que ciência é sinônimo de laboratórios de última geração.

Bianca Encarnação é editora executiva da Revista Ciência Hoje das Crianças.

* Revisão de artigo publicado anteriormente na revista Ciência & Ambiente, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - Vol 23, 2002.

 

Percepção pública da ciência e desenvolvimento científico local1

Carmelo Polinotradução: Sabine Righetti

A tradição de pesquisa científica nos países latino-americanos se remete, por assim dizer, a décadas em que intelectuais e políticos comprometidos com o destino dos países estavam convencidos de que a ciência seria um fator de coesão social que levaria as grandes massas ao progresso e ao desenvolvimento das nações. É inegável que aquele ideal de esperança do século XIX nunca terminou de se modelar. Os repetidos golpes de estado - com as incertezas e regressos conseqüentes - e as péssimas políticas econômicas e de desenvolvimento social que tornaram opaca a vida cultural e política, frustraram o grande projeto da ciência moderna a serviço do destino nacional. Mas o fracasso da utopia também pode se explicar devido ao fato de que a sociedade não foi capaz de articular os laboratórios das universidades com as oficinas

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e as fábricas, o ensino com valorização do conhecimento, a ciência e a política de estado com a resolução dos problemas sociais profundos.

Trata-se, pois, de um obstáculo histórico de longa data em matéria de política econômica, educativa e científica, mas, também, de um problema de percepção social da ciência. Não é por acaso que atualmente nas sociedades da América Latina - e, por certo, também na Espanha e Portugal - flutue no ambiente a idéia errônea - mas fixa - de que a ciência e a tecnologia são luxos que podem se permitir os países desenvolvidos; na América Latina, entretanto, introduzimos o conhecimento do exterior. A conseqüência desta imagem valorativa é perigosa posto que, por um lado, alimenta o pessimismo social enquanto a capacidade - e a conveniência - do desenvolvimento científico local mas, mais alarmante ainda, legitima a idéia de que o país deve se acostumar a que não existem caminhos alternativos possíveis a respeito.

Poderiam se usar dois indicadores de ciência e tecnologia disponíveis para demonstrar que este raciocínio está pelo menos desajustado - se bem, como costuma ocorrer, leva uma cota de verdade. Desde meados dos anos 50, se desenharam políticas científicas, em certas ocasiões com planos e programas de reconhecido êxito. Também existem grupos de pesquisa de relevância internacional, com uma vasta tradição disciplinar, assim como empresários que, com as limitações que os rodeiam, se esforçaram por se adequar às exigências da internacionalização da economia e da inovação. Todavia, o divórcio entre ciência e sociedade tem manifestações concretas. Em geral, a sociedade não espera que a ciência solucione seus problemas mais imediatos.

O dado do investimento em pesquisa e desenvolvimento nos países da América Latina e no Caribe para o ano 2000 é eloqüente: representava 0,54% do PIB regional2. Mas, por outro lado, ainda quando a massa de recursos financeiros foi adequada e se chegasse ao desejado 1% de investimento do PIB, a comunidade científica estaria preparada ou orientada para solucionar os problemas de desenvolvimento e finalizar o mandato da modernidade? Este é um debate aberto e com muitas frentes em disputa. Em um informe recente, Albornoz Señala:

"Existe um paradoxo no fato de que os países da América Latina e Caribe, num contexto de crise econômica e social, apareçam como fortemente inclinados até o extremo mais básico e teórico da investigação científica. Isto contrasta com a realidade de países como os Estados Unidos, onde o desenvolvimento experimental constitui 61% da P&D, situação que se repete em outros países mais desenvolvidos da OCDE3."

Neste cenário complexo, devem circunscrever-se os temas relativos à cultura científica da sociedade, seus alcances e limitações, questão que excede - e não está, por assim dizer- a mera busca por aumentar a alfabetização científica entre os indivíduos. Por certo, a percepção pública da ciência, as imagens que a sociedade projeta da atividade científica local não se ajustam às pretensões de objetividade do dado estatístico. Trata-se, sem dúvida, de fenômenos qualitativos de tratamento difícil, com conexões múltiplas que, por baixo, se tornam mais complexas na medida em que existe consciência crescente de que a sociedade deve se envolver na definição da trajetória da ciência e da tecnologia. Em outros termos, que se deve fomentar a participação cidadã para a verdadeira democratização do conhecimento, ainda que não se saiba muito bem quais são as condições e de que forma se poderia levar isso à prática de forma efetiva.

Para nós que estamos preocupados em estabelecer laços entre ciência e sociedade que revertam parte dessas idéias dominantes, os temas que envolvem a percepção pública da ciência, a cultura científica e a participação cidadã em ciência e tecnologia adquirem uma relevância singular.

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Pesquisa de percepção pública da ciência da RICYT e da OEIUma forma de abordar este assunto é através da obtenção de indicadores que reflitam o conhecimento, as atitudes e opiniões dos cidadãos sobre ciência e tecnologia. Os Estados Unidos, através da National Science Foundation (NSF), foi o país pioneiro em gerar indicadores desse tipo e incorporá-los a seu manual estatístico desde 1972. Logo se somaram os países da União Européia (com o Eurobarômetro). Nos países da região, a preocupação é mais recente e está em seu começo, ainda que Brasil conte com uma pesquisa nacional de 1987, realizada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, assim como Colômbia (1994), Espanha (2002), México (1998 e 2001) e Panamá (2001)4.

As pesquisas internacionais incluem perguntas comuns que, aplicadas em diferentes países, permitem a comparação internacional, característica básica que se deve contemplar o desenvolvimento dos indicadores. Todavia, a natureza do objeto "percepção" e "cultura científica" faz com que perguntas que podem ser válidas nos Estados Unidos ou em alguns países da Europa não se ajustem às realidades - institucionais ou sociais - dos países ibero-americanos. Entende-se, como acreditamos, que a ciência, se bem que com leis que têm mostrado validade universal, se realiza, projeta e impacta em sociedades de indivíduos com características distintas, então se adverte a pertinência de um enfoque particular sobre as sociedades locais, já que esta mesma sociedade modifica, se apropria, molda, utiliza discute ou refuta a ciência segundo suas crenças, normas, valores, normas de comportamento e, também, sua estrutura econômico-produtiva.

Conscientes da importância de atender estas questões e ampliar o terreno dos indicadores captando as especificidades regionais, e garantindo a comparação internacional, a Rede Ibero-americana de Indicadores de Ciência e Tecnologia (RYCYT/CYTED) e a Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) ampliaram ao fim de 2002 e princípio de 2003 uma pesquisa piloto em quatro países da região: Argentina, Brasil, Espanha e Uruguai5.

A pesquisa não guarda critérios de representação estatística senão, fundamentalmente, de consistência para a análise dos indicadores. Neste sentido, o objetivo da pesquisa era avançar a ponto de chegar a uma metodologia que permita compreender o papel que ocupa a atividade científica no imaginário, as práticas, os símbolos e as instituições das sociedades dos países da região, integrando diferentes metodologias (Eurobarômetro, National Science Foundation etc) e desenvolvendo, ao mesmo tempo, uma visão própria sobre a medição desses processos. Esse estudo faz parte de um projeto mais amplo, sobre desenvolvimento de indicadores de ciência e tecnologia de caráter ibero-americano impulsionado pela RICYT e pela OEI.

Alguns resultados: percepção de ciência e de tecnologia localA pesquisa aborda três eixos mais ou menos explícitos, porém entrelaçados: imaginário social, comunicação de ciência e participação cidadã. Neste breve artigo6 se apresentaram unicamente alguns dados sobre o imaginário das pessoas sobre ciência na sociedade em que vivem7.

Uma primeira pergunta explorou a valorização do público a respeito da trajetória da ciência no âmbito do seu desenvolvimento.

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Nos quatro países a imagem do desenvolvimento científico-tecnológico local o que predomina é que existe "um pouco de ciência e tecnologia em algumas áreas (temáticas)." Nos casos da Argentina, Brasil e Espanha, esta categoria oscila entre 55% e 64% do total. No Uruguai, a orientação é, entretanto, mais notória (80%). Assim mesmo, é marginal à porcentagem de quem afirma que a ciência e a tecnologia locais estão "muito desenvolvidas", ainda que no Brasil, esta idéia tenha uma adesão marcadamente superior. Também em todos os casos são muito poucos os que pensam que "não existe" desenvolvimento científico local (3% na média).

Também se perguntou sobre a valorização que se faz do financiamento estatal em ciência e tecnologia (Gráfico 2)

Os resultados são claros na mesma direção: a imagem que predomina é a de que o estado financia a pesquisa de forma insuficiente em todos os países. Na Argentina, Espanha e Uruguai, a estimativa alcança 87% das respostas. Todavia, o Brasil

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apresenta novamente um comportamento diferente, na medida em que uma porcentagem marcadamente superior (27,8%) ao resto dos países opina que o estado financia de maneira "razoavelmente suficiente" a investigação nesse país.

A insuficiência do financiamento estatal é também considerada quase unanimemente a causa pela qual "não há desenvolvimento científico e tecnológico" local (Gráfico 3).

Com efeito, 82% da mostra na Argentina, 63,3% no Brasil e 78,9% na Espanha apontam que o "pouco apoio estatal" é o principal fator que limita o desenvolvimento nessas áreas, descartando a responsabilidade dos empresários (ainda que esta categoria no Brasil, apesar de ser baixa, tem uma incidência consideravelmente superior ao que ocorre nos outros países), o desinteresse da população em geral e, com maior destaque, a inexistência de bons cientistas - somente apontam esta causa uma média de 1,5% dos casos.

Assim mesmo, os entrevistados foram consultados a respeito de sua percepção sobre a utilidade dos resultados da atividade científica e tecnológica nacional (Gráfico 4).

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Observa-se nos resultados um notável interesse do ponto de vista da política científica. A opinião predominante nos países reconhece a utilidade da pesquisa científica local. Praticamente nenhum entrevistado considera que a ciência local produz conhecimento que logo se aplica. Entretanto, as respostas no caso do Brasil seguem uma trajetória oposta ao resto dos países. No Uruguai (66%), Argentina (59,4%) e, em menor medida, Espanha (43,2%), os entrevistados destacam a carência de difusão dos resultados das práticas científicas; não obstante, a maioria dos brasileiros enfatiza, como um risco positivo do sistema científico desse país, a aplicação prática do conhecimento (54,9%). Esta opinião sobre a ausência de canais de difusão adquire relevância em dois níveis: por um lado, desde o ponto de vista da difusão de tecnologias, como no mecanismo de vinculação entre o setor científico e o tecido empresarial e produtivo. Por outra parte, a difusão de conhecimento, no que compete as ações de divulgação científica para o público em geral.

Palavras finaisA necessidade de continuar o caminho empreendido pela RICYT e a OEI se manifestou na "Primeira Oficina de Indicadores de Percepção Pública, Cultura Científica e Participação Cidadã", organizada de forma conjunta pela RICYT, a OEI e a Universidade de Salamanca (Espanha), e levado a cabo em Salamanca ao fim de maio de 2003, da qual participaram representantes acadêmicos e políticos de vários países da região. Naquela oportunidade, se incitou a RYCT e a OEI a continuarem o desenvolvimento de uma metodologia que permita a obtenção de indicadores de percepção pública aplicáveis aos países da região e, ao mesmo tempo, gerar novos estudos empíricos e qualitativos que contribuam para a análise e a compreensão da cultura científica na dinâmica social.

Começa a se compreender que a cultura científica não deve ser interpretada unicamente enfatizando o conhecimento dos instrumentos, metodologia e bagagem cognitiva que a ciência injeta na cultura geral, mas sim, fundamentalmente, na capacidade que a sociedade tem de incorporar a atividade científica na agenda dos temas sociais, e na medida em que a mesma seja funcional aos objetivos da sociedade. Dito de outro modo, em uma correta articulação que resgate os melhores valores intrínsecos de uma modernidade que, por sorte, nossos países se negam a perder.

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Carmelo Polino é do Centro de Estudos sobre Ciência, Desenvolvimento e Educação Superior, Buenos Aires, Argetina: [email protected]

Notas:1. O conteúdo do presente artigo faz parte de um trabalho mais amplo preparado para o encontro internacional "Cambio tecnológico, Innovación y Desarrollo Social", Mdellín (Colômbia), 21 e 22 de agosto de 2003.2. Mario Albornoz (2002). "Situação da ciência e da tecnologia nas Américas", documento de trabalho nº 3, Centro REDES, Buenos Aires, Argentina, novembro. Disponível em www.cetroredes.org.ar. O Informe destaca que "quando se analisa o panorama de cada país, considerando individualmente, se coloca em evidência que as situações são muito diferentes entre cada um deles. Em 2000, a investimento médio em P&D era amplamente superada pelo Brasil, que alcançava 0,87% do seu PIB. Chile mostrava um valor similar ao da média (0,54%) e o resto não alcançava a média regional.3. Mario Albornoz (op. cit.)4. Na Argentina, Cuba, Uruguai e outros países existem pesquisas delimitadas e estudos qualitativos.5. Para a Argentina foi estimada uma mostra correspondente a 300 casos. A mostra se realizou por cotas de acordo com a idade, sexo e nível educacional, a partir das características populacionais do universo estudado. Foi contemplado, assim mesmo, um nível sócio-econômico médio. Esta mostra guarda diferenças com as de outros países. O Brasil, por sua vez, corresponde a 162 dos casos. A metade da mostra deste país está composta por pessoas com formação superior completa e inclui também 7,4% de pós-graduados. Na Espanha e Uruguai as mostras correspondem a 150 casos para cada pesquisa. A mostra da Espanha está concentrada basicamente no grupo de jovens compreendidos entre 18 e 30 anos com nível de formação superior - completo e incompleto. A mostra do Uruguai tem uma composição similar a da Argentina enquanto a variável grupos de idade, observa uma tendência mais acentuada ao número de universitários - com formação completa e incompleta. Os investigadores que coordenaram a pesquisa em cada país foram: Argentina, Leonardo Vaccarezza (grupo REDES); Brasil, Carlos Vogt (Fapesp); Espanha, Miguel Angel Quintanilla (Universidade de Salamanca); e Uruguai, Rodrigo Arocena (Universidade da República).6. O informe com os resultados da pesquisa está disponível em www.centroredes.org.ar7. Por imaginário social se entende o conjunto de imagens, expectativas e valores sobre ciência e tecnologia como instituição, como instrumento de ação, como fonte do saber e a verdade e como grupo humano ou social com uma função específica.

 

Barqueiro

Carlos Vogt

O tempo nos carregaráa todosabandonarápor não suportar apercepção de outros maisoutros queterá de carregar e abandonaro tempo

 

Projeto da Faculdade de Educação da Unicamp alia pesquisa a cotidiano dos alunos

Reportagem: Rodrigo CunhaEdição: Rafael Evangelista

Webdesign: Ingrid Lemos Costa

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O "Ciência na Escola", criado há cinco anos pelo Laboratório de Educação e Informática Aplicada (Leia), da Faculdade de Educação da Unicamp, é um projeto que busca transformar, professores e alunos do ensino básico, em pesquisadores. Com apoio da Fapesp, cada uma das escolas públicas de Campinas (SP) envolvidas tem um sub-projeto de pesquisa, geralmente ligado ao cotidiano dos alunos e envolvendo mais de uma disciplina. Os professores das escolas se reúnem periodicamente com os coordenadores do projeto, no Leia, e durante o ano letivo, trabalham como orientadores das pesquisas de seus alunos.

A coordenadora do Leia, Afira Viana Ripper, destaca a importância do aprendizado por meio da pesquisa, nas escolas que participam do projeto. "O 'Ciência na Escola' é também um programa de formação continuada, proporcionando ao professor uma re-significação de práticas pedagógicas, e aos alunos, uma relação afetiva com o conhecimento", diz.

Temas como destino de lixo, consumo de energia elétrica, nutrição e qualidade da água de um córrego que passa próximo à escola são pesquisados por alunos de ensino fundamental e médio, e se tornam assunto para ser trabalhado em disciplinas como ciências, matemática, geografia, história, português e até mesmo educação artística.

Em outubro de 2002, a Faculdade de Educação da Unicamp abriu as comemorações dos seus 30 anos, com o II Seminário do projeto "Ciência na Escola", que teve a participação de professores e alunos das seis escolas públicas municipais e das duas escolas públicas estaduais de Campinas que atualmente participam do projeto. Após a cerimônia de abertura do evento, que contou com a presença do reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz, e da secretária municipal de Educação, Corinta Geraldi, os estudantes apresentaram seus trabalhos dentro do projeto a um auditório lotado, como verdadeiros conferencistas.

Antoninho Perri - Ass. de Com./Unicamp

Estudantes lotam auditório da universidade

Vocês estão no principal auditório do Centro de Convenções da Unicamp, onde os pesquisadores da universidade dão suas palestras em encontros e conferências da maior importância", disse aos estudantes, na ocasião, a coordenadora do evento, Afira Vianna Riper, saudando-os como conferencistas do dia.

A diretora da Faculdade de Educação, Agueda Bittencourt, afirma que não poderiam ter escolhido evento melhor para a abertura das comemorações dos 30 anos. "A Faculdade de

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Educação trabalha em função da melhoria do ensino em todos os níveis, e o projeto 'Ciência na Escola' é um exemplo disso", declara.

A secretária de Educação, Corinta Geraldi, se diz orgulhosa dos 32 professores e cerca de 700 alunos que participam do "Ciência na Escola" e afirma que pretende levar o projeto a outras escolas públicas de Campinas. Ela destaca que o projeto contribui para que o aluno de escola pública se sinta com chances de ingressar em uma universidade. "Ele precisa sentir que tem o direito e a condição de concorrer no vestibular", acredita.

O reitor da Unicamp, Brito Cruz, que foi um dos coordenadores da fase inicial do "Ciência na Escola", além de ter recebido como conferencistas na universidade estudantes e professores que participam do projeto, espera, a exemplo da secretária de Educação, que eles continuem o trabalho como pesquisadores no ensino superior. "Esse projeto mostra que aprender coisas através da pesquisa é bom, é divertido, interessante", diz.