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A EXIGÊNCIA DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO NO ÂMBITO DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL

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A EXIGÊNCIA DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO

NO ÂMBITO DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 O LICENCIAMENTO AMBIENTAL E A IDENTIFICAÇÃO DOS “SÍTIOS E

MONUMENTOS ARQUEOLÓGICOS”. CONTEXTUALIZAÇÃO.

2 O ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E OS SÍTIOS E MONUMENTOS

ARQUEOLÓGICOS

2.1 Sítios e monumentos arqueológicos

2.2 O Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos

2.3 A Portaria 7/1988, da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

2.4 A Portaria 230/2002, do Iphan

2.5 A reserva de lei e os limites da Portaria Conama 1/1986

2.6 A reserva de lei e os limites da Portaria Iphan 230/2002

2.7 A ampliação indevida das atribuições do Iphan, e a violação ao pacto federativo

2.7.1 Os sítios arqueológicos são patrimônio cultural brasileiro, e, por tal motivo, a

competência para legislar sobre eles é concorrente

2.7.2 A ausência de discricionariedade do Iphan, no caso de interpretação que concluísse

pela necessidade de anuência do Iphan em todos os procedimentos de licenciamento

ambiental

CONCLUSÕES

INTRODUÇÃO

O processo para concessão das licenças ambientais é complexo, e até hoje seu

procedimento não foi completamente explicitado pelos juristas.

A literatura, mesmo especializada, vacila na interpretação dada a alguns pontos

tratados pela lei e sua correspondente regulamentação. O mesmo se pode dizer da

jurisprudência.

Tal indefinição tem gerado alguns problemas para os entes públicos – seja na

condição de licenciadores (por meio de seus órgãos ou autarquias ambientais), seja como

empreendedores.

Uma das exigências menos comentadas no Estudo de Impacto Ambiental (“EIA”)

– e que é exatamente o objeto deste estudo – é a da, no diagnóstico ambiental da área de

influência do projeto, identificação dos “sítios e monumentos arqueológicos”.

Apenas para citar um exemplo: recentemente, na capital do Estado do Ceará, o

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (“Iphan”) embargou obra que vinha

sendo realizada pelo ente público estadual, sob o fundamento de suposta irregularidade no

processo de licenciamento ambiental.

Segundo o Iphan, teria havido irregularida no processo de licenciamento

ambiental, uma vez que, ainda segundo aquele instituto, antes de conceder as licenças, a

autarquia ambiental deveria ter colhido a sua anuência.

O exemplo citado acima desnuda a interpretação do Iphan sobre o tema – a qual,

sob o ponto de vista deste estudo, é equivocada, como se demonstrará –: a de uma das

exigências para o licenciamento ambiental seria a sua anuência.

Explicita ainda a importância do assunto: a qualquer momento, os entes públicos

podem encontrar-se na mesma situação.

Este estudo pretende esclarecer algumas dúvidas existentes sobre o tema.

1 O LICENCIAMENTO AMBIENTAL E A IDENTIFICAÇÃO DOS “SÍTIOS E

MONUMENTOS ARQUEOLÓGICOS”. CONTEXTUALIZAÇÃO.

A Resolução 1/1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (“Conama”)

estabelece que:

Artigo 6º. O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes

atividades técnicas:

I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e

análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a

caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto,

considerando:

c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a sócio-

economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais

da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos

ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.

Tal aspecto do diagnóstico ambiental geralmente não é abordado pelos juristas

especializados no direito ambiental, muito embora seja praticamente unânime a sua inclusão

no denominado meio ambiente cultural1:

meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico,

paisagístico, turístico, que, embora artificial, em regra, como obra do Homem, difere

do anterior [o artificial] (que também é cultural) pelo sentido de valor especial que

adquiriu ou de que se impregnou.

Tal conclusão é ratificada pela Carta de Ouro Preto, de 2009:

Devido ao tratamento constitucional recebido pelo patrimônio cultural, o mesmo

regime jurídico aplicável constitucionalmente aos bens ambientais naturais será

1 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional, 5a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 21.

aplicável aos bens culturais.

Há também poucos julgados sobre o assunto – provavelmente porque também são

poucos os sítios e monumentos arqueológicos identificados no Brasil2. Dentre os poucos

exemplos, cite-se acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região que, em sede

de ação civil pública, determinou a realização “de relatório minucioso acerca da fauna

existente na região, bem como dos mananciais e sítios arqueológicos situados na extensão

dos diversos trajetos planejados para a rodovia”3.

Há, portanto, a evidente necessidade de compatibilizar os empreendimentos com o

patrimônio arqueológico brasileiro. Cumpre, aqui, tentar esclarecer como isto deve ser feito.

2 O ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E OS SÍTIOS E MONUMENTOS

ARQUEOLÓGICOS

2.1 Sítios e monumentos arqueológicos

Evidentemente, o direito não pode se divorciar dos conceitos da própria

arqueologia, que se define como a ciência que estuda as culturas passadas por meio de

vestígios materiais.

A Lei Federal 3.924/1961 estabeleceu de forma clara que:

Artigo 2º. Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:

a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem

2 Segundo o sítio eletrônico do Iphan, há apenas 20.085, no país inteiro.

3 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4a Região. Apelação Cível 200070080011848. Porto Alegre, 22 de abril

de 2003.

testemunhos de cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, montes

artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e quaisquer outras

não espeficadas aqui, mas de significado idêntico a juízo da autoridade competente.

b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos

paleoameríndios tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;

c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado

ou de aldeiamento, 'estações' e 'cerâmios', nos quais se encontram vestígios humanos

de interêsse arqueológico ou paleoetnográfico;

d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros

vestígios de atividade de paleoameríndios.

Atente-se: a lei federal obedeceu ao critério da materialidade do vestígio

arqueológico para identificação de área como monumento arqueológico. Por tal motivo,

restringiu tais sítios a testemunhos de cultura, locais onde se encontram vestígios, locais

identificados como cemitérios, ou com inscrições rupestres.

2.2 O Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos

A mesma Lei Federal 3.924/1961 determinou ainda que:

Artigo 27. A Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional manterá um

Cadastro dos monumentos arqueológicos do Brasil, no qual serão registradas todas

as jazidas manifestadas, de acordo com o disposto nesta lei, bem como das que se

tornarem conhecidas por qualquer via.

Deve-se notar a forma como o dispositivo foi redigido: todas as descobertas

arqueológicas devem ser incluídas no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (“CNSA”).

E a norma, em sua parte final, cuida ainda de mencionar também “as que se

tornarem conhecidas por qualquer via”, fazendo expressa referência à hipótese de descoberta

fortuita:

Artigo 18. A descoberta fortuita de quaisquer elementos de interesse arqueológico ou

pré-histórico, histórico, artístico ou numismático, deverá ser imediatamente

comunicada à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou aos órgãos

oficiais autorizados, pelo autor do achado ou pelo proprietário do local onde tiver

ocorrido.

Em suma: de duas formas o Iphan – gestor do cadastro – poderá incluir um sítio

ou monumento arqueológico no CNSA: (i) realizando ele próprio uma pesquisa com objetivo

específico de descoberta de vestígios arqueológicos, ou autorizando que terceiro o faça; ou (ii)

após a descoberta fortuita de tais vestígios.

Esta última forma, mencionada no item “ii”, como já se viu, é regulamentada pelo

artigo 18 da lei.

A primeira, item “i”, por outro dispositivo:

Artigo 8º. O direito de realizar escavações para fins arqueológicos, em terras de

domínio público ou particular, constitui-se mediante permissão do Governo da

União, através da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ficando

obrigado a respeitá-lo o proprietário ou possuidor do solo.

Há, portanto, uma clara diferenciação legal entre uma escavação arqueológica e

uma escavação que leve à descoberta fortuita de vestígios arqueológicos. Naquela, buscam-se

resíduos arqueológicos; nesta, a sua descoberta é apenas acidental.

Tal diferenciação será importante no momento de análise dos atos infralegais que

pretendem regulamentar o assunto.

2.3 A Portaria 7/1988, da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Dentre tais atos infralegais, mencione-se a Portaria 7, de 1o de dezembro de 1988,

a qual foi editada pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para:

Artigo 1º. Estabelecer os procedimentos necessários à comunicação prévia, às

permissões e às autorizações para pesquisas e escavações arqueológicas em sítios

arqueológicos previstas na Lei no 3.924, de 26 de julho de 1961.

Até aqui, nenhum novidade: a citada portaria apenas regulamenta as pesquisas e

escavações arqueológicas – nada mencionando, por motivos óbvios, acerca das demais

escavações, não arqueológicas.

Vê-se que, em momento algum, tal portaria pretende tratar do licenciamento de

empreendimentos que possam vir a impactar, de forma direta ou indireta, o patrimônio

arqueológico.

Mais adiante, ver-se-á que a outro ato infralegal interpretou equivocamente tal

portaria.

2.4 A Portaria 230/2002, do Iphan

Posteriormente, foi editada pelo Iphan, em 17 de dezembro de 2002, a Portaria

230, sob a justificativa de

Considerando a necessidade de compatibilizar as fases de obtenção de licenças

ambientais em urgência com os estudos preventivos de arqueologia, objetivando o

licenciamento de empreendimentos potencialmente capazes de afetar o patrimônio

arqueológico, e

Considerando a necessidade de compatibilizar as fases de obtenção de licenças

ambientais, com os empreendimentos potencialmente capazes de afetar o patrimônio

arqueológico [...].

Tal portaria, alegadamente, foi editada para regulamentar a Portaria SPHN

7/1988:

Considerando o disposto na Portaria SPHAN no 07, de 1o de dezembro de 1988, que

trata do ato (Portaria) de outorga (autorização/permissão) para executar projeto que

afete direta ou indiretamente sítio arqueológico.

Como se verá adiante, o Iphan equivocou-se na interpretação do conteúdo da

Portaria SPHN 7/1988 – que se resume a tratar dos pedidos de autorização para escavação

com fins arqueológicos, não tratando, em momento algum, de projetos que incidentalmente

venham a afetá-lo.

E a Portaria Iphan 230/2002 ainda avança em novo tema: no considerando,

menciona apenas os projetos que afetem sítio arqueológico; no artigo 2o, passa a tratar de

projetos que afetem “áreas arqueologicamente desconhecidas”:

Artigo 2o. No caso de projetos afetando áreas arqueologicamente desconhecidas,

pouco ou mal conhecidas que não permitam inferências sobre a área de intervenção

do empreendimento, deverá ser providenciado levantamento arqueológico de campo

pelo menos em sua área de influência direta. Este levantamento deverá contemplar

todos os compartimentos ambientais significativos no contexto geral da área a ser

implementada e deverá prever levantamento prospectivo de sub-superfície.

Este dispositivo, além de ter extrapolado os limites da Lei Federal 3.924/1961 e

da Portaria SPHN 7/1988, ainda deixou de lado a boa técnica, ao utilizar conceito que jamais

fora antes definido – seja pela lei, ou por qualquer ato infralegal anterior –: o de áreas

arqueologicamente desconhecidas, pouco ou mal conhecidas.

Explique-se: é do conhecimento geral que, no Brasil – e, muito provavelmente,

em qualquer outra parte do mundo –, não existe um mapeamento de todo o território nacional

do qual conste as áreas com potencial arqueológico.

Sob um ou outro ponto de vista, cada um dos centímetros quadrados do solo

brasileiro é uma área com potencial arqueológico – e assim será sempre, pois é tecnicamente

impossível concluir que, a qualquer profundidade sob determinado chão, não há material

arqueológico.

Por exemplo, sob esta terra que se pisa agora, pode ser encontrado algum vestígio

de civilizações passadas. Assim como podem ser encontrados urânio, diamante, petróleo, ou,

com um probabilidade muito próxima a cem por cento – e a percentagem decorre do

conhecimento empírico –, pode-se achar nada.

Sob a perspectiva (equivocada) da portaria do Iphan, contudo, tal constatação é

irrelevante. De acordo com tal ato infralegal, qualquer área pode ser classificada, no mínimo,

como arqueologicamente desconhecida.

E, com base nessa equivocada premissa, o Iphan passou a sustentar que, no

procedimento de licenciamento ambiental, sempre que demandado por ele, deverá ser

realizado levantamento arqueológico, o qual deverá receber o seu aval.

2.5 A reserva de lei e os limites da Portaria Conama 1/1986

A atecnia mencionada acima acabou abrindo margem para a interpretação de que

qualquer licenciamento ambiental deveria ter anuência do Iphan. Isto porque todas as áreas

são, sob algum aspecto, arqueologicamente desconhecidas – ou, no mínimo, pouco ou mal

conhecidas.

Tal interpretação, entretanto, ultrapassa os limites da simples regulamentação,

avançando sobre o terreno da reserva legal.

Segundo GUSTAVO BINENBOJM4:

4 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e

constitucionalização, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 149.

Há reserva de lei formal [...] quando uma certa matéria só puder ser tratada por lei

em sentido formal, ou seja, o ato normativo primário editado pelo Parlamento,

elaborado segundo o procedimento legislativo ordinário fixado na Constituição.

A Constituição da República é clara ao determinar, no inciso III do §1o do artigo

225, que incumbe ao Poder Público: “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou

atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo

prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”.

O Supremo Tribunal Federal, instado a se manifestar por ocasião da Ação Direta

de Inconstitucionalidade 1.086, entendeu que “a menção do constituinte à lei diz respeito

apenas à forma com que se fará a mencionada exigência de prévio estudo de impacto

ambiental e, não, aos casos em que a mesma será possível”5.

O conceito de degradação ambiental foi estabelecido pelo artigo 3o, inciso II, da

Lei Federal 6.938/1981, assim como a forma pela qual é exigido o estudo de impacto

ambiental, sendo sua definição delegada ao Conselho Nacional do Meio Ambiente

(“Conama”):

Artigo 8º. Compete ao CONAMA:

I - estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas e critérios para o

licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluídoras, a ser concedido

pelos Estados e supervisionado pelo IBAMA.

Em suma: uma vez estabelecido o conceito de degradação ambiental, permitiu-se

ao Conama determinar as normas para o licenciamento, por meio de regulamento de

execução6:

A utilização, cada dia mais frequente, de conceitos jurídicos indeterminados e de

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.086 - MC. Brasília, 1 o de agosto

de 1994.

6 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e

constitucionalização, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 157/158.

amplo espectro semântico amplia sensivelmente o âmbito regulamentar. Na doutrina

e na jurisprudência caminha-se em direção a uma concepção ampla de regulamentos

de execução. Neste sentido, Caio Tácito explica que “regulamentar não é somente

reproduzir analiticamente a lei, mas ampliá-la e completá-la segundo o seu espírito e

o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos em que a própria lei, expressa ou

implicitamente outorga à esfera regulamentar”.

Fazendo uso deste poder regulamentar, o Conama, por sua vez, estabeleceu, por

meio da já citada Resolução 1/1986, as normas regulamentadoras do procedimento de

licenciamento ambiental, em especial a que estipula como exigência o diagnóstico quanto à

(in)existência de sítios e monumentos arqueológicos na área de influência do empreendimento

proposto.

Tratando-se de regulamento de execução, o Conama não poderia – e não o fez –

ter estabelecido a anuência do Iphan como exigência para o licenciamento ambiental. Nem

poderia exigir do empreendedor que realizasse levantamento das áreas arqueologicamente

desconhecidas ou pouco conhecidas, objeto do licenciamento (o que, evidentemente, não é o

seu papel).

O máximo que o Conama poderia fazer sem extrapolar os limites do poder de

regulamentação a ele conferido – e foi exatamente o que fez – seria estabelecer que, no estudo

ambiental, fosse indicada a existência de sítios arqueológicos eventualmente existentes nas

áreas de influência do empreendimento. Sítios arqueológicos que, evidentemente, estejam

inscritos no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos, tal como determina a lei.

2.6 A reserva de lei e os limites da Portaria Iphan 230/2002

Pode-se percorrer caminho semelhante no que diz respeito à Portaria Iphan

230/2002.

Explique-se: a Lei Federal 3.924/1961 tem três objetivos claros.

Primeiro, o de proibir o aproveitamento econômico dos bens arqueológicos:

Artigo 3º. São proibidos em todo o território nacional, o aproveitamento econômico,

a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou pré-

históricas conhecidas como sambaquis, casqueiros, concheiros, birbigueiras ou

sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e objetos enumerados nas alíneas b, c e

d do artigo anterior, antes de serem devidamente pesquisados, respeitadas as

concessões anteriores e não caducas.

Segundo, o de impor um procedimento para os casos de descoberta fortuita.

Terceiro, o de regulamentar duas espécies de escavações, ambas para fins

arqueológicos: (i) as escavações particulares; e (ii) as escavações institucionais.

As duas pressupõem a voluntariedade; ou seja: não há nada na lei que imponha a

quem quer que seja a realização de escavação arqueológica.

Por isto, andou bem a Portaria SPHN 7/1988, ao expor em seus considerandos que

a sua edição decorreu da “necessidade de regulamentar os pedidos de permissão e

autorização e a comunicação prévia quando do desenvolvimento de pesquisas de campo e

pesquisas arqueológicas [...]”.

Já a Portaria Iphan 230/2002 equivoca-se desde o seu princípio, quando

incorretamente pretende, em seus considerandos, justificar-se da seguinte forma:

Considerando o disposto na Portaria SPHAN no 07, de 1o de dezembro de 1988, que

trata do ato (Portaria) de outorga (autorização/permissão) para executar projeto que

afete direta ou indiretamente sítio arqueológico.

Note-se a enorme diferença entre o que a Portaria Iphan 230/2002 afirma ser o

objeto da Portaria SPHN 7/1988, e o que realmente é o objeto daquela portaria: há uma

enorme lacuna entre realizar “pesquisa arqueológica”, e executar “projeto que afete direta

ou indiretamente sítio arqueológico”.

Ou seja: a Portaria Iphan 230/2002 já inicia excedendo os limites do próprio ato

infralegal que pretende regulamentar.

Além disso, deve-se destacar que a Portaria Iphan 230/2002 também extrapola

claramente os limites da Lei Federal 3.924/1961. E o faz em dois níveis de profundidade: (i)

ao tratar não apenas de escavações com fins arqueológicos, mas também de empreendimentos

que possam afetar os sítios de arqueologia, ainda que no âmbito de tais empreendimento não

haja nenhuma escavação arqueológica proposta; e (ii) ao inserir conceito de áreas

arqueologicamente desconhecidas, pouco ou mal conhecidas, inexistente na lei.

2.7 A ampliação indevida das atribuições do Iphan, e a violação ao pacto federativo

Não é difícil concluir, também, que o Iphan, por meio de sua Portaria 230, acabou

por ampliar indevidamente o seu rol de atribuições.

O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi criado pela Lei

378/1937, de 13 de janeiro de 1937:

Artigo 46. Fica creado o Serviço do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional, com

a finalidade de promover, em todo o Paiz e de modo permanente, o tombamento, a

conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimonio histórico e artístico

nacional.

Algumas outras atribuições foram conferidas pelo Decreto-Lei 25, de 30 de

novembro de 1937, ao então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dentre elas

o controle dos tombamentos.

Por fim, a já várias vezes citada Lei Federal 3.924/1961 conferiu as demais

atribuições à autarquia federal – como também já vista, a de conceder licenças para

escavações com fins arqueológicos.

2.7.1 Os sítios arqueológicos são patrimônio cultural brasileiro, e, por tal motivo, a

competência para legislar sobre eles é concorrente

A Constituição da República estabele que:

Artigo 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira, nos quais se incluem:

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

E a competência para legislar sobre o patrimônio cultural é concorrente:

Artigo 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar

concorrentemente sobre:

VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico.

Sendo assim, há que se considerar que a Lei Federal 3.924/1961 somente pode ser

considerada recepcionada na parte que estabelece normas gerais (artigo 24, §1o, da

Constituição da República):

A divisão de tarefas está contemplada nos parágrafos do art. 24, de onde se extrai

que cabe à União editar normas gerais – i. é, normas não-exaustivas, leis-quadro,

princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores7 (grifou-se).

Em julgamento sobre o extravasamento, pela União Federal, de sua fração da

competência concorrente, o Supremo Tribunal Federal apontou que8:

Constato, neste exame preliminar, que se adentrou não o campo do simples

estabelecimento de normas gerais. Atribuem-se a ente da Administração Central, ao

Ministério da Previdência e Assistência Social, atividades administrativas em órgãos

7 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito

Constitucional, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 785.

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária 830 - TAR. Brasília, 29 de agosto de 2007.

da Previdência Social dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos fundos

a que se refere o artigo 6o da citada lei […].

Uma coisa é o estabelecimento de normas gerais a serem observadas pelos Estados

membros. Algo diverso é, a pretexto da edição dessas normas, a ingerência na

administração dos Estados, quer sob o ângulo direto, quer sob o indireto, por meio

de autarquias.

Naquele caso, decidiu-se, em sede de antecipação de tutela, que a ingerência de

autarquias federais na administração dos Estados, ainda que indiretamente, caracteriza

extrapolação dos limites da União Federal em sua competência legislativa concorrente.

Na hipótese que analisamos neste estudo, está-se diante não apenas de uma, e sim

de duas competências legislativas concorrentes: as de legislar sobre proteção ao meio

ambiente e sobre proteção ao patrimônio cultural.

Sendo assim, deve-se concluir que lei federal – tal como a Lei Federal 3.924/1961

– não pode impor aos Estados (e Municípios e Distrito Federal) a submissão à anuência do

Iphan em todos os seus procedimentos de licenciamento ambiental.

O licenciamento ambiental realizado por Estados, Municípios e Distrito Federal

deve ser realizado de acordo com suas normas específicas, e com as normas gerais

estabelecidas pela legislação federal. Dentre elas, não está a exigência de anuência prévia do

Iphan.

É bem verdade que tal raciocínio não se aplicaria aos licenciamentos realizados

em âmbito federal – aos quais, contudo, de toda forma, não se impõe o levantamento

arqueológico como exigência, em razão dos demais argumentos acima apresentados.

2.7.2 A ausência de discricionariedade do Iphan, no caso de interpretação que concluísse pela

necessidade de anuência do Iphan em todos os procedimentos de licenciamento ambiental

Ainda no mesmo tema, acrescente-se que o conjunto normativo apresentado

permite somente duas interpretações, totalmente opostas: (i) a de que o Iphan deve intervir em

todos os procedimentos de licenciamento ambiental que exijam estudo de impacto ambiental

(interpretação não sistemática do artigo 6o, inciso I, alínea “c” da Resolução 1/1986 do

Conama, e da Portaria Iphan 230/2002); e (ii) a de que não há qualquer exigência legal de o

Iphan intervir nos procedimentos de licenciamento ambiental, salvo quando verificado

potencial impacto ao patrimônio arqueológico.

Como já dito, entende-se que a primeira é ilegal.

Assim como seria também ilegal uma eventual interpretação “mista”, que

conduzisse à tese de que o Iphan pode intervir, discricionariamente, nos procedimentos

ambientais que escolher.

Isto porque nenhuma norma – geral ou específica – estabeleceu alternativa de

conduta ao Iphan; ou seja: não há nada que permita ao Iphan decidir se agirá no âmbito do

procedimento de licenciamento ambiental9. A Portaria Iphan 230/2002, por exemplo,

determina que:

Fase de obtenção de licença prévia (EIA/RIMA)

Artigo 2o. No caso de projetos afetando áreas arqueologicamente desconhecidas,

pouco ou mal conhecidas que não permitam inferências sobre a área de intervenção

do empreendimento, deverá ser providenciado levantamento arqueológico de campo

pelo menos em sua área de influência direta […].

9 É importante destacar que a conclusão quanto à inexistência de discricionariedade do Iphan diz respeito tão

somente à hipótese de interveniência nos procedimentos de licenciamento ambiental. Isto porque aquela

autarquia tem alguns poderes discricionários para, por exemplo, embargar obras que impactem efetivamente o

patrimônio arqueológico.

Isto significa que, mesmo que a interpretação dada pelo Iphan à sua Portaria

230/2002 pudesse ser considerada legal, ela não poderia chegar ao ponto conceder à autarquia

federal, quanto ao agir ou não agir, qualquer poder discricionário (entendido como a

“margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta,

com o fim de que possa proceder à concretização do interesse público indicado no caso

concreto”10).

Não tendo sido concedida tal discricionariedade ao Iphan, o simples fato de aquela

autarquia pretender submeter alguns projetos, e outros não, à sua anuência prévia (ainda que

no estudo de impacto ambiental não se tenha constatado qualquer potencial impacto em sítios

arqueológicos devidamente registrados no CNSA) configuraria violação ao princípio da

impessoalidade, o qual

traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem

discriminações, benéficas ou detrimentosas […]. O princípio em causa não é senão o

próprio princípio da igualdade ou isonomia. Está consagrado explicitamente no art.

37, caput, da Constituição. Além disso, como “todos são iguais pertante a lei” (art.

5o, caput), a fortiori teriam de sê-lo perante a Administração11.

10 MORAES, Germana Oliveira de. Controle Jurisdicional da Administração Pública, São Paulo: Dialética,

2004, p. 199.

11 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 22a ed. Revista e atualizada até a

Emenda Constitucional 53, de 19.12.2006, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 110.

CONCLUSÕES

Por tudo o que foi exposto, permitam-se as seguintes conclusões:

1. A norma contida na alínea “c” do inciso I do artigo 6o da Resolução 1/1986, do

Conama, no que diz respeito ao destaque dos “sítios e monumentos arqueológicos”, não

veicula exigência de realização de estudos sobre a (in)existência de sítios arqueológicos na

área de influência do empreendimento pretendido.

2. No estudo de impacto ambiental, satisfaz-se a exigência do artigo 6o, I, “c”,

com a menção aos sítios e monumentos arqueológicos constantes do Cadastro Nacional de

Sítios Arqueológicos.

3. A Resolução 1/1986, do Conama, foi editada com o fim de regulamentar a

execução da Lei Federal 6.938/1981, e, como tal, não pode extrapolar os limites contidos

naquela lei (“normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente

poluídoras”). Portanto a resolução não poderia – nem o fez – estabelecer exigência de

prospecção arqueológica preventiva.

4. A Lei Federal 3.924/1961 apenas proíbe o aproveitamento econômico das

jazidas arqueológicas, permite escavações arqueológicas, e impõe procedimento obrigatório

para o caso de descobertas fortuitas, não tratando do procedimento de licenciamento

ambiental.

5. A Portaria 230/2002, do Iphan, ao impor um procedimento de pesquisa

preventiva por jazidas arqueológicas, por ocasião do procedimento de licenciamento

ambiental, extrapola os limites da Lei Federal 3.924/1961.

6. As competências para legislar sobre proteção ao meio ambiente e sobre

proteção ao patrimônio cultural são concorrentes. Sendo assim, a Lei Federal 3.924/1961,

ainda que pretendesse, não poderia impor aos Estados (e Municípios e Distrito Federal) a

submissão à anuência do Iphan em todos os seus procedimentos de licenciamento ambiental.

7. Mesmo que a interpretação dada pelo Iphan à sua Portaria 230/2002 pudesse ser

considerada legal, ela não poderia chegar ao ponto conceder à autarquia federal, quanto ao

agir ou não agir, qualquer poder discricionário. Por tal razão, o simples fato de aquela

autarquia pretender submeter alguns projetos, e outros não, à sua anuência prévia (ainda que

no estudo de impacto ambiental não se tenha constatado qualquer potencial impacto em sítios

arqueológicos devidamente registrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos)

configuraria violação ao princípio da impessoalidade.