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1 A ESTRUTURA PRODUTIVA AGRÍCOLA E PECUÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL: NATUREZA, OCUPAÇÃO E POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO 1 Aline Weber Sulzbacher UNESP – Univ. Estadual Paulista - Presidente Prudente [email protected] Resumo Neste artigo relacionamos três temas: o agronegócio, a agricultura familiar e a divisão territorial das atividades agropecuárias no Estado do Rio Grande do Sul. A partir de uma breve discussão sobre relação entre agronegócio e a agricultura familiar, problematizamos a polissemia da noção “agronegócio” e questionamos qual o papel da Ciência Geográfica na análise desse processo. Ao abordar a divisão territorial das atividades no RS, pretendemos demonstrar os fatores natureza, ocupação e povoamento, e políticas de desenvolvimento contribuíram para a divisão territorial e uma relativa especialização produtiva de algumas regiões, permitindo a constituição dos complexos agroindustriais e, em alguns casos, a estruturação do agronegócio. Palavras-chave: Agronegócio. Agricultura Familiar. Políticas Públicas. Introdução Este texto apresenta duas frentes de discussão, que são diferentes, porém complementares. A primeira tem por objetivo dialogar com autores sobre o conceito de agronegócio, sua relação com a agricultura familiar e a permanente questão do (qual?) desenvolvimento. Na segunda parte, pretendemos abordar as estruturas produtivas da agropecuária gaúcha, demonstrando como os fatores naturais, de ocupação e de políticas de desenvolvimento contribuíram para a especialização produtiva de algumas regiões. Uma especialização que se consolida principalmente nos últimos 30 anos e sua principal característica, no período atual, é a relação relativamente afinada entre os complexos agroindustriais e a agricultura familiar ou ainda, em alguns casos, do agronegócio com a agricultura familiar ou mesmo agricultores assentados. Pretendemos identificar as cadeias produtivas que se destacam e, se possível, averiguar se é plausível falar em “sociedade do agronegócio” tal como abordado por Heredia, Palmeira e Sérgio (2010). Pretende-se dialogar sobre agronegócio, complexo agroindustrial e agricultura familiar, pois são expressões relativamente recentes na história agrária do Brasil. Além disso, as duas primeiras são conceitos nas ciências econômicas, enquanto que a ‘agricultura familiar’ foi

A ESTRUTURA PRODUTIVA AGRÍCOLA E PECUÁRIA NO RIO … · atividades agropecuárias no Estado do Rio Grande do Sul. A partir de uma breve ... neutralidade e correspondem às posições

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A ESTRUTURA PRODUTIVA AGRÍCOLA E PECUÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL: NATUREZA, OCUPAÇÃO E POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO1

Aline Weber Sulzbacher UNESP – Univ. Estadual Paulista - Presidente Prudente

[email protected]

Resumo Neste artigo relacionamos três temas: o agronegócio, a agricultura familiar e a divisão territorial das atividades agropecuárias no Estado do Rio Grande do Sul. A partir de uma breve discussão sobre relação entre agronegócio e a agricultura familiar, problematizamos a polissemia da noção “agronegócio” e questionamos qual o papel da Ciência Geográfica na análise desse processo. Ao abordar a divisão territorial das atividades no RS, pretendemos demonstrar os fatores natureza, ocupação e povoamento, e políticas de desenvolvimento contribuíram para a divisão territorial e uma relativa especialização produtiva de algumas regiões, permitindo a constituição dos complexos agroindustriais e, em alguns casos, a estruturação do agronegócio. Palavras-chave: Agronegócio. Agricultura Familiar. Políticas Públicas. Introdução Este texto apresenta duas frentes de discussão, que são diferentes, porém complementares.

A primeira tem por objetivo dialogar com autores sobre o conceito de agronegócio, sua

relação com a agricultura familiar e a permanente questão do (qual?) desenvolvimento. Na

segunda parte, pretendemos abordar as estruturas produtivas da agropecuária gaúcha,

demonstrando como os fatores naturais, de ocupação e de políticas de desenvolvimento

contribuíram para a especialização produtiva de algumas regiões. Uma especialização que

se consolida principalmente nos últimos 30 anos e sua principal característica, no período

atual, é a relação relativamente afinada entre os complexos agroindustriais e a agricultura

familiar ou ainda, em alguns casos, do agronegócio com a agricultura familiar ou mesmo

agricultores assentados. Pretendemos identificar as cadeias produtivas que se destacam e, se

possível, averiguar se é plausível falar em “sociedade do agronegócio” tal como abordado

por Heredia, Palmeira e Sérgio (2010).

Pretende-se dialogar sobre agronegócio, complexo agroindustrial e agricultura familiar,

pois são expressões relativamente recentes na história agrária do Brasil. Além disso, as duas

primeiras são conceitos nas ciências econômicas, enquanto que a ‘agricultura familiar’ foi

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institucionalizada via política pública e a partir disso é assunto recorrente em pesquisas nas

ciências humanas. O uso periódico, principalmente do ‘agronegócio’, nos meios de

comunicação e, geralmente de forma polissêmica, contribui para reforçar uma perspectiva

ideológica associada à agricultura moderna, com tecnologia de ponta e altamente produtiva.

Deixa-se em segundo plano, os problemas sociais e ambientais decorrentes.

Por sua vez, a história agrária do RS tem ao menos três fatores que foram fundamentais na

dinâmica de desenvolvimento regional: os fatores naturais em que dois biomas delimitam

as aptidões agrícolas e pecuárias; os fatores ligados à ocupação e povoamento, em que se

contrapõem a política de sesmarias que foi basilar para a concentração da propriedade da

terra e a política de colonização com imigrantes europeus, que atualmente corresponde às

áreas com maior densidade populacional e com dinamismo econômico. E, um terceiro fator

ligado às políticas de Estado, incentivando o desenvolvimento do capitalismo no campo,

em que são priorizadas áreas com aptidão agrícola, propícias para a modernização da

agricultura, industrialização e urbanização.

A consolidação do complexo agroindustrial está diretamente vinculada com essa divisão

territorial do trabalho a partir de cada setor produtivo, principalmente pela sua importância

econômica, dada a partir da participação na composição do total produzido no Brasil: a soja

produzida no RS corresponde a 14,4% da produção nacional; o arroz é de 50,6%; leite com

10,6% e suínos 12,4%. Nos casos de áreas com predominância da agricultura familiar, os

sistemas de produção geralmente associam produção agrícola e pecuária, está última no

sistema de integração, tal como avicultura, suinocultura ou mesmo bovinocultura de leite.

Em quais destas cadeias produtivas seria possível afirmar que há complexidade intersetorial

característica do agronegócio? E quais delas podem ser identificados como complexos

agroindustriais? Qual é a participação efetiva da agricultura familiar nestas estatísticas? E,

por fim, a Ciência Geográfica tem alguma contribuição na análise do agronegócio e da

agricultura familiar?

Situando os conceitos: agronegócio, complexo agroindustrial e agricultura familiar É lamentável a polissemia que se tem observado ultimamente. Uma confusão que em partes

tem relação com o destoar entre dois usos dos conceitos: 1) enquanto componentes de uma

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abordagem teórica para leitura a realidade; 2) em sua capacidade explicativa da realidade,

são apropriados por grupos com interesses, e passam a ser utilizados de forma generalizada

pelo senso comum.

Tal é o caso do conceito de agronegócio. Um termo que se popularizou no Brasil a partir da

década de 1990 e designa, a princípio, “um conjunto de ações ou transações comerciais

(produção, industrialização e comercialização), ou seja, negócios relacionados à agricultura

e á pecuária” (SAUER, 2008, p. 14). A sua adoção projeta a intenção de relaciona-lo com

incorporação de tecnologia e distingui-lo dos setores ineficientes e supostamente atrasados,

“buscando distanciar-se tanto da noção de latifúndio como da de pequena produção” (idem,

p. 17).

Esta perspectiva ideológica, associada ao termo, é difundida a partir de entidades patronais

vinculadas ao setor agrário e agroindustrial, entre os associados, no mercado financeiro, nos

órgãos governamentais e na mídia. Assim, se populariza o uso da palavra agronegócio para

designar “o conjunto dos segmentos produtivos que se articulam direta ou indiretamente

com a agricultura moderna” (CAMPOS, 2009, p. 25, apud Hespanhol, 2007).

No entanto antes desta apropriação, para representar o ‘novo moderno’ no meio rural

brasileiro, trata-se de um conceito que pretende dar conta de um momento específico do

processo de modernização da agricultura, em que a integração com outros setores,

complexifica o sistema, principalmente pelo aumento considerável de relações entre setores

que engendram o funcionamento da atividade agropecuária.

Trata-se de um processo que ganha importância principalmente após a Segunda Guerra

Mundial, relacionado ao aporte tecnológico para o meio rural, permitindo ao homem uma

capacidade de interferência no tempo da natureza, diminuindo os ciclos de vida de plantas e

animais em prol do suprimento da necessidade de alimentação da sociedade. Aproxima-se o

tempo da natureza ao tempo da indústria, tal como abordam Goodman, Sorj e Wilkinson

(2008) na obra “Da lavoura às biotecnologias”.

Diferentes autores analisam essa questão. José Graziano da Silva considera esse processo a

partir da ‘decomposição’ do complexo rural: “a produção agropecuária deixa, assim, de ser

uma esperança ao sabor das forças da Natureza para se converter numa certeza sob o

comando do capital” (SILVA, 1996, p. 04), e prossegue:

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A industrialização da agricultura implica a passagem de um sistema de produção artesanal a

um sistema em base manufatureira (...) e mesmo à grande indústria em alguns subsetores

das atividades agropecuárias no seu sentido restrito (...). E essa passagem é caracterizada

essencialmente pela inversão da função desempenhada pelo trabalhador que passa do papel

ativo e integral do artesão para o de um trabalhador parcial (especializado em ferramentas)

na manufatura, até atingir a passividade do operário industrial que apenas vigia sua

máquina.

Essa passagem entre dois sistemas, do artesanal à manufatura, indica um processo em que

agricultura integra-se ao circuito produtivo da indústria de insumos e processamento de

matéria prima. Em um momento seguinte, esse processo permite a formação dos complexos

agroindustriais: “O ponto fundamental que qualifica a existência de um complexo é o

elevado grau das relações interindustriais dos ramos ou setores que o compõem” (Idem, p.

31). Ou seja, neste movimento de aproximação da agricultura com a indústria, as relações

intersetoriais passam a ser essência do processo, compondo variedade de conexões:

As relações intersetoriais dos CAIs só puderam se intensificar e manter-se estáveis quando

o setor de máquinas e insumos para a agricultura encontrava-se montado no país. O circuito

completou-se com a implementação de uma política específica de financiamento da

agricultura, ou seja, uma política agroindustrial (SILVA, 1996, p. 32).

Uma política agroindustrial com significativo subsídio do Estado, através da criação de

institutos de pesquisa e de assistência técnica, crédito rural, fomento ao uso de insumos

modernos. E, nessa esfera, as relações também são caracterizadas por uma relativa

complexidade tendo em vista os diferentes agentes sociais que põem em disputa seus

interesses, afinal “[...] as decisões politicas não são tomadas numa atmosfera de

neutralidade e correspondem às posições que ocupam os agentes sociais no interior da

sociedade” (GONÇALVES NETO, 1997, p. 143).

Portanto ao dedicar-se a compreender a complexidade que passa a caracterizar o meio rural

brasileiro, há ao menos duas frentes: uma que se refere aos agentes envolvidos, visando

identifica-los, e entender suas interações e influencias; e outra que se refere à

modernização, com o aporte de capital por parte do Estado e de capital privado.

No período atual, em que o termo agronegócio predomina no cenário político, social,

econômico e, inclusive ambiental, é recorrente uma confusão (difundida inclusive nos

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meios de comunicação), denominando-se de agronegócio qualquer “negócio que envolve a

terra”. No entanto, trata-se de uma abordagem teórica, que tenta abarcar a complexidade

que envolve a produção agropecuária, considerando principalmente suas inúmeras inter-

relações setoriais, dadas em função da modernização e da especialização.

Uma observação atenta que permita identificar quem são os agentes sociais envolvidos e

principalmente, qual modelo de desenvolvimento é colocada em voga, contribuí para evitar

o uso errôneo do termo para designar segmentos da agricultura familiar, uma vez que

“mesmo unidades agrícolas familiares integradas aos complexos agroindustriais como

fornecedoras de matéria-prima não podem ser rotuladas genericamente como representantes

do agronegócio. Via de regra, as famílias que trabalham nessas condições têm grande parte

de sua renda apropriada pelos setores industriais devido à imposição de preços abaixo do

valor e dos elevados custos de produção” (CAMPOS, 1999, p. 31). O agronegócio

corresponde a “uma complexa articulação de capitais direta e indiretamente vinculados com

os processos produtivos agropecuários” (Idem).

Autores como Heredia, Palmeira e Leite (2010) destacam que a década de 1980 marca

mudança de referencia teórico e ideológico para o estudo da agricultura, tendo em vista o

processo de desenvolvimento do capitalismo no campo e a industrialização da agricultura a

partir das formulações de Kautsky. Nesse viés, “a ideia do agronegócio será uma espécie de

radicalização dessa visão, em que o lado agrícola perde importância e o lado industrial é

abordado tendo como referencia não a unidade industrial local, mas o conjunto de

atividades do grupo que a controla e suas formas de gerenciamento”. Ou seja, “o

gerenciamento de um negócio que envolve muito mais que uma planta industrial ou um

conjunto de unidades agrícolas é uma das tônicas da ideia de agronegócio” (HEREDIA,

PALMEIRA e LEITE, 2010, p. 160).

Em contraposição ao agronegócio, a expressão ‘agricultura familiar’ passa a ganhar

importância na década de 1990, a partir da pressão dos movimentos sociais, especialmente

o sindical, em prol da necessidade de políticas públicas específicas aos sujeitos rurais do

campo, até então à margem do modelo de desenvolvimento agrícola:

O uso dessa expressão visava, principalmente, romper com noções relacionadas a certos

setores rurais como a ‘pequena produção’ ou a ‘produção de subsistência’ (ou mesmo com a

noção de produção camponesa), especialmente porque essas carregavam pré-noções de

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‘ineficiência’, baixa produtividade (‘pequeno produtor) e não inserção no mercado

(produção apenas para o autoconsumo ou de ‘subsistência) (SAUER, 2008, p. 20).

A agricultura familiar passa a ganhar espaço institucional principalmente com o PRONAF

em 1996 e, dez anos depois, com a Lei da Agricultura Familiar (Lei nº 11.326/2006), que

passou a reconhecê-la como um setor produtivo e, que, portanto, merece apoio por parte do

Estado. Atualmente os agricultores familiares representam 84,4% do total de

estabelecimentos, ocupam 24,3% da área total e são responsáveis por 38% do valor bruto

da produção agropecuária nacional (IBGE, 2006).

A pergunta recorrente é: Qual estratégia para o desenvolvimento do espaço rural que

considere a participação destes agricultores? Ou ainda, como construir meios que diminuam

a dependência dos agricultores em relação às grandes indústrias do setor agroalimentar? As

mudanças de perspectivas em relação ao desenvolvimento, do setorial-agrícola para o rural

e, recentemente, para a abordagem territorial2, incentivam a indagar sobre o modelo de

desenvolvimento nacional apropriado para o rural. Para Nelson Delgado, ao discutir a

relação agricultura familiar e agronegócio no Brasil, concluí que “o maior obstáculo ao

desenvolvimento rural no Brasil vem do peso político do agronegócio e do papel central

que desempenha na estratégia de especialização na exportação de produtos agropecuários

como forma predominante de ajustamento da conta de transações correntes do balanço de

pagamentos” (DELGADO, 2011, p. 34).

Antes de concluir cabe destacar que entendemos o agronegócio como uma relação

intersetorial que incluí o complexo agroindustrial, porém é muito mais abrangente e

diversificado do que este. Se o complexo agroindustrial aproxima e consolida a

dependência da agricultura em relação à indústria, o agronegócio amplia essa articulação,

envolvendo outros setores, instituições e agentes. Permite assim, uma participação de

investidores externos (como exemplo a compra de ações na bolsa de valores), a superação

das fronteiras nacionais via a negociação direta dos produtos junto aos seus mercados

consumidores, o desenvolvimento de pesquisas voltadas as suas necessidades (seja

tecnologia mecânica, seja biotecnologia), dentre outros. O agronegócio assim entendido

trata-se de uma lógica produtiva que articula e aproxima desde o produtor rural (e o aparato

técnico-produtivo) até o consumidor (que pode ser investidor), assumindo todas as

intermediações (produção, distribuição, processamento, comercialização, etc.). Tratando-se

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de uma abordagem teórica das ciências econômicas, como poderia a Geografia contribuir

para analisar esse processo no meio rural brasileiro? Quais são os conceitos Geográficos

que permitem uma leitura desta realidade?

A geografia das estruturas produtivas agrícolas e pecuárias no meio rural gaúcho Nesta seção pretendemos apresentar, de forma breve, o processo histórico de ocupação e

povoamento do RS, bem como os fatores naturais contribuíram na questão agrária,

delineando tipos de usos das áreas, relações sociais de produção e sua participação no

processo de modernização da agricultura.

Indica-se o ano de 1531 como marco para o primeiro contato dos exploradores europeus

com a área que atualmente refere-se ao Estado do RS. As terras já eram povoadas por

nativos, dos grupos tapes, carijós, minuano, charrua e coroado. A segunda referência

temporal é o período de 1605 a 1633, com a fundação das reduções jesuíticas, seguidas da

formação dos Sete Povos das Missões (1682 a 1750). A partir do século XVIII, a Coroa

Portuguesa distribui sesmarias e instala acampamentos militares, visando garantir a posse e

defesa das terras. Na Figura 01 apresentamos alguns mapas que mostram a distribuição dos

grupos nativos no RS e a formação das reduções jesuíticas.

Figura 1 – Mapas pontos de chegada dos exploradores europeus, distribuição espacial dos grupos nativos no RS e, posteriormente, as reduções jesuíticas.

Fonte: Memorial do Rio Grande do Sul, abril 2012.

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A formação geomorfológica e climática do Estado do Rio Grande do Sul, associada ao

processo de ocupação do espaço contribuíram para a origem de dois sistemas agrários,

delimitados espacialmente: “o pastoril, predominante nas áreas de campo, e o agrícola, que

prevalece nas áreas de mato” (SILVA NETO e BASSO, 2005, p. 31). Essa divisão permite

traçar, a grosso modo, uma divisão entre a metade norte com áreas de mato

progressivamente substituídas por lavouras, a partir dos descendentes dos colonos; e a

metade sul com predominância do Bioma Pampa, caracterizado pelo campo nativo,

apropriado e usado para a pecuária extensiva.

Figura 02 – Mapa hipsométrico com divisão da metade norte e metade sul, do Rio Grande do Sul

A estrutura produtiva na metade norte A partir de 1748 inicia processo de imigração, com chegada de dois mil casais açorianos,

em 1824 a 1914 chegaram aproximadamente 45 mil colonos alemães e de 1784 a 1914

chegam cerca de 160 mil colonos italianos. Em especial os germânicos e italianos,

contribuíram na formação de identidades regionais, ligada à gastronomia, idioma, religião,

arquitetura e no processamento artesanal de alimentos.

Esses colonos também foram responsáveis pela expansão da fronteira agrícola do Estado,

povoando inicialmente os vales, depois as encostas. Em seguida, seus descendentes

formaram as “colônias novas” seguindo em direção a norte e noroeste, a partir da

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substituição das matas por uma prática agropecuária voltada basicamente para a

subsistência do grupo familiar, incluindo trocas mercantis:

Adotando o sistema de pousio dos índios e dos caboclos, a nova colônia se consolida

mediante uma policultura colonial, com produção de milho, mandioca, feijão, batata, para

consumo da família e a banha como principal produto comercial. O excedente da produção

era comercializado em troca de mantimentos no comércio local (bolichos e moinhos) e para

municípios vizinhos (LIMA, et al, 2008, p. 15).

Os autores referem-se a um período posterior a 1920, quando se estabelecem os primeiros

colonos no atual município de Constantina (metade norte). Esta organização sócioespacial

entra em crise com as partilhas das terras por herança, a perda de fertilidade dos solos e a

progressiva a diferenciação social entre os colonos, exigindo a necessidade de utilização de

crédito rural subsidiado e/ou em situação extrema optando por abandonar as atividades. O

ingresso nos sistemas ‘modernos’ de produção agrícola com integração à indústria e

produção de soja/trigo mostra-se como uma das alternativas postas para os colonos.

Em estudo realizado por Neumann (2003) na região do Conselho Regional de

Desenvolvimento da Região Centro (COREDE-Centro), área de colonização alemã e

italiana, o autor observou que a “diversificação da produção, além de ter sido uma

estratégia de autossuficiência alimentar, parece ter sido uma estratégia para diminuir o risco

frente às oscilações dos preços dos produtos agrícolas da época” (NEUMANN, 2003, p.

132). Desta forma, buscava-se aumentar sua flexibilidade na relação com o mercado como

demonstrou Silveira (1994) em pesquisa sobre o espaço agrário de Silveira Martins,

município da Quarta Colônia de Imigração Italiana do Rio Grande do Sul.

No entanto, a necessidade de racionalizar os usos dos fatores de produção disponíveis em

cada unidade familiar, as características agroecológicas e a busca de mercado, contribuiu

para que se forjassem as primeiras linhas de uma genuína especialização comercial e

embora tenha, [...] havido diferenças entre a agricultura praticada na Colônia Alemã e na Italiana, acabou ocorrendo, pela proximidade das colônias, uma influência mútua, principalmente da alemã, já instalada, sobre a nova Colônia Italiana. O cultivo do feijão, tabaco, do arroz e a criação de porcos para banha ilustram bem esta influência. Na Colônia Italiana, por determinado período de tempo (...) ocorreu uma espécie de especialização por localidade (NEUMANN, 2003, p. 131).

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Essa estrutura agrária, marcada pelas relações de trabalho e de produção que tinham por

base o grupo familiar, será predominante também nas outras colônias espalhadas pela

porção norte do Estado. Um conjunto de características que entram em colapso a partir da

década de 1960/70 quando se inicia processo de modernização agrícola e é “quando os

produtos agrícolas coloniais perderam, significativamente, seu valor comercial e, também,

pela desestruturação da grande rede do comércio e da manufatura da agricultura colonial

local” (Idem, p. 132).

A progressiva desestruturação da agricultura colonial e introdução de práticas agrícolas

modernas, como o plantio da soja, contribuíram para profundas transformações no modo de

vida rural, sendo que uma das características centrais foi “o rompimento da situação de

autonomia que caracterizava o meio rural até meados do século XX. Os ‘antigos’ colonos

ao especializarem-se na soja e adotarem o ‘pacote tecnológico’ acabaram perdendo sua

autonomia” (PICOLOTTO, 2006, p. 132).

Neste cenário, além da soja, outras atividades passam a se consolidar tendo como base as

relações sociais e de produção da agricultura familiar,

Particularmente, para o caso da região Noroeste do Estado deve-se considerar também que

a intensificação do sistema de criação de suínos gerou um forte processo de concentração

da produção, contribuindo para o processo de esvaziamento populacional (...). É

interessante notar que este declínio acontece mesmo com o aumento da atividade leiteira na

região, que apesar de sua maior exigência de mão-de-obra, parece não ter sido suficiente

para compensar os efeitos da redução das lavouras de soja e de trigo e do avanço da

mecanização (SILVA NETO e BASSO, 2005, p. 90).

Nestes marcos, o meio rural gaúcho, em especial a porção centro-norte-nordeste começa a

experimentar as primeiras ondas da especialização produtiva, baseada em sistemas de

produção intensivos que geralmente integram grãos com atividade pecuária baseada na

força de trabalho familiar e nas pequenas extensões de terra. Inicia-se aproximação da

agricultura com a indústria e a formação dos complexos agroindustriais nas cadeias

produtivas do leite, suínos, aves, soja e milho.

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A estrutura produtiva na metade sul Os campos, disputados entre Portugal e Espanha, foram povoados por luso-brasileiros

através da concessão de sesmarias pelo governo imperial, representado pelo domínio de

Portugal. Das sesmarias surgiram as estâncias, sendo distribuídos de formas desiguais,

favorecendo os detentores de poder, fazendo com que a concentração de terra e o

monopólio viessem a ser principais características da região. De acordo com estudo

realizado por Britto (2011, p. 12): “[...] os problemas ambientais e sociais criados pela

exploração baseada na estrutura do latifúndio, ocupando indiscriminadamente o território e

explorando a mão-de-obra negra e mestiça, tem raízes profundas na história do pampa”. O

acesso a terra e aos meios de produção esteve “pouco ou nada acessível às camadas menos

abastadas de distintas maneiras durante o decorrer dessa história”.

A história agrária da metade sul, ou a região da campanha, pode ser periodizada a partir de

seis ciclos econômicos: o I Ciclo corresponde à captura do gado solto, que se reproduziu

após a destruição das reduções jesuíticas. O II Ciclo é marcado pela produção de gado, em

que as tropeadas de gado vivo interligaram o RS á São Paulo, abrindo as primeiras estradas.

O III Ciclo tem por característica um “sistema agrário estância”, período de 1800-1910, que

se inicia a partir da redução da mineração e a queda na demanda por carne, fazendo com

que as estâncias da campanha passassem a produzir charque: [...] foi à primeira indústria do RS e, apesar de regularizar a atividade pecuária e consolidar o poder dos latifundiários, colaborou para a urbanização da economia. As estâncias estavam consolidadas, eram delimitadas por marcos naturais pertencentes ao local (rio, cerros), marcos de pedras fixados ao solo e cercas de pedra [...] feitos por escravos (BRITTO, 2011, p. 51).

O IV Ciclo marca um processo de desmantelamento da economia do charque, guerras civis

(Revolução Farroupilha e Revolução Federalista) e a Guerra do Paraguai, e a instalação do

“sistema agrário de campo”, em que a estratégia do Governo é a criação de “núcleos

coloniais voltados à produção de gêneros alimentícios e ao abastecimento interno;

promover o povoamento das regiões de fronteira [...]; constituir uma sociedade de pequenos

e médios proprietários ligados ao governo central, quebrando assim a hegemonia política e

econômica dos latifundiários” (Idem p. 52). O V Ciclo é marcado pela diversificação, com

produção de vitivinicultura, milho e arroz irrigado, na pecuária há um estímulo para a

ovinocultura, principalmente na produção de lã.

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A década de 1930 inaugura o VI Ciclo econômico em que se destacam a produção de gado

extensiva ‘melhorada’ e a produção de arroz irrigado. A modernização da pecuária e da

agricultura é incentivada a partir de crédito e financiamentos pelo Estado. O período a

partir de 1960 é caracterizado como “sistema agrário contemporâneo” em que predomina a

pecuária extensiva melhorada e as grandes lavouras.

Nesse processo, a pecuária extensiva entra em crise, comprometendo a manutenção das

estâncias. No entanto, isso não indica a diminuição da concentração de terra, uma vez que o

campo passa a ser arrendado para os colonos3 para a sua transformação em lavouras. Foi

através do arrendamento de terras que a lavoura empresarial penetrou nas áreas de pecuária,

permitindo a prática agrícola principalmente via produção de grãos: primeiro arroz na

década de 1920, o trigo logo em seguida e a soja a partir da década de 1970. Essa relativa

diversificação, a partir do arrendamento, garantiu a manutenção da renda e a concentração

da estrutura fundiária na campanha. Mesmo com a entrada da vitivinicultura em alguns

municípios, a partir da década de 1990, e a silvicultura, principalmente a partir dos anos

2000, essa situação não muda tendo em vista que tais investimentos são realizados, em sua

maioria, por grupos com capital estrangeiro4.

A instalação de assentamentos rurais vai contribuir, ainda que de forma tímida, na

desconcentração da estrutura fundiária (vide Figura 03), no acréscimo à densidade

populacional e no dinamismo econômico da campanha, já em meados dos anos de 1990.

Entre 1990 e 2000 foram instalados 60% dos assentamentos que existem atualmente no RS,

e em sua grande parte está localizado na metade sul.

Figura 03 – Estrutura fundiária no RS

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A ‘metade sul e a metade norte’ contrapõem modos de vida diferentes, em suas formas de

relacionar-se com a natureza e com o tempo: o colono e o peão. Especialmente o solo (a

terra!), para o colono, ele precisa ser revolvido, para que possa receber as sementes,

produzir e assim garantir o sustento da família. Para o peão, o solo é sagrado e fica

protegido pelo o campo nativo, composto por diversidade de gramíneas, é manejado para

que possa garantir a alimentação ao gado, principal meio de sobrevivência da família. Estes

dois tipos sociais, entram em conflito quando o colono migra para a metade sul do Estado e

passa a introduzir práticas agrícolas, principalmente em áreas de planície, que permitem a

produção de arroz e soja.

A partir destas breves linhas podemos perceber que os fatores de ordem natural, de

ocupação e de políticas de Estado tiveram fundamental importância na forma como se

desenvolveram a metade sul e a metade norte no RS. Aliás, principalmente o processo

histórico e a questão agrária, reforçaram as aptidões naturais, de forma a contribuir para

uma divisão territorial do trabalho que indicou formas de participação diferenciada no

desenvolvimento agrícola, em especial na modernização da agricultura.

As estruturas produtivas e suas divisões territoriais Nesta seção, objetivamos argumentar e demonstrar como estão organizadas as atividades

agrícolas e pecuárias, de forma a contribuir para uma divisão territorial do trabalho. Pela

geografia que se delineou a questão agrária no RS, já é possível adiantar que a

modernização da agricultura teve significativa repercussão na metade norte do Estado.

Para contribuir na nossa argumentação, utilizamos um trabalho realizado por Castanho et al

(2007), que propuseram uma regionalização do RS com ênfase para a produção

agropecuária, usando como variáveis a área plantada e o efetivo animal (número de

cabeças). Como resultado, os autores propõem sete regiões geoeconômicas, representadas

no mapa da Figura 04 e cujas características principais apresentamos a seguir.

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Figura 04 – Regiões geoeconômicas do Estado do Rio Grande do Sul, baseadas na atividade agropecuária.

Fonte: Castanho et al (2007) A metade sul corresponde ao que os autores denominam de Região Geoeconômica 1, em

que a origem “baseada na doação de sesmarias, as quais originaram os latifúndios pastoris

do Estado (...) embora baseada na matriz tradicional (pecuária e arroz), teve a inserção de

outros produtos agrícolas, como a soja, o fumo e o milho” (CASTANHO et al, 2007, p. 05).

Trata-se de uma região que mesmo com a entrada de colonos e da instalação de

assentamentos rurais, ainda há significativa concentração da estrutura fundiária. A pecuária

extensiva, praticada historicamente, vem cedendo espaço a silvicultura que em muitos

casos não muda a relação de posse da terra, em função da prática de arrendamento. Na

Figura 05 apresentamos dois mapas que são exemplares no tocante à definição do

zoneamento agroecológico, rediscutido várias vezes pelos órgãos ambientais no RS a fim

da dificuldade de consenso sobre as áreas apropriadas para a silvicultura.

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Figura 05 – Mapas da silvicultura: (esquerda) limites à atividade de acordo com o zoneamento e (direita) previsão de plantio

Fonte: http://msilvaduarte.wordpress.com/2008/05/07/ (mapas divulgados em edições do Jornal Zero Hora, de circulação estadual no RS).

A região 02 “caracteriza-se por ter uma produção altamente rentável, via fumicultura,

consorciada com outros produtos agrícolas, de caráter secundário, como o milho, a

avicultura e a suinocultura” (Idem, p. 08). Atividades que se desenvolvem em pequenas

propriedades, com mão-de-obra familiar, em áreas de colonização alemã e italiana,

características que também foram diagnosticadas por Neumann (2003).

Na região 03, a principal característica é a soma entre a “agropecuária colonial e a indústria

e serviços em geral” e “tem sua base econômica assentada na cultura do milho e, na

pecuária pelas aves e suínos. No entanto, estas atividades coexistem em grande parte da

região com as lavouras de mandioca, batata (em menor proporção) e a fruticultura. Tal

situação deve-se ao fato desta região abranger, principalmente, as áreas iniciais de

colonização do Estado, caracterizadas pela diversificação da produção agropecuária, que

inicialmente tinha caráter de subsistência” (Idem, p. 08/9).

Como área de imigração tipicamente italiana, a região 04, especializou-se na produção de

uva, constituindo-se no polo vitivinicultor do Estado. Outra atividade importante refere-se à

“relevância do parque industrial, segunda maior concentração do Estado, formado em

função das cadeias produtivas desta região, ou seja, a uva e o turismo. Instalaram-se, então,

as indústrias têxteis, que suprem as “famosas malharias da Serra gaúcha”, de calçados,

bebidas (vinícolas) e moveleira” (Idem, p. 10). A região 05 se caracteriza um dos setores

mais produtivos economicamente, com ênfase para o cultivo da maçã. A região 06 destaca-

se pela produção de banana, abacaxi e de palmito. E, por fim, a região 07 que tem por base

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a produção de soja, trigo e milho, com integração ou da bovinocultura de leite ou da

avicultura.

Enquanto a metade sul mantém sua principal atividade ligada à pecuária de corte extensiva,

com alguns investimentos recentes em fruticultura e na silvicultura, porém vinculadas com

um projeto de modernização que não altera a estrutura fundiária. A opção para os

agricultores assentados tem sido a integração a cadeia produtiva do leite, geralmente

viabilizada pelas cooperativas vinculadas ao próprio movimento social. Uma frente

pioneira, já com dez anos, é a tentativa de produção de sementes agroecológicas nos

assentamentos, no entanto é uma atividade que tem inúmeras dificuldades dadas falta de

conhecimento técnico e tecnologias apropriadas a região da campanha. Portanto, nesses

casos a presença de um complexo agroindustrial estruturado tem limitações, impostas pelos

três fatores já analisados.

Por sua vez, a metade norte apresenta uma relativa diversidade na composição de sistemas

de produção, em que a predominância da produção de grãos, soja e milho, nas propriedades

‘consolidadas’, é combinada com outras estratégias nas propriedades da agricultura familiar

como é o caso dos sistemas de integração. É principalmente junto a agricultores familiares,

especialmente aqueles em que a propriedade da terra já é um fator limitante à reprodução

social, que a integração ao complexo agroindustrial tornar-se-á uma alternativa para a

permanência no meio rural, mesmo com todos os problemas sociais e ambientais que

podem ser decorrentes desta relação.

Na Figura 06 apresentamos um mapa das mesorregiões do RS com o valor da produção

referente à soja no ano de 2010. Em seguida, a Tabela 01 apresenta dados sobre a área

plantada. Em uma análise comparativa, pode-se destacar que enquanto a metade norte

continua se destacando no valor da produção, a metade sul tem se tornado uma área

propicia para a expansão da fronteira agrícola: na relação entre anos 2000 e 2010 houve um

incremento de 790% na área plantada na mesorregião metropolitana e de 319% e 225% nas

mesos Sudeste e Centro Ocidental, respectivamente.

A produção de arroz tem se destacado nos últimos anos a partir da “introdução de novas

variedades com maior potencial produtivo, manejo, sistemas produtivos e gerenciamento,

que acrescentaram rentabilidade a esta lavoura” que representou 14,8% do Valor Bruto da

Produção Agropecuária (RIO GRANDE DO SUL, 2011). Em 2010, a produção de arroz do

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RS correspondeu a 62% da produção nacional, e destacaram-se as mesorregiões do

sudoeste (44%), metropolitana (23%) e sudeste (20%) (IBGE, 2011).

Figura 06 – Mesorregiões do RS e valor da produção de soja

Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal, 2010. Tabela 01 – Área plantada de soja nas mesorregiões do Estado.

Unidades 2000 2010 Variação Brasil 13.693.677 23.339.094 170%

Rio Grande do Sul 3.030.556 4.021.778 133% Noroeste Rio-grandense - RS 2.462.977 2.747.879 112% Nordeste Rio-grandense - RS 94.748 212.210 224%

Centro Ocidental Rio-grandense - RS 227.580 511.890 225% Centro Oriental Rio-grandense - RS 64.676 139.103 215% Metropolitana de Porto Alegre - RS 2.375 18.756 790%

Sudoeste Rio-grandense - RS 143.162 280.200 196% Sudeste Rio-grandense - RS 35.038 111.740 319%

Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal, 2010.

Já a produção de milho, o RS produz apenas 11% (5.633.912 toneladas) do total nacional.

No entanto, trata-se de um produto tradicional e bem distribuído no estado, sendo cultivado

principalmente em regiões características da agricultura familiar e geralmente está

associado a outras atividades criatórias (aves, suínos, bovinos, etc.). Destacam-se as

mesorregiões noroeste, que contribui com 62% da produção estadual e a mesorregião

nordeste com 17% (IBGE, 2011).

Na cadeia produtiva da pecuária se destacam a avicultura, suinocultura e a produção de leite.

Na avicultura, as regiões da Serra e do Vale do Taquari podem ser consideradas como

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especializadas na produção de frangos de corte, respondendo por 54,7% do efetivo de aves

destinadas ao abate no cenário estadual (RIO GRANDE DO SUL, 20085). A suinocultura, por

sua vez, destaca-se nas regiões Norte, Noroeste e Serra. Nessas regiões são realizadas a cria e

a engorda dos animais, os quais são abatidos no próprio estado ou em Santa Catarina.

Na pecuária de corte, extensiva, a produção gaúcha vem decrescendo. A concentração de

rebanho está na porção oeste e sul do Estado, associado à presença dos campos ou integrado a

produção de arroz, com destaque para três regiões: Fronteira Oeste, com 24,2% do rebanho, a

região da Campanha com 10,6% e o Sul com 12,7% (RIO GRANDE DO SUL, 2011).

Na produção de leite, o RS responde por 12% da produção nacional. No Estado, a

quantidade de leite produzida nos período de 2000 a 2010, aumentou em 170% sendo que o

valor da produção teve um aumento médio de R$ 0,34 centavos por litro de leite (R$ 0,28 a

0,61/litro). Na Tabela 02 pode-se observar a variação na quantidade e no valor da produção,

com destaque para as mesorregiões Noroeste e Nordeste do Estado:

Tabela 02 – Quantidade e valor da produção de leite

Unidades Produção de origem animal (Mil

litros) Valor da produção (Mil Reais) 2000 2010 Var. 2000 2010 Var.

Brasil 19.767.206 30.715.460 155% R$ 5.731.407,00 R$ 21.210.252,00 370%

Rio Grande do Sul 2.102.018 3.633.834 173% R$ 547.317,00 R$ 2.291.325,00 419% Noroeste Rio-

grandense – RS 1.230.138 2.399.874 195% R$ 302.027,00 R$ 1.532.335,00 507%

Nordeste Rio-grandense – RS 202.968 396.444 195% R$ 52.016,00 R$ 240.040,00 461%

Centro Ocidental Rio-grandense - RS 82.635 88.466 107% R$ 19.531,00 R$ 48.740,00 250%

Centro Oriental Rio-grandense –

RS 215.933 309.130 143% R$ 59.073,00 R$ 197.876,00 335%

Metropolitana de Porto Alegre - RS 153.071 148.308 97% R$ 50.279,00 R$ 96.730,00 192%

Sudoeste Rio-grandense – RS 90.918 138.864 153% R$ 29.405,00 R$ 81.103,00 276%

Sudeste Rio-grandense – RS 126.355 152.749 121% R$ 34.986,00 R$ 94.502,00 270%

Fonte: IBGE, Pesquisa Pecuária Municipal, 2010.

A partir dos dados apresentados pode-se apontar que algumas cadeias produtivas são

relativamente bem organizadas, considerando sua importância em termos de quantidade

produzida e da participação na composição da produção estadual e nacional. No entanto,

19

mesmo em casos como a produção de soja ou a pecuária de leite, mais expressivas,

suspeitamos que o uso do termo “sociedade do agronegócio” não seja oportuno,

considerando a especificidade histórica e geográfica em comparação aos casos analisados

por Heredia, Palmeira e Leite (2010).

No RS, mesmo em áreas com significativo predomínio da soja, há também a convivência

com a agricultura familiar que participa ou não, da cadeia produtiva desta cultivar. Portanto,

poderíamos falar em um tipo específico de “sociedade” em que a soja possa representar

maior volume de produção, porém não contempla a diversidade de arranjos produtivos na

escala das unidades de produção familiar. Há que se considerar também a influencia do

relevo, em que as áreas menos propícias para a mecanização são geralmente utilizadas pela

agricultura familiar, nem que seja como pastagem para gado de leite.

Por fim, podemos concluir afirmando que o destaque de algumas cadeias produtivas no Rio

Grande do Sul tem relação com a capacidade organizativa do complexo agroindustrial, que

na pecuária tem algumas vantagens, tendo em vista a capacidade de beneficiamento e

processamento da produção, seja ela de leite, aves ou mesmo suínos. Isso permite ganhos

de economia de escala, agregação de valor e a participação em mercados de exportação.

Enquanto isso, a produção agrícola, especialmente de soja, é comercializada ainda in

natura, principalmente para exportação.

Considerações finais Algumas perguntas permanecem, especialmente quanto ao aparato teórico-metodológico da

Ciência Geográfica a fim de permitir uma análise sobre a temática do agronegócio e a

agricultura familiar. Poderíamos lançar questões como: porque o agronegócio se consolida

no Centro-Oeste e Sudeste do Brasil? Além do incentivo do Estado, quais são os outros

fatores que influenciam a consolidação de cadeias produtivas como a soja e a cana-de-

açúcar?

Por outro lado, continuamos incomodados com uso polissêmico do termo “agronegócio”.

Seria pertinente indagar se agribusiness é um conceito, da década de 1950, que consegue

dar conta da diversidade de processos que envolveram a agricultura e a indústria, e a

complexidade que as relações entre o meio rural e o meio urbano assumiram nos últimos 20

20

ou 30 anos? Portanto, seria recomendável uma reflexão teórica que permita identificar suas

principais diferenças, enquanto processos e enquanto relações.

Doutro modo, consideramos que no Rio Grande do Sul, os fatores naturais, de povoamento

e as políticas de Estado contribuíram para uma divisão territorial das estruturas produtivas,

sendo que algumas delas correspondem, atualmente, a complexos agroindustriais. Nesses

casos, suspeitamos que não seja apropriado usar o conceito de “sociedade do agronegócio”,

pois mesmo em regiões com presença significativa da soja (e que talvez pudessem

identificar processo e complexidade característicos do agronegócio), há um comportamento

desigual, em termos de presença de outros segmentos sociais e em termos de outras

atividades produtivas.

Por fim, é oportuno concluir dizendo que as questões aqui apresentadas, exigem pesquisas e

estudos complementares, em termos teóricos e metodológicos, para que pudesse ser

realizada uma análise mais qualificada.

Notas ______________ 1 Este artigo tem por base discussões e reflexões realizadas na disciplina de Estrutura Produtiva Agrícola e Dinâmica Regional, oferecida junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP, Campus Presidente Prudente, sob regência do Prof. Dr. Antonio Nivaldo Hespanhol.

2 “Hirschman (1986) já tinha formulado, há 25 anos, um dos princípios fundamentais do desenvolvimento territorial: a revelação dos recursos escondidos” apud Pecquer (2005, p. 11). O autor ainda define desenvolvimento territorial: “designa todo processo de mobilização dos atores que leve à elaboração de uma estratégia de adaptação limites externos, na base de uma identificação coletiva com uma cultura e um território” (PECQUER, 2005, p. 12).

3 Ou gringos, refere-se aos agricultores que migram para a metade sul, principalmente pelos limites de reprodução social das famílias por falta de área agrícola disponível na metade norte do RS. Esses colonos são descendentes de imigrantes alemães ou italianos, já em sua terceira ou quarta geração e, portanto, tem domínio da produção de arroz e soja

4 Um desses casos é a aquisição de áreas no município de Rosário do Sul para a implantação de fruticultura, realizada por um grupo de investidores internacionais (um uruguaio, um espanhol e um brasileiro). Nenhum dos proprietários reside na propriedade, a gestão e o trabalho são realizados a partir de pessoas terceirizadas.

5 Neste documento, a Secretaria de Planejamento do Rio Grande do Sul usa como regionalização a demarcação dos COREDES.

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