A Ficcao No Romance Machadiano

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    A FICCIONALIDADE NO ROMANCE HISTRICO MACHADIANO

    Edson Ribeiro da SILVA (PG-UEL)

    ISBN: 978-85-99680-05-6

    REFERNCIA:

    SILVA, Edson Ribeiro da. A ficcionalidade no

    romance histrico machadiano. In: CELLI COLQUIO DE ESTUDOS LINGUSTICOS ELITERRIOS. 3, 2007, Maring. Anais... Maring,2009, p. 283-289.

    1 A Fico: Uma Falsa Enunciao

    A terica alem Kate Hmburger, em sua obra A Lgica da Criao Literria,define os elementos que perfazem a lgica da linguagem literria. Para a autora, o quecaracteriza a linguagem da literatura o fato de nela o aspecto enunciativo assumir um

    grau maior ou menor de autenticidade. Entendendo-se como uma enunciaoautntica (HMBURGER, 1986, p. 14s) aquela em que um sujeito trata de um objeto, possvel estabelecer graus de autenticidade, conforme os gneros pico, lrico oudramtico. Neste sentido, o gnero lrico aquele em que se percebe um grau maior deautenticidade, pois nele um eu produz enunciados de realidade autnticos, ou seja, semfingimentos; o gnero dramtico ocuparia um ponto intermedirio, pois nele h arepresentao como ao dos enunciados, mesmo que se finja; j o pico representaria ainautenticidade mais exacerbada, atravs exatamente daquilo que a autora define comofico e que est na base de sua teoria.

    A fico uma enunciao inautntica, no porque ela tente se fazer passar porreal. O que caracteriza a fico exatamente o fato de ela no fingir ser real. Ela no real e se configura os olhos do leitor como tal. O que produz esse efeito deinautenticidade a estrutura lgica da fico, formada por elementos como o monlogoe o dilogo. Mas o elemento preponderante em tal sentido o que a autora define comoverbos dos processos internos (HMBURGER, 1986, p. 57s). Ou seja, a narrativaficcional se compe de verbos que so usados em situaes em que jamais ocorreriamem enunciados autnticos. Por exemplos, verbos como pensar e sentir, usados paracaracterizar os sentimentos experimentados por personagens. Em situaes autnticas,no se diz de um terceiro o que ele estava sentido ao praticar uma ao. Da mesmaforma, o fato de tais verbos aparecerem sob a forma do pretrito pico do ao fatonarrado um teor de impossibilidade que s a fico pode produzir. s no mbito do

    fictcio que tais enunciados podem ocorrer.

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    A situao muda, porm, quando se trata de narrativas em primeira pessoa: o euda narrao em primeira pessoa um sujeito-de-enunciao autntico(HMBURGER, 1986, p. 224). Este sujeito se assemelha ao do gnero lrico, fala de si.

    Neste sentido, pode usar os verbos dos processos internos sem que isso aparea ao leitor

    como irrealidade. O sujeito da primeira pessoa pode dizer de si que pensou (pensei)ou sentiu (senti) sem que isso aparea ao leitor como um enunciado irreal. Aqui, sim,existe fingimento. Mas no fico, pois a aparncia de irrealidade no existe mais.

    Por isso, a autora filia a narrativa em primeira pessoa aos relatosautobiogrficos. Da autobiografia, a narrativa em primeira pessoa teria herdado osrecursos que a fazem assumir o carter de fingimento: tenta parecer real. umenunciado autntico, pois tal fingimento pode assumir, em casos extremos, a dificuldadede se precisar se o texto fala de um sujeito real ou inventado.

    Esse carter de fingimento faz com que a primeira pessoa assuma perspectivasnarrativas que garantam a ela um aspecto de verdade. A origem na autobiografia fazcom que a primeira pessoa tome o carter de relato histrico. O eu que narra no assume

    as formas do gnero lrico. Quer, antes, a objetividade do relato histrico. Seu objetopassa a ser o prprio eu. Tal semelhana do romance em primeira pessoa com anarrativa produzida pelo historiador no fortuita. Brando, por exemplo, em A

    Inveno do Romance, ao tratar das origens da narrativa romanesca, como umaderivao da epopia, afirma que o gnero assumiu o modo de narrar da historiografia:As relaes do romance com a histria no estariam apenas na prosa, mas tambm nomodo de organizao da prpria narrativa, incluindo o fato de ser uma narrativa escrita(2005, p. 221) Em seu desenvolvimento, o romance em primeira pessoa assumiriaformas de fingimento mais ostensivas. Passaria a se organizar atravs de perspectivasmais ousadas. o caso, por exemplo, da narrativa epistolar, dos dirios, para citarformas mais usuais. O sujeito que enuncia inventa formas de seu enunciado parecer

    justificvel historicamente. Ao contrrio da terceira pessoa, aqui passa a existir umcuidado em contextualizar o enunciado. O personagem que narra passa a ter umaexistncia historicamente determinvel: quando viveu, onde viveu, por que motivorelatou. Como um complemento de tudo isso, muito comum em romances que adotamtais perspectivas uma justificativa para que o leitor esteja de posse daquele enunciado. o caso muito comum da incluso de notas de rodap preparadas por um falso editor,como emA Nusea, de Sartre. Ou de prlogos que expliquem, de maneira fingida, comose teve acesso a tais documentos, em que condies foram encontrados, como se

    preparou a sua edio.

    2 - Machado de Assis: Formas da Primeira PessoaA mudana ocorrida na produo de um escritor como Machado de Assis, tantas

    vezes apontada como um corte revolucionrio no seu modo de escrever, se referetambm a procedimentos na perspectiva adotada. Se Machado era um folhetinistaromntico, em seus quatro primeiros romances, isso se manifesta tambm na adoo deuma perspectiva por detrs, para usar a terminologia de Pouillon (1974). O Machadodos primeiros romances narra em terceira pessoa, v os personagens de um modo quelhe permite usar os tais verbos dos processos internos como um ficcionista, no sentidodado ao termo por Hmburger, conforme especificado anteriormente.

    No entanto, a revoluo na escritura machadiana, comeada com Memrias

    Pstumas de Brs Cubas, se manifesta de forma radical na perspectiva adotada.

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    Machado agora narra de dentro do personagem, adota a viso com pouilloniana.Trata-se de um narrador que fala de si. Ou seja, um narrador homodiegtico,conforme a definio de Genette (REUTER, 2002, p. 70), a narrativa se refere a elemesmo. Machado, agora, um fingidor.

    O nico dos romances maduros de Machado a assumir a terceira pessoa Quincas Borba. Nos quatro outros, h um uso variado da primeira pessoa. EmMemrias Pstumas de Brs Cubas, h um narrador que, pela sua condio de defunto,pode assumir uma perspectiva abrangente, ultrapassando barreiras comuns na visocom. EmDom Casmurro, h o relato autobiogrfico. So romances que narram umaextenso mais vasta de tempo: no primeiro, toda uma vida; no segundo, chega-se velhice.

    Mas preciso olhar com ateno a perspectiva adotada nos dois romances finaisde Machado. Evidentemente, eles correspondem a um projeto nico; socomplementares, possuindo o mesmo narrador, o Conselheiro Aires. No primeiro dessesromances, Esa e Jac, o narrador no fala diretamente de si: os protagonistas so os

    gmeos Pedro e Paulo. No entanto, o narrador personagem, participa dos eventos.Trata-se daquele narrador que Friedman definiu como testemunha (LEITE, 2005, p.37). EmMemorial de Aires, o mesmo narrador aparece, agora como protagonista. Aqui,so os seus sentimentos que do o tom impressionista da obra. Sujeito e objeto seconfundem. A diferena de perspectiva faz com que Esa e Jac assuma a forma derelato romanceado, enquanto Memorial de Aires narrado como sendo o dirio donarrador-personagem.

    A mudana nestes dois romances no se refere apenas ao modo de o narrador seposicionar dentro da narrativa, ora como testemunha, ora como protagonista. Adiferena algo marcado por Machado. E ele no quer que a mesma passedespercebida. O recurso adotado o do fingimento elevado a um grau mais elevado. ocaso de se atentar para o recurso do falso prlogo como forma de se contextualizarhistoricamente o enunciado.

    Machado escreveu prlogos para todos os seus romances. Prlogos maisextensos, como o de Ressurreio, em que aparece humildemente como um autor seaventurando por um gnero pela primeira vez. Mas h os prlogos mais curtos, queapresentam edies novas de obras. Quase todos assinados com as iniciais do autor: Mde A. Isso ocorre tanto nas narrativas em terceira pessoa, como tambm em DomCasmurro, narrado em primeira pessoa. Ocorre, tambm, em Memorial de Aires. Aqui,de uma forma surpreendente, quem assina Machado de Assis (ASSIS, 1985, p. 11).

    No entanto, o autor se refere narrativa como sendo o relato escrito pelo Conselheiro

    Aires, referido no prlogo de Esa e Jac. Machado fala do narrador como sendo umhomem real, existido. Machado, aqui, a prpria figura do fingidor, pois o narrador quesaiu de sua pena aqui referido como um homem real, que escreveu o dirio quecompe o romance. Um duplo fingimento: do autor, ao pretender que seu narrador sejareal; do narrador, ao pretender que seu relato seja autntico. Fica evidente, neles, que oautor no o narrador. No caso de Memrias Pstumas de Brs Cubas, o recurso dofingimento intensificado no apenas pelo prlogo, mas pela existncia de umadedicatria, ambos escritos pelo narrador-personagem. Seria um caso para serdevidamente pensado. Se tal romance, ao adotar a primeira pessoa, fingimento e nofico, segundo Hmburger, fica a interrogao acerca do que dizer sobre o fato de omesmo ser narrado por um defunto (ASSIS, 1981, p. 12). No se estaria aqui diante da

    ficcionalidade, que no quer parecer real?

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    No entanto, o mesmo talvez no ocorra em Esa e Jac. Aqui, o que se v oretorno aos recursos da historiografia. O prlogo parte integrante da obra. No estassinado nem pelo autor nem pelo narrador. Annimo, pode ser enquadrado naquelacategoria dos falsos prlogos, atribuveis a quem preparou a edio. De fato, o prlogo

    frio, fala da obra como sendo apenas um dos cadernos encontrados entre os demaisescritos pelo Conselheiro. Se os seis demais eram o dirio dele, o stimo, definido peloprprio como ltimo (ASSIS, 1990, p. 9), assumiu a forma de relato.

    3 -Esa e Jac: Romance Histrico

    freqente que se defina Esa e Jac como sendo um romance histrico,conforme as palavras de Riedel para um estudo introdutrio do mesmo(ASSIS, 1990, p.5). O que a autora tinha em mente era o aspecto conteudstico de tal romance. Riedelaponta a recorrncia a fatos da histria do Brasil como sendo o elemento determinantedessa historicidade.

    Esa e Jac narra a histrica do tringulo amoroso envolvendo os gmeos Pedroe Paulo e a moa Flora. Machado, como em obras anteriores, recua no tempo para narrarsua trama. Os fatos relatados comeam antes de os protagonistas nascerem. Aqui, elesse referem at mesmo vida uterina dos protagonistas. Pedro e Paulo so gmeos e,como tal, oscilam entre a semelhana fsica e diferenas de personalidade. No entanto,esto fadados ao sucesso, conforme anunciado por uma vidente. O elemento que

    perturba essa harmonia o carter conflitante que marca a relao dos irmos: elescompetem desde a infncia. Assim, quando surge em cena a figura feminina, Flora, estaseria determinante para o agravamento desse carter. Algo que poderia ser solucionado,e o romance chegar a um desfecho mais brusco. No entanto, o romance preenchido

    pelas oscilaes de Flora. Ela no sabe a quem prefere. Na verdade, os dois secomplementariam. Ela no pode escolher apenas um. Quando Flora decide se retirar decena, tentando amenizar o conflito que acontece entre os gmeos e no seu interior,acontece o seu adoecimento e sua morte. Os gmeos alcanam o sucesso, tendo comosubstrato a competio.

    O entrecho do romance composto, sobretudo, por uma narrativa marcadamenterealista: so os caracteres psicolgicos que interessam acima de tudo. Mas nele houtros elementos distintivos: a narrativa de um homem que conviveu com os

    protagonistas, teve acesso sua intimidade, sendo uma espcie de confidente, o idosoque tem uma viso desinteressada da vida. O Conselheiro Aires poderia ter se detido nanarrativa dos conflitos dos integrantes do tringulo amoroso. Mas Machado o cronista

    de sua poca. Aqui, de fatos precisos da vida nacional. O pano de fundo para osconflitos ntimos so as transformaes provocadas pela Proclamao da Repblica, em1889. A histria de Pedro e Paulo se entremeia com a crnica do momento histrico.Por isso, o romance se refere a fatos como o baile na Ilha Fiscal e a deposio doImperador. A busca pela exatido faz com que existam captulos cujos ttulos precisamas datas : Noite de 14, Manh de 15. A contextualizao faz com que o narrador

    possa relatar fatos histricos. Mas tambm, este pode relatar a repercusso de tais fatos.O que, no romance, representado sobretudo pelo personagem Custdio e sua

    preocupao com a mudana do regime poltico. Em tal sentido, mais que um pano defundo, os fatos da Histria assumem o carter de intriga secundria. Mas que nooblitera a principal. Machado no introduz na sua trama as pessoas da Histria como

    personagens. Por isso, as descries dos fatos histricos aparecem como de segunda

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    mo: Ouviu umas palavras soltas,Deodoro, batalhes, campo, ministrio etc. Algumasditas em tom alto, vinham acaso para ele, a ver se lhe espertavam a curiosidade, e seobtinham mais uma orelha s notcias. (ASSIS, 1990, p. 88) O Conselheiro no

    presencia os fatos histricos, e sabe deles de um modo ainda impreciso. Essa impreciso

    tambm provocada pelo distanciamento no tempo: No juro que assim fosse, porqueo dia vai longe, e as pessoas no eram conhecidas. (Idem, ibidem)A historicidade, portanto, no um dado que se manifesta apenas ou sobretudo

    pela trama atrelada a fatos histricos. Aqui, preciso que se retomem as noes deHmburger a respeito do modo como a primeira pessoa quer parecer relato histrico:

    Tambm o eu da narrao em primeira pessoa no quer ser um eulrico, mas histrico, razo por que no assume as formas doenunciado lrico. Narra a vivncia pessoal, mas no com a tendnciade reproduzi-la como uma verdade apenas subjetiva, como seu campode experincia no sentido expressivo deste fenmeno, mas visa, como

    todo eu histrico, verdade objetiva do narrado. (HMBURGER,1996, p. 224)

    a busca por uma verdade objetiva que faz com que Esa e Jac se entremeiede referncias a fatos histricos. O narrador de tal romance no quer que o narrado sejaapenas o relato de uma experincia pessoal, que ele testemunhou. preciso que ocarter de fingimento assuma o teor de documento histrico. Os fatos histricos noacontecem porque o narrador os narra, atravs da distncia no tempo, como umanarrativa paralela intriga principal. Os fatos histricos se do enquanto o narrador-testemunha anda pelas ruas, vindo da casa dos protagonistas. A Histria aconteceenquanto esse narrador cogita sobre os conflitos que tem testemunhado.

    H, portanto, a historicidade do narrado; da mesma forma, a historicidade comorecurso que intensifica o fingimento. A perspectiva adotada a do narrador quetestemunha os fatos narrados, histricos ou inventados. Algo que se intensifica tambmna obra seguinte, Memorial de Aires, quando Machado de Assis escreve um falso

    prlogo, assinado com seu nome verdadeiro. No existe, fora da obra, um ConselheiroAires, que escreveu um dirio e um relato. Mas Machado diz que existiu e que este overdadeiro autor da obra.

    4 - Narrador-testemunha: Ficcionalidade ou Fingimento?

    Finalmente, preciso refletir sobre a possibilidade de adequao das teorias de

    Hmburger ao romance Esa e Jac. Afinal, para a terica alem nenhum fingimento,por mais em evidncia que se encontre, pode alterar esta narrao em primeira pessoa,torn-la fico. (HMBURGER, 1996, p. 227) O que seria uma forma de se condenaro romance de Machado condio de fingimento evidente, mas nunca de fico.

    Isso se deveria ao fato de que, para tal autora, essa obra seria um enunciado derealidade autntico. Haveria a inteno de passar por real, o que no ocorreria noenunciado fictcio. Outra vez, est-se diante do problema de o enunciado fictcioostentar a sua irrealidade, enquanto a primeira pessoa fingiria ser real. Parece simples.

    No entanto, talvez seja esquemtico demais entender essa restrio ao carter fictcio danarrao em primeira pessoa.

    Basta que se pense em uma obra que adote a terceira pessoa, e que, alm disso,

    assuma a sua ficcionalidade. Essa obra poderia ser Orlando, de Virginia Woolf. Nela, a

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    autora adota a perspectiva da narrativa histrica. Trata-se, ento, do relato de umhistoriador que decide escrever uma biografia de Orlando. No prlogo, a autora serefere ao livro como sendo uma biografia (WOOLF, 1978, p. 5). A perspectiva a deuma terceira pessoa em que o narrador se manifesta no como uma voz narrativa, mas

    como uma instituio denominada historiador. preciso lembrar que, paraHmburger (1996, p. 227), a fico no constituda por um narrador e sim por umafuno narrativa, podendo-se dizer que a noo de narrador terminologicamente certaapenas para a narrao em eu. O que faria com que o pretenso historiador de Orlandono fosse um narrador. Quando a terica fala em funo narrativa, parece haver umareduo do narrador quele que se observa na viso por detrs, ou at mesmo defora, ou, conforme Reuter (2002, p. 80), com o narrador heterodiegtico e perspectivaneutra, mas nunca com um narrador que diga de si mesmo que est ali para narrar. inegvel que a narrativa, em Orlando, adote a terceira pessoa. Mas h um narrador quefinge ser um historiador. inegvel que isto constitua uma forma daquilo queHmburger define como fingimento e no como fico. Isso em uma narrativa em

    terceira pessoa. E que assume os verbos dos processos internos, pois esse pretensohistoriador sabe os pensamentos e as sensaes do personagem. Como historiador, sabeo que o personagem fez e pensou em seu quarto, durante as horas da madrugada. O quecaracteriza, evidentemente, a obra como fictcia.

    Voltando a Esa e Jac, parece impreciso no ver na narrativa do ConselheiroAires o mesmo procedimento, mesmo tratando-se agora de um narrador em primeira

    pessoa. O Conselheiro age como uma testemunha dos fatos. Ele amigo da famlia dosgmeos Pedro e Paulo, um confidente de Flora. No entanto, sabido que o narrador-testemunha

    mais limitado. Como personagem secundria, ele narra da periferia

    dos acontecimentos, no consegue saber o se passa na cabea dosoutros, apenas pode inferir, lanar hipteses, servindo-se tambm deinformaes, de coisas que viu ou ouviu, e at mesmo, de cartas ououtros documentos secretos que tenham ido cair em suas mos.(LEITE, 2005, p 37-38)

    A descrio feita por Leite no se aplica a todos os procedimentos narrativosadotados por Machado em Esa e Jac. A presena do narrador, como personagemsecundrio, garante seu acesso intimidade de certos personagens. Mas o Conselheirosabe o que se passa na cabea dos outros. Ele no infere, mas no se restringe a narrarsentimentos de fora. Exemplares nesse sentido so os captulos LXXIX (Fuso,

    difuso, confuso) e LXXX (Transfuso, enfim) e, sobretudo, LXXXIII (A grandenoite), em que se narram sonhos e alucinaes de Flora. Ela v os gmeostransformados em uma s pessoa, s vezes fecha os olhos. O ltimo deles a descriode uma noite de insnia. Esto presentes os verbos dos processos internos: A princpio

    pensou no que l estivera, e evocou todas as suas graas... (p. 114) Sentia-se grata.(p. 114) Agora, pensando em Paulo, queria saber por que que o no escolhia paranoivo. (p. 114) Flora sentiu-se tocada daquela tristeza. (p.115) Pensou enganar-se,mas no: era uma s pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nela ocorao. (p. 116) O narrador-testemunha sabe as sensaes de Flora, cada um de seusgestos, o que ela viu como alucinao. A narrativa segue e o que vem em seguida amorte dessa personagem. Ela no contou ao amigo tais sensaes, at porque estavavivendo distante.

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    O procedimento pode fazer crer que o Conselheiro estivesse inventando fatos.Mas por que o faria, em uma obra que assume at mesmo as datas histricas para

    provocar o efeito de realidade? Que narrador esse, que vivencia o interior de outrospersonagens, sendo ele prprio um deles? O procedimento faz lembrar o narrador de

    Orlando. Ali, h um pretenso historiador, que narra de fora, mas sabe o ntimo dopersonagem. Aqui, h um personagem, que narra de dentro dos fatos, mas tambmconhece a intimidade dos outros personagens. Se, em Orlando, a terceira pessoa garanteque a obra seja uma fico, mesmo apelando para o fingimento, em Esa e Jac, aexistncia do fingimento no impede que o narrador extrapole os limites da primeira

    pessoa e conhea o interior dos outros. Parece haver aqui uma espcie de cruzamento:se Orlando fico, mesmo havendo fingimento, por estar em terceira pessoa, Esa e

    Jac um fingimento que no pode deixar de ser fico, apesar de estar em primeirapessoa. Trata-se de uma primeira pessoa que no esconde do leitor a sua irrealidade.Pois o que se v um enunciado que no pode ser autntico, dados os verbos dos

    processos interiores. O mesmo ocorre em Orlando: uma inautenticidade que se

    manifesta na impossibilidade de o narrador conhecer a interioridade do personagem.Pode-se dizer, enfim, que o Conselheiro Aires no fala, aqui, de um eu que o

    tempo todo o objeto de seu enunciado. Evidentemente, tudo visto atravs de seusolhos. Ele a perspectiva pela qual os personagens podem ser manifestados. Mas uma

    primeira pessoa que talvez queira fazer rever a afirmativa de que nenhum fingimentopode torn-la fico. Fora de um enquadramento mais esquemtico, o que se v emEsa e Jac a existncia de um fingimento que adota a perspectiva da fico comoenunciado inautntico.

    REFERNCIAS

    ASSIS, M. de. Esa e Jac. 3 ed., So Paulo: Editora tica, 1990.

    ___________. Memorial de Aires. 4 ed., So Paulo: Editora tica, 1985.

    ___________. Memrias Pstumas de Brs Cubas. 8 ed., So Paulo: Editora tica,1981.

    BRANDO, J. L. A Inveno do Romance:Narrativa e Mimese no Romance Grego.Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2005.

    HMBURGER, K. A Lgica da Criao Literria. Traduo de Margot P. Malnic.2ed., So Paulo: Editora Perspectiva, 1986.

    LEITE, L. C. M. O Foco Narrativo(ou A Polmica em Torno da Iluso). 10 ed., SoPaulo: Editora tica, 2005.

    POUILLON, J. O Tempo no Romance.Traduo de Heloysa de Lima Dantas. SoPaulo: Cultrix, Editora da Universidade de So Paulo, 1974.

    REUTER, Y. A Anlise da Narrativa. O Texto, a Fico e a Narrao. Traduo deMrio Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

    WOOLF, V. Orlando. Traduo de Ceclia Meireles. 4 ed., Rio de Janeiro: EditoraNova Fronteira, 1978.