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A GUERRA GUARANíTICA: UM ESTUDO DE CASO' REJANE DA SILVEIRA SEVERAL" RESUMO O presente trabalho integra a dissertação "Jesuítas e Guaranis face aos Impérios Coloniais Ibéricos no Rio da Prata Colonial no Século XVIII". O tema principal que aqui se apresenta é a Guerra Guaranítica e suas influências produzidas entre guaranis e jesuítas. Apesar de já haver sido feitos vários estudos a respeito dessa temática, não foi possível chegar a uma conclusão consensual sobre esse assunto. Entrando em contato com a bibliografia disponível, tomamos conhecimento da existência de uma publicação jamais citada por historiadores brasileiros. Trata-se de um diário escrito por um oficial espanhol que comandou a expedição de combate contra os sete povoados missioneiros. A referida documentação é uma contribuição importante, pois dá oportunidade aos pesquisadores brasileiros que não têm acesso à documentação européia entrar em contato com essa fonte. Apesar de ser o depoimento do conquistador europeu, sujeito a preconceitos. essas informações, se confrontadas com a bibliografia e a documentação disponível, darão novas possibilidades de interpretar o passado missioneiro. Este trabalho é parte integrante da dissertação "Jesuítas e Guaranis face aos Impérios Coloniais Ibéricos no Rio da Prata Colonial no Século XVIII"1. Tem como tema principal a Guerra Guaranítica e suas influências entre guaranis e jesuítas. Antes de mais nada, começamos dizendo que, até a atualidade, a Guerra Guaranítica é um tema bastante controvertido. Apesar de vários estudos já terem sido realizados sobre essa temática por historiadores eminentes, muito pode e deve ser escrito na tentativa de elucidar o passado missioneiro, porque as várias interpretações feitas sobre o problema não A Trabalho apresentado no Seminário Internacional "Rio Grande do Sul: Pesquisas e u~ordagens Interdisciplinares", promovido pelo Departamento de Biblioteconomia e História da G no período de 26 a 30 de setembro de 1994. H' "Mestre em História. Professora visitante do Departamento de Biblioteconomia e Istória - FURG. 103

A GUERRA GUARANíTICA: UM ESTUDO DE CASO

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A GUERRA GUARANíTICA: UM ESTUDO DE CASO'

REJANEDA SILVEIRA SEVERAL"

RESUMOO presente trabalho integra a dissertação "Jesuítas e

Guaranis face aos Impérios Coloniais Ibéricos no Rio da Prata Colonialno Século XVIII". O tema principal que aqui se apresenta é a GuerraGuaranítica e suas influências produzidas entre guaranis e jesuítas.Apesar de já haver sido feitos vários estudos a respeito dessa temática,não foi possível chegar a uma conclusão consensual sobre esseassunto. Entrando em contato com a bibliografia disponível, tomamosconhecimento da existência de uma publicação jamais citada porhistoriadores brasileiros. Trata-se de um diário escrito por um oficialespanhol que comandou a expedição de combate contra os setepovoados missioneiros. A referida documentação é uma contribuiçãoimportante, pois dá oportunidade aos pesquisadores brasileiros que nãotêm acesso à documentação européia entrar em contato com essa fonte.Apesar de ser o depoimento do conquistador europeu, sujeito apreconceitos. essas informações, se confrontadas com a bibliografia ea documentação disponível, darão novas possibilidades de interpretar opassado missioneiro.

Este trabalho é parte integrante da dissertação "Jesuítas e Guaranisface aos Impérios Coloniais Ibéricos no Rio da Prata Colonial no SéculoXVIII"1. Tem como tema principal a Guerra Guaranítica e suas influênciasentre guaranis e jesuítas.

Antes de mais nada, começamos dizendo que, até a atualidade, aGuerra Guaranítica é um tema bastante controvertido. Apesar de váriosestudos já terem sido realizados sobre essa temática por historiadoreseminentes, muito pode e deve ser escrito na tentativa de elucidar o passadomissioneiro, porque as várias interpretações feitas sobre o problema não

A Trabalho apresentado no Seminário Internacional "Rio Grande do Sul: Pesquisas eu~ordagens Interdisciplinares", promovido pelo Departamento de Biblioteconomia e História da

G no período de 26 a 30 de setembro de 1994.H' "Mestre em História. Professora visitante do Departamento de Biblioteconomia eIstória - FURG.

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foram suficientes para se chegar a uma conclusão consensual sobre aatuação dos vários atores do conflito.

O confronto que se convencionou chamar de Guerra Guaraníticadesenvolveu-se na segunda metade do século XVIII, no território dos SetePovos da Banda Oriental do rio Uruguai. O processo histórico que veiodesencadear esse conflito bélico encontra origens no século XVI e XVII,momento em que é necessário definir os limites que cabiam a cada uma dasnações ibéricas na América. Tinha por objetivo o deslocamento dos índiosguaranis para a outra banda do rio Uruguai. Para tanto, foi organizado pelasnações ibéricas um exército aliado para combater os guaranis.

Entrando em contato com a documentação e a bibliografiaexistentes, tomamos conhecimento, através do Professor Dr. Rafael Carbonell(pesquisador europeu), da existência de uma publicação jamais citada porhistoriadores brasileiros" Esse é o caso de muitos documentos referentes àsMissões Jesuíticas, que, apesar de já publicados, não foram analisadosconvenientemente.

Sabemos das dificuldades de acesso dos pesquisadoresbrasileiros à documentação contida em arquivos europeus e americanos.Além disso, não há entre os trabalhos de pesquisadores brasileiros maisrelevantes, que se dedicam à temática da Guerra Guaranítica, nenhumareferência que diga respeito a essa publicação em suas notações. Trata-sede um diário escrito por um oficial espanhol que comandou uma expediçãode combate aos sete povoados missioneiros. Refere-se à expediçãoespanhola do Capitão D. Francisco Graell contra os Sete Povos dasMissões do Uruguai, desde o seu Quartel-General em Montevidéu,percorrendo todo o território dos Sete Povos. Tinha por objetivo entregaros Sete Povos aos portugueses. Estendeu-se do dia 5 de dezembro de1755 a 21 de junho de 1756.

O diário do Capitão Graell nos traz informações importantes, como:clima, fauna, combates, descrições de vegetações, construções missioneiras(entre outras). Cabe salientar alguns exemplos:

No dia 6 de janeiro de 1756, chegou ao acampamento no arroioPalleros o Tenente D. Antonio Pinto Carnero, com uma carta de GomesFreire, na qual propõe que seja a ilha de Sarandi ponto de passagem paraentrar nas Missões por Santa Tecla. Freire achou conveniente fazer paradana dita ilha, a fim de que ali se juntassem as tropas das duas Coroas parafacilitar a trajetória.

... con carta dei Exmo. Sr. Gomez Freire, Iacual propone... para que alí se junten IaStropas de Ias dos Coronas ... (p.452)

104BIBLOS, Rio Grande, 7:103-109, 1995.

No dia 7, um destacamento vindo do Quartel-General encontrouduas cartas escritas em Guarani, que não puderam ser traduzidas.

... hal/6 en un paio dos cartas en guaraní, Iauna maltratada; el contenido de una y otrahasta ahora se ignora,. por falta deinteligente traductor. (p.452-3)

No dia 16 de janeiro, o Capitão Graell relata à incorporação à suatropa de aproximadamente 200 homens oriundos da expedição do Tenentede Corrientes. Reclama da umidade do clima ao anoitecer e da escassez dacaça na região.

Estas campaflas son escasas de caza, s610si se hal/an algunos venados, jabalfes yperdices, con algun pescado, aunquemenudo, en los arroyos, ... (p.454)

Nesses mesmos dias, foram avistadas três fogueiras, que, segundoalguns,

... corresponden en los puestos de SantaAna y San Antonio, y otro en el centro deestos dos, que distarán de este campo de14 à 16 toques, y habiéndose reconocido elpuesto de Santa Tecla distante de 6 à 8leguas, se hal/a, segun indicios, que losindios 10 han abandonado .._ . (p.545-6)

No dia 10 de fevereiro de 1756, o Capitão Graell descreve em seudiáríopormenores da chamada Batalha de Caibaté. Nessa manhã, o exércitodas duas Coroas pôs-se em marcha às cinco e meia. Em certo momento foiavistado um grande número de índios, que pareciam querer fazer-IhesOposição.Pouco tempo depois estava formada uma batalha.

... y para este efecto nuestra infantería ydragones echaron pie à tierra y formaron àIa derecha inmediatos à Ia infanteríaportuguesa, y correlativamente de nosotrosse subsiguieron los cuerpos de cabal/ería,de blandengues, santafecinos y correntinos,

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los cuales cerraron nuestra derecha, Y Iacabal/erfa portuguesa hacia 10 mismo por elcostado izquierdo de una y otra infantería.Luego se reparti6 Ia arti/lerfa por todo elfrente de Ia Ifnea ... (p.462)

As tropas das duas Coroas ansiavam combater os guaranis:

Toda Ia tropa, ansiosa de entrar en combate,menospreciaba los rigores dei sol, sed,hambre y cansansio ... (p.463)

Segundo o Capitão Graell, ainda foi pedido aos índios quedesocupassem os Sete Povos:

les mand6 que inmediatamentedesocupasen el puesto y se fuesen á suspueblos para evacuarlos, I/evando consigosus haciendas y equipajes; que en Iaretirada ni en los pueblos no s610 no serianmaltratados, antes bien Ia piedad dei Rey lesdaria todas Ias tierras que hubiesetimenester ... (p.463)

A batalha de Caibaté durou uma hora e quinze minutos.

... acampando despues de once horas defatiga sobre una cened« de poca agua,dependiente dei cerro nombrado Caibaté,que da nombre á todo este vaI/e. La perdidade los enemigos, segun el concepto, pesede 1200, incluyendo 154 prisioneros, yentreestos ... (p.464)

Nessa batalha acontece a perda do líder guarani Sepé Tiaraju e asbaixas, ainda que discretas dos exércitos ibéricos, centenas de vezesmenores, se comparadas com as perdas índias:

Los espettotes hemos tenido 3 muertos, con10 heridos en el Real hospital, y Iasportugueses un muerto con 30 heridos, Yentre estos el coronel D. Tomás Luis deOsorio y un alferez. (p. 465)

106 BIBLOS. Rio Grande. 7:103-109. 1995.

No dia 12 de março, às onze da manhã, os índios enviaram umacarta ao General espanhol.

Que los Cabildos de los pueblos se dan porbien enterados dei contexto de Ia que S. E.les escribi6 de Ia estancia de Santa Catalina,remitiéndola por algunos fndios prisioneros,y ai mismo tiempo tienen presente tambienque en dicha estancia quedan 9.002soldadbs unidos con los Charruas, Y que porel frente' tenemos 3.001 unidos con losMinuanes, resueltos á morir todos con susfamilias antes de despoblar los pueblos.(p.469)

Mesmo após a batalha de Caibaté, ainda aconteceram no territóriodas Missões pequenos combates:

La infanterfa espeõote, mandada por elCoronel D. Jose Joaquin de Viana, I/evaba Iavanguardia de Ia columna, y á estos seguianIas compeõies de ganaderos portugueses ydemas infanterfa, y á su retroguardia venianlos dragones espeõotes y portugueses, áexcepci6n de 200 dragones de esta naci6n,y el cuerpo de cabal/erfa de blandengues,que quedaron para custodia de todo elbagaje, cabal/erfa de repuesto y carruajeque dejamos hasta componerse el camino,y en el transito que vencimos en este dia

.gastamos de 4 à 5 horas. (p.470-71)

No dia 13 e 14 de maio, as tropas não puderam marchar por motivode mau tempo:

no se march6, por I/over mucho en dichotiempo, con 10 cual y Ias escarchas seacabaran de morir cuasi todos los cabal/os,que apenas de nuestra parte habránquedado mil, y de los portugueses muchomenos, y todos el/os tan endebles, que noestán para Ia menor fatiga. (p. 478)

BIBLOS. Rio Grande. 7: 103-109, 1995. 107

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No dia 17·,de maio, o Capitão Graell, estando com sua tropa nacapela de Nuestra Seriora de Loreto, no povoado de São Miguel,. dá umaótima descrição da casa do Cura:

... y hallaron ardiendo todas Ias principalesviviendas de Ia casa dei Cura, que era muybuene, con dos grandes patios y corredorescon columnas de piedra de sillerfa; enelprimer patio estaban Ias viviendas y en elsegundo los almacenes y oficinas, y tras detodo esto se halla Ia huerta cerrada depieore y siendo muy espaciosa; tiene variascalles de érbotes, como son: naranjos,limones, pinos y otros árboles frutales, conuna buena galería que queda destruida porel fuego: Ia iglesia es muy capaz, toda depiedra de silleria, con tres naves y medianaranja, muy bien pintada y dorada, con unpórtico magnífico y de bellísima arquitectura;bóvedas y media naranja son de madera; elaltar mayor de talla sin dorar, y le falta elúltimo cuerpo: en el crucere tiene tresaltares de. talla, los dos á Ia italiana,nuevemente aoreaos: el pueblo consiste en68 cuadrilongos de 44 varas de largo y 7 deancho, todo rodeado de corredores de 3varas, con pilares de piedra de sillería; todasestas cazas están divididas en cuartos paraIas familias de los ituiios, de manera quetotmen varias y' espaciosas calles, todastiradas á cordel: su armazon es de muybuena fuerte madera, con los techos de teja,pero Ias paredes son de canas y barro.Enlos almacenes se han encontrado algunoStercios de yerba mate, maiz y algodon, y enIas quintas de los indios, que son mucbes.se ha hallado en planta meiz, mandioca,batatas y calabazas, que son los únicoSfrutos de que abunda esta tierra, y tambienalgodonales, y asimismo yerbales plantadoSá mano. (p.478-79)

108 BIBlOS, Rio Grande, 7:103·109, 1995.

o Diário do Capitão Graell é uma contribuição importante, poisoportuniza aos pesquisadores brasileiros que não têm acesso àdocumentação européia entrar em contato com essa fonte .

Essa publicação nos dá ainda a vantagem de termos à nossadisposição o ponto de vista de alguém que participou ativamente do conflitoguaranítico, e que tem portanto uma visão real, ainda que parcial, doquotidiano missioneiro.

Apesar de ser o depoimento do conquistador europeu, sujeitoportanto a parcialismos e preconceitos, essas informações, se confrontadascom a bibliografia e a documentação disponível, com certeza possibilitarãouma nova leitura desse passado.

BIBLIOGRAFIA

1. SEVERAL, Rejane da Silveira. Jesuftas e Guaranis face aos Impérios Coloniais Ibéricos noRio da Prata Colonial. Porto Alegre: PUCRS, Departamento de História, 1993. Tese deMestrado.

2. VALLE, Marqués de Ia Fuesanta deI. Colecci6n de Documentos Inéditos para Ia Historia deEspana. Madrid: Imprenta José Perales y Martinez, 1892, v. 4. p. 450-84.

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