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4 • Sexta-feira 6 Janeiro 2012 • Ípsilon Eduardo Lourenço acabou o ano de 2010 a receber o Prémio Pessoa e a ver sair o primeiro volume das suas obras completas na Gulbenkian. No final de 2008, a mesma fundação dedicara-lhe um colóquio interna- cional, cujas actas foram reunidas num número especial da revista “Co- lóquio Letras”. Nestes tempos de consagração e consenso, o livro ago- ra publicado pela Gulbenkian – que recolhe “Heterodoxia I” (1949), “He- terodoxia II” (1967), ambos acresci- dos de textos dispersos escritos na mesma época, e ainda um conjunto de ensaios reunidos sob o título de Heterodoxia III – vem chamar a aten- ção para um percurso que se iniciou há mais de 60 anos e que tardou mais do que tende a ser lembrado a recolher o aplauso unânime de que hoje desfruta. Apesar de todas as reservas que o próprio Lourenço coloca a essa sua obra de juventude, publicada aos 20 e poucos anos, “Heterodoxia I” não é uma dessas estreias precipitadas que o próprio autor desejaria esque- cer. Pelo contrário, Lourenço regres- sará a ela em 1967, quando publica “Heterodoxia II”, que já estava es- crito desde o início da década. Ao “Prólogo sobre o Espírito e Hetero- doxia”, que abria o volume de 1949, acrescentará então um “Segundo Prólogo sobre o Espírito de Hetero- doxia”; ou, na verdade, dois segun- dos prólogos, já que o que virá a aparecer na edição de 1967 não é o que originalmente tinha escrito em 1960, quando dera o livro como con- cluído. Só na reedição conjunta “He- terodoxia I e II” (Assírio e Alvim, 1987) será finalmente possível ler os três textos em sequência. Comparado com muito do que veio a escrever – as fulgurantes análises de “Fernando Pessoa Revisitado” (1973) ou “Fernando, Rei da Nossa Baviera” (1986), as páginas que dedicou a An- tero de Quental, a identificação e crí- tica, em “O Labirinto da Saudade” (1978), das imagens que os portugue- ses foram historicamente construindo de si mesmos, ou ainda os muitos en- saios em que foi pensando a relação de Portugal com a Europa –, é possível A felicidade de um ensaísmo trágico Apreciador de “westerns”, Eduardo Lourenço será sempre, no pensamento português, um “lonesome rider”, intervindo, ao sabor das circunstâncias e segundo os ditames da sua consciência, no mundo que o rodeia, mas incapaz de procurar refúgio e descanso mesmo entre os “bons da fita”, e partindo sempre, no final do filme, rumo a paragens que ele próprio ignora. A Gulbenkian acaba de lançar o primeiro volume das suas obras completas. Oportunidade para lembrar como se iniciou, há mais de 60 anos, o singular trajecto intelectual agora consagrado com o Prémio Pessoa. Luís Miguel Queirós “Eduardo Lourenço tem um pensamento, o que é uma coisa raríssima; dizemos o pensamento deste ou daquele, mas quase não há pessoas que tenham um pensamento” José Gil ADRIANO MIRANDA

A felicidade de um ensaísmo trágico | Eduardo Lourenço

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“[...]a relação de Eduardo Lourenço com o cristianismo é um assunto muitíssimo por explorar e por ser compreendido”. José Gil in Ípsilon [por Luís Miguel Queirós, 05/01/2012, pp. 4-8]

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4 • Sexta-feira 6 Janeiro 2012 • Ípsilon

Eduardo Lourenço acabou o ano de 2010 a receber o Prémio Pessoa e a ver sair o primeiro volume das suas obras completas na Gulbenkian. No final de 2008, a mesma fundação dedicara-lhe um colóquio interna-cional, cujas actas foram reunidas num número especial da revista “Co-lóquio Letras”. Nestes tempos de consagração e consenso, o livro ago-ra publicado pela Gulbenkian – que recolhe “Heterodoxia I” (1949), “He-terodoxia II” (1967), ambos acresci-dos de textos dispersos escritos na mesma época, e ainda um conjunto de ensaios reunidos sob o título de Heterodoxia III – vem chamar a aten-ção para um percurso que se iniciou há mais de 60 anos e que tardou

mais do que tende a ser lembrado a recolher o aplauso unânime de que hoje desfruta.

Apesar de todas as reservas que o próprio Lourenço coloca a essa sua obra de juventude, publicada aos 20 e poucos anos, “Heterodoxia I” não é uma dessas estreias precipitadas que o próprio autor desejaria esque-cer. Pelo contrário, Lourenço regres-sará a ela em 1967, quando publica “Heterodoxia II”, que já estava es-crito desde o início da década. Ao “Prólogo sobre o Espírito e Hetero-doxia”, que abria o volume de 1949, acrescentará então um “Segundo Prólogo sobre o Espírito de Hetero-doxia”; ou, na verdade, dois segun-dos prólogos, já que o que virá a

aparecer na edição de 1967 não é o que originalmente tinha escrito em 1960, quando dera o livro como con-cluído. Só na reedição conjunta “He-terodoxia I e II” (Assírio e Alvim, 1987) será finalmente possível ler os três textos em sequência.

Comparado com muito do que veio a escrever – as fulgurantes análises de “Fernando Pessoa Revisitado” (1973) ou “Fernando, Rei da Nossa Baviera” (1986), as páginas que dedicou a An-tero de Quental, a identificação e crí-tica, em “O Labirinto da Saudade” (1978), das imagens que os portugue-ses foram historicamente construindo de si mesmos, ou ainda os muitos en-saios em que foi pensando a relação de Portugal com a Europa –, é possível

A felicidade de um

ensaísmo trágico

Apreciador de “westerns”, Eduardo Lourenço será sempre, no pensamento português, um “lonesome

rider”, intervindo, ao sabor das circunstâncias e segundo os ditames da sua consciência, no mundo que o rodeia, mas incapaz de procurar refúgio e descanso mesmo entre os “bons da fi ta”, e partindo sempre, no

fi nal do fi lme, rumo a paragens que ele próprio ignora. A Gulbenkian acaba de lançar o primeiro volume das

suas obras completas. Oportunidade para lembrar como se iniciou, há mais de 60 anos, o singular trajecto

intelectual agora consagrado com o Prémio Pessoa.Luís Miguel Queirós

“Eduardo Lourenço tem um pensamento, o que é uma coisa raríssima; dizemos o pensamento deste ou daquele, mas quase não há pessoas que tenham um pensamento” José Gil

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que esse livro de 1949 pareça emitir um brilho mais pálido. No entanto, talvez seja útil regressar a ele para tentar encontrar um início de respos-ta a essa pergunta que talvez nunca venha a ter uma elucidação satisfató-ria: o que é, e que lugar ocupa (e face a quê?), a obra de Lourenço?

O próprio género que escolheu, o ensaio, que nem se confunde com a filosofia, nem com o estudo de tipo académico, nem com a criação lite-rária em sentido estrito, embora man-tenha fonteiras difusas com todos eles, contribui para que não seja fácil definir e enquadrar a sua obra. É pos-sível confrontá-la com a escassa tra-dição ensaística portuguesa – e o pró-prio Lourenço se encarregou disso,

por exemplo nos textos sobre Antó-nio Sérgio –, ou com os mestres es-trangeiros do ensaio, desde Montaig-ne, mas já não é tão claro, e desde logo pelas próprias características do género, que seja possível situá-lo na história do ensaísmo no mesmo sen-tido em que se situa um filósofo na história da filosofia, ou mesmo um poeta ou um romancista na história da literatura.

Mas em 1949, não é ainda evidente o caminho que Lourenço irá seguir. Daí que o ensaísta Luís Mourão veja “Heterodoxia I” como “um livro de ruptura” – quer por romper com as duas ortodoxias então dominantes no país, quer por se “demarcar, com um certo arrojo, do que era então a

linguagem do meio académico de Coimbra” –, mas também “um livro de passagem”. É uma obra, argumen-ta Mourão, “ainda ligada à Faculdade, com referências a leituras”, mas apon-tando já para “um tipo de escrita que será depois muito mais livre”. Ou se-ja, resume, “já não era académico, mas tem marcas disso, e ainda não

era essa outra coisa que a obra de Lourenço veio a ser”.

O filósofo José Gil, co-autor, com Fernando Catroga, de “O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço”, acre-dita que o autor “começou por ter uma pulsão filosófica” e que textos como o que dedica à dialéctica hege-liana em “Heterodoxia I” ou a

As minhas ideias são negríssimas, mas eu não sou negríssimo

Eduardo Lourenço acabou o ano de 2010 a receber o Prémio Pessoa e a ver sair o primeiro volume das suas obras completas na Gulbenkian

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Kierkegaard em “Heterodoxia II”, ou ainda os vários outros em que se confronta com o existencialismo, su-gerem que Lourenço teria o projecto de constituir “um corpo de pensa-mento próprio de tipo filosófico, con-ceptual”. Depois, diz Gil, “aconteceu qualquer coisa, que já está refelectida nos ensaios agora reunidos em Hete-rodoxia III, e que passa por uma im-possibilidade de pensar o que queria pensar, como a cultura portuguesa, segundo conceitos no interior de um sistema”. Lourenço tem “uma grande capacidade especulativa” e “estava destinado a ser um filósofo”, mas “o seu apetite de real”, sugere José Gil, levou-o a “abdicar de um pensamen-to puramente conceptual”.

Duas querelas desiguaisO próprio Lourenço lembra que o texto que encerra “Heterodoxia I”, “O Segredo de Hegel ou O Equívoco da Dialéctica” correspondia à sua te-se de licenciatura, que apresentara em 1946 com o título “O Sentido da

Dialéctica no Idealismo Absoluto”. E acrescenta agora: “O único que se deu conta disso foi Vitorino Nemésio, que escreveu que o livro ‘cheirava a ban-co de escola’; e tinha razão”.

Publicado em Coimbra, quando Lourenço estava de partida para Bor-déus, em cuja universidade estagiaria com uma bolsa da Fundação Fullbri-ght, “Heterodoxia I”, di-lo o próprio autor em várias entrevistas, nasceu do seu desejo de se demarcar das du-as ortodoxias que monopolizavam os meios intelectuais portugueses do tempo: o catolicismo, do qual provi-nha por formação – o que o levou a frequentar, já em Coimbra, o Centro Académico de Democracia Cristã –, e o marxismo, com o qual se familiari-zara no convívio com alguns dos prin-cipais nomes da geração neo-realista, como Carlos de Oliveira, Rui Feijó ou Joaquim Namorado, primeiro na Fa-culdade de Letras coimbrã e depois na redacção da revista Vértice. “He-terodoxia I”, diz numa entrevista, foi “uma audácia” que o deixou “isola-

do” e “sem família”. Lourenço soube mais tarde que o livro fora muito mal recebido pelos seus antigos camara-das de Coimbra, muitos deles já então ligados ao PCP. “Andaram por lá a chamar-me traidor”. Sintomatica-mente, não há registo de que a obra tenha provocado reacções na “barri-cada” católica.

Esta recepção da sua obra de es-treia nos dois campos que nela eram visados, não deixa de ser paradoxal. Quando escreveu o livro, Lourenço acamaradava genuinamente com os seus amigos neo-realistas na oposição ao salzarismo e, sobretudo, na crítica ao discurso cultural do Estado Novo. Mas acontecera-lhe ler, ainda antes de acabar o curso, uma tradução ita-liana de “Assignment in Utopia”, que o jornalista americano Eugene Lyons publicara em 1937 e que, diz, “des-crevia com todos os pormenores aquela tragédia que foram os proces-sos de Moscovo”. Em meados dos anos 40 já tinha, pois, como eviden-te que “a revolução russa estava a

“Lourenço nunca fez aquilo que depois fez a esquerda, que foi ficar com o humanismo da Igreja, tirando-lhe apenas a parte clerical” Luís Mourão

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descarrilar” e que Estaline impusera “um sistema de terror”.

Já a sua resistência ao catolicismo era, em certo sentido, inversa. Dis-tanciara-se dos meios católicos por-tugueses e de uma Igreja que dava cobertura ao regime, mas era bastan-te menos óbvio que tivesse desertado definitivamente do cristianismo. Na verdade, era essa a verdadeira ques-tão já em “Heterodoxia I”, e ainda mais claramente em “Heterodoxia II”. É o que pensa José Gil, que acredita que “a relação de Eduardo Lourenço com o cristianismo é um assunto mui-tíssimo por explorar e por ser com-preendido”.

O próprio Lourenço confirma hoje o que já deixara claro em “Heterodo-xia II”: “A minha crise não era da mesma ordem num e noutro caso”. Defendendo que “o próprio conceito de heterodoxia só tem um significado preciso se for pensado na esfera re-ligiosa”, e que “empregá-lo no domí-nio da ideologia já implica uma trans-lação”, Lourenço admite que a sua

“querela fundamental” nesses pri-meiros livros “é religiosa”. Mas suge-re também que não se tratava apenas de um mero debate intelectual: “se um sujeito perde uma fé profunda, fica descalço, sem alternativa”. Para quem teve “uma educação católica”, afirma, “discutir seriamente o cato-licismo nos seus efeitos políticos e ideológicos era como assassinar mo-ralmente toda a família”.

É aqui que tem a sua verdadeira origem esse sentimento de “uma de-serção sem fim”, para usar a expres-são de que se servirá em “Heterodo-xia II”. Comparada com este afasta-mento inicial, a sua recusa das primeiras encarnações históricas do marxismo, mais do que da doutrina, era, pelo menos no foro íntimo, uma controvérsia comparativamente me-nor. “Fui um bocadinho dissidente”, admite. “E, de resto, não descobri a pólvora: vendo bem, o discurso de ‘Heterodoxia I’ já estava quase implí-cito naquela malta da ‘presença’, e também no Torga, que eu frequenta-va na altura”.

É provável, no entanto, que esteja a subestimar o que o livro trazia de efectivamente novo: “Não sei onde onde ele foi buscar forças para se de-marcar naquela época, em termos de pensamento, de ambas as barrica-das”, diz Luís Mourão, acrescentan-do: “mesmo dez anos mais tarde, na polémica provocada pelo romance ‘Aparição’ [1959], a grande preocu-pação de Vergílio Ferreira era a de mostrar que, de qualquer modo, es-tava na esquerda”.

Na companhia dos sósNos quase 20 anos que medeiam en-tre as “Heterodoxia” I e II, Lourenço, embora colabore assiduamente nos suplementos culturais da imprensa portuguesa, publica apenas um livro, mais tarde recolhido em “Tempo e Poesia”: “O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gera-ções”, de 1955. Mais ainda do que as considerações que nele tece sobre Torga e outros poetas do tempo, o que surpreende neste volume um tanto esquecido é a desconfiança com que o autor já então olha para essa grande e consensual tradição humanista na qual à época (se não hoje) quase todos afirmavam rever-se. “Lourenço nunca fez aquilo que depois fez a esquerda, que foi ficar com o humanismo da Igreja, tirando-lhe apenas a parte clerical”, nota Lu-ís Mourão.

A discussão sobre o humanismo, apesar do precedente de Heidegger, só chegaria realmente a Portugal, in-tegrada na polémica sobre o estrutu-ralismo, uma dúzia de anos mais tar-de, quando é publicada a tradução de António Ramos Rosa de “As Pala-vras e as Coisas”, de Michel Foucault. A edição veio acompanhada de um prefácio de Vergílio Ferreira, franca-mente crítico do estruturalismo – tex-to que dará origem a uma acesa po-lémica com Eduardo Prado Coelho – e de outro de Eduado Lourenço, “Michel Foucault ou o Fim do Huma-nismo”, agora recolhido neste primei-ro tomo das suas obras completas. Lourenço, diz Mourão, “fica um bo-cado pendurado”, uma vez que “não tinha a visão humanista de Vergílio Ferreira, mas também não era um

A fi losofi a, assim directa, não tem grande efi cácia junto do público português, se os fi lósofos não são bons escritores, as coisas não passam; se o Antero não fosse um grande poeta, as suas elocubra-ções não teriam tido o mesmo eco

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CURSOS JAN. FEV. 2012

BÍBLIA HEBRAICA: LEITURAS21 Janeiro a 11 Fevereiro

Formador: António Franco Alexandre

Uma introdução aos métodos e resultados da leitura crítica da Bíblia Hebraica (An-

tigo Testamento). As sessões serão organizadas em torno de pequenos extractos

dos dois primeiros livros da Bíblia (Génese, Êxodo).

FORMAÇÃO NO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO28 Janeiro

Formadores: João Malaca Casteleiro e Pedro Dinis Correia

O Museu do Oriente organiza mais um curso de formação na nova ortografia. Levar

os formandos a apreenderem as modificações e alterações trazidas pelo Acordo

Ortográfico de 1990, é um dos objetivos deste curso de sete horas letivas.

IV ESCOLA DE GAMELÃO DA ILHA DE JAVA4 Fevereiro a 28 Maio

Formadora: Elizabeth Davis

De Fevereiro a Maio, o Museu do Oriente vai acolher a IV Escola de Gamelão da

Ilha de Java. Este ano, os cursos, orientados como habitualmente pela professora

Elisabeth Davis, destinam-se a músicos e compositores, escolas, crianças, famílias,

bebés ou adultos. O gamelão é uma orquestra de percussão ímpar. Composta por

uma variedade de instrumentos de bronze e um conjunto de tambores e gonzos,

entre outros.

Mais informações em www.museudooriente.pt

Teatro Nacional São João

6-29 Jan2012

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) NADIR AFONSO: INTIMIDADE(S)produção TNSJem parceria com Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo/Instituto Politécnico do Porto, Vigília Filmescolaboração Fundação Nadir Afonso, Câmara Municipal de Boticas

NADIR AFONSO – O TEMPO NÃO EXISTEum filme de Jorge Campos

6+7 Jan 2012sex+sáb 21:30M/6 anos

Estreia absoluta

NADIR AFONSO – NO TEMPO E NO LUGARexposição de fotografias de Olívia Da Silva

6-29 Jan 2012qua-sáb 14:00 -20:00 dom 14:00-15:00Salão Nobre

NADIR AFONSO CONVERSA COM AGOSTINHO SANTOSum livro de Agostinho Santosapresentação João Fernandes

7 Jan 2012sáb 16:00Salão Nobre

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estruturalista”. A sua reacção, afir-ma, “foi a de dizer que não estávamos completamente preparados para que Foucault nos viesse dizer isto, mas sem nunca afirmar que não é assim como ele diz”.

Quando publica Heterodoxia II, em 1967, Lourenço afirma que “os pou-cos aplausos” que o seu livro de 1949 tinha merecido de “alguns jovens lei-tores” ficara decerto a dever-se à “as-similação apaixonada” que nele se fazia, “num tempo de obrigados e opostos silêncios”, da “liberdade do espírito” à “heterodoxia”. Mas esse é justamente um dos aspectos que corrigirá em 1967, admitindo que he-terodoxia e liberdade não são neces-sariamente sinónimos, ao mesmo tempo que precisa a sua crítica às duas ortodoxias então visadas, afir-mando que a recusa “da imagem que Catolicismo e Marxismo assumiam sociologicamente nos anos 40” não supunham a recusa liminar dos res-pectivos conteúdos, que, pelo con-trário, constituíam para o autor refe-rência indispensável e fonte de per-manente interrogação”.

Mas o que mais o preocupava nes-sa obra de juventude era que ela pu-desse sugerir uma heterodoxia tão racionalista e de tão boa consciência

consigo própria como as ortodoxias que criticava. “A segunda Heterodo-xia”, diz agora Lourenço, “com os seus textos sobre Camus, e mais do que tudo com o ensaio sobre Kierke-gaard, já não tem nada a ver com aquela ideia de me distanciar dos dis-cursos ortodoxos que dominavam em Portugal”. O último texto reunido nesse volume de 1967, “Ideologia e Dogmatismo – À Margem de Quatro Livros e Uma Só Canção” será ainda dedicado àquilo a que chama a sua “guerrilha cultural” com o neo-rea-lismo, mas

logo no ano seguinte publicará “Sentido e Forma da Poesia Neo-Re-alista”, que ele próprio depois assu-mirá ter sido uma tentativa de se re-conciliar com Carlos de Oliveira e, mais genericamente, com o grupo neo-realista de Coimbra.

Lourenço precisa ainda que a sua polémica com o neo-realismo “pas-sava sobretudo pelas coisas literárias” e que “era na ordem da crítica que rejeitava aquele maniqueísmo dos juízos culturais, literários e históri-cos”. De resto, acrescenta, “a filoso-fia, assim directa, não tem grande eficácia junto do público português, se os filósofos não são bons escritores, as coisas não passam; se o Antero não

fosse um grande poeta, as suas elo-cubrações não teriam tido o mesmo eco”. E conclui com uma dessas sín-teses tipicamente lourencianas: “Os nossos Platões são todos Homeros”.

Mas as polémicas com Augusto da Costa Dias ou Victor de Sá são a peri-feria de “Heterodoxia II”. O ensaio central do livro é “Sören Kierkega-ard”, espião de Deus”. O filósofo e teólogo dinamarquês, que ousara confrontar sem piedade os que se di-ziam cristãos com os fundamentos do cristianismo, e pagara o preço de uma radical solidão intelectual, terá sido o primeiro desses cavaleiros so-litários do espírito que constituem os verdadeiros modelos, se não os he-róis, de Lourenço. Nietzsche, Pessoa ou Antero serão outros exemplos ób-vios. Gente que não nasceu para con-fortar, mas para desamparar. Assu-mido apreciador de “westerns” – e quem sabe que misteriosas influên-cias confluem para gerar uma perso-nalidade –, o próprio Eduardo Lou-renço será sempre, no pensamento português, uma espécie de “loneso-me rider”, intervindo, ao sabor das circunstâncias e segundo os ditames da sua consciência, no mundo que o rodeia, mas incapaz de procurar re-fúgio e descanso mesmo entre os “bons da fita”, e partindo sempre, no final do filme, rumo a paragens que ele próprio ignora.

Um pensamento paradoxalO livros de charneira entre o período das “Heterodoxias” – para usar o plu-ral que o volume agora lançado pela Gulbenkian, organizado por João Tia-go Pedroso de Lima, consagra no tí-tulo de capa – e a obra que Lourenço irá desenolver após o 25 de Abril de 1974 é “Pessoa Revisitado”, uma obra a vários títulos singular. “Foi um mo-mento muito especial da minha vi-da”, reconhece Lourenço, que afirma ter escrito o livro em 23 dias, duran-te uma estadia que passou com a mu-lher, Annie Salamon, numas termas nos Pirinéus. “Entrei em transe com essa ideia de que o centro daquela maquinaria era uma espécie de troca de personagens entre o Caeiro e o Whitman, e escrevi o livro como se fosse um policial, para resolver o enigma”.

É também, até pelo breve interva-lo de tempo em que foi escrito, o livro de Lourenço que mais se afasta do modelo da recolha de ensaios unidos por fios temáticos. Uma característi-ca da sua obra que coloca o leitor que queira ler a sua obra completa peran-te duas opções, ambas com desvan-tagens: ou se dá ao trabalho de ler o que Lourenço escreveu por ordem cronólogica, e vê-se forçado a um permanente ziguezague entre os seus livros, e a saltar de assunto para as-sunto, ou lê-os por núcleos temáti-cos, e os constantes saltos cronoló-gicos, às vezes bastante significativos, entre um texto e o seguinte podem dificultar uma correcta apreensão do modo como o seu pensamento se foi desenvolvendo.

Mas este “saltar de assunto” é jus-tamente uma das marcas do ensaís-mo. “Montaigne”, diz Lourenço, “dis-sertava sobre tudo, falava de livros, do que se passava à sua volta, dos ani-mais, de qualquer assunto – o ensaio não tem objecto, se não o prazer de

dialogar com tudo o que parece inte-ressante ou que suscita espanto”.

No entanto, o que distingue o en-saísmo de Lourenço não é tanto a multiplicidade dos tópicos que inda-ga, mas uma unidade que ultrapassa a mera posse de um estilo próprio. “Eduardo Lourenço”, diz José Gil, “tem um pensamento, o que é uma coisa raríssima; dizemos o pensamen-to deste ou daquele, mas quase não há pessoas que tenham um pensa-mento”. E precisa que, ao falar de pensamento, quer “designar uma co-erência, essa sim sistemática, que faz com que a perspectiva lançada, por exemplo, sobre o romance português da década de 70, ou o ensaísmo de Montaige, ou a atitude dos militares no 25 de Abril ou a obra de Kierkega-ard, seja fundamentalmente a mes-ma”. E pergunta: “Quem é que faz isto em Portugal? Ninguém.”

O que o singulariza, diz Gil, é “uma certa maneira de desenolver o pen-samento”. E acrescenta que, “como todo o grande pensamento”, o de Lourenço é “um pensamento para-doxal por excelência”. E também “um pensamento auto-proliferante, que se auto-cria a si próprio, sempre o mesmo e sempre diferente, único e ao mesmo tempo plural”.

Daí que, argumente, com “tanto que se passou desde o tempo das ‘He-terodoxias’, com tanto novo pensa-mento filosófico, o pensamento de Eduardo Lourenço se mantenha per-tinente”. Gil reconhece que “há quem ache que Lourenço está datado, que as coisas já não se fazem assim”, mas argumenta que o seu pensamento “tem uma virtude que lhe dá uma ac-tualidade extraordinária, que é a de, ao mesmo tempo que se auto-cria, ir criando novos campos”. A própria “lógica do seu pensamento”, diz, “produz necessariamente o novo”, e a sua obra “fervilha de novos campos que ele não explorou, e que em al-guns casos nem saberá que abriu, mas que podem depois ser explorados”.

José Gil defende, como se sabe, que este é um pensamento trágico. Num texto originalmente escrito para o congresso que a Gulbenkian dedicou a Eduardo Lourenço, João Barrento, sem negar estes pressupostos trági-cos, sugere que “o júbilo do pensar a fazer-se e a euforia da linguagem que se lhe ajusta” dão a este ensaísmo um “dizer” feliz. Uma contradição talvez apenas aparente, que o pró-prio Lourenço resolve assim. “As mi-nhas ideias são negríssimas, mas eu não sou negríssimo”.

Se um sujeito perde uma fé profunda, fi ca descalço, sem alternativa

“A relação de Eduardo Lourenço com o cristianismo é um assunto muitíssimo por explorar e por ser compreendido” José Gil

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