A geografia das religiões afro-brasileiras em Itu-SP

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    PATRCIA PAULA DA SILVA

    A GEOGRAFIA DAS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS EM ITU-SP

    Verso corrigida da dissertao

    SO PAULO

    2012

  • i

    PATRCIA PAULA DA SILVA

    A GEOGRAFIA DAS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS EM ITU-SP

    Verso corrigida da dissertao

    O exemplar original se encontra disponvel no CAPH da FFLCH

    De acordo do professor orientador _____________________________________________

    Elvio Rodrigues Martins

    Dissertao de mestrado apresentada a Faculdade de

    Filosofia Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo.

    rea de concentrao: Geografia Humana

    Orientador: Professor Dr. Elvio Rodrigues Martins

    SO PAULO

    2012

  • ii

    Silva, Patrcia Paula da.

    A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP / Patrcia Paula da Silva;

    orientador Elvio Rodrigues Martins. - So Paulo, 2012.

    192f.

    Dissertao (mestrado) Universidade de So Paulo, 2012

    1.Geografia. 2. Religies afro-brasileiras. 3. Candombl. 4. Umbanda. 5. Itu

  • iii

    Nome: SILVA, Patrcia Paula da.

    Ttulo: A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP.

    Dissertao apresentada a banca examinadora da

    Ps-graduao em Geografia Humana da Faculdade

    de Filosofia Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo

    de mestre em Cincias na rea de concentrao de

    Geografia Humana.

    Aprovada em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. _________________________Instituio: ____________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. _________________________Instituio: ____________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. _________________________Instituio: ____________________________

    Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________

  • iv

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, em primeiro lugar, aos meus pais que continuamente me deram muito apoio em

    meus estudos, em especial minha me que sempre teve palavras de incentivo e de

    tranquilidade.

    Aos meus amigos todos! Em especial aqueles que estiveram mais prximos e aguentaram as

    tenses, os choros, as crises, as reclamaes, que me deram conselhos, pitacos, xingos,

    chacoalhes, ideias, alegrias, cervejas, risadas, sambas, carinhos, msica. Joozinho pelos

    milhes de quebra-galhos, conversas, cervejas, Juninho pelas milhes de cervejas...rs e

    deliciosas conversas, Diene pelas conversas e brejas, Nadia pelas conversas e conselhos, Z

    (Evandro) pela pacincia de leituras e discusses, ideias e conselhos...e brejas, ao fantstico

    211: Ro, meu to querido que fez a correo do trabalho de maneira essencial, Thiago e Quel

    e os agregados, Smia, Mayra e Luco, que juntos me proporcionaram muitas horas de

    conversas de muito valor terico e desestressantes, e muitas brejas...uma delicia de

    apartamento, Danilo que muito nos fez falta com a mudana e salvou minha vida com os

    mapas, Jackeline Severina pelos conselhos, orientaes, correes e pelos momentos

    agradveis, ah! E pelos sambas, Natlia Viveiros que mesmo a distncia esteve to perto, que

    nos fez visitas e muito me alegrou, que me proporcionou conversas insubstituveis quando

    todas as crises resolvem aparecer no momento em que voc no tem nem o direito de t-las

    porque o prazo est vencendo, e que nos deu o Pedro , Joviniano que muito me ensinou a

    vida, Tati Treta essa maluca que me deu muitos abraos e no ltimo minuto do segundo

    tempo, quando me encontrava em absoluta tenso, me trouxe um delicioso pedao de bolo ,

    Ana Cludia esse anjo que salvou minha vida, casa 7 que me recebeu com muita

    hospitalidade.

    Aos meus co-habitantes, desse primeiro semestre: Fbio, Mora Truff, Moqueca e Ceclia (a

    gata pelcia), pela harmonia.

    minha maravilhosa companheira Adriana, que com muita pacincia e carinho me

    proporcionou calma, tranquilidade, amor, longas conversas, conselhos, revises, pitacos,

    timos almoos, amor, viagens, chazinhos, brejas, a casa maravilhosa onde moro e muito

    amor.

    todos do Ncleo de Conscincia Negra: alunos e companheiros de trabalho, pelo estgio pra

    vida. Aroldo, Giba, Valtinho, Leo, Liz, a turma da Bio, Angelina, Marcelo, Raphael, e todos

    que com muita dedicao e carinho fazem o cursinho funcionar e mostram a luz no fim do

    tnel para os nossos alunos.

    professora Ideni Terezinha Antonello uma das grandes responsveis pela minha formao

    intelectual e tico-profissional, assim como ngela Katuta, Tnia Fresca, Mrcia Siqueira,

    Alice Asari, Ruth Tsukamoto dentre outros professores da Universidade Estadual de

    Londrina.

  • v

    Ao professor Elvio pelas boas conversas, pela formao e pela disciplina Ontologia e

    Epistemologia em Geografia, que em muito me enriqueceu.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico (CNPq), pelo financiamento da

    pesquisa.

  • vi

    Para apalpar as intimidades do mundo preciso saber:

    a) Que o esplendor da manh no se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

    c) Por que que as borboletas de tarjas vermelhas tm devoo por tmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existncia num fagote, tem salvao

    e) Que um rio flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos

    f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro

    etc

    etc

    etc

    Desaprender oito horas por dia ensina os princpios.

    Manoel de Barros O livro das ignoras (2000, p.9)

  • vii

    RESUMO

    SILVA, Patrcia Paula da. A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP. 192f.

    Dissertao (mestrado) Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas, Universidade de

    So Paulo, So Paulo, 2012.

    O principal objetivo do presente trabalho analisar a Geografia das religies afro-brasileiras

    em Itu, portanto averiguar quais so os elementos determinadores da localizao de terreiros

    destas religies no municpio, tendo em vista sua insero numa cidade com histrico de

    escravido e, consequentemente, de represso e segregao. Tambm verificamos, a partir dos

    preceitos da religio candombl e umbanda, a importncia dos lugares na natureza e/ou na

    cidade, como o uso religioso e representao das entidades, alm da localizao dos

    elementos religiosos dentro do terreiro. Para tanto, foram feitos levantamentos bibliogrficos

    acerca do tema, tanto na rea da geografia quanto em outras reas das cincias humanas. A

    partir do arcabouo terico foram elaboradas questes norteadoras das entrevistas, as quais

    em trabalho de campo foram realizadas com os dirigentes de cada centro religioso (terreiro),

    pois so eles os detentores de todo o conhecimento referente aos preceitos da religio, bem

    como determinam a localizao do terreiro e dos seus elementos internos. No houve critrio

    especfico para a escolha dos terreiros, os contatos com os dois primeiros dirigentes foram

    obtidos via internet e a partir deles chegamos aos subsequentes, assim, finalizamos o trabalho

    com dez entrevistas, sendo 4 dirigentes de candombl e 6 de umbanda. As entrevistas foram

    gravadas, transcritas e por fim compuseram o ltimo captulo da dissertao. Os terreiros, em

    ritual ou no, foram fotografados a fim de localizar seus elementos internos e/ou externos.

    Tambm elaboramos um mapa de localizao dos terreiros estudados nos trabalhos de campo.

    Nossos resultados constam no levantamento das principais caractersticas geogrficas e

    histricas do municpio de Itu; na reviso conceitual de cultura e religio no mbito da

    Geografia cultural, nas 10 entrevistas com mes de santo e pais de santo e na localizao

    geogrfica de elementos internos e externos aos terreiros.

    ABSTRACT

    SILVA, Patrcia Paula da. A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP. 192f.

    Dissertao (mestrado) Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas, Universidade de

    So Paulo, So Paulo, 2012.

    This study aims to analyze the geography of the African-Brazilian religions in Itu, therefore

    find out which elements must influence the location of such religions in the city, in view of

    their inclusion in a city with a history of slavery and, consequently, repression and

    segregation. Beyond the location of the religions elements within the terreiros such as

    religious use and representation of entities, we found, from the precepts of the religion

    Candombl and the religion Umbanda the importance of places in the nature and / or in the

    city. Thus, literature surveys were made on the subject in geography and in other areas of the

    humanities. From the theoretical framework guiding questions were developed for interviews

    with the higher priests (female me de santo or male pai de santo) of each religious center

    (terreiros), they are the keepers of all knowledge relating to religious precepts as well as

    determine the location of terreiros and its internal elements. There were no specific criteria

    for choosing the terreiros in Itu, the contacts with the first two higher priests were obtained

    via the Internet and from them we were indicated to the others, so we finished this part of the

  • viii

    procedure with ten interviews, four higher priests of Candomble and six of Umbanda. The

    interviews were taped, transcribed and formed the last chapter of the dissertation. The yards,

    in ritual or not, were photographed in order to locate its internal and external elements. We

    also prepared a map location of the researched yards in the fieldworks. Our results are the

    survey of the main geographical features and historic city of Itu; the conceptual review of

    culture and religion in the area of Cultural Geography; the 10 interviews with mes de santo

    and pais de santo and geographic location of the internal and external to the terreiros.

  • ix

    SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................11

    CAPTULO 1. EMBASAMENTO TERICO E SUA APLICAO NA

    GEOGRAFIA............................................................................................................................14

    1.1 O conceito de cultura..........................................................................................................15

    1.2 A aplicao do conceito de cultura na geografia................................................................26

    1.3 O conceito de religio.........................................................................................................31

    1.4 A aplicao do conceito de religio na geografia...............................................................50

    CAPTULO 2. AS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS: EMBASAMENTOS

    TERICOS...............................................................................................................................60

    2.1 As religies afro-brasileiras................................................................................................61

    2.2 O candombl.......................................................................................................................66

    2.3 Os orixs.............................................................................................................................78

    2.4 A umbanda..........................................................................................................................86

    2.5 As entidades da umbanda....................................................................................................91

    CAPTULO 3. CONTEXTO SCIO-ESPACIAL DO MUNICPIO DE ITU........................96

    3.1 Localizao e Geografia da Natureza do municpio de Itu.................................................97

    3.2 Formao da Geografia Humana do municpio de Itu......................................................100

    3.3 O contexto geogrfico do negro em Itu............................................................................110

    CAPTULO 4. A GEOGRAFIA DAS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS EM

    ITU..........................................................................................................................................118

  • x

    4.1 Tenda de Umbanda Caminho da Luz................................................................................122

    4.2 Il Ax Oxum Abot.........................................................................................................128

    4.3 Casa Maria Cndida - Terreiro de Pai Ju - Centro Esprita Umbandista........................136

    4.4 Il Ax Alaketu Iya Omim Wgi Orun Ai........................................................................143

    4.5 Tenda Espiritual de Umbanda Caboclo Tabajara e Pai Lua Branca.................................153

    4.6 Centro Esprita Ogum Ramatis do Oriente.......................................................................154

    4.7 Tenda de Umbanda Caboclo Montanha, Sebastio Boiadeiro..........................................157

    4.8 Centro Esprita Pai Xang.................................................................................................162

    4.9 Il Ax Alaketu Om Oxum.............................................................................................167

    4.10 Entrevista com Eva e pai Andr......................................................................................174

    CONSIDERAES FINAIS..................................................................................................179

    REFERNCIAS......................................................................................................................183

    ANEXOS................................................................................................................................191

  • 11

    INTRODUO

    O municpio de Itu foi fundado no incio do sculo XVII e teve grande

    destaque econmico no perodo colonial, graas sua vocao para o plantio de cana e,

    posteriormente, ao enriquecimento pelo ciclo do caf. Mas, primeiramente, a sua localizao

    estratgica, entre o serto e a capital, possibilitou o desenvolvimento incipiente da sua

    economia. Alguns autores consideram que entre a data de fundao e o final do sculo XVIII,

    Itu no passava de uma economia de subsistncia.

    Durante o sculo XVIII toda a capitania de So Paulo passou por escassez

    de mo de obra, devido minerao no interior do pas. Aps esse perodo a populao

    retorna a provncia e a economia canavieira toma flego.

    A populao e a economia de Itu cresciam gradativamente nesse perodo. A

    populao era acrescida pelos mineiros que retornavam do serto e pela populao escrava

    que era trazida para trabalhar nas lavouras de cana. A capacidade de compra dos agricultores

    aumentou tanto que, entre 1824 e1830, a populao escrava superou a populao branca.

    A agricultura canavieira trouxe grandes modificaes para a capitania

    paulista, impulsionando a urbanizao, o aumento populacional tanto de escravos quanto de

    trabalhadores livres, aumentando o tamanho das propriedades e o nmero de escravos por

    engenho, bem como melhorando a rede de transportes, o que no foi suficiente para segurar a

    crise do acar e a ascenso do caf, em meados do sculo XIX.

    At esse perodo a produo cafeeira era produzida por pequenos produtores

    sem a utilizao de mo de obra escrava. No entanto, j no final deste sculo, as grandes

    propriedades com elevado nmero de escravos passaram gradativamente a ser predominante

    na produo cafeeira.

    Os perodos de expanso das lavouras de cana e de caf alm de serem de

    grande importncia no desenvolvimento econmico de Itu, remontam a chegada e o incio da

    histria dos negros nesse municpio, cuja ocupao acompanhada do desenvolvimento das

    respectivas culturas de exportao enquanto atividades escravistas.

    O crescente aumento da populao negra causou grandes temores dos

    senhores de escravo ituanos. Isso porque a populao ituana era majoritariamente escrava em

    1830, quando a populao brasileira como um todo estava inflamada pelo contexto poltico: a

    abdicao de D. Pedro I em favor do seu filho D. Pedro II e o aumento gradativo do partido

    republicano.

  • 12

    Com isso, a Cmara de Itu passou a enrijecer e criar leis e posturas de

    vigilncia sobre os escravos, tais como a proibio de ajuntamento de escravos em tabernas,

    rea comercial ou qualquer outro espao, tirando-lhes objetos que pudessem ser usados como

    armas; o aumento dos castigos e a sofisticao dos meios de punio, dentre outras formas de

    represso.

    No entanto, as punies incitavam revolta, as mortes e as prises

    estimulavam os escravos a se entregarem a polcia, pois poderiam ser alternativas melhores

    que continuar trabalhando para o senhor e sendo castigado diariamente.

    O discurso de Nardy (2000a) se inclina em defesa do senhoril ituano,

    advogando que a maioria dos senhores tratavam bem seus escravos castigando-os somente

    quando era de fato necessrio e sem crueldade. No entanto, as crescentes revoltas e

    assassinatos relatados por Sousa (1998) apontam para outra realidade, bem como Camargo (in

    SETUBAL, 2004a) descreve que os escravos da capitania paulista, durantes os perodos

    cafeeiro e canavieiro, viviam em pssimas condies de vida, alm dos tratamentos brutais

    que recebiam.

    nesse contexto que as manifestaes culturais e sociais dos negros se

    revelavam. As rodas de samba, encontros religiosos, dentre outros, alm de promoverem a

    rede social necessria para a solidariedade entre os participantes, tambm eram momentos em

    que se pensava em estratgias para fugas. As redes de solidariedade eram importantes

    inclusive no suporte aos escravos fugidos.

    As principais manifestaes culturais afro-brasileiras em Itu foram o samba

    de terreiro, estudado principalmente por Ianni (2006), os rituais religiosos que segundo

    Amauri Nogueira (in NOGUEIRA, C. et al., 2008) s foram revelados em notas da imprensa

    da poca e os cordes de carnaval, que atuavam como uma contraposio do carnaval da elite

    branca.

    Nesse contexto, entendemos que os negros tiveram relevante participao

    histrica na construo scio-cultural e econmico-espacial no municpio de Itu,

    principalmente nos seus primeiros sculos. Atualmente so rarssimos os trabalhos que fazem

    referncia ao tema. Dessa forma, a pesquisa volta-se para a localidade com o intuito de

    averiguar a Geografia das religies afro-brasileira, ou seja, quais so os fatores que

    estabelecem a sua localizao geogrfica no municpio, tendo em vista a herana de

    escravido e a consequente segregao scio-econmica-espacial; assim como entender os

  • 13

    preceitos que determinam a localizao dos elementos religiosos dentro do terreiro. Tambm

    buscamos compreender os usos e as representaes que essas religies fazem da cidade e da

    natureza.

    Para atingir os objetivos propostos, o trabalho foi dividido em 4 captulos.

    No primeiro captulo tratamos dos conceitos de cultura e religio. Observando que o tema do

    presente trabalho enquadra-se no campo de estudo da Geografia Cultural, buscamos as

    reflexes desenvolvidas em torno do conceito de cultura tradicionalmente discutido nas

    cincias sociais e, posteriormente, como os gegrafos compreendem e aplicam o termo. Da

    mesma forma trabalhamos o conceito de religio.

    No segundo captulo foi desenvolvido o embasamento terico acerca das

    religies afro-brasileiras, assim foram descritos os preceitos e as entidades do candombl e da

    umbanda, bem como as suas respectivas diferenas.

    No terceiro captulo sero analisadas as diferentes geografias do municpio

    de Itu, sendo assim sero abordados temas como localizao geogrfica e processo de

    formao histrico: fundao, ciclos e desenvolvimento econmico, participao poltica e a

    condio histrica do negro no municpio; bem como a Geografia Fsica da regio onde o

    municpio est inserido, pois entendemos que os aspectos fsicos do meio tem ampla

    influncia na fixao dos diferentes personagens no territrio e como diria Brunhes (1956), os

    fenmenos da Geografia Fsica e da Geografia Humana no esto isolados uns dos outros,

    mas em conexo.

    Dessa forma, compartilhamos com Geraldino (2009) que, considerar as

    determinaes do meio como limitantes ao fenmeno humano, no ser determinista e sim

    reconhecer que as populaes chegam at onde o meio lhes permitir ir. Certamente, no

    desconsiderando o perodo histrico de cada populao e nem mesmo omitindo o uso das

    tcnicas para superar os obstculos naturais desse meio.

    Por fim, no quarto captulo analisamos a Geografia das religies afro-

    brasileiras no municpio de Itu. Assim, foram realizadas dez entrevistas1 com os dirigentes,

    sendo quatro de candombl e 6 de umbanda, mediante as quais buscamos a compreenso dos

    fatores que influenciavam a localizao geogrfica de cada terreiro, tentando desvendar as

    subjacncias do preconceito. Tambm averiguamos os norteadores da localizao dos

    1 O roteiro de questes utilizado para a entrevista encontra-se no final do trabalho em anexo.

  • 14

    elementos dentro e fora do terreiro, bem como a maneira com que essas religies usam e

    representam a cidade e a natureza.

    CAPTULO 1. EMBASAMENTO TERICO E SUA APLICAO NA GEOGRAFIA

    A redao desse captulo foi pensada a partir da ideia de que o tema da

    religio na geografia enquadrado no mbito da geografia cultural, a qual desenvolve

    trabalhos referentes cultura, no entanto, sem fazer grandes reflexes acerca do termo. Sabe-

    se que a geografia possui restrita contribuio na tradio terico-epistemolgica tanto na

    questo da religio quanto no que se refere ao conceito de cultura.

    Diante disso, entendemos ser necessria para o desenvolvimento do trabalho

    a compreenso terica dos termos, que foi encontrada em autores das cincias sociais, tais

    como Denys Cuche, mile Durkheim, Clifford Geertz, Mircea Eliade, dentre outros. O termo

    cultura possui um histrico conceitualmente polmico tendo em vista que serviu de base para

    se justificar a dominao e a explorao de algumas sociedades sobre outras, (cf. Veiga-Neto,

    2003), estabelecendo-se uma escala de evoluo das menos evoludas, as primitivas, para as

    mais evoludas, as contemporneas.

    O conceito de cultura tambm foi reificado mediante a noo de super-

    orgnico, desenvolvida pelo antroplogo Alfred Kroeber, que entendia a cultura como algo

    que est acima dos homens no sentido de que funciona autonomamente, independente deles.

    Essa noo influnciou o gegrafo Carl Sauer, um dos primeiros a desenvolver temas

    culturais na geografia, o que entendemos como um ponto problemtico, uma vez que, tal

    noo de cultura parece-nos ter o poder de justificar as condies socioeconmicas (tendo em

    vista que carregam elementos culturais) das pessoas, pois se a cultura algo superior ao

    indivduo e funciona independentemente da sua vontade, este deve se conformar com a

    situao que lhe dada. A nosso ver, esta linha de raciocnio dificulta a reflexo dos

    indivduos sobre sua prpria condio, aprofundando questes como explorao econmica,

    diferena de renda, de escolaridade, de acessos, dentre outras.

    O conceito super-orgnico de cultura serviu de base para o desenvolvimento

    de diversas pesquisas entre os gegrafos sauerianos da Escola de Berkeley, que passaram a

  • 15

    receber diversas crticas, das quais surgiram novas teorias em contraposio. Dentre os

    principais autores destacamos James Duncan, gegrafo estadunidense de vertente marxista, e

    Paul Claval, gegrafo francs com tendncias a geografia humanista, de mtodo

    fenomenolgico.

    1.1 O CONCEITO DE CULTURA

    Com o intuito de apresentar um panorama extensivo da noo de cultura,

    nas prximas pginas utilizaremos basicamente a obra A noo de cultura nas cincias sociais

    do etnlogo francs Denys Cuche, tendo em vista que, nesse trabalho, o autor traz toda a

    perspectiva do processo de formao e evoluo do conceito, perpassando pelas teorias de

    diversos autores importantes nessa contribuio.

    A gnese e a evoluo do termo cultura, nos dizeres de Cuche (2002),

    parece ter se iniciado na Frana no sculo XIII; derivou-se do latim cultura, que se referia ao

    cuidado despendido ao campo e ao gado, e passou a designar uma parte da terra cultivada. No

    sculo XVII ganha seu carter figurado, aparecendo no Dicionrio da Academia Francesa

    (1719) seguido de complementos tais como: cultura das artes, cultura das letras etc. Por

    conseguinte abandona tais complementos e representa a formao, a educao do esprito,

    - a ao de instruir; por fim, contrape esta concepo, para designar o estado do esprito,

    este cultivado pela instruo, se referindo ao estado do indivduo que tem cultura,

    estigmatizando o esprito natural e sem cultura. Assim, no iluminismo o termo consagrado

    e passa a ser concebido como elemento distintivo da espcie humana.

    A cultura ento passa a ser considerada como a soma dos saberes

    acumulados e transmitidos pela humanidade (CUCHE, 2002, p.21), representando uma

    totalidade ao longo de sua histria. Nesse contexto, a palavra cultura traz a ideia de progresso,

    evoluo, educao e razo revelando um aspecto fundamental da cultura e do pensamento da

    poca, ao que Cuche (2002) vai chamar de cultura ocidental, segundo ele prprio, por falta

    de um termo mais apropriado.

    Nesse momento, as palavras cultura e civilizao se aproximam,

    pertencem ao mesmo campo semntico e refletem as mesmas concepes fundamentais; no

  • 16

    entanto, no so equivalentes, pois a primeira refere-se aos progressos individuais e a segunda

    aos progressos coletivos, sendo utilizada somente no singular e definida como um processo

    de melhoria das instituies, da legislao, da educao. E assim dissemina-se a ideia de que

    se alguns povos esto avanados ao ponto de serem considerados civilizados, os outros

    povos tambm podem entrar no mesmo movimento: a civilizao deve se estender a todos os

    povos que compem a humanidade. (CUCHE, 2002, p.22)

    No ideal alemo do sculo XIX, sob a influncia do nacionalismo, a cultura

    vai ser entendida como parte constituinte do patrimnio de uma nao, reunindo as conquistas

    artsticas, intelectuais e morais. Ao longo deste sculo os romnticos alemes opem cada vez

    mais a cultura, como expresso da alma profunda de um povo, civilizao, definida a

    partir de ento pelo progresso material ligado ao desenvolvimento econmico e tcnico.

    (CUCHE, 2002, p.29)

    Ainda nesse sculo, a palavra cultura tomou outra dimenso na Frana e

    passou a ser entendida como um conjunto de caracteres prprios de uma comunidade

    (CUCHE, 2002, p.29), porm apresentada sem um sentido preciso.

    Segundo Cuche (2002) a viso francesa particularista em debate com a viso

    alem universalista, trouxe para o seio das cincias sociais contemporneas as duas

    concepes de cultura. De um lado, o antroplogo Edward Tylor como representante

    universalista, foi o primeiro a definir cultura, colocando-a num patamar de evoluo dos

    povos primitivos aos povos mais civilizados. Estes ltimos estariam num grau de avano

    cultural superior, tendo necessariamente passado pela fase primitiva; de outro lado Franz

    Boas, que teria sido o criador da etnografia, apresenta uma concepo particularista da noo

    de cultura. Segundo Cuche (2002), Boas tentava pensar a diferena entre os grupos humanos e

    acreditava que esta era determinada pela cultura e no pela raa. Ops-se a ideia de que os

    traos fsicos estavam ligados aos traos mentais e, logo, que a raa determina o

    comportamento humano. Dessa forma, entendia que entre os primitivos e os civilizados no

    havia diferenas biolgicas, mas de cultura e estas eram adquiridas, portanto no inatas.

    Por sua influncia na formulao de teorias referentes cultura o autor

    destaca o pensamento de Durkheim, que acreditava que os fenmenos sociais possuam

    necessariamente dimenso cultural, por serem tambm fenmenos simblicos; lutava contra

    os pressupostos ideolgicos implcitos no conceito de civilizao e defendia que no havia

    diferenas de natureza entre sociedades primitivas e civilizadas, ambas, com particularidades,

  • 17

    faziam parte de uma mesma civilizao humana; ao mesmo tempo em que Durkheim

    partilhava da ideia evolucionista de cultura, era contrrio ao esquema unilinear de evoluo,

    segundo o qual todas as sociedades seguiriam para uma evoluo final mais cedo ou mais

    tarde. Esta ideia pode ser percebida no seguinte trecho:

    Nada nos autoriza a acreditar que os diferentes tipos de povos vo todos no mesmo

    sentido; alguns seguem caminhos muito diversos. O desenvolvimento humano deve

    ser ilustrado no sob a forma de uma linha em que as sociedades viriam se colocar

    umas depois das outras como se as mais avanadas no fossem seno a continuao

    e a sequencia das mais rudimentares, mas como uma rvore com ramos mltiplos e

    divergentes. Nada nos diz que a civilizao ser apenas o prolongamento da

    existente atualmente para uma mais elevada; talvez, ao contrario, ela ter como

    agentes povos que ns julgamos inferiores como a China, por exemplo, e que lhe

    daro uma direo nova e inesperada. (DURKHEIM apud CUCHE, 2002, p. 542).

    Cuche salienta que, apesar de Durkheim no ter produzido uma teoria

    sistemtica sobre a cultura, suas ideias influenciaram muitos antroplogos, principalmente

    norte-americanos, na formulao de teorias acerca do tema. A noo de conscincia

    coletiva, desenvolvida por ele, serviu de pilastra para a formulao da teoria superorgnica

    de cultura, difundida principalmente pelo antroplogo Alfred Kroeber3.

    Durkheim entende que as sociedades possuem uma conscincia coletiva,

    constituda de representaes coletivas, ideais, valores e dos sentimentos comuns a todos os

    seus indivduos. Para ele,

    a conscincia coletiva algo mais que um simples epifenmeno de sua base

    morfolgica, da mesma forma que a conscincia individual algo mais que uma

    simples eflorescncia do sistema nervoso. Para que a primeira se manifeste,

    preciso que se produza uma sntese sui generis das conscincias particulares. Ora,

    esta sntese tem por efeito criar todo um mundo de sentimentos, de idias, de

    imagens que, uma vez nascidos, obedecem a leis que lhes so prprias.

    (DURKHEIM, 2003, p. 468)

    Nesses dizeres possvel observar que o autor d certo corpo chamada

    conscincia coletiva, entendida como algo que possui leis prprias. Encontra-se, portanto,

    numa dimenso separada do homem, que no necessita de sua interferncia para existir. Na

    citao seguinte tal afirmativa torna-se mais evidente:

    Em resumo, a sociedade no de maneira alguma o ser ilgico ou algico,

    incoerente e caprichoso que muito seguidamente se comprazem em ver nela. Muito

    pelo contrrio, a conscincia coletiva a forma mais elevada da vida psquica, j

    que uma conscincia de conscincias. Colocada fora e acima das contingncias

    individuais e locais, ela s v as coisas por seu aspecto permanente e essencial,

    fixando-o em noes comunicveis. Ao mesmo tempo em que v do alto, ela v ao

    2Procuramos o exemplar original de Durkheim para consult-lo, no entanto, no o encontramos, talvez por datar

    de 1913. 3Essa teoria desempenhou grande influncia sobre os gegrafos culturais americanos e ser melhor abordada no

    decorrer deste trabalho.

  • 18

    longe; a cada momento do tempo, abrange toda a realidade conhecida; por isso s

    ela pode fornecer ao esprito marcos que se apliquem totalidade dos seres e que

    permitem pens-los. Esses marcos, ela no os cria artificialmente; mas encontra-os

    dentro de si e apenas toma conscincia deles. [...] Se a sociedade algo de universal

    em relao ao indivduo, ela prpria no deixa de ser uma individualidade que tem

    sua fisionomia pessoal, sua idiossincrasia; ela um sujeito particular que, por

    conseguinte, particulariza o que pensa. (DURKHEIM, 2003, p. 494-495, grifo

    nosso)

    Essa abordagem da conscincia coletiva enquanto uma individualidade,

    um sujeito particular, vai servir como influncia e base terica no processo de reificao

    da cultura desenvolvida por antroplogos e adotada pelos gegrafos norte-americanos.

    Cuche (2002) aponta que Lvy-Bruhl, tido como fundador da disciplina

    etnolgica na Frana, considera que os grupos so diferenciados a partir do modo como

    exercitam o pensamento e no a partir de suas estruturas psquicas profundas. Para ele

    mentalidade lgica e mentalidade pr-lgica so compatveis e existem

    concomitantemente em todas as sociedades, mas a superioridade de uma sobre a outra pode

    variar conforme diferentes situaes, explicando, assim, a diversidade cultural.

    Segundo Cuche (2002), o conceito de cultura vai ser mais bem acolhido e

    estudado na antropologia norte-americana, que pode ser agrupada em trs grandes correntes: a

    primeira herdeira do pensamento de Boas e entende a cultura sob a tica da historia cultural;

    a segunda tenta entender as relaes entre a cultura (coletiva) e a personalidade (individual); e

    por fim, na terceira vertente, a cultura considerada um sistema de comunicaes entre os

    indivduos.

    A partir da influncia de Franz Boas alguns antroplogos norte-americanos

    passaram a direcionar suas pesquisas tomando a dimenso histrica dos fenmenos culturais.

    Dentre eles, Cuche (2002) destaca Alfred Kroeber e Clark Wissler, que tentaro explicar a

    distribuio dos elementos culturais no espao. Com esse intuito, os pesquisadores tomam

    como instrumentos os conceitos de trao cultural e rea cultural, em que o primeiro

    permite definir os menores elementos de uma cultura e o segundo polariza dois pontos da rea

    cultural: o centro, onde as caractersticas fundamentais de uma cultura so encontradas, e a

    periferia, onde estas caractersticas e os traos culturais das reas vizinhas se entrecruzam4.

    Os antroplogos da escola Cultura e personalidade vo buscar a conexo

    existente entre o indivduo e sua cultura, como os seres humanos incorporam e vivem sua

    cultura. Para esses antroplogos a cultura no existe fora dos indivduos e nem enquanto

    4Parece plausvel a influncia sobre os gegrafos.

  • 19

    realidade em si. Dessa forma, vo tentar explicar como a cultura est presente nos

    indivduos, como os faz agir e com quais condutas. Esse caminho foi orientado a partir da

    ideia de que a cultura determina certo modo de comportamento, que seria comum a todos os

    indivduos sob a sua gide. Dessa maneira, esse estilo de comportamento seria uma

    caracterstica especfica que diferenciaria determinada cultura de outras e daria unidade aos

    seus membros, a cultura ento encarada como totalidade e a ateno est sempre centrada

    nas descontinuidades entre as diferentes culturas. (CUCHE, 2002, p.75).

    Dentre outros, Cuche (2002) destaca como representantes dessa escola Ruth

    Benedict e Margareth Mead. A primeira desenvolveu sua teoria sobre os tipos culturais,

    trabalhando com a hiptese de que haveria um arco cultural que abrangeria todos os tipos

    culturais, que so em nmero limitado, e cada cultura seria definida a partir de um tipo ou

    estilo. Convencida da especificidade de cada cultura, Benedict afirmava, no entanto, que a

    variedade de culturas redutvel a certo nmero de tipos caracterizados. (CUCHE, 2002,

    p.77).

    Margareth Mead pesquisou principalmente a maneira com que a cultura

    recebida por um indivduo e as consequncias provocadas em sua personalidade. Nessa via,

    averiguou os processos de transmisso cultural e de socializao da personalidade, analisando

    modelos de educao. Assim, a autora entende que a personalidade de um indivduo no pode

    ser explicada pelos caracteres biolgicos, mas por um modelo cultural determinado pela

    educao de uma dada sociedade. Nessa perspectiva, a anormalidade psicolgica explicada

    segundo a lgica de determinado modelo cultural, cujo padro foi desviado pelo indivduo.

    Sendo assim, o anormal sempre relativo sua prpria cultura, nunca absoluto, universal.

    Para Cuche (2002) a escola "cultura e personalidade" merece destaque pela

    nfase dada a educao como elemento da diferenciao cultural, tendo em vista que a

    educao necessria e determinante entre os homens, pois o ser humano quase no tem

    programa gentico que guie o seu comportamento. Os prprios bilogos dizem que o nico

    programa (gentico) do homem o que o leva a imitar e aprender. (CUCHE, 2002, p.91).

    Dessa forma, os grupos humanos podem ser diferenciados pela cultura a partir dos sistemas de

    educao, o qual abarca o modo de criao do beb: aleitamento, modo de dormir, desmame

    etc.

    A partir da dcada de 1950 surge na antropologia americana uma corrente

    chamada antropologia da comunicao, referenciada por Gregory Bateson e pela escola de

  • 20

    Palo Alto. Seus pesquisadores entendem que a cultura existe a partir das interaes entre os

    indivduos, estas sendo sempre consideradas a partir de um contexto, cuja diversidade explica

    o carter plural e instvel de todas as culturas. Esta abordagem permite pensar a

    heterogeneidade de uma cultura ao invs de nos esforarmos para encontrar uma

    homogeneidade ilusria. (CUCHE, 2002, p.107)

    Essa abordagem, tambm chamada de interacionista, questionou a distino

    entre cultura e subcultura. Considerando que a cultura se origina das interaes entre os

    indivduos e entre grupos de indivduos, incorreto pensar a subcultura como algo que deriva

    de uma cultura global anterior a ela. A primeira pilastra da construo cultural a interao

    mais imediata entre os indivduos, ento a cultura local, do grupo mais prximo; a cultura

    global corresponde a uma coletividade ampliada.

    A antropologia cultural americana recebeu dos franceses uma srie de

    crticas direcionadas principalmente ao substancialismo, o qual remete a uma concepo da

    cultura enquanto realidade em si. Mas segundo Cuche (2002) essa critica pode ser aplicada

    somente a Kroeber, quanto a sua teoria do super-orgnico, em que a cultura possui

    autonomia em relao s aes dos indivduos.

    No entanto, para Cuche (2002) o culturalismo norte-americano trouxe uma

    srie de contribuies para o pensamento da antropologia cultural: evidenciou-se a relativa

    coerncia de todos os sistemas culturais: cada um uma expresso particular de uma

    humanidade nica, mas to autntica quanto todas as suas outras expresses. (p.90). O autor

    destaca que os pesquisadores se atentaram para a importncia da incorporao da cultura, no

    sentido em que ela responsvel inclusive por moldar o corpo humano e coordenar as funes

    vitais como comer, dormir, copular, dar luz, andar, correr etc.

    No mbito dos trabalhos sobre cultura que vinham sendo realizados pelos

    antroplogos, o estudo das relaes entre as culturas ocorreu, de maneira mais significa,

    tardiamente. No entanto, no deixou de contribuir profundamente no processo de renovao

    do conceito.

    Cuche (2002) destaca que esse atraso terico pode ter sido causado pela

    fixao dos etnlogos nos estudos das chamadas culturas primitivas. Sob a ideia de que

    estas eram mais simples, portanto, mais fceis de compreender do que as culturas presentes

    nas sociedades mais desenvolvidas, j que, estas ltimas, sofreram mais alteraes pelo

    contato entre si e por isso so mais complexas. Nesta perspectiva, toda mestiagem das

  • 21

    culturas era vista como um fenmeno que alterava sua "pureza" original e que atrapalhava o

    trabalho do pesquisador embaralhando as pistas (CUCHE, 2002, p.111)

    Assim, alm das culturas arcaicas serem entendidas como primitivas numa

    escala de evoluo, eram tambm vistas como mais puras pelo seu menor contato com

    outras.

    Esse pensamento vai comear a sofrer alteraes a partir da formulao do

    conceito de aculturao, que traz a noo da perda dos elementos autnticos da cultura

    original, como o afro-americano e o afro-brasileiro.

    Cuche (2002) destaca que para Melville Herskovits a aculturao o

    resultado do contato entre culturas distintas, alterando os seus padres iniciais. Assim,

    aculturao no pode ser confundida com mudana cultural, que pode resultar de causas

    internas. Cuche ainda destaca que aculturao no pode ser confundida com assimilao,

    pois esta seria sua ltima fase, alias raramente atingida. Ela implica o desaparecimento total

    da cultura de origem de um grupo e na interiorizao completa da cultura do grupo

    dominante. (CUCHE, 2002, p.116).

    A noo de aculturao foi concebida pelos antroplogos culturalistas norte-

    americanos e foi levada para a Frana por Roger Bastide, entendendo que o culturalismo tinha

    como limite de seus trabalhos a ausncia de relao do cultural com o social. Para ele, o

    cultural no pode ser estudado independente do social.

    A perspectiva de avaliao da cultura se redefiniu aps as pesquisas sobre

    aculturao. Parte-se ento da aculturao para entender a cultura e no o inverso. Segundo

    Cuche, as pesquisas sobre aculturao permitem conceber que no existem culturas puras

    em contraposio com as culturas mestias, todas, devido ao fato universal dos contatos

    culturais, so, em diferentes graus, culturas mistas, feitas de continuidades e de

    descontinuidades. (CUCHE, 2002, p.140)

    Essa descontinuidade pode estar mais presente na ordem temporal do que na

    espacial, tendo em vista que pode haver mais descontinuidades entre duas culturas que esto

    em contato prolongado do que entre os diferentes estados de um mesmo sistema cultural

    tomado em momentos distintos de sua evoluo histrica. (CUCHE, 2002, p.141) Citando

    Bastide o autor enfatiza que a ideologia assegura bem mais a continuidade de uma

    determinada cultura do que a prpria realidade, e esta pretensa continuidade ser to mais

    afirmada quanto mais a descontinuidade aparecer nos fatos: nos momentos de ruptura, o

  • 22

    discurso da continuidade uma ideologia da compensao (CUCHE, 2002, p.141)

    Para Cuche (2002) tentar diferenciar as culturas, enquanto entidades

    separadas, pode ter utilidade no mbito metodolgico e foi valorosa para pensar a diversidade

    cultural. Desse modo, indagar-se sobre onde comea e onde termina uma cultura significa

    pensar sobre a escala da cultura em questo. Assim, o autor aponta o pensamento de Lvi-

    Strauss, que considera que uma mesma unidade cultural pode ser analisada na sua insero

    universal, nacional ou local, conforme for determinada no espao e no tempo.

    Considerando as ideias de Amselle, Cuche (2002) destaca que as culturas

    esto sempre em comunicao umas com as outras, no sendo totalmente estranhas entre si,

    no havendo, portanto, descontinuidades verdadeiras. A acentuao das diferenas serve para

    melhor se afirmar e se distinguir.

    Depois de uma significativa explanao acerca das diferentes noes de

    cultura que se seguiram nas reflexes antropolgicas, Cuche (2002) faz um esforo para

    demonstrar como o uso indiscriminado do termo pode levar a uma confuso conceitual entre o

    uso social, o ideolgico e o cientfico. Para elucidar cita o exemplo do uso na poltica: cultura

    descentralizada, cultura do governo, cultura da oposio; e o uso religioso: quando o Papa

    Joo Paulo II utiliza o termo cultura da morte para se referir prtica do aborto.

    Destaca tambm o surgimento do termo cultura dos imigrantes na Frana

    dos anos de 1960, num contexto de grande entrada de imigrantes o uso dessa expresso

    enquadrava tais pessoas na sua cultura de origem de maneira que os prendesse nela, sendo

    imutvel e inassimilvel a cultura de onde atualmente habitavam. Assim, o termo cultura foi

    tratado como raa, e o indivduo seria inteiramente determinado pela sua cultura de origem.

    Desse modo a expresso cultura dos imigrantes consistia ento numa cultura definida pelos

    outros, em funo dos interesses dos outros, a partir de critrios etnocentristas. (CUCHE,

    2002, p.229)

    Cuche (2002) entende que,

    Seja no campo poltico ou religioso, na empresa ou em relao aos imigrantes, a

    cultura no se decreta; ela no pode ser manipulada como um instrumento vulgar,

    pois ela est relacionada a processos extremamente complexos e, na maior parte das

    vezes, inconscientes. (CUCHE, 2002, p.15)

    Para esse autor, a cultura possibilita ao homem transformar a natureza,

    tendo em vista que, permite a sua adaptao ao meio e, tambm, adaptar o meio a si prprio e

    a suas necessidades e projetos. Para ele todas as populaes humanas possuem a mesma carga

    gentica, no entanto, se diferenciam a partir de suas escolhas culturais, cada uma inventando

  • 23

    solues originais para os problemas que lhe so colocados. (CUCHE, 2002, p.10).

    Considerando a unidade gentica da humanidade, o autor entende que tais solues

    representam princpios culturais universais, que esto sujeitos a evolues e transformaes.

    Sendo assim, a noo de cultura aparece como um instrumento necessrio

    para colocar um fim nas explicaes naturalizantes dos comportamentos humanos. Pois

    mesmo as necessidades fisiolgicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., so

    direcionados pela cultura, as sociedades no do exatamente as mesmas respostas a estas

    necessidades. (CUCHE, 2002, p.11).

    Com isso, Cuche (2002) entende que a noo de cultura oferece a

    possibilidade de conceber a unidade do homem na diversidade de seus modos de vida e de

    crena, enfatizando, de acordo com os pesquisadores, a unidade ou a diversidade. (p.13); e

    que a anlise cultural serve para compreender a coerncia simblica do conjunto das prticas

    de um grupo social, para, assim, entender o sentido que do a sua existncia, pois mediante a

    criatividade cultural estes podem afirmar sua humanidade.

    Tambm considerando o carter simblico, Geertz (1989) defende um

    conceito de cultura essencialmente semitico, partindo das ideias de Max Weber, que

    ilustram o homem como animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu

    (GEERTZ, 1989, p.4), entende que essas teias e suas anlises so a cultura, assumida no

    como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa,

    procura do significado. (GEERTZ, 1989, p.4). Para ele, tais significados so pblicos,

    portanto a cultura tambm o , e se encontra articulada nos fluxos de comportamento, ou ao

    social, bem como em artefatos e estados de conscincia.

    Sendo assim, o autor no est de acordo com as discusses quanto a

    objetividade ou subjetividade da cultura, considerando que o comportamento humano

    tido como ao simblica:

    uma ao que significa, como a fonao na fala, o pigmento na pintura, a linha na

    escrita ou a ressonncia na msica, - o problema se a cultura uma conduta

    padronizada ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de alguma

    forma perde o sentido. (GEERTZ, 1989, p.8)

    Para ele, o que devemos perguntar qual a importncia das aes e o que

    transmitido atravs delas, pois, apesar de isso parecer bvio, existem vrias maneiras de

    obscurec-las. Como acreditar que a cultura uma realidade superorgnica e tentar reific-la

    ou coloc-la como um padro de comportamento, o que a reduziria.

    Para averiguar a cultura o autor tenta manter a anlise das formas simblicas

  • 24

    estreitamente ligadas aos acontecimentos sociais e ocasies concretas; e que verificar as

    dimenses simblicas da ao social, tais como a arte, a religio, a ideologia, a cincia, a lei, a

    moralidade, o senso comum no significa o afastamento dos dilemas existnciais da vida a

    fim de privilegiar o empiricismo no-emocional, ao contrrio: mergulhar no meio delas.

    (GEERTZ, 1989, p.21)

    Propondo uma reflexo acerca do impacto do conceito de cultura sobre o

    conceito de homem, Geertz (1989) ressalta a impossibilidade da existncia de uma natureza

    humana que seja constante no tempo, lugar e circunstncia. Assim, o que o homem pode

    estar intrinsecamente ligado ao onde ele est e no que ele acredita, que so inseparveis dele.

    A considerao dessa possibilidade permitiu o surgimento do conceito de cultura e o declnio

    da perspectiva uniforme de homem.

    Geertz (1989) apresenta duas ideias com o intuito de promover uma imagem

    mais exata de homem:

    A primeira delas que a cultura melhor vista no como complexos de padres

    concretos de comportamento (...) mas como um conjunto de mecanismos de controle

    planos, receitas, regras, instrues (o que os engenheiros de computao chamam

    programas) para governar o comportamento. A segunda idia que o homem

    precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de

    controle, extragenticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu

    comportamento. (p.32-33)

    Desse modo, entende que o comportamento do homem, no dirigido por

    padres culturais, seria virtualmente ingovernvel, um simples caos de atos sem sentido e de

    exploses emocionais, e sua experincia no teria praticamente qualquer forma. (GEERTZ,

    1989, p.33).

    Nesse sentido, para se realizar uma anlise do que a natureza do ser

    humano necessrio partir da avaliao do que o ser individual e o que ele pode ser. E

    exatamente por ser concebido como um conjunto de mecanismos simblicos para controle de

    comportamento que o conceito de cultura tem impacto no conceito de homem, pois

    fornece o vnculo entre o que os homens so intrinsecamente capazes de se tornar e o que

    eles realmente se tornam, um por um. (GEERTZ, 1989, p.37). Desse modo, a cultura nos

    modela como espcie nica e como indivduos separados, que o que o ser humano tem em

    comum, ou seja, nem um ser subcultural imutvel, nem um consenso de cruzamento cultural

    estabelecido. (GEERTZ, 1989, p.38)

    Para o autor, o fato de, durante o desenvolvimento da mente humana,

    aspectos como o sistema nervoso encefalado, a estrutura social tendo como base o tabu do

  • 25

    incesto e a competncia de criar e usar smbolos terem se desenvolvido juntos, e no em srie,

    sugere que o sistema nervoso do homem no permite apenas que ele adquira cultura, mas

    positivamente exige que o faa para poder simplesmente funcionar. (GEERTZ, 1989, p.50).

    Assim, a cultura funciona como o ingrediente que suplementa, desenvolve e amplia as

    capacidades orgnicas. O que implica na importncia da cultura na constituio da mente,

    pois um ser humano sem cultura seria, provavelmente, [...] uma monstruosidade (GEERTZ,

    1989, p.50). Nesse caso, seria pouco provvel que um primata tenha possudo alguma cultura

    verdadeira, no sentido exato de um sistema ordenado de significado e smbolos... nos

    termos dos quais os indivduos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus

    julgamentos. (GEERTZ, 1989, p.50)

    Assim, para Geertz tanto as ideias quanto as emoes so, no homem,

    artefatos culturais. Pois para se tomar uma deciso necessrio levar em considerao o que

    se sente a respeito e para isso precisa-se de imagens pblicas de sentimentos, encontradas no

    ritual, no mito e na arte.

    Todos os artefatos realizados pelo homem tais como as ferramentas, a

    caa, a organizao familiar, a arte, a religio e a cincia- o moldaram somaticamente, sendo

    necessrios sua sobrevivncia e realizao existencial. (GEERTZ, 1989)

    Diante dessa explanao possvel observar que, para o autor, a cultura

    um elemento fundamental na determinao do ser humano. Assim como Cuche (2002),

    Geertz defende que mediante a anlise cultural possvel compreender a coerncia

    simblica que um grupo utiliza para dar sentido existncia.

    Nessa mesma perspectiva alguns autores pensam o sentido da religio, da

    qual trataremos no item 1.3, que seria um dos elementos desse sistema simblico (cultura) que

    o homem utiliza para sustentar a existncia.

    O texto exposto permite-nos pensar numa ideia de cultura que no se refere

    a pessoas de um mesmo grupo tnico desenvolvendo padres de atividades restritas a uma

    localidade, mas talvez como grupos heterogneos de pessoas que significam alguns elementos

    da vida de forma mais ou menos convergente em lugares descontnuos.

    Desse modo, a formulao do termo cultura poderia auxiliar na

    sistematizao de determinados elementos de uma sociedade que alcana elevado grau de

    urbanizao, em que a cidade o palco das mestiagens e hibridismos onde as identidades

    culturais-locais originrias comeam a se dissolver. (MARTINS, 2001)

  • 26

    Grande parte dos primeiros estudos sobre cultura estavam centrados em

    sociedades antigas e isoladas, em que, talvez, fizesse sentido pensar em certa homogeneidade

    no sistema simblico de um grupo num dado local, como por exemplo, o estudo sobre o culto

    aos orixs desenvolvido por Pierre Verger em cls familiares na frica de 1950. No entanto,

    esse mesmo olhar no mais possvel sobre essas religies a partir do momento em que foram

    trazidas para o Brasil com os escravos, entre os sculos XVI e XIX, quando sofreram fuso

    dando origem ao candombl, uma religio afro-brasileira inserida nas heterogneas e mestias

    culturas urbanas.

    1.2 A APLICAO DO CONCEITO DE CULTURA NA GEOGRAFIA

    Aps a exposio do debate em torno do termo cultura, propomo-nos agora

    a pens-lo dentro da cincia geogrfica, para tentar entender, assim, como os principais

    gegrafos adotaram o termo em seus estudos. Primeiramente, faremos uma breve

    apresentao do desenvolvimento da abordagem cultural na geografia.

    A geografia cultural, segundo autores como Claval (2003), Rosendahl e

    Corra (2003), j estava presente na discusso geogrfica desde o final do sculo XIX. Claval

    (2003) entende que at os anos de 1970 os elementos da cultura apareceram na geografia,

    mesmo que de maneira discreta, mediante trs grupos de gegrafos:

    I) Vidal de La Blache e os gegrafos vidalinos;

    II) Os especialistas da geografia histrica;

    III) E, mais isoladamente, Eric Dardel

    Nas obras de Vidal de La Blache e seus seguidores os elementos da cultura

    aparecem como uma tentativa de demonstrar como os grupos se adaptam ao ambiente, qual

    a distribuio dos traos culturais e a marca que eles imprimem na paisagem. (CLAVAL,

    1997).

    Os especialistas da geografia histrica representada pelos franceses se

    destacavam por se interessarem pela evoluo particular de objetos geogrficos, tais como as

    formas de paisagem, os sistemas agrrios e os planos de cidades. Dessa forma, conceberam

    uma nova maneira de escrever a histria: a histria dos fenmenos de longa durao, a

  • 27

    histria das evolues lentas, a histria das classes baixas e analfabetas da sociedade.

    (CLAVAL, 2003, p. 154).

    Para Eric Dardel a tarefa da geografia era entender qual o sentido que os

    homens davam suas vidas na Terra.

    Nesse momento, a geografia alem estuda a cultura maneira de Jean

    Brunhes, assim analisa os traos culturais a partir da influncia da ao do homem no recuo

    das florestas e de outras formaes naturais; se interessa, tambm, pela harmonia profunda

    que se observa, s vezes, entre a organizao do espao, os traos visveis da paisagem e a

    alma do povo que a modelou (CLAVAL, 1997, p.92)

    J nos Estados Unidos, a Geografia cultural estava sendo representada por

    Carl Sauer e seus discpulos da Escola de Berkeley (1925-1975). Seus estudos eram pautados

    no historicismo e tinham como foco principal as sociedades tradicionais (CORREA, 2001);

    tentavam reconstituir os ambientes da Amrica do Norte pr-colonial e desvendar a

    diversidade dos habitats e as prticas agrcolas; tambm traziam em seus trabalhos uma

    preocupao ecolgica referente ao uso da natureza pela sociedade moderna. (CLAVAL,

    2007)

    Segundo Claval (2007), Sauer entendia a cultura como

    o conjunto de instrumentos e artefatos que permite ao homem agir sobre o mundo

    exterior [...] tambm composta de associaes de plantas e de animais que as

    sociedades aprenderam a utilizar para modificar o ambiente natural e torn-lo mais

    produtivo. (p.31)

    Para Corra (2001) a definio de cultura em Sauer pode ser resumida no

    que ele chama simplesmente de modo de vida. Sauer e seus discpulos adotaram a viso de

    cultura influnciada por antroplogos norte-americanos que formularam o conceito supra-

    orgnico de cultura.

    A princpio, o termo supra-orgnico foi criado por Herbert Spencer, o pai do

    darwinismo social, tendo sido formulado pelos antroplogos Alfred Kroeber e Robert Lowie,

    no incio do sculo XX (CORRA, 2001) e, posteriormente, desenvolvido por Leslie White.

    Alfred Kroeber foi o difusor dessa teoria na antropologia americana,

    mediante sua obra The superorganic, perspectiva que perdeu fora somente nos anos de

    1950. Segundo Duncan (2003) White entendia que as pessoas eram determinadas pela cultura,

    a qual se auto determinava, podendo ser considerada como um processo sui generis.

    Essas teorias influenciaram veementemente Sauer e seus discpulos tais

  • 28

    como Wagner e Mikesell (2003), os quais entendem que a noo de cultura sempre abrange

    grupos de pessoas, nunca indivduos; refere-se s comunidades que se encontram ao longo de

    um amplo e determinado espao, geralmente contnuo, onde renem comportamentos e

    crenas comuns. E acreditam que

    o conceito de cultura oferece um meio para classificar os seres humanos em grupos

    bem definidos5, de acordo com caractersticas comuns verificveis, e tambm um

    meio para classificar reas de acordo com as caractersticas dos grupos humanos que

    as ocupam. (WAGNER; MIKESELL, 2003, p.28)

    Duncan (2003), no artigo O supra-orgnico na geografia cultural

    Americana, se dedica em apontar os problemas tericos da geografia cultural ao tomar o

    conceito de cultura enquanto status ontolgico. Tendo em vista que os gegrafos dessa

    vertente adotaram a cultura como uma entidade supra-orgnica, em que, nas palavras de

    Duncan (2003), a cultura era vista como uma entidade acima do homem, no redutvel s

    aes dos indivduos e misteriosamente respondendo a leis prprias. (p.64). Duncan (2003)

    destaca que para Sauer o indivduo determinado pela cultura, sendo um mero agente das

    foras culturais, um mensageiro levando informao atravs das geraes e de lugar para

    lugar. (DUNCAN, 2003, p.68); e ainda, para ele a geografia humana no tem nada a ver com

    os indivduos, mas apenas com as instituies humanas e culturais. Assim, como se essas

    instituies culturais ou humanas fossem algo para alm do indivduo, podendo ser explicadas

    e entendidas sem a compreenso dos que dela fazem parte.

    Desse modo, a cultura autnoma com relao aos indivduos que, apesar

    de participarem dela, so considerados como causas eficientes, agentes ou mensageiros da

    cultura, que a causa formal, sendo assim reificada, ou seja, ela tem o poder de fazer as

    coisas. (DUNCAN, 2003, p.73)

    Duncan (2003) destaca a crtica de Wagner (1958) teoria da

    homogeneidade disseminada na geografia cultural. Para ele, no momento em que se concebe a

    cultura como uma fora ativa e o indivduo como um recipiente passivo, este ser um papel

    em branco no qual ser impresso o padro cultural, assumindo dessa forma a homogeneidade.

    Corra (2001) enfatiza que os gegrafos sauerianos aceitaram e

    incorporaram uma srie de premissas que abrangem o conceito de cultura como entidade

    supra-orgnica. Dentre elas, a ideia de que a realidade seja dividida num nvel orgnico e

    outro supra-orgnico, nesse ltimo se encontra a cultura, que ento passa a ser coisa, entidade,

    5Achamos pouqussimo provvel que o conceito de cultura classifique seres humanos em grupos bem definidos.

  • 29

    ou seja, algo com poder de ao. Dessa maneira, um grupo de indivduos pode internaliz-la,

    o que levaria homogeneidade cultural desse grupo. No havendo diferenas, se estabeleceria

    a ausncia de conflitos internos e as mudanas seriam pouco frequentes e sempre provindas

    do campo externo ao grupo.

    Desse modo, Corra (2001) questiona como se explicaria, sob a gide desse

    modelo de cultura, a escolha, a interao, a negociao e a imposio entre os indivduos.

    Duncan (2003) tambm se contrape e considera que aceitar a cultura como fora

    determinante, exclui uma srie de questes importantes inerentes sociedade, tornando

    obscuras as explicaes relativas origem, transmisso e diferenciao de diversas

    caractersticas culturais presentes no grupo, bem como impossibilita discusses em torno da

    estratificao social, de interesses polticos de grupos especficos e dos conflitos que surgem

    de seus interesses impostos. (DUNCAN, 2003, p.78).

    Duncan (2003) aponta o pensamento de Geertz que considera que na

    unidade supra-orgnica o indivduo simplesmente desaparece numa harmonia mstica. Sendo

    assim, as explicaes so atribudas a uma entidade transcendental: dado que a existncia

    do supra-orgnico no pode ser provada nem refutada, ento se torna, simplesmente, uma

    questo de f. (DUNCAN, 2003, p.76)

    O gegrafo cultural Denys Cosgrove (2003) entende que se ganha muito

    pouco em tentar definir precisamente o termo cultura6, e faz-lo acarreta sua reduo a uma

    categoria objetiva, o que nega sua subjetividade essencial, tendo em vista que o termo

    central do humanismo, incapaz de adquirir uma definio clara enquanto conceito objetivo e

    mensurvel, podendo ser compreendida somente mediante a prtica.

    Para este autor, o uso contemporneo do termo cultura, serve para indicar a

    unio dos aspectos fundamentais do ser social: o trabalho a interao direta dos seres

    humanos com a natureza na produo (COSGROVE, 2003, p.104) e a conscincia: as

    ideias, valores, crenas e ordem moral nas quais os seres humanos se tornaram cientes de si

    mesmos como sujeitos capazes de transcender a grosseira materialidade da natureza.

    (COSGROVE, 2003, p.104).

    Para Paul Claval (2007) a cultura a mediao que os homens estabelecem

    sobre a natureza. De maneira que a relao do homem com a natureza nunca direta, pois

    6 Ao contrrio de Geertz (1989) que entende que apesar de as teorias no conseguirem explicar tudo mas, ainda

    assim, tentam explicar algo. Assim destaca que o conceito de cultura evolui a partir dos esforos da antropologia

    em limitar, especificar, enfocar e conter. (p.3)

  • 30

    estes criam o vesturio e a casa para se protegerem do clima; vias, pontes etc., para facilitar a

    circulao; a vegetao natural substituda por florestas controladas, pastagens para animais;

    a fora humana foi substituda pela dos animais, vento, quedas dgua; enfim, a humanidade

    criou diversos elementos que medeiam essa relao7.

    Para este autor,

    A cultura aparece como um conjunto de gestos, prticas, comportamentos, tcnicas,

    know-how, conhecimentos, regras, normas e valores herdados dos pais e da

    vizinhana, e adaptados atravs da experincia a realidades sempre mutveis.

    (CLAVAL, 2003, p.163)

    Claval (2007) considera que como a educao condiciona os indivduos e os

    grupos, a cultura aparece como uma herana, que o resultado do jogo da comunicao, a

    qual vai depender do arsenal tcnico, de conhecimento e de interpretaes de cada sociedade.

    No entanto, o autor ressalta que, mesmo enquanto herana, os indivduos no a recebem

    passivamente, eles reagem, interiorizam alguns elementos, rejeitam e criticam outros, criam

    novos - o que torna as culturas realidades mutveis.

    Corra (2003), um dos importantes gegrafos brasileiros representante da

    Geografia Cultural, entende que a cultura se manifesta espacialmente permitindo com que

    sejam criados mapas de significados, no apenas metafricos, mas que de fato ampliem o

    arcabouo da cartografia geogrfica. Para tal afirmao o autor se utilizou da definio dos

    membros do Centre for Contemporary Cultural Studies at the University of Birmingham, a

    qual entende que as culturas so:

    Mapas de significados atravs dos quais o mundo se torna inteligvel. As culturas

    no so simplesmente sistemas de significados e valores que temos na mente.

    Tornam-se concretas por meio de padres de organizao social. A cultura o modo

    pelo qual as relaes sociais de um grupo so estruturadas e modeladas, mas

    tambm o modo pelo qual aquelas formas so experienciadas, entendidas e

    interpretadas.8 (In JACKSON, 2003, p.2).

    Jackson (2003) continua a reflexo observando que a cultura implica

    relaes de poder que so refletidas nos padres de domnio e de subordinao. Instituies de

    domnio cultural como a BBC e o New York Times, influnciam milhes de pessoas

    7Mas para ter construdo todos esses artefatos no foi necessrio a relao direta do homem com a natureza?

    Entendemos que a maior parte das pessoas (em especial urbanas) no produzem as pontes ou suas prprias

    calas, mas utilizam carros, poluem o ar, os rios, fazem peregrinaes degradando a mata, realizam grandes

    rituais nas praias. 8 cultures are maps of meaning through which the world is made intelligible. Cultures are not simply systems of

    meaning and value carried around in the head. They are made concrete through patterns of social organization.

    Culture is the way the social relations of a group are structured and shaped: but it is also the way those shapes

    are experienced, understood and interpreted

  • 31

    estabelecendo uma leitura preferida de circunstncias locais e nacionais.9 (JACKSON,

    2003, p.3). Desse modo, o Estado no exerce um controle social direto, mas sugere que certos

    pontos de vista dominante so mais eficazes quando so naturalizados e tornados parte do

    senso comum cotidiano.

    Assim, os gegrafos sauerianos difundiram a noo do conceito supra-

    orgnico de cultura, o qual foi imensamente criticado por autores que enxergam os limites

    dessa anlise que colocava a cultura como uma entidade atuando sobre seres passivos,

    inviabilizando as anlises numa sociedade capitalista, urbanizada, de classes. Dos autores

    brasileiros, Corra tambm pontuou seus problemas e adotou como referncia a definio

    apontada em Mapas dos significados, de Jackson (2003), entendendo a concretude da cultura

    expressa em padres de organizaes sociais.

    No entanto, nos sentimos impelidos a questionar: se possvel em nossa

    sociedade urbana/informatizada/globalizada esperar padres sociais que expressem a

    homogeneidade de uma cultura, ou estaramos entre culturas hbridas. (cf. Martins, 2001)

    1.3 O CONCEITO DE RELIGIO

    Pretende-se nesse momento realizar uma breve explanao acerca da

    importncia da religio na configurao scio-espacial de uma sociedade, tendo em vista que

    esse tema atrai os olhares de muitos pesquisadores, nas diversas reas do conhecimento das

    Cincias Humanas. Apesar de fadada ao desaparecimento por autores como Durkheim (2003),

    a religio ainda sobrevive, se transforma, se transmuta, perde e ganha adeptos, mas ainda

    sobrevive. Tal fato levanta indagaes em diversos autores que tentam compreender o que

    mantm a religio nesse mundo secularizado, mercantilizado, globalizado e ditado pela

    verdade cientfica; e o que movimenta as paixes de milhes de pessoas no mundo inteiro e

    em diversas expresses?

    Nesse contexto os estudos da religio tomam relevncia. Sendo assim,

    prope-se discutir o que a religio a partir de autores clssicos que buscam entender quais

    so os elementos do fenmeno religioso e qual a sua importncia na constituio da

    9establishing a preferred reading of local and national circumstances

  • 32

    sociedade; bem como procurar entender o que a cincia geogrfica tem produzido a respeito

    do tema. Sero tomados como base os trabalhos de Geertz (1989), Durkheim (2003), Eliade

    (2010) e Alves (1981).

    Rubem Alves (1981) em sua obra O que religio10

    ? Tece uma relao

    entre o desejo, a cultura e a religio. Para esse autor, o homem um ser de desejo, sendo este

    sentido pela ausncia de algo, quando se privado de algo que se quer. Todo o nosso

    cotidiano baseado na privao dos desejos imediatos do corpo, tais como os impulsos

    sexuais, as preferncias alimentares, a sensibilidade olfativa, o relgio biolgico

    determinando quando acordar ou adormecer. Todos esses imperativos no so mais

    expresses naturais do corpo humano, mas uma criao cultural. E a cultura s se inicia

    quando o corpo deixa de dar ordens e o homem passa a imaginar e a construir mundos. O

    autor ressalta que no existe cultura sem educao; cada pessoa que entra em contato com um

    recm-nascido humano um professor que lhe descreve o mundo inventando e substituindo a

    voz do corpo. Sendo assim, Alves (1981) declara: j que o corpo, em seu aspecto biolgico

    bruto, no o motivo e nem o modelo pelo qual o homem faz cultura, as produes culturais

    parecem demonstrar que o homem um ser de desejo. E a cultura feita tendo por finalidade

    criar os objetos do seu desejo.

    Mas ainda assim, segue o autor, por mais que a inteno da cultura seja criar

    os objetos de desejo, ela no o realiza como um todo. s vezes possvel construir um jardim

    e colher flores, s vezes necessrio imagin-lo. Ao mesmo tempo que se tem um jardim, este

    rodeado por um deserto. O homem cria a cultura e fracassa, pois no consegue satisfazer

    todos os seus desejos. Nem sempre possvel ter a pessoa amada e enquanto o desejo no se

    realiza, resta cant-lo, diz-lo, celebr-lo, escrever-lhe poemas, compor-lhe sinfonias,

    anunciar-lhe celebraes e festivais. (ALVES, 1981, p.22)

    Desse modo, a finalidade da cultura assumida pelos smbolos, que nascem

    do fracasso do homem e lhe indicam direes, j que nunca podem ser alcanados. Com isso,

    a cultura no pode ser entendida a partir dos seus triunfos tcnicos/prticos, pois formada

    pelos fracassos e neste ponto que nasce o smbolo, que seria a testemunha das coisas ainda

    ausentes, saudade de coisas que no nasceram... (ALVES, 1981, p.22).

    10

    Apesar da obra de Rubem Alves pertencer coleo Primeiros Passos, achamos bastante interessante a postura

    narrativa adotada pelo autor. Para explicar religio e sua importncia o autor se coloca em diversas posies,

    tanto de autores importantes como Freud, Feuerbach, Marx e Durkheim, quanto a de um religioso e um cientista

    (enquanto posies antagnicas). Consideramos tambm relevante os elementos histricos trazidos pelo autor,

    bem como o levantamento bibliogrfico dos principais pensadores sobre o tema.

  • 33

    Se dos fracassos nascem os smbolos, dos smbolos nasce a religio, essa

    teia de smbolos, rede de desejos, confisso da espera, horizonte dos horizontes, a mais

    fantstica e pretensiosa tentativa de transubistanciar a natureza. (ALVES, 1981, p.22),

    composta por itens simples como altares, santurios, comidas, perfumes, lugares, capelas,

    templos, amuletos, colares, livros e gestos, representados pelo silncio, olhares, reza,

    encantaes, renncias, canes, poemas, romarias, procisses, peregrinaes, exorcismos,

    milagres, celebraes, festas e adoraes. (ALVES, 1981)

    Dentro de alguns sistemas religiosos esses objetos e gestos pertencem ao

    mundo sagrado, e Alves (1981) indaga o que lhes confere essa qualidade? Que propriedades

    especiais possuem para se diferenciarem de outros objetos e gestos que continuam no mundo

    profano?

    E o autor responde destacando que os gestos e as coisas no so sagradas

    por si s, so os homens que as atribuem esse significado. Desse modo, a religio nasce a

    partir do poder conferido ao homem de nomear as coisas, classificando quais so as que

    direcionam seu destino, sua vida e morte, e quais so as que so secundrias existncia. Por

    essa razo, a religio se apresenta como certo tipo de fala, de discurso, de rede de smbolos. E

    por meio desses smbolos que os homens discriminam os objetos, tempos e espaos que

    fazem parte do mundo sagrado. O autor salienta que, talvez sem esse olhar filtrado pelo

    sagrado, o mundo seja por demais frio e escuro. Com seus smbolos sagrados o homem

    exorciza o medo e constri diques contra o caos. (ALVES, 1981, p.24).

    Quando estamos diante do mundo profano nos deparamos com coisas

    concretas e visveis, tais como doenas, contas a pagar, poltica. No entanto, no mundo do

    sagrado a linguagem faz referncia s coisas invisveis, coisas que s podem ser observadas

    pelos olhos da f. E graas ao poder do invisvel que se instaura o sagrado. A linguagem

    religiosa se refere ao invisvel quando menciona as profundezas da alma, as alturas dos cus,

    o desespero do inferno, os fluidos e influncias que curam, o paraso, as bem-aventuranas

    eternas e o prprio Deus. (ALVES, 1981, p.26), pois nunca ningum viu nenhuma dessas

    entidades, observa o autor.

    A pedra, o po, o vinho ou qualquer outro objeto por si s concreto e

    visvel. Mas, quando fazem parte do mbito sagrado ganham significados misteriosos e

    realizam conexes invisveis com a graa divina. Dessa forma, no parecer do autor, o discurso

    religioso trabalha no sentido de transformar as entidades brutas e vazias (os objetos, as coisas)

  • 34

    em portadoras de sentido, passando a fazer parte do mundo humano como extenses do

    prprio indivduo.

    Sendo assim, o que importa para a religio so os objetos construdos pela

    fantasia e pela imaginao, as quais so fruto do desejo e da espera. Algumas pessoas

    estabelecem uma relao de amizade com a natureza e envolvem seus elementos com o vu

    do invisvel, fazendo com que os ventos, nuvens, rios, mares, animais, plantas sejam mais do

    que mera presena na natureza.

    Esse pensamento guiado por Alves (1981) para concluir que as entidades

    religiosas so imaginrias. Tal constatao tem o sentido de se contrapor ao pensamento

    cientfico, que exige toda objetividade e verdade, negando a imaginao. E apesar de toda a

    eficcia e eficincia que a cincia consegue ao satisfazer questes da vida objetiva, no

    seriam, no entanto, mediante os princpios cientficos que surgiria a flauta, a dana, as

    pinturas, pois estes no tinham objetividade antes de serem inventados, foram antes

    imaginados. E graas imaginao nasce a cultura.

    Assim o autor se justifica, destacando que pensar as entidades religiosas

    como imaginrias somente estabelecer sua filiao, reconhecendo a fraternidade que nos

    une. (ALVES, 1981, p.32), e, de forma alguma, quer sugerir que as pessoas portadoras de

    religiosidade so loucas, nem mesmo que a religio apenas imaginao ou fantasia, mas que

    ela tem o poder, o amor e a dignidade do imaginrio. (ALVES, 1981, p.3).

    O autor destaca que

    o homem lana, projeta, externaliza suas redes simblico-religiosas - suas melodias

    sobre o universo inteiro, os confins do tempo e os confins do espao, na esperana

    de que cus e terra sejam portadores de seus valores. (ALVES, 1981, p.34)

    Nessas aes o que est em jogo a ordem, esta que o homem busca para

    resgatar as marcas do desejo e que corresponda s aspiraes do amor. Porm, como algo

    presente, essa realidade no existe. Ento a religio aparece como a grande hiptese e aposta

    de que o universo inteiro possui uma face humana.. Com isso, Alves indaga: qual cincia

    seria capaz de construir esse horizonte? E responde: so necessrias as asas da imaginao

    para articular os smbolos da ausncia. (ALVES, 1981, p.34)

    Eis onde repousa a importncia dos smbolos e das entidades: responder a

    necessidade de viver num mundo que faa sentido. A objetividade concreta apesar de

    eficazmente matar a fome e saciar o desejo sexual, necessidades bsicas da sobrevivncia, no

    consegue estabelecer no ser uma ordem interna que permita aos smbolos darem sentido

  • 35

    vida dos seres humanos. E assim discorre o autor:

    verdade que os homens no vivem s de po. Vivem tambm de smbolos, porque

    sem eles no haveria ordem, nem sentido para a vida, e nem vontade de viver. Se

    pudermos concordar com a afirmao de que aqueles que habitam um mundo

    ordenado e carregado de sentido gozam de um senso de ordem interna, integrao,

    unidade, direo e se sentem efetivamente mais fortes para viver (Durkheim),

    teremos ento descoberto a efetividade e o poder dos smbolos e vislumbrado a

    maneira pela qual a imaginao tem contribudo para a sobrevivncia dos homens.

    (ALVES, 1981, p.35)

    Essa argumentao, a de considerar os smbolos como importante pilastra

    para sustentar a construo do sentido da vida do homem, vai permear todo o texto do autor e

    vai se estender religio, que por ele considerada como uma rede de smbolos. Nesse

    sentido, para Alves (1981) h duas perguntas: responder o que religio requer a

    compreenso do que ocorreu com os smbolos que herdamos? O que fizeram conosco e o que

    fizemos com eles? O que, para o autor, pode ser entendido se recorrermos histria e

    tentarmos compreender como nossos smbolos foram reificados e construram nosso mundo e,

    em seguida, desmoronaram.

    Nossa civilizao recebeu uma herana simblica a partir de duas vertentes:

    uma hebraico-crist e outra greco-romana. Estas, distintas, porm transformadas

    reciprocamente no contato histrico, floresceram no perodo denominado Idade Mdia,

    considerado pelo autor como inigualvel quanto ao quesito simblico, porque ali os smbolos

    do sagrado adquiriram uma densidade, uma concretude e uma onipresena que faziam com

    que o mundo invisvel estivesse mais prximo e fosse mais sentido que as prprias realidades

    materiais. (ALVES, 1981, p.39-40)

    Nessa poca, as obras de arte eram quase que exclusivamente voltadas ao

    sagrado, e a natureza sempre aparecia influnciada por essa tica. Todo o universo era

    compreendido como sendo dotado do sentido humano, possuindo um carter essencialmente

    religioso. Todas as coisas se uniam numa nica temtica: o drama da salvao, o perigo do

    inferno, a caridade de Deus levando aos cus as almas puras. (ALVES, 1981, p.40). Com

    isso o autor destaca que compreensvel que todo esse drama tenha exigido e estabelecido

    uma geografia que localizava com preciso o lugar das moradas do demnio e as

    coordenadas das manses dos bem-aventurados11

    . (ALVES, 1981, p.41).

    11

    Essa citao inspirou-nos a rememorar o j tratado olhar clssico da Geografia: o da localizao em seu sentido

    amplo, da importncia de se entender o porqu as coisas esto onde esto e qual seu sentido histrico e social.

    E o interessante que esta passagem de Rubem Alves, que telogo, socilogo e psiquiatra mas no gegrafo,

    transborda essa compreenso.

  • 36

    No entanto, destaca o autor, como todo sistema simblico sofre

    modificaes a partir dos questionamentos sobre sua eficcia, o sistema religioso da Idade

    Mdia tambm sofreu. E, certamente, essa oposio no veio da alta hierarquia sagrada, que

    detinha o poder e o controle desses smbolos, e nem da camada mais pobre da populao, que

    gastava toda a sua energia para lutar pelo po de cada dia; veio de uma classe que se

    interessava por atividades econmicas voltadas produo, comercializao, expanso dos

    mercados, lucros, riquezas.

    O sistema simblico da Idade Mdia representava um grande obstculo para

    a burguesia e seus interesses, pois, enquanto a sociedade medieval queria compreender e

    contemplar a natureza, a nova classe almejava control-la e transform-la. E para tanto, no

    poderia haver melhor instrumento investigativo do que a matemtica, pois possui uma

    linguagem vazia de mistrios e dominada pela razo.

    Nesse novo universo, baseado na cincia, o mundo invisvel e misterioso da

    religio no teria funo, pois o que se valoriza o utilitrio e o fato observvel, dotado de

    objetividade. A natureza passa a ser vista como uma entidade bruta, apenas fonte de matria-

    prima, em que tanto os seus elementos quanto as pessoas perderam seu valor religioso.

    Agora algum vale o quanto ganha, enquanto ganha. (ALVES, 1981, p.47). Desse modo,

    ressalta Alves (1981), a religio representa uma tradio que ser sacrificada em nome da

    utilidade e racionalidade da produo de riquezas, assim, tudo que no era considerado til

    perante esse raciocnio deveria desaparecer.

    Deus foi aprisionado no Cu e a religio ficou limitada a tomar conta

    somente das coisas invisveis, no participando mais do poder de decises polticas e

    econmicas. E ento o autor indaga: por que ainda permitem religio o domnio sobre as

    coisas invisveis? Por que no lhe tiraram tudo?

    Diante dessa nova realidade, muitos autores entenderam o fim da religio e

    a completa secularizao da sociedade, porm, isso no ocorreu. O autor lembra que, mesmo

    os grandes cones desse novo sistema, como os economistas, banqueiros e negociantes, ainda

    pensam sobre a vida e a morte e querem ter certeza de que sua riqueza foi merecida, sendo

    assim, buscam nela os sinais do favor divino e a cercam das confisses de piedade.

    (ALVES, 1981, p.51). Haja vista o dlar, a maior moeda do mundo e o smbolo mximo do

    sistema capitalista, trazer escrito In God We trust. E ainda tem os operrios e camponeses

    que necessitam da religio para suportar seus sofrimentos.

  • 37

    Se as religies ainda sobrevivem cincia e hostilidade do mundo

    moderno, o que so elas? Indaga Alves (1981), o que as une num trao comum? Sua resposta

    se aproxima de Eliade (2010) e Durkheim12

    (2003): todas as religies apresentam o mundo

    dividido em dois, um espao das coisas sagradas e outro das coisas profanas. Ambos so

    estabelecidos pelas atitudes humanas diante das coisas, espaos, tempos, pessoas e aes, ou

    seja, no so propriedades das mesmas.

    Para o autor o mundo profano o circulo das coisas utilitrias, ou seja, as

    coisas so usadas por serem teis, se no apresentam utilidade alguma so descartadas. Assim

    o crculo do profano e o do econmico se superpem. Esse utilitarismo conjugado com o

    individualismo, pois o indivduo torna-se dono de todas as coisas e centro do mundo, podendo

    escolher o que lhe til ou no.

    Em contrapartida, no mundo sagrado as coisas se transformam e so elas

    que possuem o indivduo, e no o contrrio. Ele no o centro do mundo e depende de algo

    superior a ele, sentindo-se ligado ao sagrado pela reverncia e respeito. No mundo sagrado h

    a transgresso do utilitarismo, pois as prticas que o compreendem no so definidas por sua

    utilidade, mas por atribuies sagradas da religio, tais como o sacrifcio, o jejum, o perdo, a

    autoflagelao. Assim, o autor completa:

    O sagrado o criador, a origem da vida, a fonte da fora. O homem a criatura, em

    busca de vida, carente de fora. Vo-se os critrios utilitrios. O homem no mais

    o centro do mundo, nem a origem das decises, nem dono do seu nariz. Sente-se

    dominado e envolvido por algo que dele dispe e sobre ele impe normas de

    comportamento que no podem ser transgredidas, mesmo que no apresentem

    utilidade alguma. (ALVES, 1981, p.61)

    Ento o autor enfatiza que o sagrado funciona como um crculo de poder e

    no de saber, pois a essncia da religio no a ideia, mas a fora. (ALVES, 1981, p.64).

    Utilizando-se de Durkheim, destaca que a conscincia do sagrado uma habilidade humana

    para imaginar e pensar num mundo ideal. Desse modo, o ideal e o sagrado so a mesma coisa.

    Alves (1981) destaca o pensamento de Marx, que parte da premissa de que

    a vida que determina a conscincia e no o contrrio. Assim, a condio material da

    humanidade que determina suas relaes espirituais, sendo ela a criadora da religio, e no o

    contrrio. Se a humanidade no fosse obrigada a trabalhar contra sua vontade, mas pudesse

    trabalhar com o que lhe proporcionasse prazer, ela no precisaria da religio. Pois a religio

    o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem corao, como ela o esprito das

    12

    Os quais trabalharemos posteriormente.

  • 38

    condies sociais de onde o esprito excludo. Ela o pio do povo.13

    (MARX; ENGELS,

    1968, p.37)

    Marx considera que no a religio o problema, so as condies materiais

    dos indivduos que exigem que ela exista. Assim, o que deve ser mudada a situao da

    humanidade, no que ela seja encorajada a deixar suas religies, a exigncia de que se

    abandonem as iluses sobre uma determinada situao, a exigncia de que se abandone uma

    situao que necessita de iluses. (MARX; ENGELS, 1968, p.37). E segue:

    A crtica arrancou as correntes que recobriam as flores imaginrias, no para que o

    homem viva acorrentado sem fantasias ou consolo, mas para que ele quebre a

    corrente e colha a flor viva. A crtica da religio destri as