28
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ GUERRAS E REVOLUÇÕES NO SÉCULO XX] Ano 5, n° 8 | 2015, vol.2 ISSN [22364846] 1 A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em quadrinhos do Capitão América (1965-1970) Rodrigo Aparecido de Araújo Pedroso * Introdução Este artigo apresenta algumas análises pontuais com relação a como a Guerra do Vietnã, um momento marcante na história recente dos Estados Unidos, foi representada nas histórias em quadrinhos (HQs) do Capitão América. A ideia central é investigar de que forma os autores dos quadrinhos utilizaram o personagem para expor determinadas impressões e opiniões sobre a participação de seu país no conflito do Vietnã. Além disso, esta pesquisa pretende demonstrar a possibilidade de se utilizar histórias em quadrinhos como fontes históricas. Essa proposta está ligada a uma problemática historiográfica mais ampla: O que é ou não possível de ser utilizado como fonte histórica? Esse é um tema já bem debatido por historiadores e, de certa forma, pode-se afirmar que desde os estudos da chamada Escola dos Annales, na primeira metade do século XX, as fontes que um historiador pode usar para desenvolver suas pesquisas não possuem uma delimitação específica – exceto a disponibilidade de materiais do período que se pretende estudar e a imaginação do pesquisador. Assim sendo, dependendo do que se pretende estudar, a escolha das fontes mais apropriadas cabe unicamente ao historiador. Quanto às histórias em quadrinhos, uma justificativa para usá-las como fontes está no fato de que elas são um eficiente meio de comunicação de massa, produzidas * Mestre em História Social – FFLCH-USP. 1 “[...] even the most ephemeral and seemingly inconsequential literature [...] can tell us a lot about the

A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

1  

A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em quadrinhos do Capitão América (1965-1970)

Rodrigo Aparecido de Araújo Pedroso*

Introdução

Este artigo apresenta algumas análises pontuais com relação a como a Guerra

do Vietnã, um momento marcante na história recente dos Estados Unidos, foi

representada nas histórias em quadrinhos (HQs) do Capitão América. A ideia central é

investigar de que forma os autores dos quadrinhos utilizaram o personagem para

expor determinadas impressões e opiniões sobre a participação de seu país no conflito

do Vietnã.

Além disso, esta pesquisa pretende demonstrar a possibilidade de se utilizar

histórias em quadrinhos como fontes históricas. Essa proposta está ligada a uma

problemática historiográfica mais ampla: O que é ou não possível de ser utilizado

como fonte histórica? Esse é um tema já bem debatido por historiadores e, de certa

forma, pode-se afirmar que desde os estudos da chamada Escola dos Annales, na

primeira metade do século XX, as fontes que um historiador pode usar para

desenvolver suas pesquisas não possuem uma delimitação específica – exceto a

disponibilidade de materiais do período que se pretende estudar e a imaginação do

pesquisador. Assim sendo, dependendo do que se pretende estudar, a escolha das

fontes mais apropriadas cabe unicamente ao historiador.

Quanto às histórias em quadrinhos, uma justificativa para usá-las como fontes

está no fato de que elas são um eficiente meio de comunicação de massa, produzidas

* Mestre em História Social – FFLCH-USP. 1 “[...] even the most ephemeral and seemingly inconsequential literature [...] can tell us a lot about the

Page 2: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

2  

em grande quantidade, amplamente difundidas mundo afora. Além disso, elas se

constituem como criações artísticas que são a expressão de ideias, pensamentos,

sentimentos, etc., de seus autores. Estes por sua vez estão, inevitavelmente, inseridos

dentro de um determinado contexto histórico e em função disto acabam dialogando de

forma direta ou indireta com as “contradições políticas, econômicas e sociais que

formam esta ou aquela sociedade, historicamente considerada.”(CIRNE, 1978, p.40).

O historiador William W. Savage Jr. afirma que ainda há um grande

preconceito sobre as histórias em quadrinhos, elas costumam ser consideradas um

produto barato, sem importância, descartável e que está associado ao mundo infantil e

pré-adolescente, por isso, não poderiam fornecer dados confiáveis sobre o período em

que foram produzidas. Savage rebate essa ideia preconceituosa sobre as HQs ao

explicar que a intenção de seu livro é demonstrar que mesmo a mais efêmera e aparentemente inconsequente literatura [...] pode nos contar muito sobre a sociedade que as produziu e abrigou. As crianças podem ter lido os quadrinhos, mas, eles foram escritos e desenhados por adultos; e dessa simbiose uma síntese desse período pode emergir – não para ficar sozinha, com certeza, mas para ser empregada em contextos existentes e contribuir para o entendimento de quem nós fomos e, consequentemente, quem somos. (SAVAGE, 1998, p. x, tradução nossa)1.

Os argumentos de Savage defendem que, por mais “efêmeras” que as histórias

em quadrinhos sejam, elas podem fornecer amostras de como determinada sociedade

se representou. Além disso, Savage critica o que ele chama de “acadêmicos com

tendências a um elitismo cultural”, que não dão importância alguma a meios de

comunicação de massa, como as HQs. Para ele, os meios de comunicação de massa

atingem muito mais pessoas do que os textos clássicos da literatura, ou outros tipos de

fontes que os historiadores costumam preferir. Ele deixa claro que não está dizendo

que este e outros tipos de documentação mais “clássicos” não devam ser analisados,

simplesmente está sugerindo: outra categoria de documentos, outra janela para a experiência Americana; e gostaria de exortar os céticos de recordar o tempo,

1 “[...] even the most ephemeral and seemingly inconsequential literature [...] can tell us a lot about the society that produced them and housed. Children may have read the comics, but they were written and designed by adults; and this symbiosis an overview of this period can emerge – not to be alone, to be sure, but to be used in existing contexts and contribute to the understanding of who we were and therefore who we are.” (SAVAGE, 1998, p.x).

Page 3: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

3  

não muito tempo atrás, quando a relação entre história e, digamos, o cinema teria sido considerada inadequada para o discurso acadêmico. Em suma, se o material existe e pode ser útil, por que não usá-lo. (Ibidem, p. x-xi, tradução nossa)2.

Quanto à metodologia que usaremos para a análise das HQs, procuraremos

interpretar o texto juntamente com as imagens, pois como afirma o artista/teórico de

histórias em quadrinhos Will Eisner,

Quando se examina uma obra em quadrinhos como um todo, a disposição de seus elementos assume a característica de uma linguagem. [...] As histórias em quadrinhos comunicam numa “linguagem” que se vale da experiência visual comum ao criador e ao público. (EISNER, 2001, p.7).

Portanto, as HQs possuem uma linguagem única que alia elementos visuais e

textuais e, ao se combinarem, dão origem a uma nova forma de linguagem, onde tanto

o texto quanto as imagens podem ser interpretadas pelos leitores; estes dois elementos

interagem e se complementam, tornando impossível a análise de um deles

separadamente. Então, faremos uma análise combinada dos mesmos, buscando

destacar momentos dentro da narrativa, quando imagens e textos se articulam visando

a reforçar ou transmitir ideias, sentimentos, preconceitos ou críticas pertinentes ao

contexto social e/ou político.

O presente texto apresenta análises de duas edições do personagem produzidas

em momentos distintos da Guerra do Vietnã, a partir da análise destas procuraremos

estabelecer as principais linhas de diálogo entre as HQs e contexto no qual elas foram

produzidas. Antes disto faz-se necessária uma breve apresentação do personagem e de

alguns fatos referentes à história do Vietnã e sua guerra civil.

2 “[…] another category of documents, another window to the American experience; and I would urge skeptics to remember the time not long ago when the relationship between history and, say, the film would have been considered inappropriate for academic discourse. In short, if the material exists and can be useful, why not use it.” (SAVAGE, 1998, p. x-xi).

Page 4: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

4  

Um breve histórico sobre o Capitão América e a Guerra do Vietnã

O Capitão América foi criado em 1941 por Jack Kirby e Joe Simon, durante a

Segunda Guerra Mundial. O personagem foi encomendado pela editora Timely

Comics (posteriormente, essa editora tornou-se a Marvel Comics), que queria um

herói patriótico para combater a ameaça nazifascista, representando, defendendo e

divulgando os ideais e as políticas norte-americanas predominantes no período. Em

seu mundo fictício da Segunda Guerra Mundial, o jovem patriota Steve Rogers, após

ser recusado pelo exército devido às suas condições físicas inadequadas, teve uma

segunda oportunidade de se engajar no esforço de guerra contra o Eixo ao ser

submetido a um projeto secreto que o transformou em um supersoldado: o Capitão

América. Um defensor dos Estados Unidos, de seu modo de vida e ideais, ao ser

caracterizado “como um super-herói explicitamente americano ele se estabeleceu ao

mesmo tempo como um representante de uma nação americana idealizada e como um

defensor do status quo americano.” (DITTMER, 2005, p.627, tradução nossa)3.

Entretanto, ao longo de sua existência (mais de 70 anos), o personagem passou

por diversas equipes criativas que introduziram consecutivas adaptações para mantê-

lo atualizado, consumível e com algum significado para diversas gerações de leitores.

Isto o transformou em um “personagem que é familiar a diversas gerações de

americanos.” (DITTMER, 2005, p.628, tradução nossa)4. Essas interpretações do

personagem e sua permanência no imaginário político e cultural dos Estados Unidos

conferiam ao Capitão América uma característica de símbolo nacional que poucos

super-heróis de HQs têm. Guardadas as devidas proporções, ele pode ser comparado a

outros símbolos nacionais, como o Tio Sam (Uncle Sam), a Águia Careca e a própria

bandeira nacional, que o personagem usa como vestimenta. Porém, o Capitão

América apresenta significativas diferenças e vantagens, se comparado com esses

símbolos por causa de sua habilidade de, ao mesmo tempo, incorporar e narrar a América de uma maneira que a Águia Careca, a bandeira e outros símbolos não têm. Desta maneira, esses símbolos estáticos e não humanos representam e constroem a nação, mas não permitem

3 “[…] as an explicitly American superhero establishes him as both a representative of the idealized American nation and as a defender of the American status quo.” (DITTMER, 2005, p. 627). 4 “[…] Captain America is a character that is familiar to several generations of Americans.” (Ibidem, p.628).

Page 5: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

5  

uma conexão pessoal como a que o Capitão América permite. [...] O Capitão América serve como um produto cultural que vagamente e invisivelmente conecta o leitor (comumente jovens do sexo masculino, aspirando ao heroísmo), através do corpo do herói, até a escala da nação. Essa ponte de escala, do corpo individual para o corpo político, é necessária para a construção de um estado territorialmente delimitado, ocupado por uma nação coesa. (DITTMER, 2005, p.630, tradução nossa, grifos no original)5.

Além disso, por caracterizar uma “narrativa heroica”, os quadrinhos do

Capitão América também “[...] fornecem uma avenida na qual qualquer um pode ter

acesso aos valores fundamentais de uma sociedade, os ideais que dão a essa sociedade

uma identidade, e o “outro” que essa sociedade teme” (COSTELLO, 2009, p.15,

tradução nossa)6. Assim, pode-se dizer que, por ser um símbolo nacional com um

maior dinamismo, se comparado a outros personagens similares, o Capitão América e

suas HQs contribuem para a discussão de questões relacionadas com a identidade

nacional dos Estados Unidos.

A Guerra do Vietnã, ocorrida entre os anos de 1965 e 1975, foi um dos

conflitos mais importantes, se não o mais, da chamada Guerra Fria. A importância do

conflito não está somente no fato de ter sido considerada a maior derrota já sofrida

pelos Estados Unidos, mas também pelas consequências que ela provocou na política

interna e externa norte-americana.

5 “As just illustrated, the impact of Captain America on readers is different than other symbols of America, such as the bald eagle or the flag because of his ability both to embody and to narrate America in ways that the bald eagle, flag, and other symbols cannot. Such static, nonhuman symbols represent and construct the nation but do not allow for a personal connection to it in the same way that Captain America does. […] Captain America serves as a cultural product that vaguely and invisibly connects the reader (usually young and male, aspiring to heroism), through the body of the hero, to the scale of the nation. This bridging of scale, from the individual body to the body politic, is necessary for the construction of a territorially bounded state occupied by a cohesive nation.” (DITTMER, 2005, p. 630). 6 “[...] the heroic narrative offers an avenue through which one can access the core values of a society, the ideals that gives that society an identity, and the “other” that society fears.” (COSTELLO, 2009, p.15).

Page 6: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

6  

Oficialmente, a intervenção militar direta dos Estados Unido teria começado

no final de janeiro de 1965, mas, desde o início dos anos de 1950, já havia uma

grande participação indireta norte-americana na organização política do Vietnã,

juntamente com os franceses que tentavam manter seus “direitos” de colonizadores da

região. A história política contemporânea do Vietnã é bastante complexa. O país

nunca gozou de uma liberdade política efetiva, foi constantemente alvo de ações

imperialistas, tanto por parte dos países ocidentais, principalmente a França, quanto

por potências orientais como a China e o Japão. Com isso, a história do Vietnã, a

partir de meados da Segunda Guerra Mundial, é marcada por séries de revoltas

visando à independência do país.

Os principais agentes dessas revoltas contra a dominação colonial foram as

pessoas ligadas ao Viet Minh7 (abreviatura de Vietnã Doc Lap Dong Minh, que pode

ser traduzido como Liga para Independência do Vietnã), grupo de orientação

nacionalista e comunista, que, ao longo dos anos de 1945 a 1954, conseguiu livrar o

Vietnã do domínio francês na chamada guerra franco-vietnamita (ou Primeira Guerra

do Vietnã, geralmente ela é também chamada de Primeira Guerra da Indochina ou

Guerra da Indochina). Essa ação deixou o país dividido em dois: ao Norte ficou a

República Democrática do Vietnã, sob controle Viet Minh, e ao Sul, o Reino Unido do

Vietnã, sob a liderança de Bao Dai (auxiliado por franceses e norte-americanos).

Assim, os dois Vietnãs deixaram de ser colônia francesa. No entanto, o país continuou

sob a influência ocidental/norte-americana, que considerava aquela região um ponto

importante para impedir o avanço do comunismo na Ásia, principalmente, após a

Revolução Chinesa.

Essa divisão e uma futura reunificação do Vietnã foram determinadas pela

Conferência de Genebra, em julho de 1954, a qual foi assinada por vários países,

menos pelos Estados Unidos. Segundo Visentini: “Não podendo impedir a

Conferência de Genebra, Washington irá procurar evitar, a todo custo, a

materialização das questões dela, em particular as eleições, pois sabia perfeitamente

que seus aliados perderiam.” (VISENTINI, 2007, p. 53).

7 Grupo político que não chegou a formar o que pode ser considerado um partido político, e posteriormente daria origem à FNL (Frente Nacional de Libertação do Vietnã do Sul).

Page 7: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

7  

Tendo isso em vista, os Estados Unidos, a princípio, apoiaram a ascensão ao

poder de Ngo Dinh Diem, que transformou o Vietnã do Sul numa República e

excluiu, definitivamente, os franceses do poder na região. Com isso, os interesses

comerciais e econômicos dos norte-americanos no país estavam garantidos. Diem deu

início, ou melhor, continuidade a perseguição de todos que faziam oposição ao seu

governo, principalmente, apoiadores do Viet Minh, e a FNL (Frente Nacional de

Libertação do Vietnã do Sul) que era integrada por vários grupos políticos e sociais8.

Essas ações de Diem, e o crescente apoio dos Estados Unidos, levam o Vietnã a uma

guerra entre o Sul e a guerrilha (FNL), que por sua vez teve o apoio do Norte, que

acabou resultando em um conflito mais amplo, uma nova guerra (civil), entre o norte

e o sul do país.

No início dos anos de 1960, os Estados Unidos começam a cogitar e a

estabelecer um plano de intervenção direta no Vietnã, baseado em três fases: na primeira, seria mantida a ajuda aos regimes amigos, iniciada por Eisenhower (que ocorria desde a guerra franco-vietnamita); a segunda seria a contra-insurgência, caso a ajuda falhasse, em que seriam enviadas tropas norte-americanas e aumentada a ajuda; a terceira constituiria uma “guerra limitada” como a da Coréia, caso fracassasse a contra-insurgência (os Estados Unidos lutariam contra os revolucionários e um ou mais países socialistas). (VISENTINI, 2007, p. 65).

Como a primeira fase já estava em prática, era necessário estabelecer e

viabilizar o início da segunda fase que ocorreu em 1961, com o aumento da ajuda

financeira e com envio de armamentos, equipamentos eletrônicos e agentes

americanos para treinar e comandar as tropas locais na “contra insurgência”. Em

meados de 1964, o governo de Diem é derrubado pelos próprios norte-americanos,

8 A FNL não era a mesma coisa que o Viet Minh, e surgiu da impossibilidade de, com o cancelamento da reunificação do país, se cruzar a fronteira, mantendo muita gente “presa” no Sul ou no Norte, longe de familiares, por exemplo. Para maiores informações sobre a FNL e os grupos que a integraram ler o terceiro capítulo de VISENTINI, Paulo Fagundes. A revolução vietnamita. São Paulo: UNESP, 2007.

Page 8: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

8  

pois, as ações dele estavam contribuindo para ampliar as fileiras da FNL. Na

sequência, o estado do Vietnã do Sul sofre várias tentativas de golpes militares,

aumentando, ainda mais, a instabilidade no país.

A FNL aproveita a situação para promover uma grande ofensiva que resultou

na morte de vários americanos e coloca a terceira fase do plano americano em ação.

Em janeiro de 1965, iniciou-se a operação Rolling Thunder, na qual o Vietnã do Norte

foi atacado por cinquenta caças bombardeiros dos Estados Unidos. Entretanto o

Vietnã do Norte não foi invadido, só bombardeado seletivamente. Isso deu início,

oficialmente, à Guerra do Vietnã, que, a princípio, teve um amplo apoio da opinião

pública norte-americana, pois era vista e divulgada como sendo um esforço para

salvar os habitantes do Vietnã, e também o mundo, da crescente ameaça comunista.

É nesse contexto que estão inseridas as histórias do Capitão América que

analisaremos. No mesmo período em que teve início a operação Rolling Thunder, a

Marvel Comics, então uma das maiores editoras de quadrinhos dos Estados Unidos,

publica a revista Tales of Suspense número 61, contendo uma aventura do Capitão

América onde ele é levado a um campo de batalha no Vietnã para resgatar um amigo

capturado pelos soldados comunistas, os “vietcongues”9. Posteriormente, em 1970, o

herói retorna ao Vietnã para um novo resgate, na edição 125 da revista Captain

America. (Figura 1.)

Estas duas HQs do Capitão América foram escritas por Stan Lee, pseudônimo

usado por Stanley Martin Lieber, que na época era um dos principais escritores e

criador de importantes personagens para a Marvel Comics (como o Homem- Aranha,

Hulk, Homem de Ferro, entre outros). Além disso, Stan Lee é conhecido nos meios

dos quadrinhos por ter promovido uma mudança na forma de escrever histórias de

super-heróis ao introduzir sentimentos, angústias e problemas cotidianos e sociais nas

aventuras de seres superpoderosos10.

9 Ou vietcong, um dos termos pejorativos que os norte-americanos usavam para se referir aos soldados vietnamitas comunistas. Cabe lembrar que eles não eram um exército regular, sua atuação era mais próxima as de uma guerrilha. 10 Para maiores informações sobre a Marvel Comics e as mudanças que Lee promoveu na editora recomendamos a leitura de “Secret Identity Crisis: Comic Books & Unmasking of Cold War America” de Matthew J. Costello (2009), e “Stan Lee: o reinventor dos super-heróis” de Roberto Guedes (2012).

Page 9: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

9  

Figura 1. Capas das revistas Tales of Suspense 61 e Captain America 125 (Marvel Comics, janeiro de 1965 e maio de 1970)

Este trabalho se centrará na análise das edições acima citadas, pois, elas são as

únicas publicadas durante o período da Guerra do Vietnã que mostram o Capitão

América agindo na zona de conflito. Com a análise, pretendemos investigar e

estabelecer como a intervenção norte-americana e os inimigos comunistas foram

caracterizados pelo autor e que tipo de mensagem ele procurou passar sobre as razões

que levaram os Estados Unidos (representada pelo Capitão) a entrar na guerra. Além

disso, analisaremos algumas críticas e reflexões que as HQs apresentam sobre a

guerra e suas consequências sociais. Especificamente, as edições 117 e 122 da revista

Captain America, publicadas entre 1969-70.

Page 10: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

10  

Em um campo de batalha no Vietnã

A primeira história em quadrinhos do Capitão América que vamos analisar é

intitulada The strength of the Sumo [“O poder do sumô”], publicada na revista Tales

of suspense número 61, de janeiro de 1965, contendo histórias do Homem de Ferro e

do Capitão América. Em linhas gerais, a HQ mostra o Capitão América em uma

missão de resgate num campo de batalha no Vietnã. Ao longo de sua missão, o

Capitão enfrenta vários soldados comunistas, com o único objetivo de resgatar o

piloto de helicóptero Jim Baker, irmão de um colega do Capitão, durante a Segunda

Guerra.

O Capitão América é caracterizado como um homem que tem uma nobre

missão a ser cumprida e esta não tem um caráter de ataque, pois, como mostra a

primeira página desta história, o Capitão foi ao Vietnã para dialogar com os

sequestradores de seu amigo e conseguir sua libertação por meios pacíficos, não para

participar ativamente do conflito. Já os soldados comunistas são representados como

homens rudes e agressivos – em alguns momentos suas feições estereotipadas pouco

lembram as de um ser humano – que estão constantemente tentando provar sua

superioridade ou testar a força do Capitão América, colocando-o em combate contra

soldados superfortes e contra o general lutador de sumô.

Os principais pontos de tensão dentro da história em quadrinhos estão ligados

ao embate entre os soldados comunistas rebeldes do Vietnã e o Capitão América, que

podemos dizer que representa neste caso o mundo capitalista ocidental. A tensão

ideológica é superficialmente exposta ao longo de todas as dez páginas dessa história

em quadrinhos. Logo no começo, após se render aos soldados inimigos, o Capitão os

desafia com as seguintes palavras: “Será que os soldados comunistas são tão fracos,

tão inseguros, que temem um Americano sozinho?? Esse é o tão falado poder dos

Vietcongues?? Eu vim para ver seu general... ou ele é tão medroso quanto vocês?”11

No mesmo quadro, ele é advertido por um dos soldados, que profere as seguintes

11“Is the communist fighting man so weak, so unsure of himself, that he fears one lone American?? Is this the much-vaunted power of the Viet Cong?? I have come to see your general – or is he too, as fearful as you!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 02, 1º quadro, 1965.

Page 11: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

11  

frases: “Contenha sua língua, fantasiado! Até mesmo nós já ouvimos falar de suas

proezas! E não seremos enganados tão facilmente quanto você espera!”12

Nesse diálogo percebemos que, mesmo correndo risco de morte, o Capitão não

perde a oportunidade de questionar a coragem de seus adversários. Seriam os

comunistas tão fracos e inseguros que temeriam um único americano? E o general

deles seria tão medroso quanto eles? O Capitão usa essa provocação como um ardil

para evitar uma morte prematura e para conseguir que os comunistas façam o que ele

deseja, ou seja, ser conduzido até o general para tentar resgatar seu amigo, Jim Baker.

No terceiro quadro desta mesma página, ao ser questionado com relação à

importância que um simples piloto teria para ser resgatado pessoalmente pelo Capitão

América, este responde dizendo “Ele é importante pra mim! Tenho um grande débito

para com ele!”13. Com isso, vemos que não é uma simples missão de resgate, em que

um soldado salva outro para cumprir seu dever: o que levou o herói ao Vietnã é uma

motivação maior, uma razão moral ligada a uma dívida do passado.

Dentro do enredo da história em quadrinhos, percebemos que, enquanto os

chamados “vietcongues” são representados como pessoas movidas por sentimentos de

ódio e por uma estranha necessidade de se mostrarem melhores que os americanos,

ou, pelo menos, que o Capitão América, já o próprio Capitão é representado como que

movido por um sentimento de honra14 que o impele a cumprir sua missão e a enfrentar

todos os desafios que se apresentem.

12“Steel your tongue costumed one! Even we have heard of the prowess of Captain America! We will not be as easy to trick as you may hope! (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 02, 1º quadro, 1965. (grifo no original) 13 “He is important to me! I owe him a very great debt!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 02, 3º quadro, 1965. 14 A honra traduz uma força e segundo Lucien Febvre “Ela tem por objetivo manter a vontade humana na via do bem moral, apesar do temor de um mal físico. Moral da honra, moral de combate e de sacrifício. Aceitar, afrontar, se necessário for, dor e morte. [...] Guardar o sentimento daquilo que se deve ao passado, ao seu próprio passado, ao passado da causa que servimos e pela qual nos sacrificamos. FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. (p.221-222)

Page 12: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

12  

Após caminharem pela floresta, o Capitão América é apresentado a um major

que lhe mostra seu primeiro desafio para alcançar seu objetivo: lutar contra dois

soldados muito fortes. Nas palavras do major, “Gostaria de provar como os

americanos são superestimados!”15. Este objetivo, como era de se esperar, não se

concretiza e o Capitão vence com grande facilidade os dois homens e os arremessa

contra o major, que, profere as seguintes palavras: “Você me humilhou na frente dos

meus homens! Você me envergonhou! Por isso, lhe enviarei para o general! Nenhum

ocidental deixou sua presença com vida!”16

Assim, o Capitão é levado para o local onde se encontra o general comunista.

O herói chega a uma aldeia onde se pode ver alguns tanques de guerra, caminhões e

soldados, uma possível alusão ao poder bélico dos comunistas. Há também uma

espécie de palácio antigo com vários desenhos e objetos (dragões, vasos, gongo etc.),

que fazem referência a um tipo genérico de arte oriental, comumente visto em filmes

e em outros meios de comunicação ocidentais. Ao entrar no “palácio”, o Capitão

América vai logo se apresentando a um soldado e exige ver o general. O soldado o

adverte de que ele não está em posição de exigir nada. Então, o Capitão responde,

com certa arrogância, que “quem decidirá isso é o general” e pede para que lhe

provem que o piloto ainda está vivo. Nisso, trazem o piloto à presença do Capitão,

que fica feliz em vê-lo vivo.

Enquanto um homem toca um tipo de gongo, o Capitão tranquiliza o jovem

Jim Baker, dizendo que eles irão achar um jeito de sair dali, assim como o irmão de

Jim achou um jeito de resgatar o Capitão durante a Segunda Guerra Mundial. Assim,

ele novamente recorda sua dívida dizendo: “Eu devo isto a ele, tenente... e a você! E,

por tudo que me é sagrado, eu juro a você que minha dívida será paga.”17 Nesse

momento, o jovem piloto faz um importante questionamento com relação às ações do

Capitão: “Mas, todo o mundo livre precisa de você, Capitão...!” E o Capitão América

15 “I wish to prove how over-rated the Americans are!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 03, 1º quadro, 1965. 16 “You have humiliated me in front of my men! You have caused me to lose face! For that, I shall send you to the general! For no occidental ever leaves his presence alive!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 04, 4º quadro, 1965. (grifo no original) 17 “I owe this to him, lieutenant… and to you! And by all I hold dear, I swear to you that my debt will be paid” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 05, 6º quadro, 1965.

Page 13: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

13  

responde: “Ele precisa de você também, filho! Ele precisa de todos nós!”18 (Figura

2.). Esse breve diálogo é, evidentemente, um convite aos leitores para se juntarem ao

Capitão América e aos Estados Unidos na luta do chamado “mundo livre” contra o

comunismo.

Após ser surpreendido por um “desfile” de pessoas fantasiadas anunciando a

vinda do general, o Capitão (após fazer uma piada comparando o desfile a um filme

de Cecil B. DeMille), no segundo quadro da página seis, olha para Jim Baker e diz:

“Somente um potentado com fome de glória e louco pelo poder poderia usar

semelhante comitiva! Quem é...?” 19 Nisso, o Capitão América é novamente

surpreendido pelo ataque violento de um gigantesco lutador de sumô (o tão aguardado

general comunista) que não apenas ataca o herói fisicamente, como o desafia com

palavras ao dizer, que “teme que o famoso Capitão América não esteja em posição de

resgatar nem a si próprio desta vez!”20. O ataque é seguido de um estranho pedido de

desculpas pelo ataque violento e de uma apresentação formal onde o general/lutador

de sumô explica como suas habilidades de lutador lhe possibilitaram chegar à patente

de general. No mesmo quadro da HQ, ele (o general) dá a seus guardas a ordem para

levar o Capitão e o piloto para serem executados. Esta ordem leva o Capitão a iniciar

um violento combate contra o gigantesco general.

18 O diálogo original na ordem que aparece é o seguinte: “But the entire free world needs you, Cap…!”/“It needs you too, son! It needs all of us!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 05, 6º quadro, 1965. (grifo no original) 19 “Only a glory-hungry, power mad potentate would employ such are a retinue! Who is…?” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, 1965, p. 07, 2º quadro. 20“I fear the famous Captain America will not be in position to rescue even himself this time!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, p. 06, 3º quadro, 1965.

Page 14: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

14  

Figura 2. Encontro entre o Capitão América e Jim Baker. (Tales of Suspense 61, Marvel Comics, janeiro de 1965, p.05)

No diálogo durante a luta, o general e o Capitão se limitam a trocar ofensas

referentes à força, esperteza e agilidade um do outro. A luta se desenvolve num

espaço de seis quadros da página sete da HQ, nos três primeiros quadros, a vantagem

parece ser do herói americano, nos três últimos quadros da página, o Capitão é

dominado pelo general. Enquanto ele luta para se libertar de um violento “abraço” do

general, um dos soldados sussurra o seguinte comentário: “A força do americano é

maior do que se poderia imaginar.”21

21 “The American’s strength is greater then one could imagine!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, 1965, p. 07, 6º quadro.

Page 15: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

15  

Este comentário do soldado pode ser encarado com um reconhecimento do

poder do Capitão America e, também, dos Estados Unidos. Além disso, mostra que

essa não é uma opinião que poderia ser exposta livremente. Um indício de que o

general possui um poder autoritário que não se limitaria a seus inimigos. Na narrativa

não existe nenhuma indicação de que o general é de fato um ditador, porém essa

caracterização serve para demonstrar as supostas diferenças que existem entre os

soldados dos EUA e os comunistas do Vietnã.

Na página seguinte, o Capitão se livra do ataque do general e parte para um

contra ataque pretendendo libertar-se e a seu amigo, Jim Baker, das garras do inimigo.

No terceiro quadro, o general profere palavras que podemos considerar como

“proféticas” com relação ao desfecho de sua batalha contra o Capitão e, também,

como sabemos hoje, da Guerra do Vietnã, “Até mesmo eu fico admirado com sua

habilidade! Mas, cedo ou tarde, você se cansará... e, então, minha força triunfará!”22

Já a resposta dada pelo Capitão América está alinhada com a ideia que os americanos

tinham de que sua intervenção na guerra civil vietnamita seria curta: “Você pode estar

certo, general, mas... eu não pretendo ficar aqui tanto tempo!”23

Na sequência (páginas 9 e 10), o Capitão e Jim Baker, com uma incrível

agilidade, derrotam os soldados e partem para uma das saídas do palácio que está

bloqueada pelo general, carregando uma enorme estátua; Jim Baker duvida da

possibilidade de que consigam escapar com vida. O Capitão pede para Jim manter-se

abaixado e diz “Que eles estavam apenas começando a lutar”24 enquanto usa seu

escudo para refletir a luz e cegar o general; ambos fogem por debaixo das pernas dele

e rumam para o local onde se localiza o jato privado do general, e derrotam 22 “Even I stand in awe of your skill! But sooner or late you must tire... and then is my power that shall triumph” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, 1965, p. 08, 3º quadro. 23 “You might be right, general, but...I don’t intend to stand around that so long!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, 1965, p. 08, 3º e 4º quadro. 24 “We’re just beginning to fight!” (tradução nossa) Tales of Suspense/Captain America nº 61, 1965, p. 10, 1º quadro.

Page 16: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

16  

rapidamente outro guarda lutador de sumô e fogem no jato. No último quadro desta

página final, Jim Baker tenta agradecer ao Capitão que, demonstrando um grande

altruísmo, finge não conseguir ouvir o que Jim diz por causa do barulho do avião.

Este final dá a entender que ele não fez mais do que sua obrigação como “soldado” e

como um homem que tinha uma dívida de honra.

É interessante notar que nas edições seguintes da revista Tales of Suspense, e

em várias edições da revista Captain America, Stan Lee optou por não mais mostrar

ou falar da Guerra do Vietnã. Ao invés disso, ele escreveu histórias onde o Capitão

enfrentava grupos de terroristas neonazistas (como a Hidra) ou seu arqui-inimigo

Caveira Vermelha25, (outro sobrevivente da Segunda Guerra, mas com a ambição de

dominar o mundo), ou ainda histórias que mostravam momentos do passado do herói

durante a Segunda Guerra.

Essa opção do escritor por trazer novamente à tona ameaças da Segunda

Guerra se deve, segundo Nano Souza, ao fato de que “a Guerra Fria era mais do que

um confronto entre o bem e o mal, por isso essas histórias não ‘funcionavam tão bem

quanto aquelas contra os nazistas. ’” (SOUZA, 2003).

O nazismo era e ainda é visto como a representação do que há de mais

maléfico no mundo, já o comunismo em suas mais variadas versões é tido como ideal

que movia e ainda move muitas pessoas em busca de um mundo melhor. Logo, a

lógica maniqueísta predominante nas histórias em quadrinhos do herói “bonzinho”

que luta contra o “mal” não poderia ser facilmente aplicada na luta contra os

comunistas. Transformá-los em vilões não era algo fácil e poderia não agradar muitos

leitores de quadrinhos que poderiam ser simpatizantes ou até mesmo comunistas. E,

se levarmos em conta que as HQs norte-americanas são vendidas em várias partes do

mundo, tal opção poderia atrapalhar as vendas do produto, mas, o uso de um vilão que

é quase que incontestavelmente associado ao mal em todo o mundo, tornaria o

discurso das HQs do Capitão América menos restrito. 25 O Caveira Vermelha é o principal inimigo do Capitão América. O personagem tornou-se recorrente nas HQs do Capitão e, ao longo dos anos, ele passou por mudanças que o atualizaram para que ele continuasse sendo uma ameaça em diferentes contextos. Para maiores informações sobre as mudanças que este vilão sofreu e seu papel como antagonista nas HQs do Capitão, recomendamos a leitura da dissertação: “A história em quadrinhos enquanto representação política – Capitão América e Caveira Vermelha 1941/1999” de Shesmman Fernandes Barros de Melo (2011). Disponível em: <http://nou-rau.uem.br/nou-rau/document/?code=vtls000197084>

Page 17: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

17  

A escolha de Stan Lee pode ser encarada como uma boa saída mercadológica,

mas, ela, também, revela um ponto muito importante da relação maniqueísta dos

norte-americanos com a guerra. Os americanos sempre lutam ou estão do lado do

bem? Suas lutas são moralmente justas? Essas e outras questões de conotação moral

são um problema que ainda não foi solucionado na política externa norte-americana,

segundo Arthur Schlesinger: Esse tem sido um problema especialmente molesto nos Estados Unidos, pelo menos desde a Guerra do México e a Guerra Hispano-Americana, e mais do que nunca durante a Guerra do Vietnã. Uma origem anglo-saxônica e uma herança calvinista deram aos americanos a necessidade incoercível de ver o exercício do poder por eles como moralmente virtuoso. (1992, p.77).

A opção de relembrar a Segunda Guerra Mundial nas HQs, além de atender

uma demanda por uma guerra moralmente incontestável, também pode ser

relacionada aos problemas que o desenrolar da Guerra do Vietnã provocou na

sociedade e na opinião pública norte-americanas. Esta passou a questionar a real

necessidade de mandar soldados fortemente armados para um pequeno e pobre país

asiático. Muitos passaram a se posicionar contra uma guerra que a cada dia se

mostrava mais insuportável, tanto no campo moral quanto no financeiro, pois, muito

dinheiro estava sendo gasto e vidas de jovens americanos estavam sendo perdidas.

O historiador Gary Gerstle (2008) diz que o impacto causado pela Guerra do

Vietnã foi tão grande que, depois de anos, ela ainda é um episódio que procura ser

esquecido ou recontado de outra forma, principalmente pela indústria cinematográfica

nos anos 1980 e 1990. Alguns procuraram recontar a história da Guerra do Vietnã

destacando o heroísmo dos soldados, ou a falta de empenho dos mesmos e de quem os

comandava no conflito e, também, as consequências dele, como pode ser visto em

filmes como “Rambo: programado para matar” (First Blood, no original 1982) de

Page 18: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

18  

Ted Kotcheff; “Platoon” (1986) de Oliver Stone, e “Nascido Para Matar” (Full

Metal jacket no original) de Stanley Kubrick (1987).

Guerra do Vietnã e suas consequências internas

Para o governo norte-americano, os anos 1960 e 1970 foram marcados por

grandes desafios políticos, tanto externos (a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria de

modo geral), quanto internos. Internamente, ocorreu a eclosão de uma série de

movimentos por direitos civis – de negros, mulheres, gays, e de outras “minorias”

excluídas das políticas oficiais do governo – que exigiam, não só seus diretos, mas,

também, o fim da Guerra do Vietnã. Para encarar os dois desafios, estrangeiro e doméstico, os lideres da América possuíam uma estratégia de contenção, prevenindo a expansão das forças nacionalistas e de esquerda no exterior, enquanto continha os movimentos por uma democracia participativa em casa. (BUZZANCO, 1999, p.4, tradução nossa)26

Nesse ponto, novamente, o escritor Stan Lee se mostrou bem atento às

demandas da sociedade norte-americana do período; em 1969, na edição 117 da

revista Captain America, ele introduziu um novo personagem, o herói afro-americano,

Falcão (The Falcon), que se tornou o novo parceiro do Capitão América na luta contra

todo o tipo de ameaça durante muitos anos27. A inclusão do personagem buscava

estabelecer um diálogo com as reivindicações dos movimentos negros.

Stan Lee, também, usou o Capitão América para divulgar sua visão sobre as

manifestações e rebeliões que ocorreram no período, principalmente as de 1968. A

opinião do autor fica evidente na edição 122 da revista Captain America de fevereiro

de 1970, que contém a história intitulada “The Sting of The Scorpion” [O ferrão do

Escorpião]. Ela começa com o Capitão América vagando por uma rua de Nova York,

refletindo sobre sua vida dedicada a lutar por justiça e liberdade, se questionando

quando essa batalha terá um fim. Ele questiona sua importância no mundo atual, seu

papel como defensor da democracia, que valor tem seus ideais em um mundo onde

26 “To face both challenges, foreign and domestic, America's leaders had a containment strategy, preventing the spread of nationalist and left forces abroad, while contained the movements for participatory democracy at home.” (BUZZANCO, 1999, p.4). 27 Entre o ano de 1971 até meados de 1978, na edição 222, a presença do Falcão tornou-se tão marcante que o título da revista do Capitão foi alterado para Captain America and The Falcon.

Page 19: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

19  

“Agora há aqueles que desprezam o amor pela bandeira... o amor pelo país! Aqueles

para quem Patriotismo é apenas uma palavra fora de moda!”28

O herói segue se lamentando, comparando-se a um dinossauro, a um homem

pré-histórico vivendo num tempo que não é o seu, um tempo cheio de “rebeldes” e

“dissidentes” em que a moda não é defender o “establishment”, mas sim destruí-lo.

“E, em um mundo cheio de injustiça, ganância e guerras sem fim... quem pode dizer

que os rebeldes estão errados?”29. Suas lamentações terminam com a seguinte frase:

“Deveria ter lutado menos e questionado mais!” 30 . Essa página apresenta um

interessante recurso gráfico no qual os planos de visão fornecem uma gradativa

sensação de distanciamento entre leitor e personagem, que no último quadro

vislumbra-se apenas a silueta do Capitão a partir de um plano de visão bem mais alto

(Figura 3.). Esse recurso contribui para reforçar os sentimentos de solidão e

isolamento expostos pelo personagem.

28 “There are those who scorn Love of flag...love of country! Those to whom patriotism is just a square, outmoded word!” (tradução nossa) Captain America 122, 1970, p.02, 3º quadro. 29 “And in a world rife with injustice, greed and endless war. Who’s to say the rebels are wrong?” (tradução nossa) Captain America 122, 1970, p.03, 3º quadro. 30 “I Should battled less...and questionated more!” (tradução nossa) Captain America 122, 1970, p.03, 5º quadro.

Page 20: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

20  

Figura   3.  O   Capitão   América   dos   anos   70   apresenta-­‐se   confuso   e   questiona   sua   utilidade  num  mundo  onde  os  valores  que  ele  defende,  aparentemente,  estão  fora  de  moda.  (Captain  America  122,  1970.  p.03)    

Nas páginas seguintes (número 4 e 5), o Capitão se pergunta como combater

um mal que assume várias formas, que não é claramente definido e que, muitas vezes,

está ligado ao establishment. Ele admite que os “rebeldes” são os únicos que têm

coragem de lutar contra esse mal, e, como um herói que pertence ao establishment, ele

não pode derrubá-lo. Argumenta que esse mesmo establishment deu aos “rebeldes”

importantes personalidades como Martin Luther King, e os irmãos Kennedy, e indica

que há um problema de choque de gerações. Afirma que sua geração, provavelmente os

que eram jovens durante a Segunda Guerra, não é perfeita e que de fato nenhuma é

perfeita. Nessa parte o herói demonstra que o quanto é complexa a solução dos

problemas expostos pelos “rebeldes”. E a saída indicada pelo personagem é que todos

Page 21: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

21  

aprendam a conviver e amar uns aos outros, pois “Amor! É uma coisa que nenhuma

geração pode reivindicar como monopólio”31.

Nos trechos citados, percebemos que o Capitão América, mesmo tendo

dúvidas sobre o establishment que ele defende, não acredita que a solução seja

destruí-lo. Afinal, ele ainda acredita nele, talvez acredite que ele possa ser mudado

sem uma revolução ou sem conflitos. Vemos, também, o deslocamento de um

problema que é de ordem social e política para um problema moral e de conflito de

gerações, para o qual a solução recomendada pelo autor seria o amor e o respeito

entre todos.

É em meio a esta crise de identidade e questionamento de seu papel de herói

que o Capitão América é levado para o Vietnã para um novo resgate. Na edição 125

da revista Captain America, de maio de 1970, Stan Lee, juntamente com o desenhista

Gene Colan, nos apresentam a história “Captured in Viet Nam” [Capturado no

Vietnã]. Nesta nova missão, o herói está em crise, pois, além das questões identitárias

citadas acima, ele também sofre por ter rompido com sua namorada. Tentando

esquecer esses problemas, o herói procura algum tipo de distração e, ao ligar a TV,

descobre que o Dr. Robert Hoskins, um importante médico pacifista, desapareceu no

Vietnã. O médico estava ajudando feridos nos dois lados do conflito e tentando

estabelecer a paz entre eles, seu desaparecimento gerou uma série de acusações e

intensificou as lutas entre os vietnamitas do Norte e do Sul.

Ao chegar ao Vietnã, o Capitão América tenta encontrar o Dr. Hoskins, e, ao

mesmo tempo, procura evitar o confronto direto com os soldados vietnamitas,

preferindo fugir e se esconder em vez de atacar, pois, agora sua missão é em nome da

paz. Nessa parte a ação desenvolve-se na floresta, e vemos o Capitão sendo atacado

por soldados dos dois lados, mas não fica claro a qual lado cada soldado pertence. Ao

31 “Love! That one thing no generation can claim a monopoly on!” (tradução nossa) Captain America 122, 1970, p.05, 4º quadro.

Page 22: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

22  

longo da HQ, ele descobre que, realmente, nenhum dos dois lados da guerra foi

responsável pelo sumiço do médico, mas sim o vilão chinês conhecido como

Mandarim32. A motivação deste é caracterizada de forma superficial, e até estranha:

“Eu não desejo que haja paz na Ásia... até que o Oriente e o Ocidente tenham

destruído um ao outro! E depois... o Mandarim virá... para dominar aqueles que

sobreviveram ao holocausto”.33

O Mandarim é facilmente derrotado pelo Capitão América que foge e deixa o

Dr. Hoskins em segurança junto a soldados vietnamitas. Agora há esperança para a

paz, pois, “... ambos os lados perceberam que foram enganados pelo Mandarim... eles

podem se encontrar na mesa de paz novamente!”34 (Figura 4.).

32 Personagem criado em 1964 por Stan Lee e Don Heck , primeira aparição na HQ do Homem de Ferro na edição 50 da revista Tales of Suspense em fevereiro de 1964. 33 “For, I wish to have no peace in Asia... until the East and West have destroyed each other! And then... it is the Mandarin who will come forth… to rule those who survive the holocaust!” (tradução nossa) Captain America 125, 1970, p.21, 2º quadro. 34 “Now that both sides realize that they were duped by the Mandarin... they can face each other at the peace table again!” (tradução nossa) Captain America 125, 1970, p.29, 4º quadro.

Page 23: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

23  

Figura 4. Capitão América retira-se do Vietnã e espera que o conflito termine. (Captain America 125, 1970, p.29)

No último quadro, vemos o Capitão indo embora, em meio a uma forte chuva,

pensando no que o amanhã reserva para ele, na sua “solidão” em seus constantes

“combates”, e que um dia até mesmo o Capitão América pode “acabar sendo

derrotado”. A chuva e o uso de cores com tons mais escuros nesse último quadro

contribuem para reforçar os sentimentos que o herói manifesta. Nessa parte pode-se

inferir que o personagem teme que a falta de apoio possa levá-lo a uma derrota, uma

Page 24: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

24  

alusão a uma possível derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã ou na luta

contra o comunismo de um modo geral.

Considerações finais

O que estas HQs podem nos dizer sobre o período da Guerra do Vietnã e da

eclosão de movimentos por direitos civis nos EUA?

Com relação à história do Capitão América da edição 61 da revista Tales of

Suspense, podemos perceber como os autores (Stan Lee e Jack Kirby) procuraram

mostrar a Guerra do Vietnã de forma superficial. Como se a intervenção norte-

americana na guerra civil vietnamita fosse um resgate, não só de um piloto americano,

mas, também, de um país ameaçado por um governo comunista que foi – estranha e

pejorativamente – representada pelo enorme general “vietcongue”, lutador de sumô.

Já os Estados Unidos, na figura do Capitão América, são apresentados como

uma nação que vai à guerra movida por motivos “nobres” (como uma dívida de honra

no caso específico da HQ) e que só ataca para se defender, aliás, esta é uma das

razões para que a principal arma do Capitão América seja um escudo. Durante toda a

HQ, o Capitão América é constantemente desafiado pelos comunistas que desejam

provar sua superioridade, com relação aos americanos, mas, no final, quem acabava

vencendo era sempre o Capitão América (os Estados Unidos). Essa edição é do início

da operação Rolling Thunder, que marcou o início da intervenção militar direta dos

EUA no Vietnã e, naquele momento, tanto o governo quanto a opinião pública

acreditavam, não só na vitória, mas, também, na nobreza da causa que defendiam.

Logo, percebemos que a HQ estava não só apoiando o esforço de guerra, mas também

contribuindo para a criação de uma justificativa para a luta, pois, como mostra o

diálogo que citamos anteriormente entre Jim Baker e o Capitão América: “But the

entire free world needs you, Cap…!”, “It needs you too, son! It needs all of us!”,

todos deveriam fazer algo para defender um “mundo livre”.

No entanto, a segunda incursão do Capitão América mostra importantes

diferenças com relação à sua primeira participação na guerra. A princípio, a

motivação do herói é a mesma em ambas – resgatar alguém que foi preso pelo

Page 25: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

25  

inimigo – mas, neste segundo resgate, há um novo inimigo, o Mandarim, que não

quer que ocorra o fim do conflito.

O Mandarim é caracterizado como um agente da guerra que quer ver a

destruição de ambos os lados para depois dominar tudo o que sobrou. Do outro lado, o

Capitão América é caracterizado como um agente da paz que pretende resgatar um

importante pacifista que estava atuando na região. A ação do herói evidencia uma

nova postura adotada pelo autor da HQ. Na primeira visita do herói ao Vietnã, ele

estava evidentemente convocando todos a apoiarem o esforço de guerra, pois, todos

são importantes na luta do chamado “mundo livre” contra o comunismo, agora ele

está envolvido numa luta pela paz na região.

Esse comprometimento com a paz fica evidente no comportamento do

Capitão, que evita lutar contra os soldados; ele parece não ter interesse em lutar contra

nenhum dos soldados vietnamitas que o atacam, ele só está interessado em salvar o

Dr. Hoskins, um símbolo da busca pela paz, naquele conflito. Além disso, não há uma

diferenciação clara de qual é o lado de cada um dos soldados e a guerra é

caracterizada como uma luta “sem sentido”35, na qual, ambos os lados, estão errados.

Se encararmos o Capitão América como uma representação de como os autores, e

também a editora, esperavam que fosse a ação dos EUA nesse período, temos alguns

indícios para afirmar que eles procuraram mostrar que a Guerra do Vietnã não era

mais desejada, agora deveria haver esforços para que houvesse paz na região.

Quanto aos movimentos por direitos civis e pacifistas que ocorreram no

período as HQs não dizem muita coisa. Eles são abordados de forma muito

superficial, não há uma preocupação em explicar quem são os “rebeldes” que o

Capitão acusa de quererem destruir o establishment. Essa falta de explicação pode ser

35 “[...] the senseless sound of battle... and the endless toll of injury and death!” Captain America 125, 1970, p.13, 3º quadro.

Page 26: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

26  

um indício de alguma restrição editorial ou de escolhas narrativas do escritor que

optou por enfatizar temas com os quais o personagem poderia lidar.

É possível dizer que as contestações sociais e políticas do período eram um

problema relevante com o qual era difícil de estabelecer um diálogo mais aberto. Mas

que não poderia ser deixado de lado, principalmente em um meio de comunicação

voltado para jovens e cujo personagem principal é um herói patriota que tem como

característica básica ser um defensor do status quo. Entretanto a crise e os

questionamentos que o personagem manifesta indicam que ele estava passando por

um processo gradual de mudança. Assim como a sociedade que ele deveria

representar.

Com relação aos problemas internos dos EUA, um ponto interessante a ser

retomado, é a solução que Stan Lee propõe para a crise que se instaurou no país

(edição 122), “o amor e o respeito entre todos”. Como dissemos uma solução moral

para problemas sociais e políticos. Schlesinger adverte para o perigo desse moralismo

que atribui à política um valor teológico, e nos dá uma importante descrição de como

isso ocorre nos Estados Unidos Para grande número de americanos, a moral em política externa consiste na exportação de um corpo de preceitos gerais, acompanhada de sermões endereçados aos outros e congratulações endereçadas a nós mesmos. A suposição é que sejamos os fiscais, ungidos, do comportamento internacional e que a função da política dos Estados Unidos é classificar os Estados segundo sua obediência às regras tal qual nós as concebemos. (SCHLESINGER, 1992, p.82).

A Guerra do Vietnã colocou essa ideia em xeque, fez com que essa visão dos

EUA, como defensores de valores morais universais, fosse questionada, tanto

internamente, quanto externamente. Os questionamentos que o Capitão América faz

de suas ações, e sobre a validade de seus ideais patrióticos e democráticos evidenciam

as limitações desse tipo de interpretação moral sobre a ação dos Estados Unidos.

Porém, essa interpretação não foi descartada completamente pelo autor que procurou

transformar o Capitão em um defensor da paz, ou da cooperação, respeito e amor

entre todos.

Finalizando, as HQs do Capitão América aqui analisadas foram produzidas em

momentos distintos do personagem e apresentam diálogos limitados, porém

Page 27: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

27  

relevantes, com a Guerra do Vietnã e suas consequências sociais. Elas estabelecem

discursos narrativos que abordam a guerra de acordo com o contexto histórico no qual

elas estavam inseridas. O primeiro discurso pode ser caracterizado como um meio de

propaganda política visando constituir e difundir uma visão parcial e idealizada sobre

a Guerra do Vietnã e os inimigos dos EUA. Já o segundo caracteriza-se como uma

tentativa de divulgação de valores morais que deveriam ser adotados para que não

houvesse mais conflitos, tanto no âmbito das relações externas, quanto internas, e que

questiona, até certo ponto, a validade das guerras.

Referências Bibliográficas

BUZZANCO, Robert. Vietnam and the transformation of American life.

Malden: Blackwell Publishers, 1999.

CIRNE, Moacy. “Notas para uma história materialista dos quadrinhos”. In: Revista

cultura vozes. São Paulo: vol. LXXII, n.09, nov. 1978. (p.31-44)

COSTELLO, Matthew J. Secret identity crisis: comic books and the unmasking of

Cold War America. Nova York: Continuum, 2008.

DITTMER, Jason. “Captain America’s Empire: reflections on identity, popular

culture, and post-9/11 geopolitics.” In: Annals of the Association of American

Geographers, vol. 95, Issue 3, set. 2005. (p.626-643) Disponível em:

http://www.academia.edu/2446135/Captain_Americas_Empire_Reflections_on_Ident

idy_Popular_Culture_and_Post9_11_Geopolitics. Acesso em: 23 de agosto de 2015.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

GERSTLE, Gary. “Na sombra do Vietnã: o nacionalismo liberal e o problema da

guerra”. In: Revista Tempo, n° 25, julho, 2008.

KATZ, Chaim Samuel. “Ideologia e centro nas histórias em quadrinhos”. In: Revista

cultura vozes. São Paulo vol. LXVII n.07, set., 1973. (p.05-20)

Page 28: A Guerra do Vietnã e suas representações nas histórias em

 

28  

LEE, Stan; KIRBY, Jack. Tales of Suspense/Captain America. New York: Marvel

Comics, n. 61, 1965.

LEE, Stan; COLAN, Gene. Captain America. New York: Marvel Comics, n.122,

1970.

______________________. Captain America. New York: Marvel Comics, n.125,

1970.

MOURA, Fernando Scaff. Vietnã nos quadrinhos. Disponível em:

http://www.overmundo.com.br/banco/vietna-nos-quadrinhos-1. Acesso em: 29 de

agosto de 2015.

SAVAGE JR., William W. Commies, Cowboys, and Jungle Queens: comic books

and America, 1945-1954. Oklahoma: Wesleyan University Press, 1998.

SCHLESINGER Jr., Arthur M. Os ciclos da história Americana. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1992.

SOUZA, Nano. Capitão América: herói ou vilão? Disponível em:

http://www.universohq.com/quadrinhos/2003/capitao_americap1.cfm. Acesso em: 24

de agosto de 2015.

VISENTINI, Paulo Fagundes. A revolução Vietnamita. São Paulo: UNESP, 2007.