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A Essência Mais Profunda, uma visão do budismo . Ninguém pode morrer sem medo e em completa segurança sem ter atingido a realização da natureza da mente. Porque só essa realização, aprofundada em anos de prática continuada, pode manter a mente estável no confuso caos do processo da morte. De todas as maneiras que conheço de ajudar a realizar a natureza da mente, a prática de Dzogchen, a mais antiga e direta corrente de sabedoria dentro dos ensinamentos do buddhismo [nyingmapa] e a própria fonte dos ensinamentos do bardo, é a mais clara, mais eficaz e relevante para as circunstâncias atuais. As origens do Dzogchen remontam ao Buddha Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a uma linha ininterrupta de grandes mestres que chega até o presente. Centenas de milhares de indivíduos na Índia, no Himalaia e no Tibet atingiram a realização e a iluminação através dessa prática. Há uma maravilhosa profecia segundo a qual “nesta era de trevas, a essência do coração de Samantabhadra brilhará como fogo”. [...] O Dzogchen não foi amplamente difundido e ensinado no Tibet, e por algum tempo muitos dos maiores mestres não o ensinaram no mundo moderno. Por que, então, eu o estou ensinando agora? Alguns dos meus mestres me disseram que este é o momento de se difundir o Dzogchen, a época a que se refere a profecia. Sinto também que seria falta de compaixão não partilhar com as pessoas a existência de sabedoria tão extraordinária. Os seres humanos chegaram a um ponto crítico da sua evolução e esta época de extrema confusão pede um ensinamento com o mesmo grau de poder e claridade. Descobri também que as pessoas de hoje querem um caminho que elimine o dogma, fundamentalismo, exclusivismo, metafísica, complexa e parafernália cultural exótica, um caminho ao mesmo tempo simples e profundo, que não precise ser praticado em ashrams ou mosteiros, mas possa integrar-se à vida do dia-a-dia e ser praticado em qualquer lugar. O que é, então, o Dzogchen? O Dzogchen não é apenas um ensinamento, nem mais uma filosofia, nem mais um elaborado sistema, nem mesmo uma sedutora série de técnicas. Dzogchen é um estado, o estado primordial, aquele estado totalmente desperto que é o coração e a essência de todos os buddhas e de todos os caminhos espirituais, e o ápice da evolução espiritual de um indivíduo. Dzogchen é freqüentemente traduzido como “Grande Perfeição”. Prefiro deixar a palavra sem traduzir, porque Grande Perfeição traz esse sentido do perfeito que temos de lutar para conseguir, meta que fica no final de uma longa e árdua jornada. Nada podia estar mais distante do significado

A Essência Mais Profunda (1)

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A Essncia Mais Profunda, uma viso do budismo.Ningum pode morrer sem medo e em completa segurana sem ter atingido a realizao da natureza da mente. Porque s essa realizao, aprofundada em anos de prtica continuada, pode manter a mente estvel no confuso caos do processo da morte. De todas as maneiras que conheo de ajudar a realizar a natureza da mente, a prtica de Dzogchen, a mais antiga e direta corrente de sabedoria dentro dos ensinamentos do buddhismo [nyingmapa] e a prpria fonte dos ensinamentos do bardo, a mais clara, mais eficaz e relevante para as circunstncias atuais.

As origens do Dzogchen remontam ao Buddha Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a uma linha ininterrupta de grandes mestres que chega at o presente. Centenas de milhares de indivduos na ndia, no Himalaia e no Tibet atingiram a realizao e a iluminao atravs dessa prtica. H uma maravilhosa profecia segundo a qual nesta era de trevas, a essncia do corao de Samantabhadra brilhar como fogo. [...]

O Dzogchen no foi amplamente difundido e ensinado no Tibet, e por algum tempo muitos dos maiores mestres no o ensinaram no mundo moderno. Por que, ento, eu o estou ensinando agora? Alguns dos meus mestres me disseram que esteo momento de se difundir o Dzogchen, a poca a que se refere a profecia. Sinto tambm que seria falta de compaixo no partilhar com as pessoas a existncia de sabedoria to extraordinria. Os seres humanos chegaram a um ponto crtico da sua evoluo e esta poca de extrema confuso pede um ensinamento com o mesmo grau de poder e claridade. Descobri tambm que as pessoas de hoje querem um caminho que elimine o dogma, fundamentalismo, exclusivismo, metafsica, complexa e parafernlia cultural extica, um caminho ao mesmo tempo simples e profundo, que no precise ser praticado emashramsou mosteiros, mas possa integrar-se vida do dia-a-dia e ser praticado em qualquer lugar.

O que , ento, o Dzogchen? O Dzogchen no apenas um ensinamento, nem mais uma filosofia, nem mais um elaborado sistema, nem mesmo uma sedutora srie de tcnicas. Dzogchen um estado, o estado primordial, aquele estado totalmente desperto que o corao e a essncia de todos os buddhas e de todos os caminhos espirituais, e o pice da evoluo espiritual de um indivduo. Dzogchen freqentemente traduzido como Grande Perfeio. Prefiro deixar a palavra sem traduzir, porque Grande Perfeio traz esse sentido do perfeito que temos de lutar para conseguir, meta que fica no final de uma longa e rdua jornada. Nada podia estar mais distante do significado de Dzogchen: o estadojperfeito em si mesmo da nossa natureza primordial, que no precisa de aperfeioamento, uma vez que, como o cu, sempre foi perfeito desde o comeo.

Todos os ensinamentos buddhistas [do Dzogchen] so explicados em termos de Base, Caminho e Fruio. A Base do Dzogchen esse estado fundamental e primevo, nossa natureza absoluta que j perfeita e est sempre presente. Patrul Rinpoche diz: Nem para ser buscada externamente, nem algo que voc no tinha antes ou que precise nascer agora de um modo novo em sua mente. Do ponto de vista da Base o absoluto nossa natureza a mesma que a dos buddhas, e nesse nvel no h que ouvir ensinamentos ou fazer prtica nem um pingo, dizem os mestres.

No obstante, temos de entender, os buddhas tomaram um caminho e ns tomamos outro. Os buddhas reconhecem sua natureza original e tornam-se iluminados; ns no a reconhecemos e por isso nos tornamos confusos. Nos ensinamentos, esse estado de coisas chamado Uma Base, Dois Caminhos. Nossa condio relativa que nossa natureza intrnseca estobscurecida e precisamos seguir os ensinamentos e a prtica para voltarmos verdade: esse o Caminho do Dzogchen. Finalmente, atingir a realizao da nossa natureza original atingir a completa liberao e tornar-se um buddha. Essa a Fruio do Dzogchen, que de fato possvel ao praticante em uma s vida, quando ele ou ela a isso dedica seu corao e mente.

Os mestres Dzogchen so agudamente conscientes dos perigos de confundir o absoluto com o relativo. Quem no consegue compreender essa relao pode subestimar ou at desprezar os aspectos relativos da prtica espiritual e a lei krmica de causa e efeito. No entanto, queles que apreendem verdadeiramente o significado do Dzogchen tero um respeito ainda mais profundo pelo karma, bem como uma apreciao mais intensa e premente da necessidade de purificao e de prtica espiritual. Isso se dar porque eles podero perceber a vastido daquilo que h neles e que foi obscurecido, o que os far empenhar-se de maneira mais fervorosa, e com disciplina sempre fresca e natural, em remover o que quer que se interponha entre eles e sua verdadeira natureza.

Os ensinamentos Dzogchen so como um espelho que reflete a Base da nossa natureza original com pureza to elevada e liberadora, e claridade to imaculada, que constituem uma proteo ao perigo de ficar presos em qualquer forma de entendimento conceitualmente fabricado, mesmo que sutil, convincente ou sedutor.

Qual ento, para mim, a maravilha do Dzogchen? Todos os ensinamentos levam iluminao, mas a singularidade do Dzogchen que, mesmo na dimenso relativa dos ensinamentos, a sua linguagem nunca macula o absoluto com conceitos; deixa-o intacto em sua simplicidade desnuda, dinmica e majestosa, e mesmo assim fala dela a qualquer um de mente aberta em termos to vvidos e expressivos que, mesmo antes de nos iluminarmos, somos agraciados com o vislumbre mais forte que podemos ter do esplendor do estado desperto.

A Viso

Tradicionalmente, o treinamento prtico do Caminho do Dzogchen descrito com muita simplicidade em termos de Viso, Meditao e Ao. Ver diretamente o estado absoluto, a Base do nosso ser, a Viso; o modo de estabilizar essa Viso e fazer dela uma experincia contnua Meditao; integrar a Viso nossa realidade total e nossa vida o que chamamos Ao.

O que ento a Viso? nada menos quevero estado real das coisas como elas so;saber que a verdadeira natureza da mente a verdadeira natureza de tudo; eatingir a realizaode que a verdadeira natureza da nossa mente a verdade absoluta. Dudjom Rinpoche diz: A viso a compreenso da conscincia intrnseca desnuda, dentro da qual tudo est contido: a percepo sensorial e a existncia fenomnica, o samsara e o nirvana. Essa conscincia intrnseca e imediata tem dois aspectos: vacuidade como o absoluto, e aparncia ou percepo como relativo.

O que isso significa que todo o conjunto das possibilidades das aparncias e todos os possveis fenmenos em todas as diferentes realidades todos eles, sem exceo, seja no samsara ou no nirvana sempre foram e sempre sero perfeitos e completos, dentro da vasta e ilimitada extenso da natureza da mente. Mais ainda, que a essncia de tudo seja vazia e pura desde o incio, sua natureza rica em nobres qualidades, prenhe de todas as possibilidades, um campo ilimitado, incessante e dinamicamente criativo que sempre perfeito e espontneo.

Voc poder perguntar: Se a realizao da Viso a realizao da natureza da mente, com o que se parece ento essa natureza da mente? Imagine um cu, vazio, pleno de espao e puro desde o incio; suaessncia assim. Imagine um sol, luminoso, claro, sem obstruo e espontaneamente presente; suanatureza assim. Imagine esse sol brilhando sobre ns e todas as coisas, penetrando em todas as direes; suaenergia,que a manifestao da compaixo, assim: nada pode det-la e ela penetra em toda parte.

Voc tambm pode pensar na natureza da mente como um espelho com cinco diferentes poderes ou sabedorias. Sua abertura e vastido a sabedoria do espao que tudo abrange, o tero de onde provm a compaixo. Sua capacidade de refletir com detalhes precisos o que se pe diante dela a sabedoria do espelho. Sua ausncia fundamental de propenso para qualquer impresso a sabedoria da equanimidade. Sua habilidade de distinguir claramente e sem confundir de maneira alguma os vrios fenmenos diferentes que surgem a sabedoria do discernimento. E seu potencial de ter tudo j consumado, aperfeioado e espontaneamente presente a sabedoria que tudo realiza.

No Dzogchen, a Viso introduzida ao estudante diretamente pelo mestre. esse modo direto de fazer a introduo que caracteriza o Dzogchen e o faz to singular.

O que introduzido ao estudante na introduo a experincia direta da mente de sabedoria dos buddhas, atravs da bno do mestre que encarna a completa realizao deles. Para estar pronto para receber a introduo, o aluno deve ter chegado a um ponto em que tenha, como resultado de aspiraes passadas e do karma purificado, a abertura da mente e tambm a devoo para faz-lo receptivo ao verdadeiro significado do Dzogchen.

Como a mente de sabedoria dos buddhas pode ser introduzida? Imagine a natureza da mente como seu prprio rosto; est sempre com voc, mas no pode v-lo sem ajuda. Agora imagine que nunca viu um espelho antes. A introduo feita pelo mestre colocar subitamente um espelho diante de voc, no qual pela primeira vez vai ver seu prprio rosto refletido. Tal como seu rosto, a pura percepo de Rigpa [a natureza da mente, a conscincia primordial] no algo novo que o mestre lhe est dando, ou algo que nunca tenha tido antes, e nem algo que teria a possibilidade de achar fora de si mesmo. Sempre foi seu e sempre esteve com voc, mas at aquele momento, surpreendente, voc nunca o tinha visto de maneira direta.

Patrul Rinpoche explica que de acordo com a tradio especial dos grandes mestres da linhagem dessa prtica, a natureza da mente, o rosto de Rigpa, introduzido precisamente na dissoluo da mente conceitual. No momento da introduo o mestre atravessa a mente conceitual, deixando vista o estado puro de Rigpa revelando explicitamente sua verdadeira natureza.

Nesse poderoso momento tem lugar uma fuso de mente e coraes e o aluno tem uma incontestvel experincia ou vislumbre da natureza de Rigpa. Nesse mesmo e nico instante, o mestre apresenta e o estudante reconhece. medida que o mestre dirige suas bnos a partir da sabedoria de seu Rigpa para o corao do Rigpa do seu aluno, mostra diretamente a este a face original da natureza da mente,

Para que a introduo do mestre seja plenamente eficaz, no entanto, condies e ambiente corretos devem ser criados. Apenas uns poucos indivduos na histria, devido ao seu karma purificado, puderam reconhecer e iluminar-se num instante; por isso a introduo deve quase sempre ser precedida pelas prticas preliminares que apresento a seguir. So essas prticas preliminares que purificam e removem os obscurecimentos da mente ordinria, trazendo voc ao estado em que seu Rigpa pode ser revelado.

Primeiro, a meditao, antdoto supremo da distrao, traz a mente de volta e permite que ela se assente no seu estado natural.

Segundo, prticas profundas de purificao e o fortalecimento do karma positivo, atravs da acumulao de mrito e sabedoria, comeam a enfraquecer e dissolver os vus intelectuais e emocionais que obscurecem a natureza da mente. Como escreveu meu mestre Jamyang Khyentse: Se os obscurecimentos forem removidos, a sabedoria de Rigpa de cada um brilhar naturalmente. Essas prticas de purificao, chamadasNgndroem tibetano, devem ser cuidadosamente observadas para produzir uma ampla transformao interior. Elas envolvem o ser inteiro corpo, fala, mente e comeam com uma sria de profundas contemplaes sobre:

a singularidade da vida humana;

a contnua presena da impermanncia e da morte;

a infalibilidade da causa e efeito das nossas aes;

o ciclo vicioso de frustrao e sofrimento que o samsara.

Essas reflexes inspiram um forte sentido de renncia, um desejo urgente de emergir do samsara e seguir o caminho da liberao que a base para as prticas especficas de:

tomar refgio no Buddha, na verdade dos seus ensinamentos [Dharma] e no exemplo dos seus praticantes [Sangha], despertando assim confiana e f em nossa prpria natureza bddhica interior;

gerar compaixo (bodhichitta o corao da mente iluminada) e treinar a mente para trabalhar consigo mesmo e com os outros, bem como com as dificuldades da vida;

remover os obscurecimentos e a corrupo mediante as prticas de visualizao e de mantras voltadas purificao e cura;

acumular mrito e sabedoria, desenvolvendo generosidade universal e criando circunstncias auspiciosas.

Todas essas prticas se desenvolvem e esto centradas no Guru Yoga, que a prtica mais decisiva, instigante e poderosa de todas, indispensvel abertura do corao e da mente para a realizao do estado de Dzogchen.

Terceiro, uma investigao meditativa especial sobre a natureza da mente e dos fenmenos, que sacia a incansvel fome da mente de pensa e procurar, bem como sua dependncia de conceitualizao, anlise e referncia incessantes, e desperta uma compreenso ntima da natureza da vacuidade.

Nunca demais enfatizar a importncia dessas prticas preliminares. Elas devem trabalhar em conjunto e sistematicamente para inspirar o estudante a despertar para a natureza da mente, e habilita-lo a estar pronto e preparado quando o mestre escolher o momento de mostrar a ele ou ela a face original de Rigpa.

Nyoshul Lungtok, que depois tornou-se um dos maiores mestres Dzogchen dos nossos tempos, acompanhou seu professor Patrul Rinpoche por cerca de dezoito anos. Todo esse tempo eles foram quase inseparveis. Nyoshul Lungtok estudou e praticou de forma particularmente dedicada, e acumulou purificao, mrito e prtica em abundncia; ele estava pronto para reconhecer Rigpa, mas ainda no havia recebido a instruo final. Ento, numa noite inesquecvel, Patrul Rinpoche deu-lhe essa instruo. Aconteceu quando estavam juntos num eremitrio das montanhas acima do Mosteiro Dzogchen. A noite era muito bonita. O cu azul escuro estava lmpido e as estrelas brilhavam muito. O som da sua solido era acentuado pelo latido de um cachorro do mosteiro distante.

Patrul Rinpoche estava estirado no cho, fazendo uma prtica de Dzogchen. Chamou Nyoshul Lungtok, perguntando: Voc disse que no conhece a essncia da mente?

Nyoshul Lungtok adivinhou pelo tom da sua voz que aquele era um momento especial e balanou a cabea confirmando, na expectativa.

No h nada a respeito, de fato, disse Patrul Rinpoche distraidamente, acrescentando, Meu filho, venha c e repouse aqui como seu velho pai. Nyoshul Lungtok estirou-se ao seu lado. Est vendo as estrelas no cu?, perguntou Patrul Rinpoche. Sim. Est ouvindo os ces latindo no Mosteiro Dzogchen? Sim. Bem, a natureza do Dzogchen isso: simplesmente isso.

Nyoshul Lungtok nos conta o que aconteceu ento: Nesse instante, cheguei a uma certeza de realizao dentro de mim. Tinha sido liberado dos grilhes do e do no . Atingira a realizao da sabedoria primordial, a unio desnuda da vacuidade e da conscincia intrnseca. Fui introduzido a essa realizao por sua bno, como disse o grande mestre indiano Saraha: Aquele em cujo corao entravam as palavras do mestre, v a verdade como um tesouro na palma de sua prpria mo.

Naquele instante, tudo estava em seu lugar; o fruto de todos os anos de aprendizado, purificao e prtica de Nyoshul Lungtok havia nascido. Ele obteve a realizao da natureza da mente. No havia nada extraordinrio, esotrico ou mstico nas palavras que Patrul Rinpoche usara; de fato, eram absolutamente comuns. Mas alm das palavras, alguma coisa a mais estava sendo comunicada. O que ele revelava era a natureza inerente de tudo, que o verdadeiro significado do Dzogchen. Naquele momento ele j havia conduzido Nyoshul Lungtok diretamente quele estado pelo poder e a bno de sua realizao.

Mas os mestres so muito diferentes, e eles podem usar todo tipo de meio hbil para provocar essa mudana de conscincia. O prprio Patrul Rinpoche foi introduzido natureza da mente de um modo muito distinto, por um mestre excntrico de nome Do Khyentse. Esta a tradio oral que escutei dessa histria.

Patrul Rinpoche estivera fazendo uma prtica avanada de yoga e visualizao, e ficara emperrado; nenhuma das mandalas das deidades aparecia com clareza na sua mente. Um dia ele se aproximou de Do Khyentse, que havia acendido uma fogueira ao relento e estava sentado diante dela, tomando ch. No Tibet, quando voc v um mestre pelo qual tem profunda devoo, tradicionalmente comea a prostrar seu corpo no cho como sinal do seu respeito. Quando Patrul Rinpoche comeou a prostrar-se, ainda distncia, Do Khyentse o reconheceu e rosnou, ameaadoramente: Ei, seu co velho! Se voc tem coragem, venha at aqui! Do Khyentse era um mestre muito impressionante. Parecia um samurai, com seus cabelos longos, suas roupas vistosas e sua paixo por montar belos cavalos. medida que Patrul Rinpoche continuava a fazer reverncias e se aproximava, Do Khyentse, praguejando o tempo todo, comeou a atirar nele seixos e depois pedras maiores. Quando finalmente chegou ao seu alcance, Do Khyentse comeou a soc-lo at faze-lo desmaiar.

Quando Patrl Rinpoche voltou a si estava num estado de conscincia inteiramente diferente. As mandalas que com tanto esforo tentara visualizar manifestavam-se, espontaneamente, diante dele. Cada maldio e insulto de Do Khyentse havia destrudo os ltimos remanescentes da mente conceitual de Patrul Rinpoche e, cada pedra que o atingiu havia aberto os centros de energia e canais sutis de seu corpo. Por duas semanas maravilhosas as vises das mandalas no o abandonaram.

Mesmo sabendo que as palavras e os conceitos fracassam quando tentamos descrev-la, vou procurar dar uma idia do que a Viso e do que acontece quando Rigpa revelado diretamente.

Dudjom Rinpoche diz: Esse momento como tirar um capuz de sua cabea. Que amplitude infinita e que alvio! Esse o ver supremo: ver o que no foi visto antes. Quando voc v o que no foi visto antes tudo se abre, se expande e se torna fresco, claro, transbordante de vida, animado de encantamento e frescor. como se o teto de sua cabea se desprendesse, ou se um bando de pssaros repentinamente revoasse de um ninho escuro. Todas as limitaes se dissolvem e desaparecem como se, dizem os tibetanos, um selo tivesse rompido.

Imagine-se morando numa casa no topo do mundo. De repente, toda a estrutura da casa que limitava sua viso simplesmente desaparece e voc pode ver tudo ao seu redor, tanto dentro como fora. Mas no h alguma coisa para ver; o que acontece no tem qualquer referncia no mundo ordinrio; uma viso total, completa, sem precedentes, perfeita.

Dudjom Rinpoche diz: Seus inimigos mais mortais, aqueles que o mantiveram amarrado ao samsara por incontveis vidas, desde tempos imemoriais at o presente, so o agarrar e o agarrado. Quando o mestre o introduz e voc os reconhece, esses dois so completamente consumidos como penas numa fogueira, no deixando vestgios. Agarrar e agarrado, a coisa agarrada e aquele que agarra so completamente liberados a partir mesmo da sua base. As razes da ignorncia e do sofrimento so totalmente cortadas e todas as coisas aparecem como reflexos num espelho, transparentes, bruxuleantes, ilusrias e com a qualidade de um sonho.

Quando voc chega naturalmente a esse estado de meditao, inspirado pela Viso, pode permanecer a por um longo tempo sem qualquer distrao ou esforo especial. Ento no h nenhuma coisa de nome meditao para proteger ou sustentar, uma vez que voc est no fluxo natural da sabedoria Rigpa. E, quando est nele, perceber que como se tivesse sido sempre assim, e . Quando brilha a sabedoria de Rigpa, nem uma sombra de dvida permanece e um entendimento completo e profundo surge diretamente e sem qualquer esforo.

Voc descobrir que todas as imagens que dei, bem como as metforas que tentei usar, esto fundidas em uma experincia da verdade que abrange tudo. A devoo est nesse estado, e a compaixo tambm est nesse estado, e todas as sabedorias, bno, claridade e ausncia de pensamentos, porm no separadas umas das outras, mas integradas e ligadas de maneira inquebrantvel num mesmo sabor. Esse o momento do despertar. Um profundo senso de humor brota de dentro e voc sorri, divertido com a inadequao dos seus antigos conceitos e idias sobre a natureza da mente.

O que surge disto uma crescente, tremenda e inabalvel certeza e convico de que isto. No h nada alm a procurar, nada a mais a ser esperado. Essa certeza da Viso aquilo que deve ser aprofundado, de lampejo a lampejo, sobre a natureza da mente, e estabilizado pela contnua disciplina da meditao.

A Meditao

Ento o que meditao do Dzogchen? simplesmente repousar, sem distraes, na Viso, uma vez que ela tenha sido introduzida. Dudjom Rinpoche a descreve: A meditao consiste em ficar atento a esse estado de Rigpa, livre de todas as construes mentais, embora permanecendo totalmente relaxado, sem qualquer distrao e sem agarrar-se a nada. Por isso se diz que a meditao no se esforar, mas permitir que a prpria meditao nos assimile naturalmente.

O ponto central da prtica de meditao Dzogchen fortalecer e estabilizar Rigpa, permitindo que ele cresa at sua plena maturidade. A mente ordinria e habitual, com suas projees, extremamente poderosa. Ela fica voltando e toma conta de ns quando estamos desatentos e distrados. Como Dudjom Rinpoche costumava dizer: No momento, nosso Rigpa como um bebezinho desamparado no campo de batalha onde os pensamentos irrompem com fora. Gosto de dizer que temos de comear sendo a ama-seca do nosso Rigpa dentro do ambiente seguro da meditao.

Se a meditao simplesmente continuar o fluxo de Rigpa aps a introduo, como sabemos quando Rigpa e quando no ? Fiz essa pergunta a Dilgo Khyentse Rinpoche e ele respondeu com sua simplicidade caracterstica: Se voc est num estado inalterado, Rigpa. Se no estamos dentro da mente que de algum modo manipula e distorce a realidade, mas apenas repousando num estado inalterado de conscincia pura e original, ento isso Rigpa. Se h qualquer trama ou maquinao de nossa parte, alguma forma de manobra ou de apego, j no se trata de Rigpa. Rigpa um estado em que no h mais qualquer dvida: no h na verdade algo como uma mente que possa duvidar: voc v diretamente. Se est nesse estado, certeza e confiana completas e naturais vibram com o prprio Rigpa, e assim que voc sabe.

A tradio do Dzogchen de preciso extrema, j que quanto mais fundo voc vai, mais sutis so os enganos que podem surgir, e o que est em jogo o conhecimento da realidade absoluta.

Mesmo aps a introduo, os mestres esclarecem em detalhes os estados que no so meditao Dzogchen e que com ela no devem ser confundidos. Num desses estados voc perambula por uma terra de ningum da mente, onde no h pensamentos ou memrias; um estado obscuro, embotado e aptico, onde voc est mergulhado na base da mente ordinria. Num segundo estado h certa quietude e leve claridade, mas uma quietude estagnada, ainda enterrada na mente ordinria. Num terceiro voc experimenta a ausncia de pensamentos mas est em outra, apenas num estado vazio de encantamento. Num quarto estado sua mente vagueia, ansiando por pensamentos e projees. Nenhum desse o verdadeiro estado de meditao e o praticante deve observar habilmente o que ocorre para evitar ser iludido por esses caminhos.

A essncia prtica da meditao no Dzogchen est contida nesses quatro pontos:

Quando um pensamento passado cessou e ainda no surgiu um pensamento futuro, h uma brecha. Nesse preciso instante, no h uma conscincia do momento presente, fresca, virgem, em nada alterada por conceitos, uma ateno luminosa e pura? Pois bem, isso Rigpa! Entretanto a mente no fica neste estado para sempre, porque outro pensamento subitamente surge, no assim? Essa a auto-irradiao de Rigpa.

No entanto, se voc no reconhece esse pensamento pelo que de fato ele , no instante em que surge, ele se transformar em um pensamento comum, como antes. Essa a chamada cadeia da iluso, e a raiz de samsara.

Se voc capaz de reconhecer a verdadeira natureza do pensamento logo que ele surge e o deixa em paz, sem persegui-lo, ento quaisquer pensamentos que surjam se dissolvem automaticamente, retornando vasta extenso de Rigpa, e so liberados.

preciso uma vida inteira de prtica para entender e realizar a profunda riqueza e a majestade desses quatro pontos to simples e to fundamentais, e tudo o que posso fazer aqui dar a voc uma amostra da vastido que a meditao Dzogchen.

Talvez o ponto mais importante que a meditao Dzogchen vem a tornar-se um contnuo fluxo de Rigpa, como um rio que se move constantemente, dia e noite sem interrupo. Claro que isto um estado ideal, uma vez que esse atento repouso na Viso, j introduzida e identificada, a recompensa de muitos anos de prtica permanente.

A meditao Dzogchen sutilmente poderosa na lida com os movimentos da mente, apresentando uma perspectiva nica sobre eles. Tudo o que surge visto na sua verdadeira natureza, no como coisa separada de Rigpa, e no antagnica a ele, mas e isso muito importante verdadeiramente como nada mais que a sua auto-irradiao, a manifestao de sua prpria energia.

Digamos que voc se encontre num estado de profunda quietude; ele no costuma durar muito, porque logo um movimento ou um pensamento surge, como uma onda no oceano. No rejeite o movimento nem se apegue tranqilidade, mas deixe seguir o fluxo da sua pura presena. O estado penetrante e sereno da sua meditao o prprio Rigpa e tudo que surge nada mais que a auto-irradiao de Rigpa. Esse o corao e a base da prtica Dzogchen. Um modo de imaginar isso pensar que voc est cavalgando raios solares retornando para o sol: voc segue todas as manifestaes de volta sua origem, imediatamente, de volta prpria raiz, base de Rigpa. medida que incorpora a firme estabilidade da Viso, voc no mais enganado nem distrado pelo que quer que possa surgir, e assim no cai vtima da iluso.

Claro que no oceano h ondas violentas e ondas suaves; surgem emoes fortes como raiva, desejo e inveja. O verdadeiro praticante as reconhece no como perturbao ou obstculo, mas como uma grande oportunidade. O fato de voc reagir ao que aparece com as tendncias habituais de apego e averso sinal no somente que est distrado, mas tambm de que no tem o reconhecimento e perdeu a base de Rigpa. Reagir s emoes desse modo significa refor-las , prendendo-nos ainda mais fortemente s cadeias da iluso. O grande segredo do Dzogchen ver bem atravs delas, to logo aparecem, percebendo-as pelo que de fato so: a vvida e eltrica manifestao da prpria energia Rigpa. medida que voc aprende a fazer isso, mesmo as emoes mais turbulentas j no conseguem domin-lo e se dissolvem como ondas bravias que aparecem e retrocedem, mergulhando de volta na calma do oceano.

O praticante descobre e essa uma viso revolucionria, cuja sutileza e poder vo alm do que podemos entrever que as emoes violentas no precisam necessariamente precipit-lo no turbilho de suas prprias neuroses; elas podem ser usadas para aprofundar, estimular, avivar e fortalecer Rigpa. Essa energia tempestuosa torna-se matria-prima para a energia desperta de Rigpa. Quanto mais forte e ardente a emoo, mais Rigpa se fortalece. Sinto que esse mtodo peculiar ao Dzogchen uma fora extraordinria para libertar at os problemas emocionais e psicolgicos mais inveterados e mais profundamente enraizados.

Deixe-me apresentar-lhes agora, do modo mais simples que puder, uma explicao sobre como exatamente esse processo funciona. [...]

No Dzogchen, a fundamental e inerente natureza de tudo chamada Luminosidade Base, ou Luminosidade Me. Ela permeia todas as nossas experincias e inclusive, embora no a reconheamos, a natureza inerente tambm dos pensamentos e emoes que surgem em nossa mente. Quando o mestre introduz verdadeira natureza da mente, ao estado de Rigpa, como se ele ou ela nos desse uma chave mestra. No Dzogchen chamamos essa chave, que vai abrir a porta do conhecimento total, de Luminosidade Caminho, ou Luminosidade Filha. A Luminosidade Base e a Luminosidade Caminho so fundamentalmente as mesmas, claro, e s para fins de explanao e prtica que elas so categorizadas dessa forma. Mas uma vez que temos a chave da Luminosidade Caminho, dada pela introduo do mestre, podemos us-la vontade para abrir a porta da natureza inata da realidade. Este abrir a porta se chama na prtica do Dzogchen o encontro da Luminosidade Base e da Luminosidade Caminho, ou o encontro das Luminosidades Me e Filha. Outro modo de dizer isso que, assim que um pensamento ou emoo aparece, a Luminosidade Caminho Rigpa reconhece-os imediatamente pelo que so, reconhece sua natureza inerente, a Luminosidade Base. Nesse instante de reconhecimento, as duas Luminosidades se fundem e os pensamentos e emoes so liberados em sua prpria base.

fundamental o aperfeioamento dessa prtica de fuso das duas Luminosidades e da auto-liberao daquilo que surge na sua mente enquanto voc est vivo, porque o que ocorre para todos no momento da morte isto: a Luminosidade Base desponta com seu imenso esplendor, trazendo com ela uma oportunidade de liberao total se, e somente se, voc tiver aprendido a reconhec-la.

Talvez fique claro agora que essa fuso das Luminosidades e da auto-liberao dos pensamentos e das emoes meditao no seu nvel mais profundo. De fato, um termo como meditao no verdadeiramente apropriado para a prtica Dzogchen porque, em ltima anlise, implica meditar sobre algo, enquanto que no Dzogchen tudo apenas e para sempre Rigpa. Desse modo, no existe meditao separada do simples ficar na pura presena de Rigpa.

A nica palavra que talvez pudesse descrever isso no-meditao. Nesse estado, dizem os mestres, mesmo se voc procurar a iluso, no encontrar nenhuma. Mesmo se voc procurar pedrinhas comuns numa ilha de ouro e jias, no ter oportunidade de encontr-las. Quando a Viso constante, o fluxo de Rigpa inesgotvel e a fuso das duas Luminosidades contnua e espontnea, toda a iluso possvel liberada em sua prpria raiz e toda a sua percepo aparece como Rigpa, sem interrupo.

Os mestres enfatizam que para estabilizar a Viso na meditao essencial, primeiro, realizar essa prtica numambiente especial, de retiro, onde todas as condies favorveis estejam presentes; entre as distraes e a correria do mundo, as experincias verdadeiras, por mais que voc medite, no surgiro na sua mente. Segundo, embora no haja diferena no Dzogchen entre meditao e vida cotidiana, at que voc tenha encontrado a verdadeira estabilidade pela prtica em sesses a isso dedicadas, no conseguir integrar a sabedoria da meditao na experincia da vida diria. Terceiro, mesmo se voc pratica e capaz de assentar no fluxo de Rigpa com confiana na Viso, mas no consegue manter esse fluxo todo o tempo, em todas as situaes, combinando sua prtica com a vida cotidiana, isso no servir quando circunstncias desfavorveis surgirem, e voc ser desviado para a iluso pelos pensamentos e emoes.

H uma histria deliciosa sobre um yogi Dzogchen que vivia modestamente, cercado no entanto por um grande nmero de discpulos. Um certo monge, que tinha uma opinio exageradamente favorvel do prprio aprendizado e erudio, sentia cimes do yogi, que ele sabia no era nada letrado. Pensou: Como pode ele, que no passa de uma pessoa comum, ter a ousadia de ensinar? Como ousar fingir ser um mestre? Vou testar seus conhecimentos, desmascarar a impostura e humilh-lo na presena dos seus discpulos, para que eles o deixem e me sigam.

Ento um dia ele visitou o yogi e lhe disse, maliciosamente: Vocs do Dzogchen,tudoo que fazem meditar?

A resposta do yogi tomou o monge completamente de surpresa: E h algo sobre que se possa meditar?

Ento voc nem sequer medita!, exclamou o erudito, triunfante.

Mas quando quealguma vezme distraio?, respondeu o yogi.

A Ao

medida que a familiaridade com o fluxo de Rigpa vai se tornando realidade e permeia a vida cotidiana, as aes do praticante comeam a mudar e geram estabilidade e confiana profundas.

Dudjom Rinpoche diz: Ao estar verdadeiramente atento aos seus prprios pensamentos. Bons ou maus, olhando para a verdadeira natureza de qualquer pensamento que surja, sem evocar o passado ou convidar o futuro, sem permitir qualquer apego experincia de alegria nem deixar-se dominar pelas situaes tristes. Assim fazendo, voc tenta atingir e permanecer num estado de grande equilbrio em que bom e mau, paz e angstia, so desprovidos de verdadeira identidade.

Atingir a realizao da Viso transforma de maneira sutil, porm completa, o modo como voc v as coisas. Mais e mais eu percebi o quanto pensamentos e conceitos so tudo o que nos impede de estar sempre, muito simplesmente, no absoluto. Agora vejo com claridade porque os mestres dizem com tanta freqncia: Procure com afinco no criar muita esperana ou medo, porque s engendram mais tagarelice mental. Quando a Viso est presente, os pensamentos so percebidos como de fato so: fugazes, transparentes e apenas relativos. Voc pode enxergar atravs de tudo, como se tivesse olhos de raios-X. No se apega aos pensamentos e emoes, nem os rejeita, mas acolhe-os todos no vasto abrao de Rigpa. O que levava muito a srio antes ambies, planos, expectativas, dvidas e paixes j no tem nenhum poder profundo sobre voc nem o deixa ansioso, uma vez que a Viso o ajudou a perceber a futilidade e a insensatez de todas as coisas, e fez nascer em voc um esprito de verdadeira renncia.

Permanecer na claridade e na confiana de Rigpa permite que todos os seus pensamentos e emoes se liberem naturalmente e sem esforo em sua vasta extenso, qual escrever na superfcie da gua ou pintar no cu. Se voc aperfeioa verdadeiramente essa prtica, no h jeito de acumular karma; e nesse estado de entrega despreocupada e sem intencionalidade, que Dudjom Rinpoche chama de tranqilidade aberta e desnuda, a lei de causa e efeito j no pode sujeit-lo de modo algum.

No presuma que isso fcil ou poderia de algum modo s-lo. muito difcil repousar sem distraes na natureza da mente, mesmo por um instante, e permitir que um pensamento ou emoo se auto-libere espontaneamente quando surge. Via de regra assumimos que apenas porque compreendemos algumas coisas intelectualmente, ou pensamos que compreendemos, ns de fato as realizamos. Essa uma enorme iluso. A tarefa exige a maturidade que somente anos de audio, contemplao, reflexo, meditao e prtica contnua podem trazer. E nunca demais enfatizar que a prtica continuada do Dzogchen sempre requer a direo e a instruo de um mestre qualificado.

De outro modo h um grande perigo, que a tradio chama perder a Ao na Viso. Um ensinamento to elevado e poderoso como o Dzogchen comporta um risco extremo. Ao iludir-se de que est liberando pensamentos e emoes, quando de fato no est nem prximo de conseguir isso, e ao imaginar que est agindo com a espontaneidade de um verdadeiro yogi Dzogchen, tudo o que voc faz acumular enormes quantidades de karma negativo. Como dizia Padmasambhava, e esta a atitude que todos devem ter: Embora minha viso seja to vasta quanto o cu, minhas aes e meu respeito pela causa e efeito so refinados como o gro de farinha.

Os mestres da tradio Dzogchen enfatizam incansavelmente que, sem um conhecimento completo e profundo da essncia e mtodo da auto-liberao, atravs de longa prtica, a meditao somente incrementa o caminho da iluso. Isso pode parecer severo mas este o caso, porque s a auto-liberao constante dos pensamentos pode de fato acabar com o domnio da iluso e proteger o discpulo de mergulhar outra vez no sofrimento e na neurose. Sem o mtodo da auto-liberao voc no estar apto para enfrentar desventuras e circunstncias infelizes quando elas surgirem, e mesmo se voc j tem o hbito de meditar vai perceber que emoes como raiva e desejo esto presentes, to fortes quanto antes. O perigo de outros tipos de meditao que no tm esse mtodo consiste em que eles se tornam como a meditao dos deuses, extraviando-se com facilidade em uma suntuosa auto-absoro, num transe passivo, ou numa inanidade de esprito de um tipo ou de outro, e nada disso ataca e dissolve a iluso na sua raiz.

O grande mestre Dzogchen, Vimalamitra, falou de maneira muito precisa sobre os graus de crescente naturalidade nesse caminho de liberao: quando voc domina a prtica pela primeira vez, a liberao acontece simultaneamente ao que surge na mente, e a como reconhecer um velho amigo na multido. Aperfeioando e aprofundando a prtica a liberao vir junto com o surgimento das emoes e pensamentos, como uma serpente desenrolando-se. E, no estado final de mestria, a liberao como um ladro que entra numa casa vazia; nada do que surge traz males nem benefcios para o verdadeiro yogi Dzogchen.

Mesmo nos maiores yogi, a alegria e o sofrimento, a esperana e o medo, ainda aparecem exatamente como antes. A diferena de uma pessoa comum e o yogi est em como eles vem suas emoes e reagem a elas. Uma pessoa comum , de maneira instintiva, ir aceit-las ou rejeit-las, suscitando assim apego ou averso que resultaro na acumulao de karma negativo. Um yogi, no entanto, percebe tudo o que surge no seu estado natural e originalmente puro, sem permitir o apego entre em sua percepo.

Dilgo Khyentse Rinpoche descreve um yogi vagando num jardim. Apesar de estar totalmente desperto para o esplendor e a beleza das flores, apreciando suas cores, formas e perfumes, ele no tem pelo jardim nenhum vestgio de apego, ou qualquer pensamento superveniente. Como diz Dudjom Rinpoche: Em qualquer percepo que surja, voc deve ser como uma criana que entra num templo lindamente decorado: ela olha, mas o apego no entra de modo algum em sua percepo. Ento voc deixa tudo ali, fresco, natural, vivo e intocado. Quando voc deixa tudo no seu estado prprio, a forma no muda, a cor no esmaece, o brilho no declina. Tudo o que surge no maculado por nenhum apego, e assim todas as coisas que voc percebe surgem como a desnuda sabedoria de Rigpa, que a inseparabilidade entre luminosidade e vacuidade.

A confiana, o contentamento, a vasta serenidade, a fora, o profundo humor e a certeza que advm da realizao direta da Viso de Rigpa so o maior tesouro da vida, a maior das felicidades, que uma vez obtida nada pode destruir, nem mesmo a morte. Dilgo Khyentse Rinpoche diz: Uma vez que voc obtm a Viso, embora as percepes ilusrias do samsara possam surgir na sua mente, voc ser como o cu: no fica particularmente lisonjeado quando surge nele o arco-ris, nem particularmente desapontado quando as nuvens o encobrem. H uma profunda sensao de contentamento. Voc ri por dentro quando v a fachada do samsara e do nirvana; a Viso o manter constantemente maravilhado com um suave sorriso interior se esboando, todo o tempo.

Como diz Dudjom Rinpoche: Tendo purificado a grande iluso, que o lado escuro do corao, a luz radiante do sol no-obscurecido nascer continuamente.

Quem leva a srio as instrues sobre Dzogchen e sua mensagem sobre o morrer [...] ir se sentir inspirado, espero, para buscar, encontrar e seguir um mestre qualificado, e para comprometer-se a passar por um completo treinamento sob orientao dele ou dela. O corao do treinamento Dzogchen consiste em duas prticas, Trekch e Tgal, que so indispensveis a uma compreenso profunda do que ocorre durante os bardos. S posso dar aqui uma brevssima introduo a ambas. A explicao completa s dada de mestre a discpulo, quando este j se comprometeu de todo o corao com os ensinamentos e atingiu um certo estgio de desenvolvimento. O que expliquei neste captulo A Essncia Mais Profunda a essncia da prtica do Trekch.

Trekch significa atravessar a iluso essencialmente com fora irresistvel da viso Rigpa, como uma faca corta manteiga ou um mestre de karat quebra uma pilha de tijolos. Todo o fantstico edifcio da iluso desmorona, como se voc tivesse pulverizado seus alicerces. A iluso atravessada e a pureza primordial e a natural simplicidade da mente so desveladas.

Somente quando o mestre determinar que voc tem uma base firme na prtica do Trekch que ele ou ela o introduzir na prtica avanada do Tgal. O praticante do Tgal trabalha diretamente com a Clara Luz que habita de modo inerente em todos os fenmenos e est espontaneamente presente neles usando exerccios especficos e muito poderosos para revel-la dentro de si mesmo.

O Tgal tem a qualidade de ser instantneo, de trazer realizao imediata. Em vez de viajar por uma cordilheira para alcanar um pico distante, o Tgal leva-o at l num salto. O efeito de Tgal tornar algum capaz de efetivar todos os diferentes aspectos da iluminao em si prprios no decurso de uma vida. Por isso considerado o mtodo nico e extraordinrio do Dzogchen; enquanto o Trekch a sua sabedoria, o Tgal so seus meios hbeis. Exige imensa disciplina e geralmente praticado em retiro.

No entanto, nunca demais ressaltar que o caminho do Dzogchen s pode ser seguido sob a orientao direta de um mestre qualificado. Como o Dalai Lama diz: Um fato que voc tem de ter em mente que s se pode atingir a realizao em prticas Dzogchen como o Trekch e o Tgal com a direo de um mestre experiente, e recebendo a inspirao e a bno de uma pessoa viva que possui essa realizao.

O corpo de arco-ris

Atravs dessas prticas avanadas de Dzogchen, praticantes realizados podem levar suas vidas a um fim extraordinrio e triunfante. Quando morrem, capacitam seu corpo a ser reabsorvido na essncia de luz dos elementos que o criaram; em conseqncia, esse seu corpo material se dissolve em luz e desaparece por completo. Esse processo conhecido como corpo de arco-ris, ou corpo de luz, por que a dissoluo comumente acompanhada por manifestaes espontneas de luz e de arco-ris. Os antigos tantras do Dzogchen e os escritos dos grandes mestres distinguem diferentes categorias desse fenmeno espantoso e sobrenatural que, numa certa poca, embora no habitual, era razoavelmente freqente.

Via de regra uma pessoa que sabe que est prestes a obter um corpo de arco-ris pede para ser deixada sozinha por sete dias, sem ser perturbada, em um quarto ou tenda. No oitavo dia somente so encontrados os cabelos, as unhas e as impurezas do corpo.

Isso pode ser muito difcil de acreditar atualmente, mas a histria dos fatos da linhagem Dzogchen est cheia de exemplos de indivduos que obtiveram o corpo de arco-ris e, como Dudjom Rinpoche costumava sempre salientar, no se trata apenas de histria antiga. Entre os muitos exemplos, gostaria de escolher um dos mais recentes, com que tive ligao pessoal. Em 1952 houve um famoso exemplo de corpo de arco-ris no Tibet oriental, testemunhado por muita gente. O homem que conseguiu, Snam Namgyal, era o pai do meu tutor e irmo de Lama Tseten [...].

Ele era uma pessoa muito simples e humilde, que ganhou sua vida como escultor itinerante, talhando em pedra mantras e textos sagrados. Alguns dizem que teria sido caador em sua juventude, recebendo depois ensinamentos de um grande mestre. Ningum nunca soube que ele era um praticante; era de fato o que se chama um yogi oculto. Algum tempo antes da sua morte, viam-no subindo as montanhas e sentando-se, sua silhueta contra o cu, com os olhos fixados no espao. Compunha suas prprias canes e cnticos, e entoava-os em lugar dos tradicionais. Ningum tinha idia do que ele estava fazendo. Ento ficou doente, ou pelo menos foi isso o que pareceu, mas estranhamente foi ficando cada vez mais feliz. Quando a doena se agravou, sua famlia chamou mestres e mdicos. Seu filho lembrou-lhe que precisava recordar-se de todos os ensinamentos ouvidos; ele sorriu, dizendo: Esqueci-me de todos, e de qualquer modo no h nada a lembrar. Tudo iluso, mas estou confiante de que est tudo bem.

Bem prximo do momento de sua morte, aos setenta e nove anos, disse: Tudo o que peo que, quando eu morrer, no mexam no meu corpo por uma semana. Quando morreu, sua famlia embrulhou seu corpo e convidou lamas e monges para virem fazer prticas para ele. Puseram o corpo numa pequena sala da casa, e foi impossvel deixar de notar que, tendo sido ele um homem alto em vida, no houve problema em faz-lo caber no aposento, com se tivesse se tornado menor. Ao mesmo tempo, via-se em torna da casa uma extraordinria manifestao de luz das cores do arco-ris. Quando no sexto dia olharam dentro da sala, viram que o corpo diminura de tamanho. Na manh do oitavo dia, quando o enterro deveria acontecer, os agentes funerrios chegaram para pegar o corpo. Ao retirarem os envoltrios, verificaram que nada havia ali alm das unhas e do cabelo.

Meu mestre Jamyang Khyentse pediu que esses restos lhes fossem trazidos, e verificou que se tratava de um caso de corpo de arco-ris.

Sogyal Rinpoche.O livro tibetano do viver e do morrer. Traduo de Luiz Carlos Lisboa. Reviso tcnica de Arnaldo Bassoli, Lamara Bassoli e Manoel Vidal. So Paulo: Talento e Palas Athena, 1999. Pg. 199-221.