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A Exposição Depois de Deleuze Contributos Filosóficos e Cinematográficos Para a Teoria e Experiência na Curadoria Manuel João Montenegro Dissertação de Mestrado em Estudos de Arte apresentada à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Orientadora: Profª. Doutora Eduarda Neves Porto, 2020

A Exposição Depois de Deleuze

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Page 1: A Exposição Depois de Deleuze

A Exposição Depois de Deleuze Contributos Filosóficos e Cinematográficos Para a Teoria e Experiência na Curadoria

Manuel João Montenegro

Dissertação de Mestrado em Estudos de Arte apresentada à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Orientadora: Profª. Doutora Eduarda Neves

Porto, 2020

Page 2: A Exposição Depois de Deleuze

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A Exposição Depois de Deleuze Contributos Filosóficos e Cinematográficos Para a Teoria e Experiência na Curadoria

Manuel João Sampaio de Mendonça

Montenegro e Almeida

Dissertação de Mestrado em Estudos de Arte apresentada à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Orientadora: Profª. Doutora Eduarda Neves

Porto, 2020

Page 3: A Exposição Depois de Deleuze

iii

Agradecimentos

Especial agradecimento às Professoras Lúcia Matos e Eduarda Neves pela

generosidade, paciência e disponibilidade que demonstraram.

Às pessoas que fazem parte da minha vida privada, que sabem o que estes

últimos anos significaram para mim.

Page 4: A Exposição Depois de Deleuze

iv

A meus Pais, por todo o apoio e paciência.

Page 5: A Exposição Depois de Deleuze

v

Resumo

A presente dissertação procura compreender a relação entre as teorias e

práticas da curadoria e os modos de experiência estética da imagem em

movimento no contexto dos espaços expositivo, a partir de Gilles Deleuze. A

obra do filósofo constitui um intensivo trabalho de procura por uma filosofia da

diferença e da imanência que incorre na exploração de princípios ontológicos,

estéticos e empíricos próprios aos processos de construção do pensamento.

Na intersecção entre filosofia e curadoria, o objectivo é perceber como podem

os processos do pensamento deleuziano contribuir para o trabalho curatorial,

para a criação de experiências e experimentações estéticas singulares e para

uma relação institucional livre entre arte, curador e espectador, a partir das

noções deleuzianas de Imagem, Dispositivo, Maquinismo e Corpo sem

Órgãos.

Palavras chave: Curadoria, Filosofia, Estética, Cinema, Deleuze, Dispositivo

Page 6: A Exposição Depois de Deleuze

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Abstract

This dissertation seeks to find the possible connections between curatorial

theories and practices and the modes of aesthetic experience of the

cinematographic image in the context of exhibition spaces, following the

philosophy of Gilles Deleuze. His work constitutes the intensive labour of

creating a philosophy of difference and immanence that explores the empirical,

aesthetical and ontological principles necessary to the construction of thinking.

In the intersection between philosophy and curatorship, we aim to understand

how can the processes of deleuzian thinking contribute to curatorial labour, to

the construction of singular experiences and experimentations, and to a free

institutional relationship between art, curator and spectator, using the concepts

of Image, Dispositif, Machine and Body Without Organs.

Keywords: Curatorship, Philosophy, Aesthetics, Cinema, Deleuze, Dispositif.

Page 7: A Exposição Depois de Deleuze

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Índice INTRODUÇÃO 1 1. CINEMA E IMAGEM 4

IMAGEM MOVIMENTO-TEMPO 4 PLANO: ENQUADRAMENTO E MONTAGEM 6 A IMAGEM-CRISTAL 7 IMAGEM-PERCEPÇÃO E CÂMARA-CONSCIÊNCIA 9 IMAGEM NO CONCEITO 11 CINEMA E PENSAMENTO 13 PENSAMENTO-CINEMA E EMPIRISMO TRANSCENDENTAL 18

2. DISPOSITIVO E MAQUINISMO 21 DISPOSITIVOS 21 IMAGEM EM MOVIMENTO 25 EXPOSIÇÃO 30 MÁQUINAS DE IMAGENS 33 O SENTIDO DE UMA EXPOSIÇÃO 36 IMAGEM-PENSAMENTO E EXPOSIÇÃO 40

3. CURADORIA E CORPO SEM ÓRGÃOS 49 CORPOS SEM ÓRGÃOS 49 PÓS-MUSEU E CAPITALISMO 54 COMPROMISSO CURATORIAL 60 DEVIR-ARTE, DEVIR-ESPECTADOR 64

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 69 BIBLIOGRAFIA 71 WEBGRAFIA 74

Page 8: A Exposição Depois de Deleuze

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Introdução

Esta dissertação tem como objectivo a exploração da praticabilidade da

curadoria de imagem em movimento, ao nível da concepção de exposições,

mas também da sua mediação discursiva e sensível, recorrendo, para tal a

algumas abordagens da filosofia de Gilles Deleuze. A obra do filósofo constitui

um intensivo trabalho de procura por uma filosofia da diferença e da imanência

que incorre na exploração de princípios ontológicos, estéticos e empíricos

possíveis na construção e nos processos do pensamento. Estes processos

reflectem-se, aqui, numa colisão entre os conceitos e a criação. Neste contexto

a criatividade, o Novo, é ontologicamente transversal a todas as práticas e

movimentos do universo, e remete, a cada momento, para a possibilidade de

encontrar outros modos de pensamento como potencial modo de fuga à

racionalidade ideativa.

A filosofia de Deleuze contém certos processos que podem ser ajustados à

curadoria, não apenas nas práticas discursivas que constrói, mas sobretudo

na forma como pode potenciar modos de ver a arte e o mundo que partem de

princípios de heterogeneidade e enriquecem essas mesmas práticas.

O primeiro capítulo recolhe do conceito de imagem movimento-tempo as

especificidades próprias da imagem, os modos como ela adquire o estatuto de

uma consciência cinematográfica própria e o seu lugar no domínio da estética.

A sua teoria do cinema não só constitui uma importante conceptologia das

imagens cinematográficas como efectua um contributo singular para as

perspectivas estéticas de todo o conceito de Imagem. As confluências de

práticas filosóficas com os processos do cinema proporcionam uma visão da

sétima arte como forma de pensamento autónomo. Aborda também os modos

pelos quais o pensamento cinematográfico se relaciona com a noção de

pensamento que Deleuze inaugura com o nome de Empirismo Transcendental,

analisando a sua importância para a construção de novas experiências no

encontro com a arte.

Page 9: A Exposição Depois de Deleuze

2

Transportada para a exposição, a imagem em movimento envolve-se de todo

um conjunto de questões materiais e perceptivas que se adicionam ao seu

valor estético. Neste sentido, o segundo capítulo aborda, através do conceito

Foucaultiano de Dispositivo, os mecanismos que garantem o seu

funcionamento e determinam os vários médiuns que pertencem ao seu mundo

e as possibilidades que determinam a sua presença no espaço expositivo, e

as características que condicionam e determinam os estatutos do espectador

entre sala de cinema e exposição. Tendo em conta que Deleuze propõe uma

noção estética deste conceito, a análise centrar-se-á numa pesquisa dos

princípios ontológicos que salvaguardam a criatividade e os modos estéticos

na relação entre o sentido, ou a orientação de um projecto curatorial e as

experiências singulares dos espectadores.

O terceiro capítulo, por sua vez, incide numa discussão sobre as relações

políticas que circundam a relação entre curadoria e público na sociedade

contemporânea. Missões e compromissos sociais vêem-se travados por um

contexto político e económico dominante sendo que as teorias museológicas

enfrentam, por um lado, os elitismos e os fantasmas do modernismo, e por

outro, as forças do capitalismo que aglutinam o imaginário individual e

colectivo. Estas relações são aqui pensadas através do Corpo sem Órgãos,

criado por Artaud e conceptualizado Deleuze e Guattari. Este conceito constitui

o plano de imanência das vontades e dos desejos, e reverte, nesta dissertação,

para uma exploração dos princípios que salvaguardam a importância de

movimentos de desejo e criatividade reais, bem como das condições de

liberdade que possam permitir a sua circulação para além das relações de

poder.

O que se propõe é que a consciência dos processos específicos ao

pensamento de Deleuze, reiterados nas diferentes formas de praticar

curadoria, podem ser muito úteis para as sempre necessárias redefinições dos

valores que movimentam a criação de novas formas de pensamento e

sentimento, individuais e coletivas. Ao mesmo tempo, reenquadra a raiz

política de cada movimento. Este pensamento parte de operações tanto éticas

como estéticas, não por introduzir qualquer tema político ou ideológico, mas

Page 10: A Exposição Depois de Deleuze

3

porque as posições do sujeito e do objecto dependem dessas mesmas formas

de partilha.

O papel da curadoria é o de mediar obras com o espectador no sentido de

estabelecer uma posição de encaminhamento e potenciamento das ideias e

das sensibilidades que gravitam cada acontecimento/conceito. Neste contexto,

não se trata de dar a conhecer a filosofia de Deleuze através das obras, mas

de a tornar uma prática consciente e inscrita numa partilha que age sobre os

sujeitos, assim como eles agem sobre ela.

Page 11: A Exposição Depois de Deleuze

4

1. Cinema e Imagem Imagem Movimento-tempo

Em Imagem-Movimento Cinema 1 (2009) e Imagem-Tempo, Cinema 2 (2015),

Gilles Deleuze apresenta uma conjugação entre duas práticas: por um lado, a

do cinema, como prática das imagens; por outro, a filosofia como prática de

conceitos.

Nas palavras do filósofo, o seu trabalho não envolve uma teoria, mas sobretudo

uma taxonomia dos tipos de imagens e dos signos que as constituem (Deleuze

G. , 2009, p. 11). As imagem-movimento e imagem-tempo são vistas como

conjuntos de outras imagens, (imagem-afecção, imagem-acção, imagem-

percepção; imagem-relação, imagem-mudança), sendo que os signos e os

representados são deduzidos das características do movimento e da

temporalidade que as animam.

Trata-se, simultaneamente, de uma prática da filosofia, no sentido em que

todas estas imagens são usadas para a construção de um universo conceptual

que ultrapassa a actualidade da imagem audiovisual. No conceito toda a

imagem é definida pelos seus movimentos e pelo tempo que a engloba e não

por uma descrição representativa.

Estamos diante de um pensamento como experiência real e presente na sua

temporalidade, um “cinema-pensamento no meio desta filosofia articulada

como pensamento-cinema” (Sousa Dias, 2016, p. 164). Tanto o cinema tem

uma relação filosófica com o pensamento, como a filosofia pode fazer-se a

partir de um pensamento especificamente cinematográfico. É um pensamento

especificamente “cinematográfico” numa relação de impregnação com a

filosofia.

Neste capítulo interessa-nos perceber certas particularidades desta relação

entre imagem e filosofia: como é que as imagens cinematográficas dão origem

Page 12: A Exposição Depois de Deleuze

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a conceitos, como se forma um “pensamento cinematográfico”, assim como

qual a possibilidade desta prática de pensamento do ponto de vista da

curadoria e como se pode transportar para a realidade da exposição.

Ao tomar a imagem cinematográfica como conceito, Deleuze despoja-a do

aparelho que a possibilita. Inicialmente, o cinema funciona de acordo com a

projecção numa sucessão de imagens (fotogramas ou imagens digitais), e com

a velocidade necessária para que os movimentos surjam naturais à percepção.

Mas a artificialidade do aparelho não corresponde ao resultado da imagem.

Dada a estabilidade da imagem audiovisual para com a percepção natural, o

filósofo afirma que o movimento e o tempo não se deduzem do aparelho, mas

da própria imagem, “o cinema não nos dá uma imagem à qual ele acrescentaria

movimento, dá-nos imediatamente uma imagem-movimento” (Deleuze, 2009,

p. 15).

Assim, a imagem-movimento ocorre sempre numa perspectiva temporal. Um

fotograma é um instante, um corte temporal imóvel. O tempo, aqui, deduz-se

no intervalo entre imagens imóveis, como sucessão de instantes quaisquer. A

imagem-movimento, no entanto, corresponde a um corte móvel e, portanto, a

uma duração própria, sendo que o tempo se deduz nos intervalos entre

movimentos que pertencem à própria imagem.

Movimento e tempo determinam a concepção semiológica que Deleuze faz da

imagem relativamente ao cinema. Nas suas palavras, a imagem-movimento é

“um conjunto de acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns

sobre os outros” (Deleuze G. , 2009, p. 317). É um conjunto no sentido em que

cada movimento corresponde a uma imagem dentro da imagem. Uma imagem-

movimento é um conjunto de outras imagens e de signos dos quais se

deduzem, e cuja interacção é uma transformação. Não existe uma função

sígnica dissociada do movimento.

O conjunto dos movimentos dá origem a várias perspectivas de tempo e perfaz

uma duração. Só tendo em conta o tempo é que uma imagem pode ser um

todo. São estas as duas faces da imagem-movimento, o conjunto dos objectos

e o todo do tempo, “as posições estão no espaço, mas o todo que muda está

Page 13: A Exposição Depois de Deleuze

6

no tempo” (Deleuze G. , 2015, p. 59). Segundo Deleuze, cada mudança do

movimento corresponde a uma mudança absoluta do todo, enquanto que uma

imagem cinematográfica como conjunto é um sistema fechado que põe em

relação todos os elementos presentes na imagem, o todo é aberto,

correspondendo ao conceito na sua perspectiva temporal.

O tempo é a duração, mas, simultaneamente, um tempo efectivo, objectivado

nos intervalos das imagens-movimento, que o torna heterogéneo, ritmado. São

dois aspectos, “por um lado, o tempo como todo, como grande círculo ou

espiral que recolhe o conjunto do movimento no universo; por outro lado, o

tempo como intervalo, que marca a mais pequena unidade de movimento ou

de acção” (Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema 1, 2009, p. 57).

Plano: Enquadramento e Montagem

No cinema, dècoupage é a prática que determina a imagem através dos seus

cortes: refere-se a cortes na duração de um plano, no intervalo entre planos,

mas também no intervalo entre imagens-movimento que constituem o mesmo

plano. Determina o plano, que Deleuze refere ser a unidade mínima do cinema.

O plano é a determinação do movimento que se estabelece. É uma imagem-

movimento, um corte móvel, uma duração. É constituído por dois processos: o

enquadramento e a montagem. O enquadramento ocupa-se das relações entre

os objectos da imagem, enquanto a montagem se reflecte no todo temporal.

O enquadramento determina o conjunto dos elementos que estão presentes

na imagem, regista informações sonoras e visuais. É um sistema óptico, visual,

que se refere sempre a um ângulo de enquadramento, e é dinamicamente

geométrico ou físico consoante as distâncias entre os elementos e os graus de

mistura entre eles. Na imagem-movimento, é um processo constante de

divisão e reunião dos elementos, reportando-os ao todo do plano de acordo

Page 14: A Exposição Depois de Deleuze

7

com as suas transformações O enquadramento determina um conjunto

variável, mas fechado, que nos movimentos provoca uma transformação do

todo.

Assim entendida, a imagem incorpora uma outra ordem, que não se refere aos

objectos, mas ao tempo que compõe o movimento. É a ordem da montagem,

a operação que extrai uma imagem do tempo das imagens-movimento. A

montagem é “a composição, o agenciamento das imagens-movimento de

forma a constituir uma imagem indirecta do tempo” (Deleuze G. , 2009, p. 54).

No cinema não se pode dissociar nada de representativo do tempo

heterogéneo que perfaz a imagem, logo a ideia é o todo, na condição de ser

uma imagem-tempo. Como tal, Deleuze vê na montagem “o acto principal do

cinema” (Deleuze G. , 2015, p. 59).

Como o tempo é inferido das relações entre as imagens-movimentos, extrai-

se delas uma imagem indirecta, ou seja, o tempo depende do movimento. Diz

Deleuze que esta imagem dá a ideia como uma representação indirecta do

tempo. Há, no entanto, uma segunda forma de imagem-tempo, que se

desenrola quando o movimento perde função e se furta à centragem, quando

se torna “movimento aberrante”. O tempo não se subordina ao movimento,

antes o promove, e abre a imagem a uma apresentação directa do tempo.

A Imagem-cristal

Qualquer imagem, considerada do ponto de vista do todo, ou seja, da

perspectiva do tempo heterogéneo que compõe o cinema, constitui-se numa

variação temporal que pressupõe diferentes identidades mutáveis e

diferenciáveis. Há em cada momento da sua duração uma conservação da

ideia do movimento passado e de um futuro por vir ainda não actualizado, é o

“fundamento oculto do tempo, isto é , a sua diferenciação entre dois jorros, o

dos presentes que passam e o dos passados que se conservam” (Deleuze G.

, 2015, p. 155).

Page 15: A Exposição Depois de Deleuze

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O tempo da imagem audiovisual é heterogéneo, constitui-se na união entre as

imagens, os conceitos, as narrativas, e com o próprio mundo no qual as

imagens se envolvem. As próprias imagens se referem a movimentos da

consciência, a faculdades cognitivas, entre as quais Deleuze destaca a

recordação e o sonho. Um exemplo na prática do cinema é o flash-back, que

apresenta um passado, uma recordação cinematográfica, sob a forma de

presente, o do desenrolar dos movimentos e o do presente diegético que

“percorre uma zona de recordações e regressa a um estado cada vez mais

profundo, cada vez mais inexorável, da situação presente” (Deleuze G. , 2015,

p. 79).

É uma imagem dupla e mútua à qual Deleuze chama de imagem-cristal, a

“operação fundamental do tempo” , em que circula uma relação entre a

imagem-movimento cinematográfica, presente e actual, e uma imagem virtual

que compõe a relação da imagem com o todo conceptual, ou seja, com o

passado da própria imagem e com o mundo, nas suas relações entre o real e

o imaginário, entre o presente e o passado.

Nestas relações, cada objecto atravessa uma multiplicidade de circuitos que,

levados ao limite, criam pontos de indiscernibilidade entre si. Torna-se

impossível discernir o presente do passado, a imaginação da realidade, porque

cada um dos termos remete para o outro, em circuitos cada vez mais pequenos

e subtis.

Mais uma vez, vemos que a imagem não é uma uma questão de

subjectividade, mas de uma circulação de todos os movimentos e tempos que

compõem o seu todo a cada momento. Deleuze distingue sempre a

capacidade subjectiva da imagem cinematográfica, realizada através da

câmara, da do espectador. Isto porque, no cinema, o espírito, o todo, ou o

conceito não fazem parte da imagem e das camadas de tempo que a

constituem:

A subjectividade nunca é nossa, é o tempo, ou seja, a alma ou o espírito,

o virtual. O actual é sempre objectivo, mas o virtual é o subjectivo: era

Page 16: A Exposição Depois de Deleuze

9

primeiro o afecto, o que sentimos no tempo; e depois o próprio tempo,

pura virtualidade que se desdobra em afectante e afectado.

(Deleuze G. , 2015, pp. 132,133)

Imagem-percepção e Câmara-consciência

Na circulação entre o enquadramento e a montagem, entre o conjunto que

separa e reúne as partes que se movimentam e o todo que dura, Deleuze

encontra uma analogia entre o plano e a consciência. O plano, ou seja, a

consciência, traça um movimento que faz que as coisas entre as quais se

estabelece estejam continuamente a reunir-se num todo e o todo a dividir-se

entre as coisas” (Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema 1, 2009, p. 41).

O olho da consciência cinematográfica é a câmara e são as suas condições

que ditam o seu estatuto em relação à imagem, um olho cinematográfico que

oferece um ponto de vista e, como tal, uma exposição do mundo que vê. É

uma consciência específica, sensório-motora, que parte de uma percepção

propriamente cinematográfica e não natural.

Dadas as suas características, a consciência cinematográfica pode ser “ora

humana, ora inumana, ora sobre-humana” (Deleuze G. , A Imagem-

Movimento: Cinema 1, 2009, p. 40). Uma primeira razão para esta

inumanidade está na distinção entre a percepção natural e a percepção

cinematográfica dada por Deleuze, distinção que está sempre nos intervalos

dos movimentos:

a percepção natural introduz paragens, ancoragens, pontos fixos ou pontos

de vista separado, corpos móveis ou até veículos distintos, ao passo que

a percepção cinematográfica opera de maneira contínua, por um único

Page 17: A Exposição Depois de Deleuze

10

movimento de que as próprias paragens fazem parte integrante não

passando de uma vibração.

(Deleuze G. , 2009, p. 43)

A segunda razão é que, fixa ou móvel, a câmara funciona como um

“equivalente geral” das coisas que mostra ou das quais se serve. Ela instala-

se em relação às coisas, enquadra-as e monta-as na imagem, mas também

se instala nelas, usa-as como veículos, extrai “dos corpos móveis a mobilidade

que é a sua essência” (Deleuze G. , 2009, p. 44).

A câmara pode adoptar o olhar de uma personagem, mas ainda assim não se

confunde com ela. O que exprime a posição da câmara em relação à imagem

que ela reflecte é um “ser-com” (Deleuze G. , 2009, p. 117). Ela exprime um

olhar que não é das personagens, nem o das coisas, ele está nas personagens

e nas coisas, está com elas, de acordo com um “ponto de vista anónimo de

alguém não identificado entre as personagens” (Deleuze G. , 2009, p. 117).

Neste sentido, a imagem cinematográfica é sempre uma imagem-percepção,

antes das imagens-percepção diegéticas, como que “uma reflexão da imagem

numa consciência de si-câmara” (Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema

1, 2009, p. 122).

Não se pode dizer que a câmara, na sua autonomia, seja subjectiva. Num filme

pode-se falar de uma imagem subjectiva ou objectiva de uma forma diegética:

correspondentemente, quando é expresso o olhar de uma personagem ou de

uma coisa, e quando a imagem enquadra um conjunto de personagens ou

coisas do qual a personagem está ausente. Em todos os casos, a câmara é

completamente autónoma. É-o, porque a imagem se reporta sempre ao todo,

que é, sempre mais do que a construção da personagem ou de uma história,

uma imagem de tempo heterogénea diegética e extradiegética. Na sua

autonomia, a visão consciente da câmara é indissociável do todo,

ultrapassando a objectividade e subjectividade das imagens:

Page 18: A Exposição Depois de Deleuze

11

Podemos ver no cinema imagens que pretendem ser objectivas e

subjectivas; mas aqui trata-se de ultrapassar o subjectivo e o objectivo

numa forma que se erige em visão autónoma do conteúdo.

(Deleuze G. , 2009, p. 119)

Imagem no Conceito

No seu encontro com o mundo, a imagem enquadra-se numa duplicidade

visual e conceptual. É neste domínio que a obra de Deleuze se completa

filosoficamente numa prática dos conceitos que a Imagem engloba. Neles, é

sempre destacada a iminente influência que o cinema teve na filosofia da

imagem, sendo visto pelo autor como o “órgão a aperfeiçoar da nova realidade”

(Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema 1, 2009, p. 22).

A perspectiva cinematográfica fornece as condições para a essência temporal

do conceito filosófico de Imagem: toda a imagem é movimento quando

reportada a uma duração. Mesmo quando aparenta imobilidade,

temporalmente ela nunca é completamente imóvel, mas vibração.

A imagem em-si é um Todo conceptual, o todo da imagem e o todo do objecto,

assim como o todo das designações (imagens instantâneas) que lhe podem

ser atribuídas. A imagem é fundamentada pelo tempo, na sua duração, e nos

ritmos causados pelas mudanças que os movimentos envolvem. Não é, por

isso, um conjunto final, predeterminado, de possibilidades existentes, mas

aberto, no sentido em que o movimento provoca mudanças qualitativas que

geram mutações na própria identidade do conceito. Numa perspectiva

temporal as mudanças são qualitativas e correspondem movimentos, que não

são extensivos, mas intensivos, correspondem a intensidades. Por

intensidade, Deleuze entende o “elemento que é em si mesmo diferença e cria,

ao mesmo tempo, a qualidade no sensível e o exercício transcendente na

sensibilidade” (2000, p. 247).

Page 19: A Exposição Depois de Deleuze

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Da Imagem em-si, Deleuze extrai diferentes imagens, cortes da imagem em-

si, de diferente identidade, cujas mudanças restituem, simultaneamente, a

identidade do Todo. Uma imagem de pensamento, assim como obras de arte

estáticas seriam cortes imóveis, imagens instantâneas cujo movimento parte

do pensamento segundo um tempo abstracto. Existem também cortes móveis,

como as imagens cinematográficas, que são constituídas por movimento ao

longo de uma duração fixa, com tempo objectivo. É desta forma que explica

que “o conjunto infinito de todas as imagens constitui uma espécie plano de

imanência” (2009, p. 97) no qual a Imagem existe em si. O plano de imanência

é também, por si, um corte móvel, “é um bloco de espaço-tempo, porque lhe

pertence de cada vez o tempo do movimento que se opera nele” (2009, p. 97).

O plano de imanência ocorre de um “agenciamento maquínico das imagens-

movimento” (2009, p. 97).

A Imagem em si não é feita para nem por ninguém, não tem interpretação que

não nasça do movimento puro:

Com efeito, a nossa percepção e a nossa linguagem distinguem corpos

(substantivos), qualidades (adjectivos) e acções (verbos). Mas as acções,

neste sentido preciso, substituíram já o movimento pela ideia de um lugar

provisório para onde ele se dirige ou de um resultado que ele obtém; e a

qualidade substitui o movimento pela ideia de um estado que persiste

enquanto não lhe suceder outro; e o corpo substituiu o movimento pela

ideia de um sujeito que o executaria ou de um objeto que o sofreria, de um

veículo que o transportaria. Vamos ver que imagens como essas se

formam no universo (imagens-acção, imagens afecção e imagens-

percepção). Mas elas dependeriam de novas condições e é evidente que

não podem aparecer por enquanto. Por enquanto só temos movimentos,

chamados imagens, para os distinguir de tudo o que eles ainda não são.

(Deleuze G. , 2009, p. 98)

Page 20: A Exposição Depois de Deleuze

13

No sentido do movimento, Deleuze refere também que “a imagem é

movimento, como a matéria é luz” (2009, p. 99). A identidade da imagem e da

matéria são a mesma, “esse em-si da imagem é a matéria: não qualquer coisa

que estaria escondida atrás da imagem, mas pelo contrário a identidade

absoluta da imagem-movimento e da matéria” (Deleuze G. , A Imagem-

Movimento: Cinema 1, 2009, p. 97). Deste modo, Deleuze define um modelo

das imagens e das coisas como um estado de infinita variação, “um estado de

coisas que não parassem de mudar, uma matéria-fluxo onde não fosse

possível assinalar nenhum ponto de referência” (Deleuze G. , 2009, p. 95).

Cinema e Pensamento

A essência artística da imagem encontra-se, para Deleuze, na sua relação com

o pensamento, é o que, no encontro com a imagem, nos força a pensar. É a

capacidade da imagem, como percepto, de “produzir um choque no

pensamento, comunicar vibrações ao cérebro, tocar directamente o sistema

nervoso central” (Deleuze G. , 2015, p. 245). No cinema, diante de uma

imagem cujo movimento existe em si, sendo por isso automático, o choque

adquire um poder específico. Imagens imóveis obrigam ao trabalho subjectivo

do espectador, do seu espírito, de fazer o movimento no seu pensamento. Mas,

como vimos anteriormente, o cinema pressupõe a subjectividade própria e

autónoma da câmara, está na imagem e no tempo heterogéneo que a

preenche. Quando o movimento se torna automático, quando ele existe “em-

si” na imagem, ele “converte em poder o que era só possibilidade” (Deleuze G.

, 2015, p. 245).

O pensador do cinema é um “autómato espiritual”, não o da filosofia clássica,

que atesta a possibilidade lógica de dedução de um pensamento através de

um outro, mas um circuito em que os pensamentos reagem às imagens –

movimento. Eleva-se do movimento automático e a ele reage. Deleuze chama-

lhe o noochoque, o “poder comum do que força a pensar” (Deleuze G. , 2015,

Page 21: A Exposição Depois de Deleuze

14

p. 246). É o sublime cinematográfico, “constitui-se quando a imaginação sofre

um choque que a leva ao seu limite e força o pensamento a pensar o todo

como totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação” (Deleuze G. , 2015,

p. 247), sendo que a imaginação se faz na imagem, nas imagens-recordação

e nas imagens-sonho, que ao mesmo tempo que cindem o tempo, constituem

uma lógica sua e voltam ao todo, no circuito entre as faces actuais e virtuais

da imagem.

A partir da montagem dialéctica de Eisenstein, Deleuze especifica três

momentos de choque que levam a imagem a uma operação do pensamento.

De salientar que grande objectivo de Eisenstein era uma definição ou

“individuação” da identidade de um grupo no sentido de preparar uma

emancipação, no entanto, vale a pena radicalizar a ideia de pensamento como

acção nas várias possibilidades de pensamento do cinema.

Num primeiro momento, o movimento parte da imagem para o conceito. A

imagem, formada pelos devidos componentes é, antes de mais, um percepto

que contém em si uma potencial subjetividade, que é conceptualizado a partir

dos processos individuais da montagem. O choque encontra-se na

comunicação entre as imagens, imposta como oposição dialéctica que forma

o conceito. Pensar através dos objetos, ou das imagens e dos seus

componentes não é apenas pensar os significados, mas também pensar o

próprio espaço da relação, pois é o que garante a unificação do todo. A

montagem, como processo intelectual, possibilita um caminho para o

pensamento.

Existe, no entanto, um movimento contrário, do conceito para a imagem, que

restitui ao processo intelectual a carga afectiva da imagem. O conceito já não

é resultante da imagem, mas uma estrutura de compreensão que adota a carga

afectiva das figuras. Se o primeiro choque parte de uma unificação das

imagens através da montagem e interioriza o toda nas relações, o segundo

choque, sensorial, inscreve-se no todo da agitação das imagens que o

exprimem.

Page 22: A Exposição Depois de Deleuze

15

O terceiro momento surge no culminar do movimento entre os dois primeiros.

É a relação dos dois e define a identidade do conceito e da imagem ao longo

do movimento das suas relações, e que corresponde à posição do sujeito em

relação ao todo/mundo, e do todo/mundo em relação ao sujeito. Esta

identidade permite uma definição do sujeito e das possibilidades de acção, ou

seja de um pensamento-acção que resolve a oposição dialéctica.

Ao apoiar-se em Eisenstein, Deleuze favorece uma imagem dialéctica do

pensamento, um “autómato dialéctico”. O seu objectivo, “juntar o mais alto grau

da consciência e o nível mais profundo do inconsciente” (Deleuze G. , 2015, p.

253). De facto, o cinema de Eisenstein é exemplificativo do que seria a grande

promessa do cinema como arte industrial nos seus inícios, ao transportar esta

operação dialéctica das imagens para a narrativa: comunicar um choque que

força a pensar, criar “um autómato subjectivo e colectivo para um movimento

automático” (Deleuze G. , 2015, p. 246), capaz de unificar o pensamento em

torno das massas.

Promessa de uma efectividade ideológica que se torna dúbia quando o cinema

cai na propaganda e na manipulação política e comercial. Por um lado, a

mediocridade de um cinema que substitui a violência da imagem pela violência

do representado, por outro, os filmes políticos de Leni Riefenstahl,

evidenciavam “uma espécie de fascismo que ligava Hitler a Hollywood e

Hollywood a Hitler” (Deleuze G. , 2015, p. 258), e uma impossibilidade de

confiar no autómato cinematográfico.

Nesta base, Deleuze distingue o que considera o cinema clássico, baseado

numa lógica causa-efeito narrativa e imagética do laço sensorio-motor, do

cinema moderno. De acordo com o filósofo, é diante de um mundo intolerável

e no qual já não se pode confiar, que as novas vagas do cinema introduzem

no pensamento um mundo de contingências, que parte de uma constatação

de impotência face à permeabilidade do pensamento às mais ínfimas

incoerências. Esta impotência forma-se sob a forma de corte conceptual entre

as relações que unem as imagens. Rompe-se o laço de causa efeito e

continuidade conceptual que organiza as imagens, instaurando um vazio

intersticial que levanta a necessidade de uma nova forma de conceptualizar as

Page 23: A Exposição Depois de Deleuze

16

imagens, um novo pensamento inscrito nos processos de pensamento através

das coisas.

Quanto ao mundo diegético, ocorre uma transformação ontológica da

personagem, que deixa de ser sujeito de actualização da acção, para se tornar

num sujeito mediador, petrificado, que “divaga ele próprio através de imagens

cuja relação não consegue resolver” (Deleuze G. , 2015). Deleuze denota aqui

um novo autómato espíritual, que “passou a ser a múmia, essa instância

desmontada, paralisada, petrificada, congelada, que atesta a impossibilidade

de pensar que o pensamento é” (Deleuze G. , 2015, p. 262), ou “corpo

incógnito que só temos atrás da cabeça e cuja idade não é a nossa nem a da

nossa infância, mas um pouco de tempo em estado puro” (Deleuze G. , 2015,

p. 266).

Resta mostrar o literal, requerendo novas formas de pensamento de acordo

com as condições de um tempo puro. A apresentação do literal é a própria

consequência da ruptura do laço sensório-motor do cinema clássico. As

imagens perdem a ligação causal e os seus elementos tornam-se

independentes, adquirindo a temporalidade própria de cada movimento. O

cinema enquanto pensamento já não parte do conceito formado pela

montagem porque o papel desta é agora o da dispersão. Imagens

independentes cujo significado está disperso nos cortes que as separam. O

conceito deixa então de permitir a acção, mas abre espaço para diferentes

formas de pensamento. Se o laço sensório-motor sugeria um todo como

representação indireta do tempo, ou seja, através de um encadear de

movimentos, o cinema moderno cria o todo a partir de uma exterioridade

absoluta, um Fora da imagem correspondente às fissuras que as relações

deixam intactas.

O todo é substituído por uma exterioridade absoluta, um poder do Fora,

porque, apesar de se estabelecer entre as imagens, não cria uma figura com

um determinado significado, mas uma diferenciação cuja natureza é preciso

resolver. Operado pelo corte, o Fora é irracional, não faz parte dos

componentes das imagens. A imagem cinematográfica é submetida a provas,

a métodos construtivos que ultrapassam a contiguidade figurativa.

Page 24: A Exposição Depois de Deleuze

17

A imagem no cinema moderno é sempre desterritorializada. São os processos

de diferenciação que ocorrem através das imagens que questionam as

possíveis relações. Mesmo quando certas imagens apresentam características

semelhantes entre si, o objeto do cinema debruça-se na diferença e nas forças

exteriores que exponencializam o potencial da realidade cinematográfica.

Esta forma de pensar as imagens é condicionada pelos espaços livres que as

movimentam. Não há uma resolução, mas espaços a serem pensados. O

pensamento-acção é, acima de tudo, uma acção do pensamento através das

relações discerníveis mas também indiscerníveis entre os elementos da

imagem. Se o pensamento já não pode originar uma ação final, actualizada

nas forças do mundo, é porque, face a todas as possíveis incoerências, lhe é

necessário um movimento de constante reactualização, que se possa suster

face à realidade exterior. A despossessão das realidades sugere uma nova

exigência: “A questão já não é a da representação do mundo, mas a da

conduta do pensamento dada a indiscernibilidade da relação entre os objectos”

(Deleuze, 2015, p. 286).

Ao questionar a mediação entre as imagens, através do meta-pensamento, é

originada uma nova posição para o próprio espectador. Deixamos a ideologia

e as opiniões, para nos unirmos à natureza da consciência humana. O novo

sujeito não se descobre. Deve, no entanto, aprender a lidar com a profusão e

com a indiscernibilidade das imagens. Sendo que o choque faz nascer o

pensamento, a sua formalização não é um dado sem um movimento de

renascimento próprio segundo um horizonte infinito. É o pensamento por vir

que reflete o seu grande potencial.

Page 25: A Exposição Depois de Deleuze

18

Pensamento-cinema e Empirismo Transcendental

Em Diferença e Repetição (Deleuze G. , 2000), Deleuze aproxima o termo

“imagem de pensamento” como referência a ideias fixas, representativas. Esta

imagem constituir-se-ia a partir do senso-comum não-filosófico, ou seja, das

faculdades empíricas, como a percepção natural ou a recordação, e seria

elevada a ideia. Uma imagem de pensamento é por ele entendida como uma

representação que possui pensamento mais do que é pensada, e que, tomada

como uma verdade não passa de uma imagem dogmática. Partindo de algo

não filosófico não seria possível chegar aos conceitos de acordo com um

pensamento realmente filosófico. Seria antes necessário elevar as faculdades

a um empirismo superior: “determinar a natureza das exigências das

faculdades, e que as levam ao limite, como estados livres de diferença” (2000,

p. 246). Este modelo “foca-se na forma transcendental de uma faculdade, que

se confunde com o seu exercício disjunto, superior, ou transcendente, o que

significa que a faculdade apreende no mundo o que lhe concerne, o que a faz

nascer para o mundo” (2000, p. 245).

Já não são as ideias que são elevadas ou transcendentalizadas, elas

continuam na matéria e no tempo. Na circulação entre a imagem e conceito,

opera-se uma desterritorialização que retira às faculdades empíricas a sua

natureza, elevando-as de acordo com uma experimentação criativa. Constitui-

se um empirismo transcendental, como movimento auto-poiético da filosofia e

dos conceitos.

O empirismo transcendental dá origem ao um pensamento que, não apagando

a importância das ideias, desloca o jogo das acções do pensamento para a

circulação das faculdades que lhe dão origem, responsabilizando-o de uma

contemplatividade e de uma experimentalidade dirigida para a diferença,

inseparável do fluxo. É “o pensamento que nasce no pensamento, é o acto de

pensar originado na sua genitalidade, nem dado no inatismo, nem suposto na

reminescência, é o pensamento sem imagens” (Deleuze G. , Diferença e

Repetição, 2000, p. 281)

Page 26: A Exposição Depois de Deleuze

19

O pensamento deixa de se confundir com a imagem, tornam-se ambos

independentes, e começa a identificar-se com o movimento posto em prática

empiricamente. Se antes imagem e pensamento se confundiam com a ideia e,

por consequência, com a realidade, com a forma de uma verdade que nunca

o chega a ser, o pensamento Deleuziano é um pensamento sem imagens, feito

de movimento sem objecto nem sujeito, que navega as imagens e que no seu

fluxo constrói o Novo. Se Deleuze reclama a necessidade de, para tal, abolir

as imagens, tal não significa que elas não continuem lá, em relação com o

pensamento. O que é necessário é ver a sua identidade como matéria-fluxo,

mudança constante a ser operada pelo pensamento que reconstitui a sua

natureza, sempre sublimada: “nunca é no início que qualquer coisa de novo,

uma nova arte, pode revelar a sua essência; o que era desde o início só o pode

revelar num desvio da sua evolução” (Deleuze G. , 2015, p. 72).

Da mesma forma, o Cinema é feito de operações, de movimentos que

representam e apresentam acções análogas às das faculdades

transcendentais no espaço-tempo propriamente audiovisual, cuja relação é

feita de constante mudança. Torna-se compreensível o interesse filosófico que

Deleuze viu no cinema. Há no seu autómato espiritual um poder de construção

de um pensamento que rompe com a percepção natural e a transforma. Ainda

que o cinema suponha uma forma de pensamento maioritariamente visual e

sensório-motor, as imagens que o filósofo distingue, como a imagem-

percepção e a imagem-recordação correspondem a qualidades dos

movimentos e do tempo da mesma forma que as faculdades empíricas devem

ser movimentadas na filosofia.

O cinema supõe em todas as faces da imagem um tempo heterogéneo, uma

virtualidade e uma actualidade, ao qual corresponde a união de todos os

tempos em cada momento presente. Há uma experiência real do pensamento

ao longo da sua duração. A cada actualização do pensamento, uma nova

perspectiva empírica que transforma os significados: “é só quando o signo se

abre ao directamente ao tempo, só quando o tempo fornece a própria matéria

sinalética, que o tipo, que se tornou temporal, se confunde com o traço de

Page 27: A Exposição Depois de Deleuze

20

singularidade separado das suas associações motoras” (Deleuze G. , 2015, p.

72).

A relação entre as duas formas aproxima-se eminentemente com o surgimento

do cinema moderno, que, como vimos, põe o cinema em ordem com o

intolerável, com o impensável, substituindo a ideia de Todo pela

inacessibilidade do Exterior. Como Sousa Dias resume:

... o pensamento sempre numa relação íntima com um impensado, que

não é o que ele não pensa, mas o que não para de pensar, o seu Exterior

que é, ao mesmo tempo, o seu Dentro mais profundo.

(Sousa Dias, Anti-Doxa, 2019, p. 41)

Tal como o cinema, a filosofia é uma forma de ver e de fazer ver, faz-se de

“actos de vidência que fendem as realidades empíricas dadas para as abrir a

uma perceptibilidade inacessível” (Sousa Dias, Anti-Doxa, 2019, p. 37).

Quando Rancière (O Destino das Imagens, 2011, p. 13) escreve que a imagem

cinematográfica resulta de uma relação entre o dizer e o ver, é preciso discernir

as duas operações em termos das intensidades que a cada uma são próprias:

dizer consiste num investimento discursivo entre a imagem e a ideia, enquanto

que ver exige mais do que uma designação do que se vê, um pensamento

sobre o próprio processo de ver que se deixa impregnar por formas de

intensidades que não correspondem propriamente à linguagem. Daí que o

escritor veja um interesse específico na contemplação como uma forma de ver

que não se resume a uma absorção, sendo antes uma forma de pensamento

que põe o acto de percepcionar em constante acção sobre si própria. Dizer e

ver formam uma dialéctica que não é resolvida logicamente, mas

intensivamente.

Page 28: A Exposição Depois de Deleuze

21

2. Dispositivo e Maquinismo Dispositivos

Conceito central na obra de Michel Foucault, o Dispositivo é constituído em

três movimentos: discernimento dos elementos que o constituem e o formam

como um conjunto heterogéneo de práticas, materiais e discursos relativos ao

seu funcionamento; identificação da natureza das ligações que existem entre

os elementos heterogéneos; análise das estratégias/necessidades históricas

que dão origem a cada dispositivo.

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto

decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituições,

organizações arquitectónicas, decisões regulamentares, leis, medidas

administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,

filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo

(...). Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que

pode existir entre estes elementos heterogéneos. Sendo assim, tal

discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao

contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que

permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta

prática, dando−lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma,

entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja,

mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser

muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de

formação que, em um determinado momento histórico, teve como função

principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma

função estratégica dominante.

(Foucault, 1998, p. 244)

Page 29: A Exposição Depois de Deleuze

22

Quando se refere a um dispositivo, neste conceito, estão em jogo linhas de

poder e de subjectivação e relações de heterogeneidade. Explorar um

dispositivo será “desmascarar” a natureza das relações, percebendo o lugar e

função mutáveis de cada elemento em relação à finalidade/urgência que deu

origem à sua estratégia. Ao dispositivo, faz ainda corresponder um movimento

de génese, na medida em que da predominância de objectivo estratégico do

dispositivo ocorre um duplo processo que o reconstitui:

... por um lado, processo de sobredeterminação funcional, pois cada efeito,

positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de

ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação,

um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem

dispersamente; por outro lado, processo de perpétuo preenchimento

estratégico.

(Foucault, 1998, p. 245)

De acordo com esta perspectiva, o filósofo refere que os elementos

heterogéneos intervêm numa racionalidade (Foucault, 1998, p. 246), e está

relacionado com a qualificação dos saberes que o dispositivo constitui, “o

dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando

sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações do saber que dele

nascem mas que igualmente o condicionam” (Foucault, 1998, p. 246).

Os processos de subjectivação são definidos pelas relações que o ser humano

tem com o dispositivo, ao nível do gesto e dos resultados da produção, mas se

nos referimos à ordem conceptual do dispositivo, essa produção é

principalmente uma produção dos saberes enquanto qualificação do

pensamento.

Giorgio Agamben (What Is an Apparatus? and Other Essays, 2009) retoma a

abordagem de Foucault, focando-se na relação entre os dispositivos e o ser

Page 30: A Exposição Depois de Deleuze

23

humano, realçando que os dispositivos implicam sempre um processo de

subjectivação:

Expandindo a já larga classe dos dispositivos Foucauldianos, defino-

o literalmente como algo que tem a capacidade de capturar, orientar,

determinar, interceptar, modelar, controlar ou segurar os gestos,

comportamentos, opiniões ou discursos dos seres vivos.

(Agamben, 2009, p. 14)

O que importa sublinhar na abrangência que Foucault e Agamben conferem à

sua noção de dispositivo, é a forma como este mesmo sustenta a existência

do sujeito, do mesmo modo que as relações de forças entre os elementos dos

dispositivos possibilita a sua transformação/subjetivação. Para Agamben,

através do dispositivo, realiza-se uma “actividade de governação desprovida

de qualquer base do ser”, e o sujeito resulta da relação entre o ser humano e

o dispositivo. O dispositivo tem o seu lugar na actualização e reactualização

das estruturas de significação e de subjectivação dos objectos e dos sujeitos.

Seguindo Deleuze, podemos dizer que ao conceptualizar as linhas de força e

de subjectivação, Foucault cria o plano de imanência do poder. Ter em conta

a presença dos dispositivos no campo artístico implica, então, compreender a

ligação das suas estratégias com a sua história, que vincula a natureza das

tecnologias ao processo de criação estética e os processos envolvidos na

forma como os elementos heterogéneos se relacionam entre si e com o ser-

humano, condicionando-o, mas criando, simultaneamente, novas linhas de

subjectivação.

Deleuze (O Mistério de Ariana, 1996) pergunta-se se, ao conceptualizar o

dispositivo, Foucault propõe um programa como “estética intrínseca dos

modos de existência como última dimensão dos dispositivos” (1996, p. 91).

Com esta frase, Deleuze salienta a potência criadora do dispositivo e

possibilita uma relação entre o dispositivo e a criação artística, que é também

Page 31: A Exposição Depois de Deleuze

24

uma relação entre o dispositivo e a Imagem, entre estruturas racionais e os

movimentos de diferenciação que desenvolvem pontos de fuga em relação às

lógicas estabelecidas.

À luz das suas estratégias, tanto a imagem audiovisual como a exposição

podem ser analisadas como dispositivos, tendo em conta as relações entre os

elementos que os compõem, que envolvem a sua tecnologia e principalmente

os aspectos discursivos e imagéticos envolvidos. Não podemos esquecer a

importância que Deleuze deposita no conceito de Imagem, na compreensão

das intensidades que envolvem os processos e os objectos artísticos, o

cinema, e o próprio pensamento.

Unir os conceitos de dispositivo e imagem implica atender à relação entre as

linhas de poder e às intensidades do movimento imagético, através das

relações de visibilidade, mas também do pensamento. São dois planos de

imanência: um, o das intensidades, outro, o dos poderes, que se implicam um

ao outro nos processos do pensamento.

A produção de imagens, assim como os processos que as abrem à relação do

ser humano com o mundo, é feita através de dispositivos, cuja função mantém

uma certa ordem que pode, ou não, permitir a heterogeneidade dos seus

elementos.

Explorar a imagem audiovisual na sua relação com os vários dispositivos do

qual ela faz parte, nomeadamente o cinema, a vídeo arte e a exposição, bem

como a relação de ambos como mecanismos de produção e de recepção das

imagens é o que nos propomos desenvolver. Na intersecção entre os

dispositivos, interessa pensar quais as forças e poderes envolvidos nos seus

elementos sociais e tecnológicos, na interacção com o ser humano, e os

modos de acordo com os quais interagem com o mundo das práticas artísticas.

Page 32: A Exposição Depois de Deleuze

25

Imagem Em Movimento

Tomamos, neste texto, o dispositivo da imagem em movimento no seu sentido

mais lato: o dispositivo como produção de imagens em movimento, perceptos

e visibilidades, as relações sociais e estéticas que dela resultam. Se por um

lado o aparelho tem a função de produzir imagens, estas produzem perceptos,

visibilidades que entretêm em si relações entre signos, entre movimentos e

entre tempos correspondentes a diversos mundos diferentes. Distinguimos,

por isso este dispositivo de outros dos quais ele é um elemento constituinte,

dispositivos como o cinema, a televisão e o computador, que enquadram

diferentes lógicas, poderes e controlos na relação com os sujeitos. Não se trata

de os excluir, mas de se compreender que a imagem audiovisual funciona aqui

como um dispositivo de mediação que, através das suas condições, permite

relações entre dispositivos de diferentes funções.

A evidência é que a imagem audiovisual não é apenas produzida com

recorrência a instrumentos, são os instrumentos que, em grande parte, a

produzem, de acordo com processos e condições de reprodução tão

mecânicos e digitais quanto estéticos. Nas várias constituições dispositivas e

que interagem, os instrumentos da imagem-movimento estabelecem linhas de

poder e subjectividade que os relacionam com o nível visual e estético da

imagem, com a identidade do espectador, assim como com uma realidade

sociopolítica e histórica.

Mas a tecnologia não se refere apenas a um conjunto de instrumentos usados

para produzir algo. Isto porque a produção tecnológica não deixa de ser

produção humana. Para Phillipe Dubois, a tecnologia tem um carácter trans-

histórico, remontando à noção clássica de Techné que, sendo no seu âmago

instrumentalista, é, ao mesmo tempo, indissociável de regras e saberes,

válidos para a produção de objectos, belos ou úteis, e que podem ser materiais,

mas também intelectuais e estéticos. A tecnologia é, acima de tudo, “uma arte

do fazer humano” (Dubois, Cinema, Vídeo, Godard, 2004, p. 32).

Page 33: A Exposição Depois de Deleuze

26

Como tal, Dubois sugere que todas as imagens visuais nascem de bases

tecnológicas. Requerem instrumentos, regras, condições de eficácia e, acima

de tudo, gestos e saberes. A tecnologia interpõe-se, assim, entre o homem e

o mundo, sendo que a construção dos significados é regulada pelas regras da

produção das imagens.

No caso das artes tradicionais como a pintura ou a escultura, um investimento

físico e mental do artista é transformado em imagem de acordo com

intensidades correspondentes às suas especificidades pessoais, através de

instrumentos, procedimentos e processos próprios ao médium trabalhado.

A imagem fotográfica e a imagem audiovisual partem, no entanto, de um

contexto substancialmente diferente do da arte tradicional. Dada a sua

tecnologia, a imagem é produzida a partir de uma génese automática (Dubois,

Cinema, Vídeo, Godard, 2004, p. 38) que exclui as técnicas tradicionais em

função dos processos dos seus elementos técnicos. A produção passa da mão

para o olho, redefine os paradigmas em volta do gesto e do olhar, em relação

com as possibilidades automáticas da lente de selecção dos enquadramentos

e de organização temporal da montagem. Ao produzir imagens

correspondentes à realidade captada pela câmara, rompe com a ordem da

figuração tradicional e ganha uma nova relação entre o sujeito e o real.

Dubois desdobra o dispositivo audiovisual em cinco ordens ou estratos

diferentes, que respondem tanto não tanto aos instrumentos como a processos

que eles operam, nas suas relações estéticas e sociais: captação, inscrição

projecção/recepção, transmissão e, por fim, a imagem informática.

Em cada uma das ordens o autor apresenta questões que influenciam a

imagem no seu nível tecnológico e estético, a relação dos dispositivos que

compõe com o ser humano e o conceito de realidade que deles deriva.

As primeiras duas ordens, captação da imagem e a sua inscrição num suporte

fotossensível unem a fotografia e o cinema. Estes processos confirmam, desde

logo, dois dos sintomas da tecnologia moderna e industrial.

Page 34: A Exposição Depois de Deleuze

27

Em primeiro lugar, ao reproduzir imagens automáticas do mundo, a captação

transforma os modos de ver a realidade e a representação na imagem,

“passamos de um efeito de realismo (da ordem estética da mimese) a um efeito

de realidade (da ordem da fenomenologia do Real)” (Dubois, 2004, p. 51), a

imagem “provém por sua génese da ontologia do modelo: ela é o modelo.”

(Bazin, 1991, p. 24). Como afirma Bazin,

A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua

objetividade essencial. (...) Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua

representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira

vez uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a

intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo.

(Bazin, 1991, p. 22)

Passamos da representação da realidade à questão da sua essência, da

estética à semiótica, com uma redução dos critérios de representação e uma

maior preponderância dos vestígios e dos índices.

Em segundo, cada reprodução, fotográfica ou audiovisual é também uma

tecnologia de armazenamento, é informação, memória, tempo cristalizado. A

imagem audiovisual inclui na reprodução o tempo, na forma de duração e

temporalidade dos objectos captados: “O filme não se contenta mais em

conservar para nós o objecto lacrado no instante, como no âmbar o corpo

intacto dos insetos de uma era extinta” (Bazin, 1991, p. 24). Para Friedrich A.

Kittler, o armazenamento e a reprodução do fluxo temporal da informação

audiovisual transformam mais o estado da realidade que a reprodutibilidade da

fotografia. Isto porque, ao reproduzir os movimentos no tempo a imagem

audiovisual se impõe ao espectador, guiando o seu olhar, “olhos e ouvidos

tornaram-se autónomos” (Kittler, 1999, p. 3).

Page 35: A Exposição Depois de Deleuze

28

A câmara e o tempo, no cinema, criam como que um novo sujeito que substitui

o espectador e o guia, um sujeito que através da montagem se torna

psicológico, nas palavras de Deleuze, um autómato espiritual cinematográfico.

Tal acontece também devido às condições específicas da recepção, terceira

ordem deste dispositivo. À produção da imagem pelo olhar da câmara com o

controlo do cineasta, junta-se um dispositivo de recepção que une o ecrã ao

espectador.

Numa sala de cinema a projecção da imagem numa tela grande, a posição pré-

definida do público numa escuridão que apaga a sensação do espaço,

privilegiam a imagem e escondem o aparelho, favorecendo um estado de

imersão sensorial e facilitando uma hipertrofia do olhar. Ocorre uma expansão

da percepção, mas só em relação ao movimento das imagens e possibilita um

“investimento do imaginário” (Dubois, 2004, p. 44). Este investimento agencia

linhas de poder, no aspecto perceptivo, entre a imagem audiovisual e o

espectador: a imagem audiovisual sobrepõe o seu fluxo e o focos do seu

movimento aos do pensamento do espectador; ao mesmo tempo, como Hito

Steyerl salienta, a sala de cinema organiza-se com um espaço de

confinamento, de controlo temporal (The Wretched of the Screen. E-flux

Journal, 2012, p. 67).

A televisão introduz novas camadas no dispositivo audiovisual. É tornada

possível pelo surgimento do vídeo (imagem eletrónica ou digital), e por

diferentes dispositivos de recepção, ecrãs e monitores. A imagem torna-se

independente da sala de cinema estende-se ao uso doméstico. A sua

especificidade tecnológica, a quarta ordem do dispositivo, é a transmissão, a

emissão instantânea da imagem e a possibilidade da sua visualização

simultânea, e em tempo real.

Com a inauguração do vídeo, ou seja, de imagens electrónicas e digitais, este

estrato do dispositivo cria novas condições de produção e visualização. Ele

adquire uma forma mais extensiva do que intensiva, visto que a sua lógica está

mais relacionada com a propagação e simultaneidade da recepção de

Page 36: A Exposição Depois de Deleuze

29

informação, “ela abre a porta à ilusão (simulação) da co-presença integral”

(Dubois, 2004, p. 46).

Em contraste com o filme, as imagens produzidas pela camara de vídeo são

instantaneamente reproduzidas no monitor, que segundo Krauss (Krauss,

1976) providencia uma estética narcisista que se exprime com processos de

reflexividade, como se de um espelho se tratasse. Entre câmara e monitor, os

objectos são “centrados como que entre o abrir e fechar de um parêntesis”

(Krauss, 1976, p. 52) que se manifesta como um “colapso do presente”

(Krauss, 1976, p. 53) que surge o rompimento do tempo presente com o seu

sentido de passado. Seguindo esta perspectiva, Christine Ross explora, em

The Temporalities of Video, o modo como as circunstâncias económico-sociais

e tecnológicas do vídeo e dos media digitais articulam uma espacialização do

tempo que corrói os delongamentos da temporalidade que anulam a sua

existência como intervalo e duração (Ross, 2006, p. 85)

No último estrato do dispositivo, que se refere à imagem informática, todos os

anteriores elementos tornam-se processos do próprio computador. A ideia de

representação perde sentido. Enquanto que os outros sistemas pressupunham

uma relação entre a imagem e o Real, o objecto e a sua representação, a

imagem informática contem em si, apenas, o seu próprio real, “não há nada

além da máquina, que cobre todo o processo e exclui tudo o mais” (Cinema,

Vídeo, Godard, 2004, p. 48) Dubois considera-a, por isso, uma máquina de

concepção (Cinema, Vídeo, Godard, 2004, p. 47). A relação entre o sujeito e o

dispositivo, segundo o autor, consiste na relação entre o programador e o

executante de um programa. Sugere-se que a imagem informática possa, no

entanto, representar um retorno ao trabalho do sujeito criador das artes

tradicionais, só que neste caso a mão do artista existe também de acordo com

uma vasta gama de processos informáticos que implicam muitas outras formas

e cruzamentos de informação.

Page 37: A Exposição Depois de Deleuze

30

Exposição

O espaço expositivo é um dispositivo que integra um vasto conjunto de

elementos históricos, artísticos, políticos e institucionais. Todos estes

elementos são unidos no espaço da galeria.

Boris Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018) afirma que a exposição

implica a desterritorialização dos objectos e das imagens que incorpora. Assim

como as reproduções audiovisuais retiram uma obra do seu contexto material,

a exposição retira-a do contexto espácio-temporal original. Uma exposição cria

um novo “aqui e agora” da obra de arte, uma nova estrutura de forças espaciais

e temporais, de relações entre objectos e pessoas através do espaço, e

através do olhar que esta interligação propõe.

É o caso da entrada da imagem audiovisual e do cinema no território da arte

contemporânea e no espaço da galeria. Thomas Elsaesser (Ingmar Bergman

in the museum? Thresholds, limits, conditions of possibility, 2009) dá duas

razões para esta migração: a adopção do dos dispositivos do filme e do vídeo

pela arte. Obras de videoarte e instalações desterritorializam os próprios

dispositivos originais do cinema e da televisão ao criar perceptos e novas

sensações e formas de pensar, através de disrupções e transformações das

configurações das máquinas e das propriedades da imagem; o próprio cinema

atingiu uma idade em que já é possível fazer exposições numa vertente mais

analítica, sobre a sua história e os efeitos sociais sociais, ou mesmo sobre a

obra e vida de realizadores conceituados. Em suma, o museu pode tanto

funcionar como um espaço que permite abordagens artísticas que usam o

dispositivo audiovisual fora da sala de cinema, como um espaço de arquivo

que retira os filmes da sala de cinema para os estudar de acordo com novas

regras e novas formas de visionamento. Filmes tradicionais podem ser

fragmentados de modo a que certos pormenores cinematográficos se tornem

independentes e adquiram novas formas de significado.Várias exposições

juntam, também, o dispositivo audiovisual com obras de diferentes media.

Page 38: A Exposição Depois de Deleuze

31

Deste modo, sala de cinema e a sala de exposições servem como dispositivos

visuais de apresentação, capazes de fornecer experiências temporais

espaciais específicas. Seguem, no entanto, ordenações arquitectónicas que

apontam para ontologias diferentes, tanto a nível institucional como filosófico

(Elsaesser, 2009). O cinema é uma arte de proscénio, constitui, por isso, um

espaço uniforme, baseado no alinhamento entre a tela, e o projector. e na

distância do espectador em relação à imagem. Implica também a escuridão

em relação à iluminação da tela, que projecta um efeito de descorporização do

espectador e de anulação do espaço. A sala de exposições, por sua vez,

trabalha o espaço, organiza-o em torno das relações entre as obras, o que

exige uma relação diferente com a luz, e com os limites do espaço, mas

também com a própria presença dos dispositivos imagéticos.

No espaço da exposição, Elsaesser diz, a apresentação da imagem

audiovisual funde-se com a da instalação, no sentido em que o espaço se junta

à temporalidade da obra. Obras de vídeo instalação têm um carácter

tridimensional fortemente escultórico, e daí a importância do espaço que

ocupa. Visto como instalação, o lado tecnológico do dispositivo ganha uma

nova importância. Enquanto no cinema o dispositivo permanece escondido no

processo de projecção, na exposição deixa de ter uma função única de

produzir imagens audiovisuais, e torna-se ele próprio imagem actual da obra.

A exposição oferece inúmeras possibilidades espaciais a diferentes invenções

visuais, como telas múltiplas ou transformadas, projecções em locais

inesperados, na parede, no tecto ou no chão, diferentes configurações dos

aparelhos, sequencializações das imagens nas paredes, monitores embutidos,

etc.

Mas o mesmo acontece com as obras, videoarte e filmes apresentados em

black box, na medida em que a distância para com a tela ou o ecrã é apagada

pela liberdade posicional do espectador. Ele pode aproximar-se ou distanciar-

se, ver a imagem na sua representação ou os movimentos micro, pormenores

que fundem a imagem com a textura da tela, com o grão da imagem ou com o

varrimento de pixéis.

Page 39: A Exposição Depois de Deleuze

32

Ao apresentar dispositivos mecânicos e representativos, permitindo diferentes

pontos de vista das imagens, uma exposição que integre o cinema e a

videoarte tem sempre um carácter meta-cinematográfico. Como Elssesser diz:

Todos os actos e objectos são simultaneamente eles próprios e aquilo que

eles expressam e, como tal, o museu conhece o cinema melhor do que o

cinema se conhece a si próprio, ou antes: o museu força o cinema a ser

ele próprio, a tornar-se mais como ele mesmo é.

(Ingmar Bergman in the museum? Thresholds, limits, conditions of

possibility, 2009)

O encontro entre o cinema e o museu traz, portanto, novos tipos de situações,

que dissociam o dispositivo audiovisual dos seus espaços originais e

proporcionam um encontro com novas formas activas de ver e experimentar a

imagem. Entre as duas instituições entrelaçam-se mecanismos, discursos e

formas de ver que dão origem a novas formas de pensar a imagem. Neste

sentido, a presença da imagem audiovisual na exposição, transforma a própria

natureza do museu ao introduzir nela novas camadas de tempo, e ao mesmo

tempo reconfigura o espaço cinematográfico, consciencializando o espectador

da natureza da exposição e das máquinas audiovisuais.

Na exposição, sugere Elssaesser, cada obra obriga a uma redefinição do

espaço do espectador, assim como a forma como a imagem em movimento é

exposta, tendo em conta os seus suportes e superfícies, e a relação com o

espaço que faz a totalidade da exposição (Ingmar Bergman in the museum?

Thresholds, limits, conditions of possibility, 2009). Enquanto no cinema os

olhos se movem e o corpo fica imóvel, a galeria pode ser comparada a um

caminho, ou um labirinto, no qual o espectador pode deambular. Estas

diferenças requerem modos de atenção, modos de olhar e de sentir o tempo

próprios, que actuam na subjectivação do espectador. Se a sala de exposição

oferece já vastas possibilidades de experiência (olhar uma pintura requer um

exercício diferente do de olhar uma escultura), a imagem em movimento

Page 40: A Exposição Depois de Deleuze

33

adiciona uma nova exigência, relativa ao tempo: requer uma duração, e uma

temporalidade independente, que retira ao espectador o poder de controlar o

seu tempo, se quiser ver a totalidade da obra.

Estas diferenças recaem também na identidade do espectador enquanto

sujeito colectivo. Para Hito Steyerl (The Wretched of the Screen. E-flux Journal,

2012, p. 67) a diferença entre o espectador do cinema e o do museu está na

diferença entre massa e multiplicidade. O espaço de confinamento do cinema

é temporalmente controlado e uni-focal, uma única projecção da imagem na

tela. Os espectadores, sentados, são todos igualmente dirigidos pela mesma

imagem. Já a galeria é um espaço multi-focal, de dispersão, que compreende,

em vez de uma massa homogeneizada pelo olhar, uma multiplicidade que

escolhe o seu próprio caminho e se espalha pelo espaço, montado a sua

própria experiência espácio-temporal entre fragmentos de atenção e

distracção.

Máquinas de Imagens

É de relevar o jogo de dinâmicas que Dubois confere ao termo “máquina de

imagens”, expressão de notória influência Deleuziana. De acordo com o autor

todos os elementos do dispositivo correspondem a máquinas: máquinas de

pré-visão (captação), de registo e inscrição, máquinas de visualização

(recepção), são uma primeira linha da produção audiovisual. Dubois descreve

um mecanicismo da imagem, e estabelece-o num eixo entre maquinismo e

humanismo, sendo que cada ordem deste dispositivo acentua a hegemonia

crescente das máquinas técnicas sobre o ser-humano enquanto espectador.

Mas não é apenas na técnica que as imagens se produzem, assim como o que

elas produzem não é somente técnico, “ o cinema é tanto uma maquinação

(máquina de pensamento) como uma maquinaria, tanto uma experiência

psíquica quanto um fenómeno físico-perceptivo” (Cinema, Vídeo, Godard,

Page 41: A Exposição Depois de Deleuze

34

2004, p. 44). Surgem, então, outras classes de máquinas cinematográficas,

máquinas figurativas, de representação, máquinas de imaginário e máquinas

de pensamento, que provocam um investimento psicológico e afectivo no

espectador.

Todos estes mecanismos e automatismos produzem muito mais do que

imagens no sentido técnico da palavra. O dispositivo da imagem audiovisual é

produtor de imagens, mas também de significações, de afectos e de choques

que forçam o pensamento, assim como o espectador produz os seus próprios

afectos e pensamentos de acordo com a sua experiência. Surgem pontos de

referência e centramentos, mas também pontos de fuga aos mecanismos dos

dispositivos em todos os seus níveis técnicos, intelectuais e estéticos. O que

define a sua a relação são os investimentos contínuos que as máquinas fazem

umas sobre as outras, criação e circulação heterogénea em que a produção

só se contenta continuar os fluxos desencadeados. Entramos no reino das

máquinas desejantes de Deleuze e Guattari:

Nas máquinas desejantes funciona tudo ao mesmo tempo, mas em hiatos,

rupturas, avarias e falhas, intermitências e curto-circuitos, distâncias e

fragmentações, numa soma que reúne as partes num todo.

(O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004, p. 45)

O sentido da noção de Deleuze e Guattari isola a máquina técnica das suas

funções e condições de origem. Os elementos do dispositivo que formam a

imagem audiovisual nas suas várias variantes não se sobrepõe nem se

substituem. Ligam-se uns aos outros, produzem fluxos num contínuo processo.

O que delimita a sua produção são ímpetos, desejos. Os autores falam de um

modo muito específico do desejo, não o colocam na ordem da necessidade ou

da falta. Como processo filosófico, o desejo é sempre reconduzido à produção,

ou seja, é o ímpeto como modo de produção que garante toda a produção

restante. As máquinas desejantes produzem sempre mais produção:

Page 42: A Exposição Depois de Deleuze

35

... produção de produções, de acções e reacções; produções de registos,

de distribuições e pontos de referência; produções de consumos, de

volúpias, de angústias e dores.

(Deleuze & Guattari, 2004, p. 9)

Nesta perspectiva, a produção não é feita de acordo com as funções e

significados que o constituem, mas o inverso. Elas são distribuídas e

consumidas no próprio processo de produção.

O modelo da natureza humana na sua relação com esta noção de desejo

passa a ser a fábrica, um inconsciente-fábrica repleto de todo o tipo de fluxos

que nascem do desejo, e que não são representações, mas produções de

realidade, “efeitos de máquinas e não metáforas” (Deleuze & Guattari, 2004,

p. 7).

A indústria deixa assim de ser entendida numa relação extrínseca de

utilidade para o ser na sua identidade fundamental com a natureza como

produção do homem e pelo homem.

(Deleuze & Guattari, 2004, p. 10)

A arte e a exposição evidenciam a realidade maquínica dos dispositivos, o

processo de produção primária do real que define as máquinas desejantes, a

transparência dos seus intervalos, dos seus cortes, das suas disrupções. “As

máquinas desejantes só funcionam avariadas, avariando-se constantemente”

(Deleuze & Guattari, 2004, p. 13). Liberta as máquinas-orgãos das suas

finalidades e funções, em prol de uma infinita produção intensiva.

Este modelo pode ser visto como uma das razões pelas quais Hito Steyerl (The

Wretched of the Screen. E-flux Journal, 2012) explora, também, o museu como

Page 43: A Exposição Depois de Deleuze

36

fábrica, numa vertente política e estética. Ela refere a adaptação de antigas

fábricas a museus, que cria relações e devires na identificação do seu estatuto

político e social, assim como a permanência do carácter produtivo dos seus

processos.

Segundo a autora, o museu continua a ser um local de produção. Produção e

construção de espaço ao trabalhar a sua arquitectura flexível; produção de

imagens, estilos e valores, que podem ser expositivos, comerciais ou de culto;

produção de entretenimento, visões e afectos. Apresenta-se, deste modo,

como uma indústria cultural, e social que transforma tudo o que inclui em

cultura.

A produção efectuada é maioritariamente intensiva. Ao convocar o olhar e os

sentidos do espectador, Steyerl diz-nos que a exposição impulsiona as

faculdades estéticas e as práticas imaginativas dos espectadores,

transformando-os em trabalhadores (The Wretched of the Screen. E-flux

Journal, 2012, p. 65).

O sentido de uma Exposição

Voltando um pouco no tempo, eu definiria épistémè como o dispositivo

estratégico que permite escolher, entre todos os enunciados possíveis,

aqueles que poderão ser aceitáveis no interior, não digo de uma teoria

científica, mas de um campo de cientificidade, e a respeito do que se

poderá dizer: é falso, é verdadeiro. É o dispositivo que permite separar não

o verdadeiro e o falso, mas o inqualificável cientificamente do qualificável.

(Foucault, 1998, p. 247)

Segundo Boris Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018), o carácter

tecnológico e artificial da exposição não só interage com, como reflecte a

Page 44: A Exposição Depois de Deleuze

37

natureza da relação entre o ser humano e a tecnologia. Dessa forma propõe

que uma exposição deve ser entendida como a apresentação de uma

apresentação, no sentido em que, como dispositivo de apresentação de arte,

possibilita a reflexão das próprias estratégias, hierarquias e escolhas

curadoriais que fundam as relações entre os objectos/imagens no espaço da

galeria e entre os objectos e o contexto geral da exposição. Groys estabelece

um papel de génese da verdade na exposição de acordo com estratégias, e os

modos de ver como acesso às mesmas. Assim, uma exposição exibe-se a si

mesma e, desta forma, a sua técnica e a sua ideologia.

O Dispositivo constitui uma rede de forças de poder, de acordo com estratégias

funcionais que, nos seus processos de consistência e de génese, se refere à

forma como uma racionalização pode ser qualificável cientificamente. Uma

exposição pode ser, desta forma, qualificável, porque coloca os seus

elementos numa relação entre campos de estudo sociais, políticos, filosóficos

e tecnológicos associados a epistemologias e ontologias da arte, obtendo um

sentido pela imanência dos seus elementos, num plano que deve ser

considerado científico.

É nesta perspectiva que Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018) evoca

o conceito de Gestell, de Heidegger, como referência aos processos da

tecnologia/técnica moderna na construção de realidade, para explicar que o

ser o humano constrói a sua relação com o mundo através de enquadramentos

que permitem uma ordem dos objectos por parte dos sujeitos. Segundo o autor,

se o dispositivo permanece oculto na familiaridade das relações, a exposição

opera uma revelação ao construir ordens que rompem com os contextos

prévios: a exposição permite que os objectos possam ser “vistos como

imagens”, e entendidos segundo as estratégias que os relacionam.

Lembramos que no seu conceito, a Imagem desencadeia movimentos de

dissemelhança aboluta que escapam aos poderes e às subjectividades da

representação. Na interpenetração entre exposição e dispositivo, Groys

desenvolve uma noção tecnológica e ideológica à qual escapam os poderes

imagéticos próprios da arte, que nada têm a ver com o dispositivo da

Page 45: A Exposição Depois de Deleuze

38

exposição, apesar de sugerirem uma irredutibilidade do Dispositivo ao conceito

de Imagem.

Uma exposição implica um processo de pensamento maior do que o simples

acesso a estratégias e ideologias. Implica que essas mesmas formas de ver,

que são também processos de compreensão e de racionalização, estejam

simultaneamente incluídas na actividade produtiva do Dispositivo ao longo de

todo o seu desenvolvimento, mas também na produção maquínica de cada

espectador, que constrói a sua identidade à medida que se explora a

exposição.

Em jogo está um teste da realidade enquanto produção, um desafio à ideologia

à representação, e mesmo às sensações e aos afectos, através dos poderes

das imagens e do pensamento. O sentido de uma exposição é, primeiramente,

um problema.

Em Diferença e Repetição (2000), Deleuze explica uma noção de sentido que

não é ideológico, nem proposicional, mas sempre um problema, quando

analisado de acordo com a sua condição de verdade. Mesmo uma proposição

dada como solução a uma dialéctica constitui, ou uma interrogação que

procure uma proposição como resposta, no seu sentido, é um problema:

Toda a vez que uma proposição é recolocada no contexto do pensamento

vivo, evidencia-se que tem a verdade que merece de acordo com o seu

sentido, a falsidade que lhe cabe de acordo com os não-sentidos que ela

implica.

(Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p. 262)

No sentido, enquanto problema, substitui-se o “ponto de vista do

condicionamento pelo ponto de vista da génese efectiva” (Deleuze G. ,

Diferença e Repetição, 2000, p. 273). Para tal, “é preciso parar de decalcar os

problemas e as questões sobre proposições correspondentes, que servem ou

Page 46: A Exposição Depois de Deleuze

39

podem vier a servir de resposta” (Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p.

265).

A condição deve ser a da experiência real e não da experiência possível.

Ela forma uma génese intrínseca e não um condicionamento extrínseco. A

verdade, sobre todos os aspectos, é caso de produção, não de adequação.

(Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p. 261)

Transpondo esta noção de sentido para o Dispositivo e para a Imagem de uma

exposição, conclui-se que o seu movimento criativo não se cria quando se faz

do dispositivo uma imagem, mas quando há uma interpenetração entre os dois,

na dimensão espacio-temporal dos modos de ver como experiência real. A

experiência real não existe na criação da ideia, mas no ir e vir entre a

consciência empírica e o sentido/problema transcendental, entendido como um

processo-fluxo, uma “repetição transcendente”, em que “a impotência da

consciência empírica é aqui como que a enésima potencia da linguagem”

(Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p. 263).

Na exposição, a experiência real assume um ponto de vista prático e um

filosófico: por um lado, há a experiência real da exposição, na qual os modos

de ver empíricos se interpenetram na Imagem e no Dispositivo originando

movimentos sensitivos, íntimos e racionais na duração da experiência; por

outro, o sentido nasce no pensamento, e a sua força criadora está no devir da

consciência empírica levada ao limite.

A arte exige um processo de olhar irredutível à formação do todo da exposição.

É um acto de olhar que funda a imagem, um acto que gera um movimento e

uma duração, que não só afecta as imagens (o que aparece) mas também a

identidade do próprio projecto. Mais uma vez, o que está implicado na

fundação das imagens, é movimento e tempo, causadores de uma

transformação do processo e dos objectos. O que ultimamente interessa, em

última análise, é como exposição e espectador criam, cada um, linhas de

Page 47: A Exposição Depois de Deleuze

40

subjectivação próprias, ou seja, consigam construir no sentido da exposição

um problema no qual se poderão relocalizar enquanto sujeito no seu devir com

o dispositivo, trabalho indissociável de infinitos processos empíricos.

Imagem-pensamento e Exposição

Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018) refere duas formas de olhar na

exposição: um olhar frontal, que usamos quando olhamos uma imagem, seja

uma pintura ou uma imagem que nos permite dar conta de todos os aspectos

de um dado objecto, e um olhar de dentro, quando estamos integrados num

espaço ou quando o espaço é a própria imagem.

No primeiro caso, o espectador toma o tempo necessário para olhar cada obra

e deixa-se absorver nela. Entre cada obra acontece uma interrupção da

contemplação. A exposição constrói-se no olhar como uma sucessão de

momentos contemplativos. O segundo modo do olhar exige uma atenção da

posição específica do espectador no espaço da exposição.

Os dois modos de olhar propostos por Groys são irredutíveis um ao outro, já

que mesmo o olhar frontal é condicionado pela posição do espectador diante

de uma obra. O autor refere o aspecto fragmentário do olhar porque, por um

lado, na condição da sua posição e da sua perspectiva, é impossível visualizar

a exposição no seu todo, e por outro porque cada trajectória é irreproduzível.

No entanto, experienciar o todo de uma exposição não se completa na

percepção. As livres deambulações do visitante de um museu transformam-no

num espaço tanto físico como mental. A exposição constitui-se também no

pensamento, por imanência sensível, recognitiva, material e conceptual. Cabe

ao espectador fazer uma espécie de montagem entre espaços e obras, pelo

que é também temporal. Nesta perspectiva, o seu tempo corresponde, mais do

que à duração do percurso, à heterogeneidade de uma imagem-cristal em

articulação com os ritmos e experimentações do pensamento.

Page 48: A Exposição Depois de Deleuze

41

Há uma importância fundamental do corpo como parte integrante na

constituição de uma exposição. Giuliana Bruno (Surface: Matters of Aesthetics,

Materiality, and Media , 2014) propõe uma redefinição das leituras no cinema

e no museu em torno das afinidades hápticas das superfícies entre obras, e do

espaço. Sobre as exposições, ela refere:

São lugares topofílicos que nos integram no seu design psicogeográfico e

navegam as nossas histórias. Nesta interface, entre a parede e o ecrã,

espaços de memória são explorados e habitados no tempo e nas

interligações das geografias visuais, desenhando, através de acumulações

e análises, o nosso frágil lugar na história.

(Bruno, 2014, p. 159)

Em Caos e Ritmo, José Gil, descreve a relação da consciência (definida

fenomenologicamente como intencionalidade) e o corpo como uma de

imbricação, em constante combinação e mútua transformação. Esta

consciência do corpo não é a consciência do corpo como a de um objecto

percepcionado, mas uma “instância, que através do corpo, pode receber forças

do mundo, e devir as suas formas, intensidades e sentido” (Gil, 2018, p. 61).

Chegamos a um outro programa, que une a experiência do olhar em

interpenetração com o corpo e o seu mapeamento do espaço. Este modo de

experiência, que é uma “experiência experimentada”, ganha enquadramento

filosófico e no empirismo transcendental de Deleuze. Nesta perspectiva, não é

próprio do pensamento criar uma imagem, mas formar um plano de

consistência no qual o ver e a Imagem são levados ao limite das suas

capacidades. É na experiência real das faculdades e não só da imagem que

reside o potencial criativo de uma exposição.

Segundo José Gil na impregnação da consciência pelo corpo, há uma dupla

actualização: uma actualização dos movimentos corporais através do

Page 49: A Exposição Depois de Deleuze

42

pensamento, e uma actualização do movimento virtual em movimentos

corporais no espaço:

“Estar consciente de...” é, antes de mais, como aquilo de que se é

consciente se insere num contexto (numa paisagem visível); o que não se

reduz a uma constatação de existência, mas implica a compreensão de

relações que ligam uma coisa às outras e ao meu corpo. A consciência é

feita de uma textura que rapidamente se faz devir mapa.

(Gil, 2018, p. 65)

Numa exposição está em jogo a sua espacialidade, como jogo de relações de

distâncias, dimensões, texturas correspondentes aos dispositivos que a

compõem, mas também o elemento histórico e estético de cada objecto. Entre

o espaço e as formas de olhar, a intervenção do corpo exerce-se através da

recepção de percepções espaciais e do agenciamento que essas mesmas

percepções possibilitam. José Gil defende a necessidade de “abrir o corpo”, ou

seja, “fazer passar o corpo para o primeiro plano da consciência” (2018, p. 63).

José Gil fala em movimentos de forças e pequenas percepções, entre o corpo

e a consciência numa relação entre os dois que possibilita a transformação das

percepções em energias e movimentos do pensamento, assim como os

movimentos do pensamento relançam/agenciam actualizam as forças,

metamorfoseando a relação entre a o ser e o espaço.

Também não se pode negar o papel do corpo nas relações indivíduo/colectivo

na sala de cinema. A maneira como a nossa percepção de um filme é

subtilmente afectada pelas pessoas que nos acompanham de formas, por

vezes, desconcertantes, por vezes ternamente enriquecedoras, supõe uma

condição espacial da sala de cinema, mesmo que esta condição suponha uma

impotência do dispositivo.

Podemos então falar de um duplo processo da experiência de uma exposição:

um caminho no qual o olhar monta fragmentos numa linearidade temporal e

Page 50: A Exposição Depois de Deleuze

43

espacial, mas também uma experiência, que se pode dizer corporal, em que a

sensação de espaço se une à visão e constrói as relações entre as imagens,

recriando o todo da exposição, assim como o próprio espectador.

A experiência experimentada de um espectador deleuziano na sua relação

com uma exposição entra no domínio da construção do Corpos sem Órgãos

(Deleuze & Guattari, 2007). Constrói-o na medida em que “abre o corpo” à

exposição, ou seja, faz um mapeamento perceptivo e cognitivo do espaço e

das obras, e faz circular forças e intensidades, racionais, perceptivas e

afectivas entre elas.

Abrir o corpo, numa exposição, é entrar em devir com as obras, com a arte, e,

por conseguinte, fazer dele, tal como do ser, imagem. Sai de si e cria novas

identidades a partir do sentir e, por sua vez, consequentes linhas de fuga na

experiência real do pensamento construído. Não é uma questão de

subjectividade, nem de interpretação, mas do seu sacrifício através da

experimentação de movimentos e intensidades que só podem ser definidas

como algo completamente novo.

A construção de uma experiência experimentada envolve um paradoxo:

provoca-se uma ruptura, criando o caos para sair do caos. Sai-se do caos

fazendo nascer uma visão, e a formação da visão, que põe em perspectiva

o pensamento, não constitui mais do que o resultado da experiência

experimentada.

(Gil, 2018, p. 203)

Para exemplificar a potencial complexidade de se experienciar uma exposição,

evoco duas exposições apresentadas recentemente no Museu de Arte

Contemporânea de Serralves cujo médium principal é a imagem em

movimento. São elas Tacita Dean (2019), conceptualizada pela própria e por

Page 51: A Exposição Depois de Deleuze

44

Marta Moreira de Almeida, e Pedro Costa: Companhia (2018-2019),

coordenada por Filipa Loureiro e Marta Almeida e com a arquitectura de José

Neves. Esta escolha é motivada pelo facto de se desafiarem temas e sentidos

curadoriais e pela relevância das duas exposições para o desenvolvimento do

meu pensamento sobre a experiência estética.

A exposição de Tacita Dean, orienta-se em torno do filme Antígone (2018. Esta

obra díptica, constituída de duas projecções na mesma tela, aborda o caminho

que Antígona e Édipo percorrem entre Rei Édipo e Édipo em Colono, peças da

famosa trilogia tebana de Sófocles. A exposição inclui dois outros projectos

fílmicos, The Story of the Beard (1992) e Boots (2003), projectados em salas

com o formato de Black Box, e recorre, também, a outros médiuns que

formalizam o pensamento artístico de Dean, inseridos nos espaços do corredor

como caminhos que levam aos filmes e estruturam a base conceptual da

exposição. Salientam-se Femme à Barbe (2019), um conjunto de 12 postais

de mulheres barbudas que a artista encontrou e intervencionou recentemente

para apresentar The Story of Beard, e Oedipus, Byron, Bootsy (1991), um

pequeno desenho dos pés das respetivas personagens, que viriam a tornar-se

um ícone nos trabalhos futuros da artista, situado à entrada de Boots, s

fotogravuras de T&I (2006) e os seus trabalhos de giz em tinta de ardósia,

Sixteen Black Boards ( 1992), The Montafon Letter (2017) e Chalk Fall (2018).

Todas as obras reflectem temas que a artista tem explorado e incorporado ao

longo dos anos: Antigone, nome da irmã da artista, e Édipo, que significa “pé

coxo” são elementos que Dean metaforiza, por ter tido artrite reumatóide que

a deixou manca, e dão origem a uma complexidade temática que ela alia à

temporalidade do filme e a símbolos imagéticos que se tornaram parte de si

mesma. Tacita Dean parte da catástrofe do ser para criar as suas obras,

sugerindo que é nos constantes processos entre pensamento, sensibilidade e

prática, que a identidade toma real valor.

É na sua prática e na sua forma de relacionar os universos do real e da ficção

e de os pôr em diálogo, que Dean impõe o seu ser pessoal e artístico, de uma

forma completamente singular. E não é por acaso que são fraquezas como o

coxear e a “cegueira” que a artista liga ao universo ficcional do teatro grego.

Page 52: A Exposição Depois de Deleuze

45

Dean trabalha de uma forma alquímica, percebe que o ser, mesmo no mundo

actual, é uma ficção que só se atualiza no mundo a partir da adaptação ao

movimento das coisas e das ideias.

Antígone é apresentado numa sala em formato de Black Box, precedida por

uma outra sala onde estão opostas em paredes paralelas The Montafon Letter

(2017) e Chalk Fall (2018), duas obras de grande porte realizadas em giz sobre

tinta de ardósia que representam paisagens montanhosas, recortadas por

notas. A grandiosidade da paisagem negra, fantasmática quase transparente,

relacionada com os espaços filmados em Antigone, cria uma espacialização

que funciona como um percurso que culmina no filme. O resultado é o

contraste entre dois espaços de diferentes exigências: o caminho de livre

navegação e divagação espacial que forma o museu; o espaço

cinematográfico em que a experiência é regida não só pela duração das obras,

mas também pelas temporalidades e modos de ver que ela impõe. A relação

entre os dois espaços não é mais metafórica do que processual, é a relação

de uma suspensão entre dois modos de experienciar igualmente importantes,

e é na passagem de um para o outro que podemos reconhecer os processos

pelos quais Dean adquire uma presença realmente estética.

Não é apenas um percurso físico, mas também virtual, no qual o deambular do

espectador se une à viagem de Édipo e Antigona, assim como à viagem da

artista no seu pensamento artístico. Dean devém Édipo e Antígona, não só

cada uma das personagens, mas a dialéctica entre as duas. Este é um devir

que penetra no espectador e na temporalidade das várias formas de

contemplação que as obras e o percurso sugerem. A experiência é reforçada

no caminho de volta, após a visualização do filme. A imagem é indissociável

do espaço e do tempo da deambulação e do pensamento. Não é apenas um

caso de subjectivação, é um caso de devir entre sujeitos e objectos, entre as

temporalidades da experiência, as temporalidades do pensamento e as

temporalidades do filme. É um caso de imanência a partir da qual se cria o

germe para que novos devires se efectuem pelo e no espectador.

Page 53: A Exposição Depois de Deleuze

46

Pedro Costa: Companhia constitui uma de reunião íntima que une imagens e

figuras trabalhadas desde sempre pelo realizador com obras de expressões

artísticas, de pinturas a esculturas, desenhos, fotografias, livros e outros

documentos. Entre os nomes destacados como importantes na vida e trabalho

de Pedro Costa estão Robert Bresson, Danièle Huillet, Jean-Marie Straub,

Chantal Akerman, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff

Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max

Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis e Rui Chafes.

Mais do que uma colecção de influências, esta exposição cria um universo que

liga arte com política da mesma forma que liga o privado com o social. As

personagens dos seus filmes, não-actores cuja realidade se funde com a

ficção, são as criadoras desta exposição, assim como o são dos filmes de

Pedro Costa, afectando de forma assombrante todas as obras com as quais

interagem. Em vez de mostrarem os conflitos assentes nas relações entre

pobreza e burguesia que por norma circulam no mundo da arte, estas figuras

contagiam todo o espaço através do movimento e da temporalidade das

imagens. Desta forma a exposição enfatiza uma das principais características

do Cinema de Pedro Costa, a de unir as situações sociais aos meios formais

da imagem cinematográfica, “trata-se de assinalar a proximidade da arte com

as formas em que se afirma uma capacidade para a partilha ou uma

capacidade partilhável”. (Rancière, 2012, p. 174). Como António Guerreiro

afirma, estas personagens “não são função de outra coisa, não representam

papéis, não são símbolos; são presenças expostas, corpos dotados de

imanência política” (Guerreiro, 2009, p. 205), presença que estabelece a

misteriosa presença das obras que acompanham estas personagens.

Um aspecto singular desta exposição na sua relação com o cinema, é que a

remodelação do espaço e a tinta negra das paredes que imitam a sala de

cinema anulam as condições perceptivas do espaço, criando um labirinto

informe, privado e íntimo que favorece relações de proximidade entre as obras

e das obras com o espectador. Neste espaço, a presença das personagens e

dos espaços filmados por Pedro Costa afecta todo o resto da exposição com

o som e com a temporalidade das imagens. Tal é bem evidenciado numa das

Page 54: A Exposição Depois de Deleuze

47

salas, As Filhas do Fogo (2013), um conjunto de telas penduradas que

apresentam as personagens femininas de A Casa de Lava coordena-se

espacialmente com As Tuas Mãos (1998-2015), de Rui Chafes. O movimento

ondulante dos cabelos das personagens, como a temporalidade inscrita no seu

olhar interpenetram-se nas esculturas criando, entre as duas obras, um espaço

singular de mistério que liga as personagens e os temas dos filmes de Pedro

Costa com as texturas e linhas do ferro negro trabalhado de Rui Chafes.

No entanto, as condições espaciais de uma exposição permitem uma relação

muito mais profunda com o espectador. Alto Cutelo (2012), de Pedro Costa,

obra apresentada nesta exposição, é constituída por dois ecrãs em oposição

que contrapõem imagens do filme Sweet Exorcism (2012), e apresentam uma

das personagens principais dos seus filmes, Ventura, com imagens de um

vulcão provenientes de A Casa e Lava (1994). Ventura apresenta-se numa

imagem que se pode dizer pura imagem-afecção na qual se sente uma

presença tensa destruída, e ao mesmo tempo majestosa dado o tamanho da

tela e a proximidade que ela implica no espaço, oposto a uma paisagem que é

ao mesmo tempo uma imagem-percepção, e forma com a outra uma imagem-

recordação relativa ao país de origem da personagem. As dicotomias que

compõe a virtualidade da imagem são inúmeras: um encontro entre filmes

diferentes do mesmo realizador, entre uma personagem e o seu passado,

entre contextos territoriais distantes, entre precariedades, entre as presenças

do ser humano enquanto objecto a ser subjectivado na intersecção entre dois

espaços audiovisuais, etc. Aqui, pensar uma imagem é pensar a outra. É

necessário olhar cada imagem enquanto se desenvolve uma consciência

espacial da outra, de acordo com a temporalidade necessária. O espectador

devém o ecrã escondido por detrás das suas costas. A sua posição, enquanto

olho e corpo que se abre é intersecção imediadora entre ambos os ecrãs, de

acordo com o tempo objectivo das imagens e com o tempo necessário ao

espírito para que a sua actividade se efectue numa metamorfose das imagens

e do espectador.

Page 55: A Exposição Depois de Deleuze

48

Page 56: A Exposição Depois de Deleuze

49

3. Curadoria e Corpo sem Órgãos Corpos sem Órgãos

É notável a influência da prática literária de Artaud, nos diversos aspectos da

filosofia de Deleuze. Em Diferença e Repetição, o filósofo aborda através das

cartas trocadas entre um jovem Artaud e o editor Jacques Rivière, nas quais o

poeta expõe uma terrível angústia relativa aos seus poemas relativa a um

sentimento de recusa do próprio pensamento nos momentos de escrita. Nelas

Deleuze denota duas perspectivas sobre as dificuldades do pensar, cujo

antagonismo percorre todo o seu trabalho. A ideia que Rivière apresenta é a

de uma dificuldade feliz, baseada nos métodos e nas técnicas e cuja

ultrapassagem permite a orientação do pensamento em direcção à construção

da identidade própria, ao “ideal do eu no pensamento puro” (Deleuze G. , 2000,

p. 251). O esforço de tranquilização de Rivière surge, no entanto como um mal-

entendido. As dificuldades a que Artaud se refere são de uma ordem essencial

da estrutura do pensamento, não são pessoais, nem circunstanciais, mas

gerais e ontológicas, e remetem, desde logo, para uma destruição da imagem

dogmática e metódica entendida por Rivière, para um pensamento sem

imagens que não se deixa representar. Como Blanchot refere,

O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão

e o rasgão, a intermitência e a privação corrosiva: o ser não é o ser, é essa

falta do ser, falta viva que torna a vida desfalecente, inapreensível e

inexprimível, excepto através do grito de uma feroz abstinência.

(Blanchot, 2018, p. 52)

O problema de Artaud é o de “chegar, sem mais, a pensar alguma coisa”

(Deleuze G. , 2000, p. 251). Esta impossibilidade traduz-se, simultaneamente,

numa dor e num ímpeto, num pensamento fundado por uma exterioridade

Page 57: A Exposição Depois de Deleuze

50

absoluta que, por sua vez, obriga a pensar. Artaud “sabe que há um acéfalo

no pensamento, assim como um amnésico na memória, um afásico na

linguagem, um agnóstico na sensibilidade” (Deleuze G. , 2000, p. 252), e que

o pensamento não é, por isso, inato, mas um acto de criação que se efectua

no pensamento do próprio pensamento.

Esta dor de pensar, presente tanto nas cartas como na poesia de Artaud,

desenvencilha uma lógica “delirante”, que atravessa todo o seu trabalho, e

culmina num programa de liberação, que consiste na construção do Corpo sem

Órgãos (CsO), corpo de uma realidade que Deleuze e Guattari tornaram

eminentemente filosófica, e que transportam para o mundo produtivo das

máquinas desejantes. Neste caso, como os autores explicam, ele já existe,

mesmo antes de ser construído, é o plano de imanência do desejo, onde as

máquinas distribuem e agenciam as suas forças e intensidades produtivas. O

CsO é produzido com e pelas máquinas, mas é um elemento improdutivo, ou

de anti-produção. As máquinas agem sobre o CsO, mas ele reage-lhes

repulsivamente. Nesta reacção de repulsa, rebate-se sobre elas, apropria-se

da produção, e ao mesmo tempo fomenta a génese das máquinas.

Como exemplificação, os autores fazem coincidir a produção desejante com a

produção social, dada a evidência de estados improdutivos e não originados

no seu seio, de “um elemento de anti-produção, um corpo pleno determinado

como socius”. Neste caso, o socius é o capital, partindo da ideia Marxiana de

que o capital “não é o produto do trabalho, mas aparece como seu pressuposto

natural ou divino” (O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004, p. 15).

Ou seja, ele torna-se causa aparente da produção, rebate-se sobre ela,

constitui uma superfície onde ela distribui as forças e os agentes de produção,

apropria-se do sobreproduto e toma conta do conjunto e das partes do

processo.

Ao rebater-se sobre a totalidade da produção, o capital torna-se a própria

realidade, uma ilusão tornada realidade através de um “movimento objectivo

aparente”. A sociedade “constrói-se a si mesma segundo o seu delírio” (Gil,

2018, p. 173). E assim, enquanto o ser capitalista produz mais-valia, o CsO

reproduz-se a si próprio, no tempo e na continuação do encantamento.

Page 58: A Exposição Depois de Deleuze

51

O CsO descreve, assim, a realidade do capitalismo como delirada, ou

“miraculada”. Não é, deve dizer-se, nem verdadeira nem falsa, já que este

movimento tem efeitos reais (o direccionamento de intensidades do sentir para

a criação de mais-valia, por exemplo), ainda que os alcance através de

processos de produção que não são seus, mas das máquinas.

Se ao Capital corresponde uma realidade miraculada, esta não é a única

possível: “um corpo pleno, corpo da Terra ou do déspota, uma superfície de

registo, um movimento objectivo aparente, um mundo perverso enfeitiçado

fetichista pertencem a todos os tipos de sociedade como constante reprodução

social” (Deleuze & Guattari, O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004,

p. 16). São realidades que se totalizam em torno das máquinas, mas que não

são incompossíveis. A sua especificidade é a capacidade de submeter a

produção das máquinas, ou dos órgãos, a funções, estratos e organismos que

o reterritorializam de acordo com o movimento do CsO.

O que se pode ver ao longo de todo o trabalho de Artaud é o desmascarar

deste movimento de apropriação. José Gil explora, em Caos e Ritmo, a forma

como o pensamento engendrado de Artaud o transforma num “corpo de dor”,

povoado por intensidades de dor que provocam uma renuncia ao socius, dada

a influência de micróbios, larvas, fantasmas, outros homens, falsas ideias do

espírito que se apossam dos seus órgãos, se inscrevem sobre eles e deles se

alimentam, desapossando-o da sua vida, das suas energias vitais. Esta

influência corresponde a toda a humanidade e a Deus: a “personificação (...)

que resulta do agrupamento de todas as renúncias de todos os homens (...) ao

esforço de viver de um só corpo” (Gil, 2018, p. 129). Ao povoar o corpo de

Artaud, ele vê-se como Deus e a própria humanidade evidenciando um

estatuto ontológico da realidade que o prende: o socius como realidade

miraculada e, neste caso, envenenada ao qual é preciso escapar.

Há, na produção de consumo, quantidades de energia e intensidade que não

se deixam apropriar pelo movimento aparente do CsO miraculado. Energias

que permanecem reais, que se actualizam conforme sentimentos, volúpias,

sofrimentos (como no caso de Artaud), afectos que “resto não codificado que

impelia a máquina paranóica a avariar-se e a rejeitar os órgãos desejantes”

Page 59: A Exposição Depois de Deleuze

52

(Gil, 2018, p. 174). No consumo das intensidades forma-se um sujeito, “algo

da ordem do sujeito (...), sem identidade fixa, errando sobre o corpo sem

órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes” (Deleuze & Guattari, 2004,

p. 21), que se identifica no devir com as máquinas avariadas. É o que permite

a Artaud identificar-se como Deus, ou a Schreber como mulher: um “afinal

sou...”, um sentir que revela a tirania do CsO despótico e liberta o desejo. A

experiência do sujeito destrói o movimento aparente, desmascara-o, e

transforma-o de acordo com as suas intensidades reais.

A realidade é sempre construída através de processos de devir, “devires do

sujeito e transformações da realidade” (Gil, 2018, p. 175). Primeiro é preciso

que Artaud se torne o centro de todos os enfeitiçamentos, que o seu corpo

concentre em si a dor de todos os corpos, que o seu corpo se torne “o corpo

da humanidade padecente inteira” (Gil, 2018, p. 137). Só depois poderá

construir uma última linha de fuga, que direcciona as suas intensidades para o

retorno de uma humanidade livre. O seu projecto torna-se o da liberação da

vida real dos corpos, da realidade ontológica em que o homem volta a ser o

“homem-árvore”:

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem

função,

mas de vontade,

e árvore de vontade que anda,

voltará.

Existiu, e voltará.

Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,

ingestão,

assimilação,

incubação,

excreção,

o que era criar toda uma ordem de funções latentes

e escapam ao domínio da vontade

decisora;

a vontade que decide a cada instante de si;

(Artaud, 2018, p. 163)

Page 60: A Exposição Depois de Deleuze

53

O que podemos ver na sua poesia, assim como nas suas cartas e nos seus

escritos sobre teatro é um projecto de experimentação, uma prática que

culminará na construção de um corpo puro, ou de um corpo sem órgãos, seu.

No encadeamento das palavras e das interjeições, não se formam significados,

mas intensidades e metamorfoses: “no fôlego humano há saltos e quebras de

tom, e de um grito a um grito transferências bruscas que tornam possível a

evocação súbita de aberturas de todo um corpo das coisas” (Eu, Antonin

Artaud, 2018, p. 156). Diz José Gil que “devemos ler Artaud como se as suas

palavras fossem acções: não tentando decifrar nelas um sentido, mas

desempenhando realmente, na vida, o movimento do sentido das palavras que

emprega” (Caos e Ritmo, 2018, p. 130), fazer das formas forças, fazer confluir

as imagens com a energia que transmitem.

O CsO que Artaud almeja é, diferentemente do Socius, real e não miraculado.

Corresponde ao real, porque a sua vontade não é apropriada por nenhuma

outra instância, sendo antes uma vontade própria que “decide a cada instante

de si”. Desenha, deste modo, uma linha de subjectivação que ultrapassa a

subjectividade em função de uma experimentação, ou de uma experiência

experimentada. É a experimentação marca a passagem do CsO de O Anti-

Édipo para o de Mil Planaltos, um CsO como plano de imanência, ou de

consistência que se constrói como um conjunto de práticas: “Corpus, Socius,

política e experimentação” (Deleuze & Guattari, 2007, p. 199). Efectua-se

através de programas, processos de desarticulação desestratificação dos

órgãos ou das máquinas, “é o que resta quando tudo foi retirado, e o que se

retira é o fantasma, o conjunto de significâncias e de subjectivações” (Deleuze

& Guattari, 2007, p. 201).

Neste CsO só circulam intensidades, produção desejante sem referência

nenhuma a carências ou prazeres. O prazer é, segundo os autores uma

medida extrínseca de reterritorialização, falsamente ligada ao desejo. O que é

preciso é encontrar uma alegria imanente a um processo positivo do desejo, e

que garante a distribuição das intensidades sem a invasão de angústias.

O trabalho do sujeito é, mais que tudo, destruir-se e superar-se, tornar-se puro

devir, pendurar a matéria como órgãos do seu corpo,

Page 61: A Exposição Depois de Deleuze

54

... trata-se de construir um corpo sem órgãos, lá onde as intensidades

passam e fazem com que não haja ego nem o outro, não em nome de uma

mais alta generalidade, de uma maior extensão, mas em virtude de

singularidades que já não se pode dizer pessoais, de intensidades que já

não se podem dizer extensivas.

(Deleuze & Guattari, 2007, p. 207).

A realidade deste CsO é a da matéria, “é matéria que pode ocupar o espaço a

tal e tal grau, no grau que corresponde às intensidades produzidas” (Mil

Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, 2007, p. 204).

Pós-Museu e Capitalismo

Esta multiplicidade aponta e ao mesmo tempo submete-se a questões políticas

da prática curadorial. Por um lado, as relações de mediação e educação que

uma exposição necessariamente envolve entram em choque com os valores

estéticos e perceptuais da arte. Por outro, a curadoria, assim como os museus

e as galerias, responde a aspectos históricos, políticos e institucionais de

realidades sociais, culturais, locais e globais, realidades que podem criticar e

desmiracular, mas que ao mesmo tempo garantem a sua sobrevivência. Deste

modo, a curadoria vê-se obrigada a gerir uma contenção das

desestratificações de maneiras que podem gerar algumas confusões quanto

às relações entre as identidades culturais e as ontologias dos processos

filosóficos e artísticos que podemos retirar de Deleuze.

Inseridas nestes contextos, as teorias museológicas têm estudado formas de

abordagem e discurso apoiadas em ideias de identidade cultural e institucional

Page 62: A Exposição Depois de Deleuze

55

assentes em práticas direccionadas para uma relação democrática entre

curador, arte e o espectador visto como comunidade.

Estas práticas convergem numa realidade que Hooper-Greenhill (Changing

Values in the Art Museum: Rethinking Communication and Learning, 2000b)

chama de pós-museu. A autora define-o como uma forma de resistência a um

passado de influência modernista e iluminista, favorecedor de um impulso

colecionador, de didácticas unilaterais e individualistas do conhecimento em si

e das grandes narrativas históricas eurocêntricas. A autora afirma que o

modernismo propaga uma superioridade do conhecimento baseado na razão

e no método científico face aos conhecimentos subjetivos. Tais influencias

partem dos desejos elitistas de construção de um conhecimento superior, no

qual tudo se torna alvo de estudo passível a classificações e definições, com

o objectivo a dar forma a uma grande narrativa, um arquivo universal

(Changing Values in the Art Museum: Rethinking Communication and

Learning, 2000b, p. 559) constituído por imagens-mundo com orientações

enciclopédicas, e estudos académicos dedicados à produção de significados

que contribuem para narrativas que demonstram o ponto de vista de potências

mundiais dominantes. As práticas museológicas dedicavam-se mais ao estudo

e conservação dos objetos do que à sua transmissão, que se baseava

predominantemente na disposição dos objetos em exposição. A sua postura

em relação ao público é unilateralmente educativa. Os seus aspectos sociais

e culturais não são considerados, mas sim inferiorizados, face às importâncias

dos ideais a ser transmitidos e a estruturas hierárquicas definidas por elites

políticas e académicas. Como resultado, o conhecimento é objectivo,

homogéneo e altamente moral.

A pós-modernidade também se manifesta- construindo diferentes relações

com a história. Parte de uma multiplicidade de resistências às grandes

narrativas políticas e coloniais e às epistemologias a elas associadas. Ganham

lugar as lutas pela emancipação social e racial, até aí ostracizadas. O museu

na sua condição institucional, tal como muitas organizações sociais, é

questionado e atualizado à luz destas revoluções, sendo que as novas teorias

museológicas, criadas não só por agentes da área, mas por teóricos de

Page 63: A Exposição Depois de Deleuze

56

variadas áreas e ideologias, apontam para uma nova consciência social

visando envolvimentos mais ativos com as comunidades e com os públicos.

Segundo Hooper-Greenhill (Education, postmodernity and the museum, 2007)

os desafios do pós-museu focam-se principalmente em duas áreas, a primeira

das quais, relacionada com a autoridade das narrativas construídas, questiona

o que é dito e quem o diz, e a segunda, dirigida às possíveis interpretações,

debruçando-se sobre a posição do público. Os novos processos passam por

uma rememorialização que tenha em conta novos pontos de vista sobre o

passado focados na justiça e na justeza das histórias do mundo. Os objetos

de exposição deixam de ter um objetivo unicamente expositivo e objetivo, para

assumir um papel ativo e em constante relação de justaposição entre si e com

o espetador. Não descrevem apenas o passado, são úteis para as construções

do presente e para o vislumbre do futuro em relação às necessidades da

comunidade. O conhecimento passa por uma constante negociação entre o

museu e as comunidades, e consegue-o sendo consciente de si próprio e das

suas possibilidades e através da capacidade de se reatualizar de acordo com

as necessidades coletivas e individuais das comunidades. Para a autora, o

grande potencial do pós-museu é o seu poder de lidar com as subjetividades

da história, de as envolver num pensamento democrático e dessa forma

fortalecer as identidades sociais.

Os agenciamentos propostos pelas teorias museológicas e que se destinam a

uma busca de identidade efectuada através de jogos de poder, “o poder para

nomear, para representar o senso comum, para criar versões oficiais, para

representar o mundo social e para representar o passado” (Hooper-Greenhill,

Museums and Cultural Politics, 2001b) são problemáticos do ponto de vista

Deleuziano.

Estamos, aqui, diante de relações políticas, mas Deleuze e Guattari lembram-

nos que toda a política é ao mesmo tempo macro e micropolítica, que a

organização molar dos organismos e das ideias inclui uma micropolítica da

percepção, da afecção, da conversação “não impede todo um tipo de micro-

perceptos inconscientes, segmentações delicadas, que não apreendem ou não

experimentam as mesmas coisas” (Deleuze & Guattari, Mil Planaltos,

Page 64: A Exposição Depois de Deleuze

57

Capitalismo e Esquizofrenia 2, 2007, p. 274), suscitando por isso, lógicas que

não se enquadram propriamente nas lógicas do poder, sendo, pelo contrário,

as linhas de poder que se enquadram no plano de imanência do universo.

O pós-museu é instrumentalizado de acordo com funções sociais que

agenciam os elementos em torno de narrativas e contra-narrativas e fazem

com que todo o tipo de intensidades, diferenças e desestratificações convirjam

numa realidade política dos idealismos. O perigo é o de desmascarar a

miraculação de um CsO para lá voltar a cair, e assim sucessivamente.

Nick Prior (Having One's Tate and Eating It: Transformations of the Museum in

a Hypermodern Era, 2003) integra o pós-museu numa realidade bastante

diferente. Na sua perspectiva, as grandes pretensões do museu em relação à

construção de conhecimentos encontra-se num beco sem saída no contexto

do grande desenvolvimento das instituições hipermodernas, ligadas ao império

capitalista do comércio e do consumo. O museu deixa aqui de se focar no

progresso estético, para se estabelecer na cultura do espectáculo. Quando o

mercado governa, o museu passa a funcionar como lugar, ou não-lugar, de

consumo. Os valores do museu pós-moderno entram em conflito à medida que

surge uma barreira entre os potenciais práticas sociais e estéticos do pós-

museu e as expectativas convencionais dos públicos massificados. A

experiência estética é posta em causa pelo consumo de arte como forma de

lazer e de espetáculo. No museu, os objetos perdem a memória e a sua

natureza, assim como a sua importância na produção de significados, ao

serem devorados pelo público segundo uma lógica do lazer.

Na análise de Prior, o público é cada vez maior, mais turístico e agitado na sua

ansia de ver e aglutinar cada objecto, pondo em causa as convenções da

percepção, “o olho não é autorizado a descansar, está numa distracção

constante, atraído por uma cultura de presenças simultâneas” (Prior, 2003, p.

56). Num mundo de entretenimento principalmente visual, a experiência

estética adquire novas formas, e estende-se para todo lado, numa “trans-

estética permissiva e hedonista” (Prior, 2003, p. 56). Ainda assim, o autor

destaca a possibilidade de cada museu de se enquadrar numa multiplicidade

de práticas com o objetivo de agradar aos diferentes tipos de público, dando

Page 65: A Exposição Depois de Deleuze

58

liberdade ao público individual de visitar o museu como bem entender, mas

permitindo também uma compreensão mais extensiva e interventiva a

espectadores diferenciados, através de visitas guiadas, e iniciativas sociais e

educativas. Prior refere-se sobretudo aos grandes museus. Os pequenos

poderão trabalhar melhor grupos nicho, mais interessados e ativos.

A estrutura da democracia neoliberal e capitalista cria um ambiente propício a

pluralismos pós-idealísticos subordinados às suas regras, volatilizando a

atualização de realidades alternativas. Utopia torna-se um estatuto pejorativo

numa democracia que exige reações adaptativas cada vez mais práticas e

desenfreadas, resultantes numa normatização global das práticas e dos

sentimentos em função das regras do mercado. Este contexto é definido por

Lipovetsky (Os Tempos Hipermodernos, 2013) como Hipermodernidade, e

declara a impossibilidade dos ideais de resistência pós-moderna. Segundo o

autor, esta nova modernidade “não é destruidora, mas integradora. Já não se

trata da destruição do passado, mas da sua reintegração, na sua reformulação

no quadro das lógicas modernas do mercado, do consumo e da

individualidade” (Lipovetsky, 2013, p. 60). Para Mark Fisher (Capitalist

Realism: Is There No Alternative?, 2009, p. 9), esta questão é mais densa e

alarga-se à relação de todos os elementos com potencial subversivo com o

sistema capitalista: não lidamos apenas com a sua incorporação, mas com

uma pré-incorporação, de acordo a contenção e formatação dos desejos, dos

sonhos e das esperanças produzidas por esses elementos.

Se anteriormente o problema do capitalismo era conter e absorver as energias

exteriores, actualmente, tendo incorporado todo o exterior, e sem um Exterior

que possa colonizar, ocupa os horizontes do pensamento e controla todo o

imaginário social (Fisher, 2009, p. 8). O sistema mais institucional da arte

contemporânea, do qual faz parte a curadoria, mas também a crítica e a

academia, não foge a este esquema. Cada vez mais envolvido em temas

relacionados com discursos e narrativas de identidades, culturas e nichos

periféricos, faz a sua parte numa colonização que não se define por etnias,

culturas e ideologias mas pelo poder e pelo capital, como Eduarda Neves

Page 66: A Exposição Depois de Deleuze

59

denota, sugerindo a propagação de uma falsa-consciência esclarecida e

conformista (Um crítico na Época do Cinsimo Avançado, 2016, pp. 88,89).

A grande maioria dos discursos museológicos e artísticos assume um certo

anti-capitalismo na sua postura. No entanto, tudo indica, como Fisher refere,

que não só as formas de anti-capitalismo são amplamente disseminadas no

capitalismo, como até são uma parte importante da sua manutenção (Fisher,

2009, p. 12). O resultado é que, apesar de todos os credos em volta da

interacção e da emancipação dos espectadores, o que acaba por acontecer é,

pelo contrário, o que Robert Pfaller chama de “interpassividade” (On the

Pleasure Principle: Illusions Without Owners, 2014). A performance dos

discursos, da parte tanto dos produtores como dos espectadores, permite um

consumo passivo e cumplice que desresponsabiliza e despersonaliza tanto os

sujeitos como as imagens.

Parece inevitável que, como Fisher (Capitalist Realism: Is There No

Alternative?, 2009), vejamos a realidade pós-moderna de acordo com um

“realismo capitalista”: o mundo dominado pelo sentimento céptico de que se

tornou impossível sequer imaginar uma alternativa ao sistema capitalista.

Como tal, é necessário vigiar a integração capitalista dos desejos e a noção

de que ela é percorrida por uma cumplicidade geral que a alimenta.

Retomando a perspectiva Deleuziana, dizer que os agenciamentos discursivos

da curadoria, assim como da crítica e da arte em geral, são apropriados e

miraculados pelo CsO do capital é um dado. O problema está na acepção do

valor da relação entre as noções de sujeito e identidade, de poder e de desejo,

e a sua circulação no movimento das realidades. Neste sentido as forças que

constituem este problema centram-se numa aporia que se recentra sempre

numa conceptualização maior – a da vida, e a do que constitui o que é ser-se

humano.

Esta aporia que a filosofia deleuziana tenta solucionar e que José Gil leva

adiante suscita uma antinomia que separa o ser humano das máquinas e do

CsO: por um lado, a perspectiva humanista sugere a vida identificada com uma

macropolítica das ideias e dos ideais; pelo outro, a vida como produção

Page 67: A Exposição Depois de Deleuze

60

tecnocrática, na qual as lógicas moleculares são transformadas pela técnica e

pelo movimento esquizo do capitalismo. A celebração dos valores humanistas

leva à redução da vida a ideias estáticas e ilusórias, incapazes de desposar o

movimento real, podendo ainda fazer do movimento aparente uma forma moral

totalitária. Os meios e os fins da técnica apropriam-se do movimento real e

esvaziam a vida, levando à dispersão caótica. Esta antítese perfaz-se,

actualmente, numa circulação entre tese e antítese, visto que a apropriação,

por parte do capital, das intensidades e sentimentos do imaginário social,

provoca uma subvalorização dos movimentos empíricos reais, em função dos

movimentos aparentes das ideologias: “A afirmação do ideal impediria, pois, o

surgimento do novo, do futuro, do próprio movimento da vida” (Gil, 2018, p.

187).

Compromisso Curatorial

Mesmo a construção de um CsO esquizo como programa de superação e

libertação não está desprovida de riscos. Por um lado, uma desestratificação

desenfreada acabaria por cair num vazio absoluto. Por outro lado, pertencente

a um estrato, o CsO pode gerar como um “tecido canceroso”, proliferante

acabando por se apropriar do organismo. Reestratificações são sempre

necessárias, não só para que os estratos sobrevivam, mas também para que

o movimento de génese do CsO se mantenha possível.

O CsO opõe-se ao organismo, às significações e às subjectividades, mas para

se libertar o desejo real e fazê-lo circular, é, ainda assim, preciso mantê-los,

mimar os estratos, guardá-los o suficiente para responder à realidade

dominante. O CsO é plano de imanência que distribui as linhas de fuga nos

estratos e entre eles. Assim, é sempre um limite, “não pára de oscilar entre as

superfícies que o estratificam e o plano que o liberta” (Deleuze & Guattari,

2007, p. 212).

Page 68: A Exposição Depois de Deleuze

61

Deleuze e Guattari desenham, então, um programa prudente para a

construção do CsO:

Eis pois o que será preciso fazer: instalar-se num estrato, experimentar as

oportunidades que nos oferece, procurar um sítio favorável, movimentos

de desterritorialização eventuais, linhas de fuga possíveis, experimentá-

las, garantir aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por

segmento continuuns de intensidades, ter sempre um bocadinho de uma

nova terra.

(Deleuze & Guattari, 2007, p. 212)

Em cada estrato, é preciso vigiar os desejos falsos, que estagnam o continuum

do CsO ou que dele se apoderam para acelerações despóticas, fontes de

fascismo e de falsa consciência, e distinguir as linhas de fuga que se

constroem no plano de consistência e mantêm o fluxo dos devires (Deleuze &

Guattari, 2007, p. 217).

Segundo José Gil não se podem separar as dicotomias filosóficas que a

antinomia humanismo/tecnocracia sugere, “a escala macro e a escala micro, a

filosofia e a doxa, o virtual e o actual, o CsO do corpo físico, o plano de

imanência dos estratos, os afectos e as afecções, o transcendental e o

empírico” (Gil, 2018, p. 188). Os fenómenos macro implicam sempre

movimentos micro, sugere. Movimenta-se tudo numa fusão ontológica que

funda uma zona de transição, “zona de passagem, e de transformação, zona

de ‘projecção’ e de libertação dos devires, zona, enfim, de todas as espécies

de mudanças do corpo” (Gil, 2018, p. 191), que determina o campo de

experimentação próprio à construção do CsO. Abre-se uma zona de transição

quando reduzimos a escala macro para o nível micro, ao mesmo tempo que,

inversamente, ampliamos a escala micro para analisar os graus de

verossimilhança das formas e das ideias. É definida por um devir incessante e

genésico, no sentido em que “o movimento determina, no tempo, uma matéria

informe dentro da imanência” (Gil, 2018, p. 193).

Page 69: A Exposição Depois de Deleuze

62

Construir compromissos museológicos de acordo com as condições filosóficas

do CsO é construir uma zona de transição que, na ligação entre o mundo da

arte e o espectador, tenha a capacidade de fomentar a participação em

processos de navegação no mundo virtual dos devires. Nestes processos, a

curadoria faz-se num trabalho transversalmente ético e estético, assim como

individual e colectivo, no sentido em que a interacção das práticas do fazer

artístico e curadorial, dos discursos, e da experiência, se efectua por todas as

partes e reverte para uma identidade em constante metamorfose, constituída

não só por definições e opiniões descritivas, mas principalmente, pelos

movimentos que a desestratificam, e a impulsionam o seu potencial de criação.

Um compromisso, nesta base, precede todas manifestações discursivas

assentes em princípios ideológicos, no sentido em que deve haver uma

regulação simbiótica entre as práticas e os compromissos. Como Reza

Negarestani (The Labour of the Inhuman, 2014) afirma, é preciso analisar as

estruturas e as leis dos próprios compromissos, encará-los de acordo com

trajectórias ramificantes que ditam a concordância entre os movimentos do

fazer e do dizer, o que só é possível em contextos práticos. É preciso explorar

as implicações existentes na circulação entre fazer o que se diz e dizer o que

se fez: se, por um lado, as práticas são definidas pelos compromissos

estabelecidos, por outro é necessário assumir as consequências das práticas

efectuadas, mapear os erros, as inconsistências, as falsas escolhas, assim

como as possibilidades de diferença e do novo que podem surgir. As trajetórias

dos compromissos definem, a cada passo, novos compromissos, que pedem

novos modos de agir e pensar. A tarefa, segundo o autor, é construir pontos

de ligação práticas, cognitivas, tolerantes aos erros e revisionárias entre o que

achamos que somos e aquilo em que nos estamos a tornar.

As práticas discursivas constituem um espaço de agenciamentos racionais.

Mas estes não são pessoais, nem individuais. Antes, integram e contribuem

para uma razão autónoma que compreende movimentos entre a esfera macro

e consciente das intenções e das opiniões, e a esfera micro e inconsciente dos

devires. A autonomia da razão é, como diz Negarestani, a expressão da sua

propensão para a auto-actualização (Negarestani, 2014, p. 448), numa

Page 70: A Exposição Depois de Deleuze

63

circulação sobre a qual o ser humano não tem controlo. Navegá-la requer,

portanto, um trabalho inumanista, um pensamento vindo do Exterior segundo

compromissos para com as construções e revisões das realidades orientadas

e reguladas pela autonomia da razão. Deleuze diz, também, acreditar “num

mundo em que as individuações são impessoais e em que as singularidades

são pré-individuais” (Deleuze G. , 2000, p. 38), sugerindo a perspectiva

filosófica de que todas as individuações devem partir primeiramente de

processos ontológicos.

Tal como Reza Negarestani defende que os compromissos devem ramificar

outros compromissos, Deleuze diz-nos que o papel fundamental do

pensamento é o de criar mais pensamento, circulação que desenlaça as

implicações da vontade “a cada instante de si” (Artaud, 2018, p. 163) em volta

da repetição, e na qual é visível a interpretação deleuziana do conceito de

eterno retorno de Nietzche, cuja afirmação toma a forma de uma espécie de

imperativo categórico da vontade em-si; “o que quiseres, quer de tal maneira

que também queiras o seu eterno retorno” (Deleuze G. , 2000, p. 50). Como

Ray Brassier (Brassier, 2007) denota, a afirmação do eterno retorno coincide

uma transvalorização de todos os valores, apontando para uma diferença

qualitativa fundamental na relação entre vontade e poder. Ao mesmo tempo

que aniquila todos os valores conhecidos, cria sempre valores novos, “afirma

a coincidência imediata e irreconciliável entre valor absoluto e a ausência de

qualquer valor, a afirmação e a negação, a imanência e a transcendência”

(Brassier, 2007, p. 208). É uma realidade em que a repetição ontológica do

pensamento, dos compromissos, e da vontade se desapegam do das regras

do conhecimento, e a questão deixa de ser a afirmação do que se conhece,

sendo, em vez, criar-se o que é afirmado (Brassier, 2007, p. 215).

A imagem em movimento constrói, na exposição, um paradigma de

pensamento autónomo que se estende no espaço, e afecta o ambiente que

envolve todas os objetos com os quais interage. O seu grande contributo,

como nos pode mostrar a filosofia de Deleuze, é o de evidenciar os modos a

partir dos quais o autómato espiritual cinematográfico pode ser testemunhado

e navegado. O pensamento cinematográfico, o tempo objetivo e a imanência

Page 71: A Exposição Depois de Deleuze

64

conjuntiva e disjuntiva das imagens fornecem as condições para um meta-

pensamento que, reiterado pelos discursos curadoriais remete, mais do que

para definições do próprio e do mundo, para os micro-processos estéticos que

nelas interferem, inaugurando o espectador como sujeito filósofo. Como José

Gil descreve, “a experiência experimentada transforma a subjectividade

ordinária, fazendo-a desposar o próprio movimento das coisas, criando o plano

da subjectividade filosófica” (Gil, 2018, p. 193).

O trabalho da curadoria deve aliar a autonomia da razão aos movimentos da

percepção estética de acordo com movimentos racionais que pensam as obras

e brechas perceptuais que transformam o pensamento. Comprometer-se é,

tanto para a curadoria como para o espectador, o trabalho de criar e recriar a

realidade através dos processos estéticos de experimentação, e de pensar de

que modo novas descrições da experimentação reivindicam para

transformações operadas nos contextos da arte, mas também nos das próprias

definições do que é pensar-se e ser-se humano.

Devir-Arte, Devir-Espectador

Na tarefa de ligar arte e público, um compromisso curadorial baseado nos

processos da filosofia Deleuziana lida com a questão necessária da liberdade:

de que forma potenciar as singularidades e diferenças puras da arte ao longo

do sentido da exposição e nas condições de liberdade democrática das

experiências individuais e colectivas dos espectadores?

Os compromissos da curadoria, consoante discursos do poder, colocam-na

diante de uma noção de democracia constituída por liberdades soberanas.

Seguindo esta perspectiva, Boris Groys (Politics of Installation, 2009) afirma

que o universo curadorial é marcado pela liberdade soberana do artista e pela

liberdade institucional do curador. Por um lado, cada obra (o autor fala aqui da

instalação, mas acreditamos que este processo se estende a todos os

Page 72: A Exposição Depois de Deleuze

65

médiuns) efectua uma privatização simbólica do espaço público da exposição

de acordo com uma liberdade livre de responsabilidades mediativas. Por outro,

o curador orienta a exposição de acordo com sentidos que devem garantir uma

responsabilidade na mediação entre arte e espectador, salvaguardando o

carácter público da instituição pela qual responde. O autor salienta o modo

como o sentido discursivo das exposições promove uma desterritorialização

das obras que quebra as linhas de poder do artista e dissipa a própria diferença

entre fazer e dispor arte. Em ambos os casos, o espectador deixa o território

da legitimidade democrática para entrar num espaço de controlo autoritário.

Entendendo que agenciamentos da arte e da curadoria convergem para ideias

sobre a própria arte, ver as condições de liberdade que circulam na curadoria

de acordo com linhas de poder apontam para a visão, ora dos valores próprios

da are, ora dos seus valores de exposição, de acordo com uma plenitude que,

apesar de fragmentária, aponta sempre para a funcionalidade de um sentido,

ou de um organismo, como é o exemplo da ideia megalómana, mas corrente,

da adaptação da noção de Gesantkunstwerk à curadoria. Boris Groys afirma

que um projecto curadorial partilha afinidades com a Gesantkunstwerk, ao

instrumentalizar os objectos expostos de acordo com um propósito comum,

desvalorizando a autonomia dos objectos em torno de uma criação que inclui

também os espectadores (Groys, Entering the Flow: Museum between Archive

and Gesamtkunstwerk, 2013).

Em ambos os casos entramos facilmente numa celebração da arte e da

diferença. O perigo é o de separar a diferença das suas especificidades

ontológicas, de a banalizar e barrar o seu papel estrutural nos processos de

definição da curadoria, da arte, e da própria identidade humanidade, “apenas

diferenças conciliáveis, federáveis, longe de lutas sangrentas” (Deleuze G. ,

Diferença e Repetição, 2000, p. 37). A diferença Deleuziana é afirmativa, não

negativa, mas liberta uma potência de agressão, e que força o pensamento

para além da identidade e da vontade.

Voltando ao exemplo de Artaud, podemos perceber como podem surgir

barreiras entre a sua prática poética e artística, a sua construção do CsO, e as

práticas da curadoria. Há no autor uma vontade de liberdade e independência

Page 73: A Exposição Depois de Deleuze

66

total, de uma pureza que, para além de roçar os limites do delírio, entra no

limite da desestratificação total. Na sua poesia, Artaud debruça-se no vazio e

na morte.

Uma exposição evidencia esta potência ontológica da diferenças e dos vazios

queestá na materialidade das obras, na experiência e na experimentação. Não

o faz de acordo com as regras do poder, mas com os princípios da

multiplicidade, e das fracturas que ela suscita. A presença da imagem em

movimento numa exposição é uma marca disso: Hito Steyerl explica que, ao

multiplicar-se nas superfícies e nas temporalidades e durações, e ao

fragmentar os pontos de vista, o cinema mostra os vazios implicados nas

exposições, e que tornam opacos os olhares soberanos. Da mesma forma, os

discursos transparentes, inclusivos e informativos tornam-se práticamente

impossiveis (The Wretched of the Screen. E-flux Journal, 2012, pp. 71,72).

Mas a curadoria faz, também, a sua experimentação através da programação

de filmes, de encontros, conversas e debates, palestras, ensaios, etc., que

implicam uma noção de espectador que se aproxima mais da massa pública

do proscénio do eu da multitude da exposição definida por Steyerl. Sujeita a

funções comunicativas, educativas e mediativas, a curadoria aborda este vazio

de forma incompleta. A comunicação não faz sentir vazio. Antes, indica as suas

possibilidades, envolvendo sempre um pensamento racional que não

corresponde às intensidades perceptuais da arte, e pode apenas dar a

conhecer possibilidades, submetendo as intensidades virtuais da arte às

funções do seu discurso.

No sentido do apagamento das linhas de poder surge uma outra noção de

liberdade, que se efectua nas possibilidades de partilhar e navegar as

experiências e os vazios, e daí soltar uma “potência inaugural”, que une o

artista a espectador, e que antes de tudo nos define enquanto humanos.

Lembrando Hannah Arendt, Silvina Rodrigues lopes escreve: “modo de ser, e

não livre-arbítrio, esta é (...) a faculdade do começo” (Literatura, Defesa do

Atrito, 2012, p. 13).

Page 74: A Exposição Depois de Deleuze

67

A questão relativa à definição da liberdade das massas deve conter, no

entanto, princípios ontológicos diferentes dos das condições dos espaços, e

que se poderão aproximar mais da distinção virtual que Deleuze e Guattari

encontram entre massa molecular e classe molar (Mil Planaltos, Capitalismo e

Esquizofrenia 2, 2007, p. 274), sugerindo que a primeira apontam para as

múltiplas combinações moleculares marcadas por devires. Neste caso,

falamos de combinações que põem em jogo o espectador no artista e o artista

na posição do espectador. A curadoria faz-se simultaneamente devir-arte e

devir-espectador, o que significa que incorpora os movimentos reais próprios

da prática artística e dos perceptos e vazios próprios da estética, potenciando

modos de experiência e da experimentação a partir dos quais se extraem

visões e subjectivações. Enquanto Boris Groys apaga a diferença “ontológica”

entre fazer arte e expor arte, o que propomos é que a fronteira ontológica que

se dissipa é a do gesto que se manifesta entre o fazer e o ver. Como Marie-

José Mondzain afirma:

O gesto da arte é aquele que funda a autoridade do próprio espectador

enquanto sujeito da sua acção, enquanto sujeito mais insigne que possa

haver, e que é, precisamente, o artista.

(Homo Spectator: Ver, Fazer Ver, 2015, p. 328)

Deste modo, a curadoria envolve-se numa multiplicidade em que fazer e ver

arte são processos em fusão que determinam, através de transformações

contínuas, as individuações e as identidades colectivas.

O plano que se traça é o de uma multiplicidade, transversal às práticas da arte,

da curadoria, do espectador, é o da identidade colectiva do ser humano.

Deleuze e Guattari mencionam que o plano de consistência não é povoado

apenas por um CsO, ou então, que o CsO é um “conjunto eventual de todos

os CsO.” (Deleuze & Guattari, 2007, p. 209). Um CsO pode ser percorrido pelas

intensidades de todos os outros, no sentido em que no seu plano circulam

Page 75: A Exposição Depois de Deleuze

68

movimentos de desterritorialização de diferentes estratos. Ver a curadoria de

acordo com a construção de um CsO é ver um espaço preenchido por uma

multiplicidade de outros corpos, cada um dos quais agenciando razões e

afectos que são ao mesmo tempo únicos e em partilha. Deste modo, os CsOs

agenciam os movimentos desejantes num plano de imanência de acordo com

as totalidades que ao mesmo tempo integram e criam, mas que são

independente das partes: “só acreditamos em totalidades ao lado” (Deleuze &

Guattari, O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004, p. 45). O CsO não

unifica nem totaliza o conjunto das máquinas, criando antes linhas de fuga e

de desestratificação que abstraem o desejo do ego e da política.

Dizer que a liberdade se processa a nível molecular sugere que nos

debrucemos sobre a questão da relação entre o poder e a autoridade, questão

que Marie-José Mondzain coloca em Homo Spectator: “de que modo pode a

subjectivação que se opera entre os espectadores conservar a sua potência

inaugural quando o sujeito se submete a um poder?” (Homo Spectator: Ver,

Fazer Ver, 2015, p. 324). A resposta da autora é que a autoridade existe no

momento do reconhecimento do outro, sendo decomposta em dois

pressupostos: uma confiança que legitimiza o poder, e uma condição que

pressupõe a dignidade e a igualdade de quem o reconhece. A autoridade deve

existir sem reino, para que possa ser reconhecida em termos da sua potência

inaugural. Na opinião da escritora, “o reconhecimento da autoridade não

assenta na fraqueza de um sítio mas na partilha de uma liberdade que por um

lado age e por outro aceita obedecer” (Mondzain, 2015, p. 326). A autoridade

pode ser legitimada enquanto processo de partilha que pressupõe a igualdade

autoritária dos sujeitos, sendo que o espaço político é, mais do uma circulação

de poderes e controlos, o “regime de uma partilha do espaço e do tempo, o

regime de circulação das coisas e dos signos, no seio do qual cada sujeito (...)

encontra uma igual condição do seu reconhecimento na comunidade,

enquanto sujeito desejante e falante” (Mondzain, 2015, p. 325). Nesta partilha

que cada sujeito encontra a sua autoridade, ou seja, afirma a sua presença.

Page 76: A Exposição Depois de Deleuze

69

4. Considerações Finais

Ao longo da dissertação, pudemos aperceber-nos que, nos conceitos

abordados, existem princípios e especificidades transversais à filosofia de

Deleuze. Imanência, movimento e diferença permeiam todo um mundo

maquínico e ditam as condições sob as quais é possível pensar cinema e

curadoria.

Tais princípios estão presentes nos conceitos de Imagem, Dispositivo e de

Corpo sem Órgãos. Constituídos de movimentos intensivos, regulam as partes

independentes a um todo aberto que se transforma a cada combinação. Estas

relações formam uma consciência e um pensamento visual propriamente

cinematográficos, e expandem não só a noção deleuziana empírica do

pensamento. É uma perspectiva criativa e estética do pensamento que

enfrenta o seu impoder, isto é, o que há de não pensável e até de impensável,

para dele forçar novos actos de pensamento. O cinema evidencia-o no entre-

imagens, através da montagem, dos cortes e raccords, e do tempo objetivo

que decorre do movimento e da vibração.

Estes movimentos visualmente evidentes nas imagens cinematográficas,

adquirem diferentes sentidos na curadoria. Uma exposição é desde logo feita

de relações entre obras e imagens e uma orientação que define os limites

conceptuais do todo. No entanto, só na experiência do espectador é possível

conceber uma forma de pensamento estético e visual correspondente ao

pensamento deleuziano. Na combinação destas duas perspectivas, a

curadoria constrói-se como espaço de interacção capaz de potenciar a

importância das experimentações empíricas e perceptuais para as redefinições

da estética.

Da mesma forma, o espaço sócio-político, no qual a curadoria se integra sob

forma institucional, compõe-se de movimentos intensivos, de sentimentos,

desejos, perceptos que circulam e coincidem tanto com a produção como com

o seu consumo. A noção de desejo como movimento virtual de toda a produção

Page 77: A Exposição Depois de Deleuze

70

suscita a criação do Corpo sem Órgãos de acordo o desenvolvimento de

vontade em si filosófica, que não se dirige para ideias ou ideologias, antes

construindo um espaço de navegação e experimentação no espaço virtual do

imaginário e dos sentimentos. Torna-se possível, neste contexto, discutir

processos e estatutos ontológicos necessários para que curador e espectador

possam ser entendidos como sujeitos que reconhecem e se reconhecem de

acordo com os devires e se actualizam numa relação em que a liberdade é um

trabalho mais do que um princípio.

A grande especificidade da imanência está no carácter dos devires. Daí, que

Deleuze caracterize os seus conceitos como “multiplicidade de fusão”. É nesta

forma de multiplicidade que podem coincidir imagem e matéria, produção e

consumo, curadoria e arte, artista e espectador. A questão não é a de definir

estes termos, mas a de interiorizar e exteriorizar as produções e sentimentos

reais, e fazê-los entrar em partilha sem que sejam completamente

estratificados, manter o seu movimento independente.

Neste mundo, o papel da curadoria e a sua capacidade para potenciar a

relação entre as especificidades imagéticas e estéticas da arte e do mundo e

a experiência do espectador, está longe de ser pacífico. Mais do que mostrar

o que se tem criado e pensado até agora, é preciso levar o pensamento aos

seus limites racionais e empíricos, “forçar o pensamento a pensar-se a si

mesmo e a pensar. É a própria definição do sublime” (Deleuze G. , 2015, p.

249). A curadoria deve ser um espaço onde o pensamento é tido como

potência máxima de criação por parte do espectador. O autor lembra-nos que

o pensamento, como a vida, serve acima de tudo para ser continuado.

Por fim, um compromisso para com valores que sustêm as relações entre

curador e espectador deve ter a capacidade de se transversalizar, pelo que,

ao assumir uma postura interventiva na construção de conceitos e na sua

actualização prática, reverte inevitavelmente para o poder da própria vida, ou,

melhor dizendo, das noções do que é ser-se humano, no sentido em que todas

práticas, experiências e debates determinam de certo modo, o lugar dos

sujeitos individuais e colectivos numa história cujo movimento é necessário

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Page 78: A Exposição Depois de Deleuze

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