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96 CENEIDE M. DE O. CERVENY Entender que o antimodelo pode ser o modelo de uma ge- ração ainda mais anterior remete-nos à origem do nosso grupo fa- miliar para entender o que aconteceu. É necessário entender o que aconteceu para passá-Io à outra geração como conhecimento e não só como experiência repetida. Capítulo V MÉTodo "Não se pode chegar a uma ciência do homem, sem o ho- mem. Sem o homem estudado e o homem que estuda." Eleger (1977) 1. A PESQUISA Este trabalho fundamentou-se numa pesquisa qualitativa baseada no estudo de casos. Um caso clínico, atendido em 17 sessões de Terapia Familiar, durante 13 meses, serviu como base para a aplicação do modelo teórico, por nós construído, a respeito da transmissão de padrões interacionais familiares principalmente no nível intergeracional. Outros casos clínicos serão apresentados como exemplo da transmissão de padrões interacionais específicos. Sempre que trabalhamos com o estudo de restrito número I de casos, temos a convicção de que não haverá a abrangência uni- versal em termos de objeto. Em nosso caso, algumas famílias-su- jeito não representariam a imensa gama de modelos de sistemas fa- miliares que atendemos na prática clínica. Assim, também, o estudo de três gerações é um pequeno corte na história de uma família e o ideal seria uma pesquisa que envolvesse uma escala intergeracional maior. Nesse caso, devería- mos contar com outro tipo de registro familiar como fotos, docu- mentos e as histórias mais antigas que circulam na família. Nossa experiência clínica, porém, (dadas as características de nossa cultu-

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Entender que o antimodelo pode ser o modelo de uma ge-ração ainda mais anterior remete-nos à origem do nosso grupo fa-miliar para entender o que aconteceu.

É necessário entender o que aconteceu para passá-Io à outra geraçãocomo conhecimento e não só como experiência repetida.

Capítulo V

MÉTodo

"Não se pode chegar a uma ciência do homem, sem o ho-mem. Sem o homem estudado e o homem que estuda."

Eleger (1977)

1. A PESQUISA

Este trabalho fundamentou-se numa pesquisa qualitativabaseada no estudo de casos.

Um caso clínico, atendido em 17 sessões de Terapia Familiar,durante 13 meses, serviu como base para a aplicação do modeloteórico, por nós construído, a respeito da transmissão de padrõesinteracionais familiares principalmente no nível intergeracional.

Outros casos clínicos serão apresentados como exemploda transmissão de padrões interacionais específicos.

Sempre que trabalhamos com o estudo de restrito númeroI de casos, temos a convicção de que não haverá a abrangência uni-

versal em termos de objeto. Em nosso caso, algumas famílias-su-jeito não representariam a imensa gama de modelos de sistemas fa-miliares que atendemos na prática clínica.

Assim, também, o estudo de três gerações é um pequenocorte na história de uma família e o ideal seria uma pesquisa queenvolvesse uma escala intergeracional maior. Nesse caso, devería-mos contar com outro tipo de registro familiar como fotos, docu-mentos e as histórias mais antigas que circulam na família. Nossaexperiência clínica, porém, (dadas as características de nossa cultu-

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ra, mosaico de correntes imigratórias) limitou nossa expectativa atéa geração dos avós, que em geral marca a extensão da memória dasfamílias - com raras exceções - sobretudo num determinado ex-trato social (assim chamados quatrocentões) que tem no nome umaherança e cultivam mais as tradições.

É importante, nesse momento, determo-nos em aspectosda observação do atendimento clínico. É corrente na Terapia Fa-miliar Sistêmica a impossibilidade de o terapeuta colocar-se fora dosistema com o qual está trabalhando. Por isso, como dissemos, tra-balhamos com o Sistema Terapêutica (Minuchin, 1982) que é osistema integrado pelo terapeuta e pelo Sistema Familiar.

Essa impossibilidade de separar o sistema observado pre-conizado pela totalidade dos teóricos de família não é algo de pro-priedade dos sistêmicos. Assim, sobre a observação científica, Bleger(1977) assume a seguinte posição: "Na observação científica é ondeconfluem as antinomias e os equívocos mais seculares sobre o mé-todo científico. Toda ciência parte da observação de fatos, sobreos quais se elabora uma hipótese que logo pode ser verificada, ma-nejando os ditos fatos. O processo de investigação, assim tão sim-ples e claramente exposto, só se dá lamentavelmente no papel. É ametodologia do psicólogo puro, do que não investiga mas conheceas normas com as quais quer que os outros investiguem" (p. 227).

Questiona, pois, Bleger, a observação pura, a qual seria umautopia pois, sempre que observamos, estamos em uma função ativa eparticipante em relação àquilo que investigamos. Os fatos que obser-vamos não são isolados, mas pertencem a um sistema maior; os da-dos dos quais partimos não são fatos em si, independentes dos se-res humanos, mas estruturados por causa deles. Mesmo a escolhados fatos e dos processos de investigá-Ios implicam a adoção de umaconcepção de mundo que também influi na nossa investigação.

A observação não é, pois, nesse sentido, apenas a percep-ção de um fenômeno externo ao observador, mas uma profundarelação do homem com o observado.

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Bridgman (em Argyris, 1969) diz que a fim de refletir so-bre um sistema ou situação, sempre temos, aparentemente, que nosimaginar como um observador situado externamente, consideran-do que, quando agimos dessa maneira, chegamos à conclusão deque sempre terminamos absorvidos pelo sistema do qual tentáva-mos nos excluir.

De certa maneira, foi a essa conclusão que os terapeutasde família, que pensam a família como um sistema, chegaram emsuas observações.

Quando Anzieu e Martin (1968) disseram que, na obser-vação de grupos, é necessário pensar que os mesmos não são reali-dades fixas, mas evoluem de acordo com o seu dinamismo internoe com o contexto exterior e que a própria observação podia ser umdesses fatores, não estavam se referindo propriamente ao grupo fa-miliar. No entanto, esse princípio básico da investigação ativa é omesmo daquele que chamamos de observação participante.

Esse é o cunho especial a que nos referimos anteriormen-te a respeito da observação em nossa investigação, ou seja, uma ob-servação participante, ativa; a explicação dessa observação tambémé parte de nossa inserção no problema que propusemos estudar, apartir de nossa experiência.

Keeney, em Aesthetic ij change (1983), fala no uso do termoepistemologia com um duplo sentido: para indicar como pensa, per-cebe e decide uma pessoa e para indicar o que pensa, percebe e de-cide essa pessoa.

Para saber qual é a nossa epistemologia no primeiro senti-do indicado por Keeney, tomamos como fato que o nosso pensa-mento se dá dentro de um pressuposto sistêmico e o que pensa-mos é na repetição de padrões interacionais os quais estão dentrodessa perspectiva e com a nossa experiência peculiar de perceberesse fenômeno. Aliás, Keeney remete-nos a um aspecto que podeser uma característica nossa ou, talvez, seja algo comum a outrosclínicos que militam dentro da terapia familiar de base sistêmica,

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que é a pregnância do modelo na prática e a dificuldade de separara epistemologia dessa mesma prática. Escrever sobre a epistemo-logia é, para nós, escrever a prática.

Keeney ainda nos diz que "o observador primeiro distin-gue e logo descreve e que toda pergunta, ao propor uma distinção,constrói sua própria resposta". Cita também Laing que afirma:''Aquilo que a ciência empirica denominafatos, para ser mais honesto,deveriamos chamá-Ios captos" (no sentido do que é captado).

Usando tais afirmações, podemos dizer que a forma pelaqual os dados são captados na prática clínica ocorre dentro de umavisão sistêrnica, por meio da qual essa prática também se dá.

Isso pode ser aquilo que Bateson (1968) chama de episte-mologia recursiva própria da relação entre a teoria e a prática clíni-ca, e pertence ao mundo da cibernética, onde, segundo Keeney, aação e a percepção, a descrição e a prescrição, a representação e aconstrução estão entrelaçadas.

2. INSTRUMENTOS

Além da análise das sessões de Terapia Familiar, usaremos,para detectar os padrões interacionais que se repetem intergeracio-nalrnente, o genograma e a linha de tempo familiar (LTF).

2.1. O GENOCRAMA

o genograma é hoje largamente usado na prática da Tera-pia de Casal e Família e tem-se mostrado um instrumento eficientepara o entendimento das relações, vinculos, mitos, padrões das fa-milias de origens.

O genograma evoluiu da Teoria dos Sistemas Familiares deBowen (1978), autor que priorizou uma abordagem multigeracionald(' rilll1f1i~ c a estrutura conceitual usada pela grande maioria dosllll! II'(~Hljll(' Imhalham comgenogramas (McGoldrick; 1977; Guerin

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e Pendagast, 1976; Carter, 1976; Lieberman, 1979) foram baseadasem suas idéias.

O genograma é uma representação gráfica multigeracionalda família que vai além da simples genealogia, pois inclui tambémas relações e interações familiares.

Nosso primeiro contato com este instrumento foi a elabo-ração do nosso próprio genograma e sem dúvida uma das mais ri-cas experiências pessoais. As coincidências, as repetições, alianças,e todos os processos que cada um de nós sabe existir no contextofamiliar surgem e se concretizam no desenho do genograma. A his-tória reaparece e podemos fazer sua leitura ou releitura,

Um dos fatos marcantes do nosso próprio genograma foio fato de que no dia em que fazia 15 anos, minha avó paterna fale-ceu. Apesar de morarmos distantes (600 km) havia muita ligaçãoentre nós por ser a neta mais velha, ter morado dos 7 aos 8 anoscom ela etc. Havia sido programada uma festa de comemoração emeus pais assumiram continuar com a programação. Quando a festaterminou meu pai me comunicou a perda e viajamos para o enterro.

Dezenove anos após, minha primeira filha faz 15 anos emeu pai tem um infarto nesse dia, sendo internado no interior doEstado onde residia. Repetimos o padrão: a festa continuou e sódepois de terminada comunicamos o acontecido e rumamos parao interior. Coincidência? Podemos até tomar o fato como uma in-feliz coincidência, mas o padrão familiar que se repetiu, o funcio-namento do sistema nessas ocasiões permaneceu.

Guerin e Pendagast (1976) chamaram o genograma de "ma-pa viário" do sistema de relações familiares. McGoldrick e Gerson(1985) dizem que o genograma é "uma forma para desenhar a ár-vore familiar que registra informações sobre os membros de umafamília e suas relações pelo menos durante três gerações" (p. 17).

Kramer (1985) substitui o termo genograma por diagramae diz que o processo de fazer o diagrama é uma exploração mútuade questões transgeracionais.

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o genograma recolhe informações estruturais vincularese funcionais de um sistema familiar que pode ser analisado hori-zontalmente, por meio do contexto familiar atual e verticalmente,através das gerações.

McGoldrick e Gerson (1985) afirmam que elaborar umgenograma pressupõe três níveis: um primeiro que é o traçado daestrutura familiar, o segundo que é o registro informativo da famí-lia e o terceiro que é a representação das relações familiares.

Para McGoldrick e Carter (1980) a família é o sistema primá-rio e, com raras exceções, o mais poderoso ao qual o indivíduo per-tence. Para eles, o funcionamento emocional, físico e social dos mem-bros de um sistema familiar são interdependentes. Assim, as inte-rações e relações familiares tendem a ser altamente recíprocas, pau-tadas e reiterativas, e essas pautas permitem realizar tentativas deprevisões a partir dos genogramas.

Dentro do propósito do nosso trabalho que é a de pesquisaros padrões interacionais que se repetem intergeracionalmente, ogenograma evidencia-se como um instrumento fundamental e pre-ponderante.

Em nossa prática clínica, o genograma é elaborado em di-ferentes fases da terapia, dependendo do momento de cada famí-lia em particular, ao contrário do que é proposto por McGoldrickque recomenda a feitura do genograma nas primeiras sessões.

Às vezes, recebemos uma família com uma queixa muitoespecífica que, naquele determinado momento, está causando muitoestresse. Para esta família, envolver-se na exploração do transgera-cional, por meio do genograma, pode ser, naquele momento, ina-dequado e em outro grupo familiar, até necessário para desviar ofoco da situação estressante.

A hora de usar essa ferramenta poderosa na Terapia Fa-miliar tem, de acordo com nossa experiência, que ser bem es-01h ida pelo terapeuta, para que haja uma resposta eficiente ao ins-

rru mcnro.

A FAMÍLIA COMO MODELO103

Às vezes, começamos a elaboração do genograma com afamília numa sessão e na seguinte surge algum assunto ou temaemergencial. Podemos suspender o trabalho com o genograma eretorná-lo em outra sessão posterior, sem que isso acarrete quebraou problema na sua elaboração.

Costumamos fazer o genograma em cartolina ou outro tipode papel encorpado usando pincéis atômicos. A cartolina é fixadana parede ou num quadro de forma que fique visível a todo grupo

familiar.O genograma, sendo peça fundamental para o diagnósti-

co do grupo familiar, quanto maior o número de pessoas envolvi-das na sua elaboração, melhor.

Os símbolos que usamos no genograma são os propostospor McGoldrick e Gerson.

Começamos a elaboração do genograma sempre pela famí-lia nuclear que é, geralmente, a família consultante. Colocamos en-tão o símbolo O para designar o homem, O para designar a mu-lher e o traço de união -ligando, os dois, conforme modelo abaixo.

9 9Dentro das figuras, colocamos a idade de cada um e abai-

xo o nome ou a inicial do mesmo, como se segue.

8ft ~Aqui já podemos perguntar sobre apelidos ou como as pes-

soas são chamadas em casa, o porquê disto e quem deu O apelido e

assim por diante.

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N O traço de união - colocamos o número indicativo dotempo que o casal vive junto.

~ 16 ~

Da linha horizontal de união, conforme modelo abaixo,saem linhas verticais correspondentes aos filhos, usando-se a mes-ma sistemática para anotar sexo e idade, nome, apelidos etc.

Neste ponto nos detemos e exploramos as relações exis-tentes nesse primeiro grupo familiar, os fatos significativos, as alian-ças, os aspectos físicos e assim por diante.

Indagamos a cada um dos membros sobre si mesmo e tam-bém usamos questões circulares, perguntando para D sobre C, porexemplo.

O genograma funciona para nós, em nível de diagnóstico,corno o desenho da família e, nesse sentido, seguimos a mesma téc-nica: durante o desenho da família, vamos perguntando ao sujeitocomo ~ a pessoa que ele está desenhando com perguntas do tipo:corno da é? do que gosta? o que faz? do que não gosta? quem se pare-ce com quem? quem se dá melhor çom quem? e assim por diante.Durante o genograma, detemo-nos em cada um dos representadossimbolicamente e fazemos perguntas semelhantes, adequando-as

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à idade, à intimidade e ao conhecimento dos envolvidos na elabo-ração do genograma.

Nossa experiência mostra que, na maioria das vezes, a fa-mília entra nessa tarefa com muita espontaneidade.

Um dos cuidados importantes que se deve tomar é que asessão de genograma não se torne uma sessão de queixas e acusa-ções entre os membros da família. Nesse sentido, o terapeuta deveestar habilitado para construir apropriadamente o genograma coma família, sem deixar que tais distorções aconteçam.

Quando o diagrama da família nuclear está pronto, o tera-peuta pode perguntar a respeito do funcionamento da família. Assim,por exemplo: como são estabelecidas as regras? quais os limites ecomo eles são respeitados? como agem diante de determinadas si-tuações? o lema da família; as características principais do grupofamiliar e outras questões pertinentes a cada sistema em particular.

Em alguns casos, quando existem crianças menores e, àsvezes, com famílias que necessitam de maior concretização, costu-mamos substituir o D e O por desenhos esquematizados dotipo ir e Y procurando, quando da descrição das pessoas, colo-car alguma característica importante. Numa família, por exemplo,o pai foi descrito por todos os membros como sempre "carregandouma mala" e o fato de colocar essa mala na figuraesquematizada pro-porcionou mais tarde, quando desenhávamos a família de origem dopai, encontrar "malas" no avô e em outras figuras masculinas.

O genograma constitui, para a grande maioria das pessoas,um reencontro importante com o passado.

O uso do genograma tanto com famílias como com pacien-tes individuais, em nossa prática clínica, demonstrou ser um ins-trumento de grande eficácia que pode, ao mesmo tempo, ser umadescoberta agradável, satisfatória e instigante, mas também reve-lar repetições e acontecimentos de grande impacto emocional.

Muitas vezes o impacto causado pelo genograma numa ses-são é tão intenso que a família, casal ou mesmo o paciente indivi-

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dual, na outra sessão, traz uma demanda diferente. Quando issoacontece aceitamos e deixamos a continuação do genograma parasessões futuras.

Voltando à elaboração do genograma com a família, detemo-nos na família nuclear o tempo que for necessário, enquanto a fa-mília estiver envolvida, interessada e fornecendo dados que são re-levantes para a terapia.

Em famílias com filhos casados, como no exemplo abaixo:

o genograma é feito primeiro com os filhos antes de passar para asfamílias de origem.

Passamos, a seguir, para a família de origem dos cônjuges. Aescolha de qual família se representará primeiro, em nossa experiên-cia, faz parte do processo terapêutico e transmite informações do tipo:

competitividade entre o casal;qual a família de origem que está mais próxima da fa-mília nuclear;ual a família de origem mais considerada;

I'lftl n família de origem designada como mais proble-111\1111:1;

'Iillil 'I 1';111111111dI' Migem mais fácil ou difícil de lidar etll/illlll" 'I dl\ll1lt~,

A FAMÍLIA COMO MODELO 107

Se houver o desejo voluntário de um dos cônjuges em ini-ciar pela sua própria família, indagamos dos outros membros pre-sentes o que acham e iniciamos, então, pela do voluntário.

Chegamos, na pesquisa geracional, até onde pudermos co-lher informações, o que geralmente fica na terceira geração e, emcasos mais especiais, na quarta.

Em muitas ocasiões, completar o genograma é uma tarefapara fora da sessão, onde a família e/ou o membro mais envolvidovai buscar com a família extensa os dados que faltam no genograma;nesse sentido, pode haver mudanças nas relações familiares, comono caso de parentes que não se vêem há muito tempo e se reencon-tram, ou quando os álbuns familiares são "desenterrados".

Na família S, por exemplo, constituída de uma mãe e filhade 10 anos cujos pais eram separados, a menina só tivera raríssimoscontatos com a família do pai, e o genograma propiciou um encon-tro com a avó paterna que lhe era totalmente desconhecida. O reen-contro com a "metade perdida" do pai constituiu um elemento degrande ajuda para a terapia da díade mãe/filha e pode esclarecerpontos importantes na terapia.

Uma das observações marcantes que podemos fazer como uso do genograma é que o interesse e a curiosidade dos mem-bros da família por essa forma de representação é muito grande,com raríssimas exceções. O envolvimento é de toda família e, umdado relevante é que as famílias que atendemos sabem, em geral,muito pouco a respeito de suas origens, principalmente, a últimageração.

Quando o genograma está pronto, ele é discutido com todaa família da mesma maneira como foi feito com a parte da famílianuclear e, nesse momento, colhemos o maior número possível deinformações referentes às repetições dos padrões interacionais fa-miliares.

A descoberta pela família das repetições de padrões que vie-ram num processo transgeracional torna-se, por si só, um fator de

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mudança significativa para algumas famílias. Em outros casos, é aíque começa o trabalho de terapia e em outros ainda, a família nãoconsegue sair do sistema e sequer perceber o que acontece em ter-mos de repetição.

2.2. A LINHA DE TEMPO FAMILIAR (LTF)

Quando dissemos que usamos a "Linha de Tempo Fami-liar" (LTF) (Cerveny, 1992) junto com o genograma, significa que,além do genograma, fazemos uma linha horizontal com a famílianuclear, onde colocamos as datas e fatos mais importantes. A li-nha de tempo familiar baseia-se em estratégia usada no ensino deHistória, com a finalidade de mostrar ao aluno a ocorrência dosfatos, numa seqüência de tempo. Muitos terapeutas familiares re-tiram do próprio genograma datas e fatos significativos, mas nos-sa experiência tem mostrado que ressaltar essas datas e aconteci-mentos, em uma linha de tempo, faz com que se obtenha muitomais informação e sirva também como parte do diagnóstico da fa-mília.

Traçamos uma linha e dizemos ao grupo familiar que va-mos fazer a linha de tempo da família. Perguntamos, então: Em queano começa esta família? Em que data começa a história de vocês?A resposta mais comum é começar pela data do casamento dos pais,mas outras respostas também podem aparecer, do tipo: a famíliacomeçar com o nascimento do primeiro filho, com o namoro dospais, ou quando o casal se conheceu. Numa família que, após o ca-samcn to, O casal continuou morando na casa de um dos pais, a res-1)( ):-;1:\ r()i (1\1<': a fnmília começou quando passaram a morar sozinhos.C() 11111111:111!OH colocando as datas e os fatos, observando se há con-<:()II!:tllUiI ellll(~ (l \':!s:rl d(' que datas foram importantes, ou se al-glllll:l tI;ll:r ~111 r:llfI I~li illll)( 1I'In 111(' pn ra um, mas não foi para o ou-(I"() c ilssilll P()I dialll!',

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EXEMPLO DE LTF DA FAMíLIA S

1980período feliz

1974 1 casamento e nascimento de A

1975 I período bom

1976 I pai inicia negócio próprio

1977 I nascimento de Boperação de A e tempo que é marcado por doenças das filhas

1986 I viagem ao Exterior com toda a famíliamãe começa a trabalhar com o pai

1988 I acidente automobilístico e pai operado

1989 I fechamento da empresa da família

1990 I início de novo empreendimento

1991 I início da fase ruim do casalinício da terapia

Nessa família do exemplo 1, o acidente automobilístico so-frido pelo pai em 1988 foi apontado por todos como a data maissignificativa e que mais abalou a família, menos pelo próprio pai.Porém, mais tarde, durante a terapia, pudemos verificar que, real-mente, o acidente, que havia sido gravíssimo e que fora responsá-vel por grandes mudanças na estrutura da família, nunca havia sidodiscutido pelos membros.

Com algumas famílias, fazemos a linha de tempo da famí-lia nuclear e também a linha de tempo das famílias de origem. Exis-tem, às vezes, coincidências na linha de tempo que são importan-tes para o diagnóstico e para as repetições dos padrões intergeracio-nais. Em uma outra família, pudemos, por exemplo, observar que

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uma data apontada como significativa da família nuclear (doença ehospitalização do pai) coincidiu, na linha do tempo da família deorigem do pai, com a hospitalização do avô para colocação de pontede safena.

Voltamos a afirmar que, apesar de autores explorarem nopróprio genograma as relações e coincidências de datas, a sua orga-nização, numa linha específica de tempo, tem mostrado que existeuma maior riqueza na cronologia dos fatos e a identificação maisfácil por parte da família dos momentos de estresse e de grandesacontecimentos.

McGoldrick e Gerson (1985) enfatizaram o que chamaramde cronologia da família que elaboram junto com o genograma. Acronologia familiar, para eles, consiste uma relação ordenada de fa-tos importantes na história da família que poderia ter afetado o in-divíduo. Outras vezes, os mesmos autores fazem a cronologia deum período de tempo que foi mais crítico para a família, ou mes-mo a cronologia de um só indivíduo da família.

Berenstein (1979) diz que "cada família ordena seus aconteci-mentos vividos num tempo que retém todas as características da es-trutura familiar. Quando os membros de 'uma farru1iarelatam sua his-tória como grupo, eles lembram conscientemente alguns acontecimen-tos passados, certamente importantes e gravados por eles na memó-ria, mas esquecem também alguns episódios e ocultam outros pos-sivelmente não menos importantes. Os acontecimentos lembradossão ordenados a partir da organização atual da família e muitas ve-zes contribuem para explicar algumas de suas contradições. O tem-po se transforma num marco onde se colocam não só os aconteci-mentos vividos, mas também a relação entre todos eles" (p. 187).

Berenstein trabalha numa epistemologia baseada na psica-nálise e, para ele, o estudo do tempo recupera uma estrutura ana-crônica na família consultante. Seu trabalho sobre o tempo fami-liar: que ocupa o capítulo 6 do seu livro, Família e doença mental, leva-nos a refletir sobre a importância desse dado da história familiar

A FAMfuA COMO MODELO 111

que é o tempo e que, às vezes, não é devidamente explorado nasterapIas.

Nas terapias sistêmicas, o uso do genograma ou do diagra-ma de família mostra bem sua estrutura e suas relações, mas nãoexplora exaustivamente a questão da temporalidade.

Friedman, Rohrbaugh e Krakauer (1988) desenvolveramuma forma de genograma modificado no qual o tempo é marcado emlinha vertical, de maneira que os acontecimentos possam ter suacorrespondência em nível de data. Eles chamaram essa forma de ge-nograma de Genograma Linha de Tempo (GLT) e dizem que, noGLT, indivíduos e acontecimentos podem ser mostrados em umrelacionamento temporal próprio. Eles adaptaram os símbolos do ge-nograma standard de McGoldrick e Gerson (1985) com acréscimose modificações. Segundo eles, um acréscimo importante é a linhade vida individual, que se estende do nascimento até a morte, aolongo da qual os acontecimentos e fatos relacionais são indicados.O GLT teria então duas leituras: uma horizontal e outra vertical.

Apesar de suas vantagens, o GLT apresenta, segundo seusautores, algumas desvantagens. Uma delas é a dificuldade de suaconstrução e a pouca flexibilidade para colocar as pessoas ou dis-tribuir os acontecimentos.

A grande vantagem do genograma tradicional, como ins-trumento para registro da estrutura e dos padrões de relacionamentodas famílias, é a possibilidade de ser construído junto com as famí-lias, durante as sessões ou mesmo fora dela e a facilidade de leiturarelacional. O GLT, embora tenha a vantagem de dar a relação tem-poral, pode dificultar esses dois aspectos que foram citados.

Quando propomos a construção da Linha de Tempo Fami-liar, separada do genograma, nossa intenção era, além de definir as-pectos da temporalidade da família, obter dados diagnósticos e tam-bém relacionais. Quando indagamos para família ou casal: "Quan-do esta família começou?", estamos cientes de que o tempo e asdatas são aspectos importantes mas não são os únicos que investi-

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gamos. A Linha de Tempo Familiar, como a apresentamos, dá apossibilidade ainda de comparar, quando feitas as linhas de tempodas famílias de origem, e perceber as coincidências e repetições.

A Linha de Tempo Familiar, como a concebemos e: usamosno contexto terapêutico, tem-se mostrado um instrumento simples,prático, de fácil elaboração, que complementa o genograma e so-bretudo tem junção diagnóstica e terapêutica.

Em uma família atendida, quando ambos os pais disseram,na elaboração da LTF, que a família começou com o nascimentoda filha mais velha, observamos que houve uma mudança qualita-tiva das relações entre esses pais e a filha. Ela é portadora de umproblema congênito e sempre colocava em dúvida se podia ser que-rida e aceita por esses pais.

Quando construímos a LTF com a família, pode aconte-cer de a família omitir um determinado período de tempo ou, sim-plesmente, dizer que foi um "período ruim". Nesse momento, nãoinsistimos com a família na investigação, tentando voltar numa oca-sião mais propícia.

É muito difícil estabelecer um procedimento estanque paraa aplicação da LTF. Assim como acontece no genograma, o tera-peuta deverá eleger o melhor momento para a aplicação da técni-ca, bem como da conveniência ou não de insistir em esclarecer pe-ríodos de tempo conflituosos para a família.

Para um casal que atendemos, o marido dizia que 1983 ha-via sido horrível e a esposa afirmava que 1984 havia sido pior. Onúmero de acontecimentos nesses dois anos eram tão intensos que,nesse caso, indagamos se eles não queriam separar 83 e 84 em me-ses para que pudéssemos ver essa cronologia mais detalhadamente.

N esse caso, separamos da LTF esses dois anos e fazemosuma outra linha só desse período.

Estamos usando a LTF desde 1990 e algumas modificaçõesforam introduzidas por nós na técnica de aplicação que facilitam aleitura da LTF

A FAMÍLIA COMO MODELO 113

Assim, atualmente, quando fazemos a LTF com um casal, co-locamos as respostas do homem na parte superior da linha e as da mu-lher na parte inferior da mesma linha, como no exemplo a seguir:

RESPOSTAS DE F(MULHJ.m)

casamento

S muda de emprego

LTF DO CASAL SF

RESPOSTAS DE S(MARIDO)

85 início do namoro e noivado

86 F termina Faculdade de Direito

87 viagem do casal do ExteriorF consegue estágio em um escritório

88 irmã de F mora durante dois meses com F e Salarme falso de gravidez

89 aborto espontâneo de F e início detratamento para terem filhos

F larga do emprego I 90 mãe de F faz esterectomia

ano ruim

surge a oportunidade de morarem fora doBrasil e F não quer início de problemas nocasamento

91F volta a trabalharviagem de férias em que brigam muito

92 separam-se pela primeira vez (2 semanas)

Essa modificação permite observarmos que S concorrecom um número muito maior de dados sobre a família do que F e,inclusive, guarda fatos que são pertinentes à família de origem de F.

Também usamos a linha na vertical quando é mais conve-

niente para a anotação.

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114 CENEIDE M. DE O. CERVENY

o genograma e a LTF constituem, para nós, além da análi-se das sessões clinicas com as famílias, instrumentos fundamentaispara o estudo da repetição dos padrões interacionais horizontal everticalmente.

Na aplicação tanto do Genograma como da LTF, os recur-sos que o terapeuta usa para a montagem são todos os que usamos du-rante a terapia. Fazemos questionamento circular, usamos as per-guntas reflexivas, elaboramos a releitura dos dados com as famílias,conotamos positivamente, enfim, tanto o genograma como a LTFajudam-nos a construir novas realidades com as famílias atendidas.

SíMBOLOS USADOS NO CENOCRAMA

@JA

®B

Homem: colocado à esquerdada representação, idade dentroe nome ou inicial fora.

Mulher: colocada à direita,idade dentro e nome ou

inicial fora.

16Ligação, casamento. o número acima indicando o

númearo de anos de casamento.

-lI-

~Indica separação, divórcio,rompimento

Indica filhos.

( )~ IIIIIIIM /11111colocados obedecendoI ~I'I\"IIIII IIldl'lll: I v('lho rI esquerda

l' I 11111'1111 "1111111, Indica gêmeos.

A FAMfUA COMO MODELO 115

9i9O

Indica gêmeos idênticos. Significa adotado.

Significa aborto provocado.

Significa aborto espontâneo.

~ Q9Qualquer símbolo cruzado significa

que a pessoa morreu. Acresce-seacima a data de morte e causa.

1980 coração

~Gravidez. (A) teria hoje 72 anos. Morreu

em 1980 do coração.

Page 11: A Familia Como Modelo, Capitulo 5

116CENEIDE M. DE O. CERVENY

Aliança intergeracional.

RELA C/ONAMENTOS

Biológico e normal.

V"VVConflito.

Pouco relacionamento.

~_A 7VV V

Relacionamentofusionado e conflitivo.

Aliança intrageracional.

--I/--

Rompimento.

-~II-I--Separação.

Relacionamentofusionado.

Capítulo VI

ANÁLISE DOS CASOS ESTUDADOS

CASO 1

Este caso foi atendido na Clínica Psicológica da PUC pordois terapeutas-alunos do Curso de Especialização em Terapia deCasa e Família, do Núcleo de Família e Comunidade do Programade Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, com supervi-são em sala de espelho unidirecional. O atendimento constou de16 sessões, em 1991, com intervalo de 15 dias entre as sessões euma sessão em 1992 com intervalo de dois meses.

O sistema atendido compunha-se da mãe (Diná), de 43 anos,e a filha (Ana), de 10 anos. A queixa resumia-se em problemas escola-res com Ana e alguns problemas de relacionamento entre Diná eAna que ocorriam, principalmente, pela "desorganização" de Ana.

Diná trabalha como assessora de marketing e não tem umhorário definido ficando, às vezes, o tempo todo em casa e, outrasvezes, trabalhando fora até muito tarde.

Diná está separada do pai de Ana há nove anos. Ele (júlio)é descrito como ausente, não aparecendo nem em datas especiais, comoaniversário de Ana, Natal etc. Diná sempre se refere ao ex-rnaridocomo "o falecido". Na primeira sessão, os terapeutas (Ts) tentamfazer com que Ana expresse seus sentimentos em relação à ausênciado pai e, na 2ª sessão, a mãe Diná aparece sozinha. Reclama com as Tsque ter falado sobre o pai de Ana na sessão anterior foi "pesado" eque havia "mexido" com Ana, pois essa expressara desejo de falarcom o pai e telefonara para ele. Contou que Ana não encontrou o pai