A EXPERIÊNCIA SOCIAL DO TRABALHO SOB A ÓTICA DAS FAMÍLIAS DOS AGRICULTORES DA SELVA CENTRAL PERUANA

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Trabalho. Família. Agricultura.Amazônia. Peru.

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    artig

    oA EXPERINCIA SOCIAL DO TRABALHO SOB A TICA DAS FAMLIAS DOS AGRICULTORES DA SELVA CENTRAL PERUANA

    THE SOCIAL EXPERIENCE OF WORK FROM THE PERSPECTIVE OF THE FAMILIES OF THE FARMERS OF THE PERUVIAN CENTRAL JUNGLE

    Ricardo Luiz Cruz*

    Introduo

    O interesse deste artigo em relacionar as trajetrias dos agricultores, de uma zona cafeicultora da selva central peruana, com as atividades remuneradas exercidas pelos seus filhos advm do fato de que, entre eles, seus trabalhos normalmente ganham senti-do quando vistos em conjunto1. Em outras palavras, no que outros referenciais, para alm dos laos entre pais e filhos, no sir-vam de parmetros para darem significado aos seus ofcios, como o caso, em espe-

    cial, das suas vontades ou desejos indivi-duais e de seus vnculos comunitrios. Ten-ses entre esses pontos de vista costumam, inclusive, fazer parte do dia a dia destes sujeitos. Mas a questo que as relaes entre pais e filhos e as suas experincias diante do trabalho se confundem de modo a, muitas vezes, eclipsarem outros quadros de referncia capazes de prover sentido a essa atividade. Este texto procura refletir a respeito da fora social ou legitimidade dessa perspectiva familiar sobre o trabalho e, consequentemente, sobre sua prepon-

    * Mestre e doutor pelo Programa de Ps-graduao em antropologia social do Museu Nacional/UFRJ. Atu-almente realiza estgio ps-doutoral no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universida-de Federal do Maranho (So Lus/MA/Brasil). [email protected]. Klass Wortmann (1990), por exemplo, chama ateno para o fato de que, entre o que ele denomina de sociedades camponesas, o trabalho no deve ser pensado separado da famlia. Ainda segundo esse au-tor, ambas as categorias (trabalho e famlia) no podem ser entendidas isoladas de outra que seria igual-mente central para essas sociedades: a terra. Porm, essa categoria parece no assumir uma importncia to grande na reproduo social das famlias dos agricultores que vivem em regies nas quais a terra plenamente alienvel, sendo comprada e vendida com frequncia (MACFARLANE, 1989, p. 236). Essa tende a ser situao vigente em boa parte da selva central peruana, ou seja, a terra a vista, sobretudo, como um recurso econmico antes do que um patrimnio da famlia que carrega seu nome.

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    derncia diante de outros pontos de vista. Atravs dessa reflexo, tambm se estar discutindo o contato desses agentes com as transformaes que perpassam no s suas vidas como as dos peruanos de um modo geral, na medida em que representam os personagens caractersticos do trabalho no Peru (de acordo, por exemplo, com os cen-sos nacionais dos ltimos trinta ou quaren-ta anos): o agricultor minifundista, o traba-lhador informal e do setor de servios e o micro ou pequeno empresrio2.

    Diante de uma situao economicamente desprivilegiada, como a vivida por grande parte das famlias dos cafeicultores da selva central, algum interessado em compreen-der as experincias de seus membros com o trabalho pode ser tentado a concentrar sua ateno nas questes relativas escassez e distribuio desigual de recursos mate-riais vigentes entre eles ao longo do tempo. Sem querer excluir essas indagaes do rol de preocupaes do presente artigo, im-portante ressaltar que seu interesse reside principalmente em compreender as dimen-ses sociais do trabalho de acordo com as prprias concepes que essas pessoas tm daquilo que aos seus olhos se mostra como o cerne de suas vidas sociais. Como ficar evidente no decorrer das prximas pginas, o trabalho e as relaes familiares aparecem para esses sujeitos como o ncleo ou centro de suas existncias. Ambos apresentam uma relativa autonomia diante do mundo econ-mico e, nessa autonomia, talvez resida uma

    das chaves para entender os sentidos dos seus esforos que, num contexto social mais amplo, isto , para alm das suas famlias, como, por exemplo, a economia nacional ou internacional, somente em algumas ocasies (como nos anos 1970 e 1980, - quando os solos eram produtivos e os preos do caf elevados) e/ou para uma parte deles (como os produtores com maiores cafezais e a mi-noria dos seus filhos que obteve um trabalho bem remunerado) foram recompensados, de acordo com suas vises.

    Trata-se aqui, em outras palavras, de olhar para as distintas esferas sociais que perpassam as relaes dessas pessoas com o trabalho, e no apenas para aquelas como o Estado e o Capitalismo - normalmente dominantes numa perspectiva como a da economia poltica, a qual costuma acom-panhar os estudos sobre camponeses ou pequenos e mdios agricultores - como o caso, por exemplo, do livro The Peasants of Eldorado do antroplogo norte-america-no Robin Shoemaker (1981), uma das pou-cas pesquisas, de carter etnogrfico, que focaliza os cafeicultores da selva central peruana3. O interesse principal dessa obra de Shoemaker explicar a estagnao econmica vivida por esses sujeitos e sua tese a de que a subordinao deles diante dos agentes que dominam a economia e a poltica do Peru impede a acumulao lo-cal de poder econmico ou poltico, isto , inibe o desenvolvimento regional (idem, p. 37)4. Um dos mritos do autor se apro-

    2. As informaes relativas aos censos nacionais peruanos podem ser encontradas em www.inei.gob.pe. 3. Uma crtica antropolgica dos pressupostos da economia poltica pode ser encontrada em Ortner (2011). 4. Vale ressaltar que Shoemaker realizou seu trabalho de campo, na selva central, ao longo do ano de 1974, isto , num perodo que precedeu um aumento substantivo no preo do caf e que, conforme assi-nalado mais frente, durou entre 1976 e o final da dcada de 80.

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    fundar na compreenso da centralidade do conflito entre a capital nacional e o interior do pas para da entender a dinmica da sociedade peruana5. Porm, ele acaba no se preocupando com as vises que imperam nas famlias dos agricultores a respeito das dimenses sociais do trabalho. O presente texto, ao se perguntar por esse ponto de vista local, procura tambm questionar o olhar notadamente econmico de Shoema-ker sobre os cafeicultores da selva central.

    A narrativa que se segue tem como refe-rencial principal minha pesquisa de campo entre as famlias dos agricultores associa-dos a uma cooperativa da selva central: a La Florida6. Essa instituio uma das pioneiras, entre as demais organizaes de cafeicultores do Peru, nos mercados de caf certificado como orgnico e no comr-cio justo7. Meu contato com seus scios e funcionrios teve incio em 2005. Perma-neci entre essas pessoas durante boa parte do ano seguinte e retornei regio onde vi-vem em 2014, quase oito anos depois desta ltima visita ao pas.

    1. As condies sociais do trabalho como cafeicultor

    A partir da segunda metade da dcada de 1940, uma grande leva de pessoas co-

    meou a deixar os Andes peruanos e a se dirigir, na sua maioria, para as cidades cos-teiras do Peru, em especial, Lima, capital do pas (CONTRERAS; CUETO, 2004). Dos anos 1960 em diante, um nmero menor, mas expressivo, desses migrantes, passou a se deslocar para as zonas amaznicas montanhosas, com destaque para a selva central. Os que foram at essa ltima re-gio eram, em geral, jovens camponeses do sexo masculino, com cerca de 19 anos de idade, sem o primeiro grau completo e membros dos estratos mais baixos de suas comunidades de origem (BERG, 1984). Eles normalmente permaneceram l trabalhan-do temporariamente como empregados na colheita de caf, mas muitos acabaram tor-nando-se cafeicultores ao adquirirem uma propriedade - legalmente reconhecida ou no - nesse local8. O fluxo migratrio at a regio diminuiu desde os anos 1980, apesar dela continuar sendo um espao alternativo para os que desejam abandonar momenta-neamente ou de vez a cordilheira e viver por um tempo ou em definitivo num lugar que no a cidade de Lima, dado que, en-tre os colonos andinos, vigora uma viso mais geral a respeito do deslocamento para a selva central como uma rota opcional dis-ponvel para os jovens, sem maiores recur-sos, interessados em deixar os Andes. Se-

    5. Lima emergiu como a sede do controle, o pice administrativo da sociedade peruana. A partir disso, Lima sugou os recursos do interior e os apropriou para o seu prprio desenvolvimento econmico. Assim, hoje em dia Lima tem: bancos, hospitais, estradas, escolas, fbricas e muitas outras instalaes e servios. Este monoplio um produto do sistema colonial interno do Peru. (SHOEMAKER, 1981, p. 36).6. Os membros ou scios da cooperativa viviam no distrito de Perene ou no seu entorno. Perene esta lo-calizado em Chanchamayo, uma das trs provncias da selva central, ao lado de Satipo e Oxapampa.7. O comrcio justo um mercado internacional organizado a partir de um ideal de solidariedade dos con-sumidores para com os pequenos produtores, reunidos em cooperativas ou associaes, e autorizados, atravs de um processo de certificao, a participar desse sistema comercial.8. Essa aquisio costuma se dar atravs da compra dessas propriedades ou por meio da ocupao de ter-renos considerados livres e afastados das vias de comunicao.

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    gundo um destes colonos: quando jovem, uma professora me disse que quem tinha dinheiro deveria ir estudar em Lima e quem no tinha deveria ir trabalhar nos cafezais da selva central9.

    No s nessa regio, mas no Peru como um todo, o trabalho uma atividade nor-malmente identificada com o universo masculino, conforme possvel perceber atravs da leitura de dados referentes aos censos nacionais divulgados pelo Insti-tuto Nacional de Estatstica e Informtica (INEI)10. Os sucessivos censos tm, contu-do, mostrado uma crescente participao das mulheres na populao economica-mente ativa e ocupada do pas, em espe-cial no ramo comercial. Entre os habitantes dos Andes contratados para trabalhar na colheita de caf, as mulheres que os tm acompanhado so as esposas da minoria de homens casados existente entre eles. Elas, em geral, permanecem cuidando dos seus filhos e cozinhando para os trabalhadores da propriedade onde residem, apesar de, assim como as esposas e filhas dos pro-dutores, tambm exercerem algum tipo de atividade agrcola, no na mesma intensi-dade que os homens, mas o suficiente para se afirmar que a lavoura no um espao

    associado a um s gnero - como a cozi-nha, por exemplo. Ou seja, produzir caf uma atividade da qual homens e mulheres participam direta ou indiretamente.

    As atividades realizadas no mbito do-mstico ou nas plantaes podem ser vistas como trabalho na medida em que esta ca-tegoria ganha sentido entre essas pessoas, principalmente quando contraposta ao que definem como cio, isto , ao lazer ou descanso nos horrios destinados ao exer-ccio do trabalho (as manhs e tardes de segunda a sbado, em geral) e diverso exagerada nos momentos de repouso para a prtica posterior da atividade (as noites du-rante a semana e o domingo)11. As crianas seriam ensinadas desde cedo a no serem ociosas, como teria sido o caso dos filhos de uma cafeicultora que me contou que, sempre que os via toa, costumava der-ramar um pote de arroz no cho e, em se-guida, os mandava recolher todos os gros, para assim no se tornarem vagabundos, segundo suas palavras.

    O trabalho temporrio na colheita de caf costuma ser feito pelos migrantes an-dinos nos perodos em que no se dedicam ao cultivo de batata. Esse tubrculo o principal produto cultivado na cordilheira

    9. importante ressaltar que o xodo rural andino, a partir da segunda metade da dcada de 1940, se deu num contexto de um crescimento demogrfico, sem precedentes, nos Andes e de uma crise generalizada na agricultura desta regio, por conta, em especial, da sua incapacidade ou dificuldade em competir com os produtos agrcolas estrangeiros que passaram a ser importados pelo pas. O Estado peruano, inclusive, adotou uma srie de polticas pblicas, como a construo de estradas e a expropriao de latifndios, por exemplo, em prol da colonizao andina da selva enquanto uma espcie de vlvula de escape para os conflitos agrrios que permeavam diversas regies dos Andes (CONTRERAS; CUETO, 2004). 10. Segundo o ltimo censo nacional, 37,7% das mulheres economicamente ativas do pas se encon-travam exercendo algum tipo de trabalho em 2007. Nesse mesmo ano, essa porcentagem, em relao aos homens, era de 71,2%. 11. Na selva central, o lazer o espao, por excelncia, do indivduo e, nesse sentido, no de se estranhar que ele se coloque como uma atividade institucionalizada ou regrada. No caso dos adultos, o divertimento se concentra no sbado noite: esses so o dia e o horrio em que podem consumir bebidas alcolicas e se divertir sem se preocupar com o que os outros vo pensar. Isso porque, dizem, no iro trabalhar no dia seguinte e sim descansar e ficar com as respectivas famlias.

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    e sua produo era sempre encarada pelos colonos como algo menos rentvel para um pequeno agricultor do que a cafeicultura. No sem razo que conheci muitos deles que haviam deixado de plantar batata para produzir caf, contudo, nunca escutei de ningum qualquer meno a um desejo de largar a cafeicultura e se tornar um batati-cultor. De qualquer maneira, a deciso de ir trabalhar na selva central era geralmente tomada como uma soluo intermediria diante dos seus anseios de permanecer nos Andes (onde se sentiam mais seguros, mas carentes de fontes de renda) e o de se dirigir at Lima (lugar em que o progresso era mais aparente, mas onde algum com es-cassos recursos econmicos, sem contatos locais e um maior grau de instruo dificil-mente poderia prosperar).

    O carter limiar do trabalho nessa pri-meira regio transparecia nas falas dos co-lonos ao se referirem ao seu deslocamento at esse espao como uma aventura. Mui-tos, especialmente os que no se fixaram nele definitivamente, viam sua carreira moral comprometida diante de seu ingresso num local dominado pelo passado e pelas foras rebeldes dos chunchos (indgenas amaznicos) indomados (SARAH SKAR, 1994, p. 214). J entre os que adquiriram mais terras e que possuam uma maior fa-miliaridade com a economia de mercado, esse cenrio era encarado, de forma geral, enquanto um lugar do futuro, uma frontei-ra aberta onde qualquer pessoa pode cons-truir algo, e essa percepo foi, durante principalmente a dcada de 1960, enfati-

    zada pelas polticas governamentais (idem). importante assinalar que as diferenas entre o tamanho dos terrenos em posse dos colonos eram, acima de tudo, explicadas por eles no com base nas suas diferenas econmicas, educacionais ou ideolgicas, e sim na anterioridade do seu estabelecimen-to no local, ou seja, parecia normal para eles que quem veio antes agarrou (ocupou) mais terra (que os demais).

    As grandes fazendas de caf dominaram a paisagem da selva central at a dcada de 1960 e foram, at ento, as principais responsveis pelo emprego local dos traba-lhadores originrios dos Andes12. Diante do declnio poltico do latifndio ao redor do pas, nos anos 1960, os migrantes andinos comearam a dominar a posse da terra na selva central, fazendo com que sua eco-nomia passasse a girar em torno da pro-duo de caf em pequenas e mdias propriedades, de acordo com a viso desses sujeitos. Esses colonos e seus descendentes formam hoje em dia a maior parte dos mo-radores locais. comum se verem e serem vistos, pelos estudiosos dessa regio, como produtores ou agricultores e no como camponeses, ao contrrio do que acon-tece em relao aos moradores das zonas rurais andinas (SANTOS; BARCLAY, 1995). Nestes ltimos espaos, as trocas ou inter-cmbios no monetarizados de trabalho se colocam como um mecanismo central na reproduo das relaes comunitrias (MA-YER, 2004)13. J entre os migrantes residen-tes na selva central, a vida comunitria lo-cal reduzida se comparada com a de suas

    12. Os proprietrios dessas fazendas eram, em geral, oriundos das regies costeiras do pas ou imigrantes advindos da Europa (SANTOS; BARCLAY, 1995). 13. Entre os camponeses que viviam nos Andes, comum existir uma preocupao em ascender social-mente num espao comunitrio local, atravs da obteno de cargos, cada vez mais prestigiados (e onerosos), nas festividades em torno de um santo padroeiro (OSSIO ACUA, 1992).

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    terras natais, algo que Sarah Skar (1994) chama a ateno ao apontar o desinteresse e mesmo a averso de alguns colonos em manter ou reforar qualquer tipo de vncu-lo com seus vizinhos14.

    um consenso entre muitos estudiosos da vida social nos Andes, como o caso, por exemplo, de Ronald Berg (1984), Marisol de la Cadena (2000) e Enrique Mayer (2004), a viso de que as comunidades rurais andi-nas tm na famlia nuclear, isto , nas rela-es entre um casal e seus filhos, e no no indivduo ou num grupo de descendncia mais amplo, a sua unidade social bsica ou central. As prticas e os discursos dos colonos andinos da selva central mostram que a famlia nuclear continua tendo uma importncia capital nas suas vidas. Muitos, conforme j assinalado, migraram para a regio ainda solteiros, mas quase que in-variavelmente diziam que haviam deixado suas terras natais em busca de recursos que lhes permitiriam dar aos seus futuros filhos uma vida no pautada pelas privaes e dificuldades que permearam suas infncias e juventudes nos Andes15. No sem ra-

    zo que a selva central recebeu um nmero maior de colonos andinos nos perodos em que os preos internacionais do caf dispa-raram, em especial entre os anos 1960 e o comeo dos 1980 (SANTOS & BARCLAY, 1995). Isso porque estavam interessados em garantir no s a subsistncia de suas fa-mlias (do contrrio, muito provavelmente no necessitariam sair da cordilheira), mas tambm o acesso a bens que apenas pode-riam conseguir atravs do mercado.

    Uma minoria dos habitantes da selva central composta pelos membros dos po-vos indgenas locais - os nativos16. A ocu-pao dos seus territrios pelas levas de co-lonos fez com que uma situao de conflito latente caracterizasse as relaes entre es-ses dois grupos tnicos. Os migrantes e seus filhos costumam justificar as desigualdades locais com a ideia de que o trabalho r-duo que faz com que algum progrida na vida (ocupe uma posio moral e material superior), um comportamento que, segundo eles, estaria notadamente ausente nos ind-genas17. Conforme j assinalado, a dicoto-mia entre trabalho e cio central na viso

    14. A emergncia de sentimentos ou vnculos comunitrios, nos espaos ocupados pelos colonos andinos, se dava, sobretudo, nas suas lutas/mobilizaes polticas (mais intensas no passado do que no presente), nos seus pertencimentos s cooperativas, durante as celebraes locais (como as festas dos santos padroei-ros dos povoados, por exemplo) e nos seus contatos com as escolas onde seus filhos estudavam. Eram atravs desses contextos/situaes que afloravam ou eram alimentados os desejos desses migrantes e de seus filhos serem (ou se verem) reconhecidos aos olhos de outras pessoas locais fora de suas famlias. De qualquer maneira, a vida comunitria entre eles no era institucionalizada, pelo menos se comparada com a vida comunitria nos Andes organizada em torno do chamado ayllu. 15. Carlos Degregori (1990) afirma que, com a expanso do mercado e do Estado s zonas rurais andinas, no sculo XX, uma porcentagem crescente das populaes andinas deixou de olhar para o passado, de esperar a volta do Inca, tal como propunha o clssico mito de Inkarri, e se laou com uma vitalidade in-suspeita conquista do futuro. E a, em um ponto neurlgico, se localiza a escola. (idem, p. 48).16. Segundo Santos & Barclay (1995), 20.9% da populao rural da selva central formada ou composta por membros dos povos indgenas locais. 17. Nas minhas conversas, de carter mais privado, com os indgenas ou com os colonos, no era raro escut-los acusarem as pessoas do outro grupo tnico de apresentarem um comportamento amoral, en-tretanto, dificilmente os dissociavam da esfera da humanidade. As acusaes dos primeiros envolviam, em especial, uma viso que valorizava a simbiose ou reciprocidade entre os humanos e a natureza,

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    dos colonos sobre o trabalho e, no entender desses sujeitos, quem se dedica com afinco a essa atividade digno de respeito e admi-rao18. Todavia, tanto eles quanto os ind-genas enfatizavam seus comprometimentos com o trabalho em suas falas, como, por exemplo, quando criticavam quem ficava jogando conversa fora, e essa viso crtica parecia se refletir no desconforto de alguns em serem vistos comigo19.

    Na selva central, em se tratando das terras concedidas e/ou tituladas pelo poder pblico, as de menor aptido para a agri-cultura, em especial, as que apresentavam um elevado declive e as mais distantes das vias de comunicao, acabaram ficando com os ndios e no com os colonos (idem). Por detrs dessa distribuio desigual da terra em benefcio dos migrantes andinos, esteve notadamente presente a viso adota-da por estes e tambm pelo Estado peruano a respeito de um suposto carter no pro-dutivo dos povos amaznicos. A difuso da agricultura comercial entre os indgenas se colocou no s como um meio para ob-terem recursos monetrios, como tambm enquanto uma estratgia defensiva, tendo em vista a manuteno de seus territrios diante do avano dos colonos, apesar de, em geral e ao contrario dos migrantes an-dinos, dedicarem mais tempo s atividades

    de subsistncia do que produo mercan-til (SANTOS, 2004, p. 242)20. Porm, o cul-tivo de caf entre as comunidades indge-nas criou um certo nvel de diferenciao socioeconmica interna, a qual restringe o mbito das relaes de reciprocidade e com isso as bases da solidariedade intra-comunitria (SANTOS; BARCLAY, 1995, p. 305)21. Uma jovem indgena me expli-cou da seguinte maneira o fato de seu pai e outros dois indgenas que viviam ao seu redor serem os nicos nativos de sua loca-lidade que possuam veculos: eles esco-lheram trabalhar, tem gente que tem terra e no quer trabalhar, no quer ter mais. Por outro lado, os trs pertenciam s famlias extensas identificadas com o povoamen-to inicial do territrio local, e era comum essas famlias fundadoras terem maiores extenses de terra.

    A importncia dada pelos ndios fa-mlia nuclear e que se manifesta, em es-pecial, nas suas recorrentes e angustiadas preocupaes com o futuro de seus filhos, no deixa de estar relacionada com a ma-neira violenta como se deu a difuso local da agricultura comercial, dado que, por um lado, envolveu a expropriao de seus ter-ritrios e, por outro, imps a necessidade de adotarem uma disposio em relao ao tempo (acumular bens e dinheiro) es-

    um ideal que no seria compartilhado pelos migrantes andinos. No era toa que costumavam critic-los por estarem, no seu entender, acabando com o meio ambiente. Segundo me contou um indgena local, os colonos acabaram com os animais (silvestres) e com as plantas medicinais. Talvez no seja exagero afirmar que a colonizao andina envolveu aquilo que Pierre Clastres (2004) chama de um etnocdio (destruio cultural) dos povos amaznicos, no caso, da selva central. 18. De acordo com Juan Ossio Acua (1992), a valorizao do trabalho e a condenao do cio ocupam uma posio central no universo cultural andino desde o perodo pr-hispnico.19. Shoemaker (1981) relata ter percebido esse desconforto durante seu trabalho de campo na selva central.20. A mandioca o principal cultivo de subsistncia presente entre os indgenas. 21. Esta diferenciao se expressa na posse de um nmero maior de bens manufaturados, incluindo bens suntuosos para os padres locais; no aprimoramento da infraestrutura produtiva, como a compra de caminhes, e na ampliao de atividades mercantis, atravs da abertura de mercearias, mas tambm, por exemplo, em maiores oportunidades de educao para os filhos. (SANTOS-GRANERO, 2004, p. 243).

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    tranha aos seus costumes22. Eles se viram obrigados a adotar um padro de compor-tamento em torno do trabalho que, por um lado, impedia ou dificultava a manuteno de vnculos para alm da famlia nuclear e os quais, por outro lado, eles valoriza-vam muito. Todavia, o descompasso entre a necessidade de acumulao e as condies objetivas de sua realizao igualmente se colocava como um problema para grande parte deles. Essa situao tambm permea-va a vida de muitos colonos e, tal como entre os indgenas, suas trajetrias eram vistas como intrinsecamente ligadas s de seus filhos. Os sacrifcios feitos em prol de seus descendentes e expressos na lin-guagem, por excelncia, da vida social an-dina - o trabalho - ao mesmo tempo em que conferiam sentido aos seus esforos, eram contados aos seus filhos e presenciados por eles, e parecem assim ter sido fundamentais para a criao de um sentimento de dvida, isto , de um lao ou uma ligao que, in-teriorizados, passaram a fazer parte de sua viso de mundo23.

    2. Trabalho e Famlia

    A Cooperativa La Florida foi criada em 1966 por um grupo de colonos advindos dos mais variados lugares dos Andes. Tais

    migrantes, considerados os fundadores da cooperativa, haviam se estabelecido, a partir de 1960, num relativamente amplo territrio da selva central24. Trata-se de um espao que, por uma deciso do Governo nacional da poca, deixou de pertencer a uma companhia estrangeira que nele plan-tava caf de maneira incipiente. Sua expro-priao fora reivindicada atravs de uma intensa mobilizao desses colonos e de outros migrantes andinos que, como eles, tambm eram trabalhadores dos cafezais da regio. Eles e o prprio poder pblico usaram como justificativa para essa desa-propriao o suposto uso especulativo e, consequentemente, no produtivo do territrio por parte da companhia estran-geira. O local era e ainda habitado por comunidades indgenas amaznicas das et-nias Yanesha e Ashaninka, cujos membros trabalharam ou no nos cafezais dessa em-presa e mantiveram e/ou mantm relaes mais ou menos amistosas com os colonos. A luta pela desapropriao uniu estes lti-mos e uma pequena parte dos ndios locais numa espcie de comunidade que est por trs da fundao da cooperativa e que con-tinua vigente at os dias de hoje, apesar das vises mutuamente depreciativas que cos-tumam caracterizar as relaes entre esses dois grupos tnicos25.

    22. Uma indgena, comentando comigo suas apreenses em relao ao futuro de seus filhos, afirmou que seus pequenos cafezais no lhe proporcionavam o dinheiro suficiente para arcar com os gastos em torno do material escolar e do uniforme destes ltimos, sendo que um deles fora advertido pela sua professora (a nica indgena com diploma de ensino superior no mbito local) de que no poderia continuar frequen-tando a escola sem sapatos (algo cujo valor destoava da renda de seus pais). 23. Por exemplo, um filho de colonos escreveu, na sua pgina eletrnica de uma reconhecida rede social da internet, a seguinte mensagem para sua me: hoje aniversrio da minha me, uma mulher lutadora, trabalhadora e muito atenta com seus filhos, obrigado por tudo que pode me dar. 24. Atualmente, boa parte dos produtores associados cooperativa formada por esses ditos fundadores, pelos seus filhos, pelos migrantes que trabalharam em suas terras e pelos filhos desses ex-trabalhadores. 25. A Cooperativa La Florida tinha cerca de 1.200 scios em 2005/2006 e tambm em 2014.

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    Os conflitos nos quais se envolveram, para conseguir com que essa rea fosse desapropriada, eram frequentemente revi-vidos nos discursos que os migrantes, que participaram desses confrontos, faziam a respeito de suas trajetrias na selva central. O mesmo valia em relao aos seus esfor-os e sacrifcios iniciais como produtores de caf desprovidos de maiores recursos monetrios e situados numa regio que na poca no possua praticamente qualquer infraestrutura (como estradas, escolas, lo-jas e hospitais). Tais discursos tinham como contraponto a trajetria dos colonos que vieram depois deles, trabalharam nos seus cafezais e receberam em troca uma poro dos seus terrenos ou compraram parte dos mesmos. Eram como narrativas que procu-ram legitimar o fato de que os mais anti-gos, ou fundadores das localidades onde vivem os migrantes, atravs da diviso en-tre si do territrio expropriado da compa-nhia estrangeira, dominaram a posse das terras localizadas nesse espao mais amplo. Mas eles tambm buscavam enfatizar ou destacar, perante os filhos desses agriculto-res, o quanto seus pais se sacrificaram para que pudessem ter um lugar para plantar ou outros recursos necessrios para que fos-sem capazes de progredir na vida.

    Conforme dito anteriormente, nesse pla-no local, os agricultores eram considerados, dependendo do tamanho de suas proprie-dades, como medianos (geralmente os mais antigos que no tiveram que dividir suas terras com seus filhos) ou pequenos (os demais cafeicultores), isto , no existia a figura do grande produtor. Nesse cenrio e em muitos outros espalhados pelo Peru, as relaes de poder baseadas na posse desigual da terra (como a diviso do tra-balho entre proprietrios e trabalhadores, por exemplo) eram menos explcitas do que

    as que eram frequentemente encontradas no pas antes da reforma agrria de 1969, quando o latifndio dominava a agricultu-ra peruana. No toa que as diferenas entre dominantes e dominados se mostrem mais sutis hoje em dia em boa parte do uni-verso rural nacional. De qualquer maneira, entre os indgenas da selva central, era co-mum algum apontar para as relaes de fora por trs do avano dos colonos sobre seus territrios.

    No podemos entender a perda da au-tonomia do modo de vida tradicional dos indgenas locais sem levar em conta o fato de morarem hoje em dia em espaos cha-mados de comunidades nativas, cujo ta-manho extremamente reduzido, do ponto de vista dessas prprias pessoas, impede que tenham uma vida semelhante dos seus antepassados, os quais dispunham de um amplo territrio para reproduzirem seus costumes - como era o caso da caa regular de animais silvestres, hoje bastante escassos na regio. Alm disso, com o cres-cimento vegetativo das comunidades nati-vas, os ndios acabam dispondo de cada vez menos terra em relao ao seu contingente populacional. Segundo o estudo de uma or-ganizao no governamental que auxilia os moradores locais, apesar da pobreza ser endmica entre essas pessoas, sua incidn-cia entre os indgenas mais aguda do que entre os colonos (DESCO, 2005). Para entender as condies por trs do atual ta-manho dessas comunidades, preciso re-troceder ao incio da dcada de 1960, po-ca em que, como j assinalado, o territrio onde se encontram deixou de pertencer a uma companhia estrangeira e foi distribu-do, com base numa autorizao do poder pblico, entre uma minoria de indgenas amaznicos e um contingente maior de co-lonos andinos.

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    Apesar dos ndios compartilharem hoje em dia com os migrantes desejos to caros, como o de ver seus filhos seguindo adian-te nos estudos e progredindo na vida at se tornarem profissionais, e tambm comungarem com eles o interesse no de-senvolvimento da cooperativa, suas traje-trias eram no s distintas como marcadas pelo desencontro no modo de perceb-las, dado que um grupo nutria pelo outro uma viso depreciativa: para os ndios, os co-lonos eram, notadamente, gananciosos e, para estes, aqueles eram, sobretudo, ocio-sos. Ambos reconheciam que os migrantes tinham, em geral, uma condio de vida melhor do que a dos nativos. Para os in-dgenas, essa disparidade residia principal-mente numa distribuio desigual da posse da terra. Diziam que seus esforos na pro-duo de caf no eram recompensados da mesma forma que os dos colonos porque possuam propriedades menores do que es-ses em se tratando dos locais onde podiam plantar o gro.

    De qualquer maneira, os dois grupos compartilhavam uma mesma expectativa de melhoria das suas condies de vida. Os que, na viso local, investiram seus recursos na educao de seus filhos, como, por exem-plo, construindo uma residncia numa cida-de onde estes, por conta dessa casa, foram capazes de frequentar uma faculdade, se

    destacavam perante os que, segundo diziam, teriam privilegiado a compra de um veculo ou pedao de terra para seus descendentes trabalharem como motoristas ou agriculto-res. J os que supostamente gastaram uma parte excessiva de suas economias em festas (de aniversrio, em especial) e/ou no consumo de bebidas (alcolicas), eram vistos com bastante desprezo.

    Alguns colonos mais antigos compra-ram um terreno na zona rural local e/ou um automvel ou caminho com base, segun-do eles prprios diziam, no dinheiro obtido com a venda de caf, durante os anos de 1970 e 1980, quando a produtividade natu-ral do solo e o preo do gro eram bastante altos. Um nmero ainda mais reduzido dos migrantes teria usado esse dinheiro para criar as condies que permitiram aos seus filhos ingressar no Ensino Superior26. Con-tudo, era bastante rara a existncia de um indgena que houvesse conquistado qual-quer um desses objetivos - a aquisio de um terreno ou veculo e ter um filho que cursou uma faculdade. No imaginrio dos colonos, os nativos eram comumente asso-ciados utilizao indevida de suas eco-nomias em atividades ligadas ao que de-finiam como diverso. Ou seja, eles no s trabalhariam pouco como tambm no saberiam como usar seus escassos recursos. Essa viso depreciativa procurava dar con-

    26. Conversando com alguns dos filhos desses colonos, escutei deles que seus pais se diferenciavam dos demais cafeicultores locais, entre outras coisas, por serem filhos de fazendeiros ou de algum com uma posio social superior aos pais deles, por trabalharem com o comrcio e no apenas com a agricultura (como era o caso, em especial, de suas mes que possuam uma pequena loja de secos e molhados nas suas respectivas chacras) e por terem um maior grau de instruo. De qualquer maneira, seus pais no gostavam ou no se interessavam em falar de suas diferenas sociais em relao aos demais produtores, preferindo ressaltar ou se concentrar, durante seus relatos autobiogrficos, nos seus esforos e sacrifcios enquanto trabalhadores rurais ou cafeicultores na selva central. Porm, esses filhos dos colonos se pensavam como um grupo socialmente distinto nesse plano local. Eles foram e continuam sendo meus principais interlocutores entre os habitantes da selva central. Eram como sujeitos hbridos situados entre um universo rural e uma emergente classe mdia urbana de ascendncia andina.

  • A experincia social do trabalho sob a tica das famlias dos agricultores da selva central peruana 239

    ta das disparidades entre os dois grupos, mas deixava de lado qualquer considerao a respeito do acesso desigual terra.

    Outros atores tambm permeavam o ce-nrio local. Um contingente importante era o dos pees, isto , dos trabalhadores (sa-zonais ou no) empregados nos cafezais, se-jam os de origem andina ou amaznica. Era comum, entre os colonos que l residiam, ter sido funcionrio de algum tambm advin-do dos Andes, na medida em que trabalhar num cafezal alheio era um primeiro passo para os migrantes se estabelecerem na selva enquanto cafeicultores. Entretanto, ser em-pregado por outrem era sempre considerado uma posio subalterna perante os proprie-trios. O fato dos indgenas, por conta da sua escassez de terra prpria para o cultivo de caf, terem que vender regularmente sua fora de trabalho, numa proporo maior do que entre os agricultores andinos, reforava sua condio inferior diante desse grupo t-nico. Contudo, a incorporao, pelos ndios, de um iderio que valorizava as relaes de interdependncia entre trabalho e famlia, para alm de envolver uma situao de do-minao cultural diante dos colonos, tam-bm era capaz de fornecer uma matriz de significados para seus esforos, ou seja, seus trabalhos podiam ser economicamente pou-co reconhecidos ou prestigiados, mas, assim como se dava com boa parte dos moradores locais que, segundo se dizia, tratava apenas de sobreviver, essas atividades ganhavam um sentido maior ao serem associadas com o passado ou o futuro de seus familiares.

    Os demais personagens que compunham a paisagem dessa zona rural, como era o caso dos professores das escolas locais e dos tcnicos das cooperativas que assessoravam os produtores, por exemplo, apesar de pos-surem propriedades onde cultivavam caf, eram sempre identificados pelos moradores

    da regio mais em relao a essas ativida-des do que como cafeicultores. Por trs do reconhecimento destes profissionais esta-va presente um iderio de ascenso social cujo cume era situado na obteno de uma profisso. O fato da educao se colocar como um meio privilegiado para se ascen-der socialmente transparece claramente nas entrevistas feitas com os moradores locais pelos membros de uma j citada organiza-o no governamental presente entre eles quando os conheci:

    Tanto as mulheres quanto os homens consi-deram que a educao muito importante. As razes que do so as seguintes: serve para o futuro, permite uma formao pes-soal e nos ajuda a nos realizar e a progre-dir. Especificamente, os homens afirmavam que melhora a atitude das pessoas, permi-te desenvolver melhor a vida e permite res-ponder melhor s oportunidades que se apre-sentam (DESCO, 2005, p. 369).

    No podemos deixar de levar em conta, se quisermos entender a construo social de uma noo local de ascenso social, o fato de que, em geral, as propriedades fa-miliares vo sendo dividas de uma gerao a outra e seus solos e plantaes so cada vez mais improdutivos. Lembro o caso de um colono mais antigo que dividiu suas terras com seus filhos, na medida em que estes, de acordo com este senhor, no s no avanaram em seus estudos como no conseguiram encontrar um emprego decente. Um destes filhos me disse o se-guinte: No nos educamos bem, havia a possibilidade; agora se sabe que tem que ser competitivo. Antes a ambio era pro-duzir muito caf e ter coisas. Ainda segun-do ele, na poca que em os preos eram al-tos (entre 1976 e 1989), poucos investiram

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    na educao, (...) se o preo baixava, era por pouco tempo. Se achava que era muito melhor o filho ficar no cultivo de caf.

    A viso da cafeicultura como uma ativi-dade em decadncia persiste nesse ambien-te rural, apesar dos esforos dos produtores e de sua destacada e reconhecida cooperati-va em amenizar os efeitos dessa crise entre eles, em especial, atravs da venda de seus cafs pelo sistema de comrcio justo e cer-tificados como orgnicos27. Entretanto, suas atuais dificuldades produtivas fazem com que se beneficiem bem menos do que antes em relao a uma melhora no valor que recebem pelo gro. De acordo com um produtor local, anteriormente se colhia 30 a 40 quintais (cada quintal tem 46 kg de caf) por hectare, com trs hectares se vi-via bem e poucos se esforavam para ter mais hectares. Ainda segundo ele, antes, nessa zona, um pequeno produtor produzia de 100 a 150 quintais e um mediano 800 quintais. Agora, os pequenos produzem en-tre 10 a 20 quintais e os medianos de 80 a 100 quintais.

    Em 2005, por exemplo, a cooperativa aqui destacada pode, atravs da venda dos cafs de seus associados pelo comrcio justo, pagar a eles cerca de US$ 125 por quintal. No ano de 2013, ela foi capaz de remune-r-los, em mdia, com US$ 170 por quintal. Nas dcadas de 1970 e 1980, esses produ-tores chegaram a vender essa mesma quan-

    tidade do gro por US$ 300 (CRUZ, 2010). No era toa a posio de destaque dada s famlias que conseguiam ter uma fonte de renda fora da cafeicultura, ainda mais se fosse por meio de um emprego bem remu-nerado conduzido por um ou mais de seus membros, como, por exemplo, o trabalho como dentista, advogado ou engenheiro. Mas eram poucos os filhos dos agricultores com diploma universitrio e que exerciam essas profisses ou qualquer outra tpica das classes mais abastadas do pas28.

    Uma boa parte dos jovens locais conti-nuava trabalhando nas terras de seus pais e nelas construam suas famlias29. Dificil-mente, suas rendas mensais, com base ape-nas no dinheiro que obtinham com a venda de seus cafs, excedia um salrio mnimo (cerca de US$ 138 no ano de 2005 e do dobro disso em 2014), chegando, em mdia, a um pouco mais da metade dessa remu-nerao. Aqueles que dividiam o trabalho na lavoura com o de mototaxista num povoado ou cidade da regio - geralmente jovens, solteiros, com entre 18 e 25 anos e sem ensino superior - poderiam conseguir at um salrio mnimo por ms com esta ltima atividade, mas apenas se utilizassem um veculo prprio e no o alugassem de outra pessoa. Esse mesmo valor recebiam as filhas dos cafeicultores - normalmente com a mesma idade e grau de instruo dos mototaxistas - que eram empregadas no

    27. Tal clima de decadncia local foi expresso da seguinte maneira por um produtor mais antigo: anti-gamente havia boa colheita e bons preos, agora as chacras esto velhas como ns.28. Por exemplo: dos 24 alunos que concluram o Segundo Grau num colgio local, em 1984, somente cinco deles ingressaram no Ensino Superior. Dos tambm 24 alunos que concluram o Segundo-Grau num outro colgio da regio, em 2006, apenas seis deles prosseguiram com seus estudos, em especial atravs do ingresso nos institutos superiores existentes na selva central. Comparando esses dados com os forne-cidos pelos ltimos censos nacionais, possvel afirmar que esses dois exemplos so bastante representa-tivos em relao realidade da educao nesse plano local. 29. De acordo com o censo de 2012, em Perene, distrito onde vivia a esmagadora maioria dos scios da Cooperativa La Florida, 35% dos agricultores havia recebido seus terrenos atravs de herana.

  • A experincia social do trabalho sob a tica das famlias dos agricultores da selva central peruana 241

    setor de servios e no comrcio local, nota-damente, nas lojas e restaurantes das zonas urbanas30. Outro trabalho comum, fora das chacras, entre os descendentes dos agri-cultores, era o exercido pelos seus filhos, especialmente os casados e com mais de 35 anos, que transportavam os moradores em seus automveis ou nos de terceiros (no caso dos que trabalhavam em seus prprios veculos, esse emprego rendia cerca de trs salrios mnimos).

    Muitos tambm se dirigiam capital do Peru (ou outra cidade costeira ou andina) e l exerciam algum tipo de trabalho que poderia ser classificado como informal, temporrio ou precrio, e que lhes pro-porcionava uma renda que dificilmente ex-cedia o valor de trs salrios mnimos31. A questo que o deslocamento para fora da selva central, assim como ser dono de um veculo ou trabalhar na loja de um parente, por exemplo, envolvia, em boa medida, a posse de determinadas disposies e capi-tais - econmicos, culturais e sociais - que lhes foram incutidos ou outorgados atravs de seus pais, ou seja, habilidades, recursos monetrios, um grau de instruo e/ou rede de relaes, todos possudos numa propor-

    o relativamente elevada para os padres locais. Trata-se de uma regio onde, de acordo com o ltimo censo, a renda fami-liar per capital mensal um tero do salrio mnimo, e esse valor parece refletir o peso do trabalho agrcola mal remunerado na sua economia. No mais do que 20% dos cafeicultores produziria uma quantidade de caf (100 quintais) que muitos considera-vam como satisfatria e os tornava sus-tentveis32. Tal produo, em tese, deveria lhes proporcionar uma renda mensal de trs salrios mnimos.

    Em 2014, cerca de 20 filhos de produ-tores ligados Cooperativa La Florida (vale lembrar essa entidade tinha, nesse ano, ao redor de 1.200 agricultores associados) exerciam um papel de destaque na interme-diao das relaes dos cafeicultores com o comrcio justo e/ou outros mercados de caf tambm recentemente criados e em voga. Os primeiros ganhavam em torno de 15 a 20 salrios mnimos por ms (com um deles, chegando a ganhar o triplo desses valores)33. Eles eram, em geral, gerentes das organizaes de produtores e/ou comercia-lizavam caf por conta prpria34. Come-aram suas carreiras ligados cooperativa

    30. Grande parte era empregada nas lojas ou restaurantes de seus pais, tios ou parentes mais distantes. 31. O fato dos filhos dos cafeicultores terem migrado para Lima (ou para outra cidade qualquer fora da selva central) no tem implicado, como ser discutido adiante, numa descontinuidade radical entre suas vidas e as de seus pais. Vrios retornam no s para visit-los como para cuidar de suas propriedades rurais numa espcie de rodzio feito entre eles e seus irmos ao longo dos anos.32. Tal proporo de agricultores sustentveis ou de mdios produtores era estimada pelos funcion-rios de distintas cooperativas locais com as quais entrei em contato. 33. Esse sujeito deixou de lado seu emprego na Cooperativa La Florida para se dedicar a uma ento pe-quena empresa que havia criado h pouco tempo e atravs da qual passou a comercializar uma grande quantidade de caf dos membros de outras cooperativas.34. O cargo de gerente de uma cooperativa era o mais prestigiado e melhor remunerado entre todos aqueles ligados s organizaes de produtores de caf. Porm, o comrcio privado ou por conta pr-pria passou a ser mais valorizado pelos gerentes das cooperativas do que o trabalho nestas entidades, na medida em que atravs dele conseguissem obter mais dinheiro para suas famlias, apesar de no ser normalmente bem visto pelos agricultores de um modo geral.

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    de seus pais, a La Florida, e atravs dela pu-deram entrar em contato ou trabalhar com diferentes cooperativas existentes no s na selva central como em outras localida-des espalhadas pelo Peru. Compartilhavam certas propriedades sociais (como um grau de instruo elevado para os padres locais e a relao direta com uma cooperativa pioneira entre as demais do pas na inser-o nos novos mercados de caf) que lhes conferiam as condies privilegiadas para ocupar essa posio de mediadores35. Tam-bm haviam incorporado determinadas dis-posies que fizeram com que encarassem o papel de mediao entre os cafeicultores e os novos mercados de caf como uma es-pcie de vocao profissional ou compro-misso de vida. No era sem razo que for-maram um contingente de pessoas que foi atuante e expressivo dentro do movimento nacional dos produtores desse gro.

    Tais propriedades sociais e disposies remetem histria coletiva protagonizada por seus pais desde que estes se estabele-ceram na selva central aps deixarem os Andes. Em certo sentido, a gerao mais jovem dava continuidade s sagas destes agricultores ao conect-los com o que havia de mais moderno em matria de comrcio de caf. Contudo, esse papel de mediadores os diferenciava da maior parte dos filhos dos cafeicultores locais na medida em que, nele, encontravam (ou podiam atravs dele encontrar mais facilmente) algo distante da realidade dos outros: um emprego capaz de lhes remunerar de modo muito expressivo.

    Seus pais eram reconhecidos localmente por ter lhes propiciado as condies para que pudessem progredir no sistema edu-cacional (como a construo de uma casa numa cidade onde frequentariam o Ensi-no Superior). Eles formavam uma espcie de elite de mdios produtores frente a uma maioria de pequenos agricultores e trabalhadores rurais. Pareciam ser menos afetados pelo problema da fragmentao familiar das chacras, o qual, como mencio-nado entes, era agravado por conta do es-gotamento dos solos e pelo envelhecimento dos cafezais. Entretanto, era comum escu-tar no s de seus filhos como tambm de outros jovens locais menos afortunados um discurso de gratido muitas vezes como-vente. Se os filhos nem sempre conseguiam ascender a uma posio social desejada por seus pais, quase sempre se viam em dvida para com os sacrifcios que eles realizaram em prol de seu bem estar.

    Mas essa gratido no se restringia s suas falas. Eles retribuam os esforos de seus pais das mais variadas formas. Aque-les mais afortunados, como um dentista, engenheiro ou advogado, pareciam con-duzir essa restituio concedendo aos seus pais um prestgio ou reconhecimento local. Isso tambm se dava com os que ocupa-vam os cargos mais graduados nas coo-perativas de cafeicultores, apesar de que, tanto eles quanto seus colegas de trabalho, igualmente filhos de produtores de caf, encararem seus empregos como uma ativi-dade diretamente relacionada ao bem estar

    35. Alguns scios mais velhos, que participaram da fundao e/ou da refundao da cooperativa, costu-mavam dizer que a criaram ou a recriaram para seus filhos ou pensando no futuro de seus filhos. Tal refundao se deu no final dos anos de 1990, logo aps o fim de um conflito que assolou o pas, mas algumas regies de maneira especial, como foi o caso da selva central e o qual envolveu, de um lado, as Foras Armadas e, de outro, movimentos guerrilheiros de extrema-esquerda. A histria desse conflito, da perspectiva dos agricultores ligados La Florida, retratada em Cruz (2010).

  • A experincia social do trabalho sob a tica das famlias dos agricultores da selva central peruana 243

    de seus familiares, caso fossem funcion-rios de uma cooperativa qual os ltimos estivessem associados. Outra forma de se manterem vinculados aos progenitores era permanecendo junto aos seus cafezais e os ajudando nas tarefas ligadas ao dia a dia das plantaes. Muitos, inclusive, voltavam de suas temporadas nas cidades para au-xili-los. Os trabalhos que realizavam fora das suas propriedades rurais tambm po-diam se converter num tipo de ajuda ou auxlio aos seus pais, na medida em que era comum darem a eles um montante dos recursos auferidos com essas atividades36.

    Meu contato, em 2014, com aqueles, en-tre os filhos dos agricultores que estavam em melhor situao financeira, foi com os que eram ou haviam sido funcionrios das cooperativas locais e que tinham frequen-tado o Ensino Superior. Colocados diante do dilema de ter que escolher entre ganhar mais comercializando caf por conta pr-pria ou continuar empregados nessas en-tidades e, dessa maneira, seguir num traba-lho mais bem avaliado pelos produtores do que o chamado comrcio privado, uma grande parte deles decidira pelo primeiro caminho ou estava em vias de tom-lo, apesar de que no enxergavam estas duas alternativas como mutuamente excluden-tes. Mas entre os que se mantinham nes-tas organizaes como seus gerentes, por

    exemplo, era tambm comum existir um desejo de, atravs delas, acumular capital poltico para se lanarem como candidatos para algum cargo pblico.

    Em suas falas ficava evidente o conflito que viviam entre querer proporcionar uma condio de vida melhor aos seus familia-res e usar suas influncias e habilidades em prol do bem estar dos cafeicultores ou dos cidados locais37. Porm, a descon-fiana que os agricultores frequentemente demonstravam em relao s pessoas que se colocavam como seus intermedirios comerciais e polticos criava um clima de insegurana entre os gerentes das coope-rativas e que parecia contribuir para que se inclinassem em direo aos seus interesses mais particulares, o que no implicava em qualquer tipo de individualismo, na me-dida em que o indivduo e suas vontades eram encarados como aquilo por trs da runa moral de algum38.

    Tal viso anti-individualista transpa-rece, por exemplo, no relato de um, outro-ra, fracassado cafeicultor local a respeito de sua vida. Ele chegou selva central no ano de 1965, junto de dois irmos mais ve-lhos. Trabalhou na colheita de caf duran-te alguns anos e, em seguida, adquiriu sua propriedade. Segundo suas palavras, com o tempo, passou a se dedicar bebida (cer-veja), um vcio, no seu entender, e o qual

    36. Esse era o caso, por exemplo, de um filho de um cafeicultor que recebeu de seu pai um automvel para transportar os produtores at as cidades mais prximas. Ele entregava a este ltimo, todos os dias nos quais trabalhava, uma porcentagem de seus lucros dirios. 37. Um destes gerentes publicou o seguinte comentrio na sua pgina de uma rede social da internet: Trabalhar e trabalhar, pensando na famlia, na sociedade, sempre com muito esmero e dedicao, obriga-do a Deus por me dar sade e a minha famlia pelo grande apoio que ela me oferece. 38. Assim, nesse local, havia um sentimento generalizado de desconfiana tanto em relao ao que pode ser definido como um mundo (social) exterior (representado, sobretudo, pelos intermedirios comerciais e polticos), que viveria custa do trabalho dos agricultores, quanto em relao a um mundo (psicolgico) interior (representado pelas vontades e desejos individuais).

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    caminhava lado a lado com sua participa-o frequente em festas. Essa trajetria errante teria consumido 30% da sua renda anual e o levado ao fracasso. O desrespei-to mtuo tomou conta de sua famlia. Tal situao infeliz s fora revertida, afirmou ele, depois que viu um de seus filhos, ento doente, ser curado atravs do Evangelho. Agora em casa h respeito e disciplina, me disse e completou: No tenho mais que me preocupar com meus filhos, sei que esto fazendo o bem, (...) estou h quatro anos convertido Igreja Evanglica. H um ano paguei minhas dvidas. De acordo com ele, essas obrigaes financeiras foram quitadas com o dinheiro que economizou ao deixar de contratar pessoas para traba-lhar no seu cafezal e se apoiar na mo de obra de seus familiares: Meus filhos co-laboraram e agora recebem dinheiro para os estudos superiores; um deles (inclusive) no trabalha, s se dedica aos estudos, (...) em outros lares os filhos s trabalham (nas chacras de seus pais) se recebem.

    Essa narrativa autobiogrfica est inse-rida num universo conceitual ou simblico no qual a unio familiar encarada como algo construdo, em boa medida, por meio das relaes de interdependncia entre os trabalhos de seus membros, sejam eles rea-lizados dentro ou fora das propriedades ru-rais. A bebida (alcolica) aparece a como smbolo, por excelncia, do mal, isto , da desunio familiar, dado que tende a desviar as pessoas que a consomem dos deveres do trabalho39. Conforme assinalado antes, seu consumo, principalmente quando for exa-gerado, deve se dar de maneira eventual e coletiva, numa espcie de ritual normal-mente realizado aos sbados noite. nes-se horrio e dia que costumam ocorrer, por exemplo, as festas de aniversrio das coo-perativas e quando os bares e prostbulos da regio esto cheios, configurando uma fase liminar em que o indivduo emerge enquanto figura social legtima40. Trata-se, para se utilizar de uma expresso do antro-plogo Victor Turner (1974), de um perodo

    39. Lembro o caso de um produtor local (de origem andina) que, criticado pelos seus familiares por seu suposto hbito de consumir bebidas alcolicas, lhes disse que tinha o direito de aproveitar a vida, pois havia cumprido com seus deveres, isto , tido sucesso no trabalho ao proporcionar aos seus descendentes as condies para que cursassem o Ensino Superior e deixado a eles propriedades no campo e na cidade. Sua esposa, segundo me contou um dos seus filhos, teria ficado extremamente irritada com um vizinho indgena que a aconselhou a aproveitar mais a vida, o que, na ocasio, significava se juntar a ele e ao seu marido enquanto os dois bebiam cerveja. Esse filho do casal afirmou que seu pai sempre priorizou a educao de seus filhos, ao contrrio da maioria dos produtores ao seu redor, hoje arruinados por terem se dedicado em demasia diverso e ao lcool. De qualquer maneira, esse jovem se mostrava bastante preocupado com o que via como o problema de seu pai com a bebida e junto de seus irmos chegou a procurar ajuda mdica para resolver essa questo. 40. Participando de uma festa de formatura dos alunos de um colgio local, fui advertido, pelo filho de um cafeicultor, de que no deveria danar nesse evento, caso no consumisse bebida alcolica. As pessoas no vo ver com bons olhos voc danando sbrio, me disse. No comeo da festa, todos se mostravam acanhados e desconfortveis; porm, com o passar do tempo, e com a ingesto generalizada e intensa de bebidas alcolicas, por homens e mulheres, inclusive menores de idade, eles foram se soltando e en-chendo a pista de dana at ela ser praticamente tomada. O lcool parecia cumprir o papel de legitimar a expresso pblica de sentimentos de prazer e alegria que normalmente deveriam ser contidos ou renun-ciados, tendo em vista as exigncias de uma vida cotidiana pautada pelo trabalho enquanto uma atividade que ganhava sentido principalmente em contraposio a estes sentimentos.

  • A experincia social do trabalho sob a tica das famlias dos agricultores da selva central peruana 245

    onde parece existir um sentimento genera-lizado de communitas ou comunho entre pessoas, notadamente do sexo masculino, que fora desse contexto se encontram ab-sorvidas pelo mundo do trabalho e pelas relaes sociais de cunho familiar41.

    Consideraes finais

    Um dos principais sonhos dos mais abastados filhos dos cafeicultores que co-nheci (aqueles responsveis pela interme-diao do contato local com os novos mer-cados de caf) era ter recursos suficientes para poder arcar com os custos de manter seus filhos, atualmente ainda bastante jo-vens, numa boa universidade europeia ou norte-americana. Diziam trabalhar duro para, um dia, ver esse desejo concretizado. Conscientemente ou no, estavam, assim como seus pais, ao privilegiarem com tanta fora o trabalho, colocando sobre os om-bros de seus descendentes o peso de uma vida dedicada a eles. De acordo com o que afirmavam, aparentemente no passava pelas suas cabeas qualquer inteno de

    diminuir seu ritmo de trabalho42. Isso por-que essa atividade no tinha como objeti-vo exclusivo a acumulao material, como parece pressupor Shoemaker (1981), num dos poucos estudos etnogrficos sobre os cafeicultores da selva central, conforme j fora assinalado anteriormente neste artigo. O trabalho ocupa um lugar central em suas vidas sociais no porque atravs dele que esses sujeitos e seus filhos podem garan-tir sua subsistncia ou progredir, e sim porque essa atividade expressa ou simboli-za o que consideram como o cerne de suas existncias - a famlia. Shoemaker no foi capaz de ver o tanto de sentido e, conse-quentemente, de socialidade, que se encon-tram presentes no trabalho desempenhado por estas pessoas. Ele acaba se pautando pela viso desses agentes sobre a ausncia de um progresso local enquanto uma si-tuao que se apoiaria na inexistncia de um destino comum mais amplo sentido en-tre eles43.

    Mas a preocupao com o que falta num universo social pode se colocar como um dos principais obstculos para se entender

    41. De uma perspectiva estruturalista, possvel dizer que as relaes sociais locais se organizam com base numa estrutura simblica na qual o trabalho se ope ao lazer, assim como a famlia se ope ao indivduo, assim como a cultura se ope natureza (trabalho/lazer: famlia/indivduo: cultura/natureza) e onde as bebidas alcolicas se colocam como as principais formas de mediao, de passagem ou de mudana entre o trabalho e o lazer, entre a famlia e o indivduo e entre a cultura e a natureza (humana, no caso).42. Segundo um filho de cafeicultores locais, muita felicidade ou muita alegria implica no livre arbtrio, em no ter limites e isso perigoso porque voc se esquece de Deus e dos outros. Muita felicidade algo demonaco, voc se esquece da parte espiritual e familiar. S a felicidade momentnea boa. A vida dura, uma luta diria. Conforme se v, atravs de sua fala, a oposio entre trabalho e lazer pode tam-bm se relacionar com a oposio entre Deus e o diabo. 43. Refletindo sobre os moradores de Satipo, uma das provncias da selva central, Shoemaker (1981) conclui: sem nenhum veculo para a expresso e a busca de objetivos de classe, a maior parte dos habi-tantes de Satipo permanecer onde esta hoje: no caminho da sobrevivncia diria. (idem p. 171) No seu livro intitulado Tropical Colonization: The case of Chanchamayo and Satipo in Peru, Peter Sjoholt (1988) analisa uma srie de dados quantitativos referentes a duas provncias da selva central (Chanchamayo e Satipo) e que foram coletados em meados de 1981. A partir de um questionrio aplicado a 60 famlias de uma comunidade local dessa regio, esse autor afirma que uma das principais queixas feitas por seus informantes era a da falta de solidariedade entre os colonos.

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    como os sujeitos que dele participam con-cebem o que uma relao social e o qu capaz de produzi-la. Os colonos andinos, ao migrarem para a selva central, tendo em vista o exerccio de um trabalho que pudesse garantir aos seus filhos uma vida melhor, se viram, em grande parte, frustra-dos diante da incapacidade de alcanarem esse objetivo. Entretanto, essa frustrao, tambm compartilhada, de certo modo, pe-los indgenas ao seu redor, no pressupe, necessariamente, uma carncia ou ausncia de relaes sociais - de acordo com a pers-pectiva dos moradores locais - na medida em que a forma culturalmente dominante dessas relaes entre eles, no caso, a rela-o entre pais e filhos, pode ser mantida independentemente do acmulo de bens e capitais. Mesmo os poucos que consegui-ram ascender a uma vida mais confortvel economicamente sabem que essa situao no garante automaticamente uma posio moral superior. Isso porque nesse cenrio

    quem tem muito (dinheiro) e (supostamen-te) no trabalha comumente associado com a figura do bandido ou ladro, duas categorias de xingamento bastante utili-zadas nesse espao, assim como as de bba-do, vagabundo e ocioso.

    O trabalho no campo, como o paradigma, por excelncia, do trabalho, se pauta pela ideia de que a essncia dele esta no suor dos que se dedicam a ele com afinco, e esse suor parece ser encarado localmente como o prin-cipal ingrediente responsvel por manter as famlias unidas. Em suma, a desvalorizao econmica da agricultura local no deve nos cegar para o papel do trabalho familiar rural como fonte do simbolismo que orienta as aes dessas pessoas, independentemente de estarem ou no exercendo algum ofcio notadamente agrcola, pois de onde mais extrairiam os referenciais para se pensar a interdependncia entre pais e filhos atravs do trabalho?44

    44. Em se tratando de um espao onde a produo agrcola gira, de certo modo, em torno da famlia, no de se estranhar que o trabalho caracterize esta unidade social. Entretanto, nesse local, as relaes de interdependncia entre pais e filhos, pensadas atravs do trabalho, fazem sentido dentro de um arcabouo conceitual que, apesar de, aparentemente, tomar como referencial a agricultura de carter familiar, no deriva, diretamente, de uma situao de interdependncia econmica entre essas pessoas. A concepo de uma dependncia material mtua entre pais e filhos uma consequncia, e no causa, de um universo social e semntico onde o trabalho e as relaes familiares se cofundem, ao contrrio do que acontece na cultura ocidental, por exemplo, na qual o trabalho tende a ser associado ao indivduo e dissociado da famlia, conforme assinala Marshall Sahlins (2003). No sem razo que nesse ltimo universo cultural o trabalho tambm aparea como uma atividade associada satisfao das necessidades ou desejos indivi-duais e as relaes sociais como extrnsecas aos trabalhadores.

  • A experincia social do trabalho sob a tica das famlias dos agricultores da selva central peruana 247

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    RESUMO Este texto se debrua sobre a experincia social do trabalho a partir da perspectiva das famlias dos agricultores de uma zo-na rural da selva central peruana. Estes sujeitos se definem como pequenos ou mdios produtores de caf, apesar de ser comum, entre os que possuem as menores lavouras, o trabalho temporrio ou even-tual num cafezal alheio. A maioria for-mada por colonos vindos dos Andes e por seus descendentes. Uma minoria composta por indgenas nativos da Amaznia. Trata-se aqui de entender, num primeiro momento, as condies so-ciais do trabalho local como produtor de caf e, em seguida, as relaes das traje-trias das geraes mais velhas de cafei-cultores com as mais variadas atividades remuneradas que seus filhos vm exer-cendo dentro e fora da selva central. Tais atividades se do num contexto marcado, em especial, pela decadncia da agri-cultura, pelo predomnio de empregos informais e precrios, pelo auto-em-prego ou empreendedorismo e pela va-lorizao cada vez maior de profisses que demandam, para o seu exerccio, a posse de um diploma ou certificado de Ensino Superior.

    PALAVRAS-CHAVETrabalho. Famlia. Agricultura. Amaznia. Peru.

    ABSTRACTThis text focuses its attention on the social experience of work from the point of view of the families of farmers from a rural zone in the Peruvian central jungle. These sub-jects define themselves as small or medi-um coffee growers, despite its common, among those who own the smallest portions of land, the temporary or casual work in someones coffee plantation. The majority of them is formed by settlers coming from the Peruvian Andes and their descendants. A minority is composed of indigenous peo-ples natives of the Amazon jungle. Its in-tended here to understand, first, the social conditions of their dedication to the coffee growing and, subsequently, the relations of the trajectories of the older generations of coffee growers with the most diverse remu-nerated activities which their sons have been practicing inside and outside the cen-tral jungle. Those activities exist in a con-text marked, in particular, by the deca-dence of the agriculture, by the preponder-ance of informal and precarious jobs, by the tendency for self-employment or en-trepreneurship and by the increasing ac-knowledgement of professions that de-mands, for its exercise, the ownership of a college diploma or certificate.

    KEYWORDSLabor. Family. Agriculture. Amazon rainforest. Peru.

    Recebido em: 10/07/2014Aprovado em: 19/12/2014